23 abril 2013

“DE MEDO MORREU O SUSTO”: MAIS UMA MORTE A NÃO CHORAR

“DE MEDO MORREU O SUSTO”: MAIS UMA MORTE A NÃO CHORAR
Aurélio Furdela


A leitura de um livro que neste 2013 completa dez anos de existência, pode acrescer o desgosto que se tem na vida sobre a natureza mais questionada pela humanidade: a morte. A morte sempre será mais uma. Mas esta, retratada no “De Medo Morreu o Susto” (2ª Ed. Imprensa Universitária, 2003) de Aurélio Furdela, o “mais uma vez” que se aplica não se refere à repetição dos actos, mas à forma como o caos é retratado.

Aurélio Furdela sabe como contar as suas peripécias de um mudo que não chega a fazê-lo como uma narrativa escrita. Começa assim… como se o que dirá não será, no fim, um vaticino, anúncio de uma morte ou falecimento, mais uma frustração, mais uma enrascada em que a condição humana nos impõe, como é a morte, o medo ou o susto como o autor destaca um dos contos do livro.
Na verdade, ciente de que a sociedade moçambicana está saciada de desgraças que imperam lágrimas e terrores com cicatrizes eternas, o autor de “De Medo Morreu o Susto” pauta por rir-se da desgraça do vivo-morto e vice-versa. Ou até, podia simplesmente chamá-lo de Mafa-Vuka, aquele que morre e acorda:
“Diante de Mafa-Vika tinha-se sempre uma nítida sensação de se estar perante um ser imaterial, quase fantasmagórico. Falava calma e pausadamente, com gestos demorados, vagarosos como passos de uma noite de Inverno: não dispensava pressa a nada. Parecia ter o tempo deste e do outro mundo controlado no olhar…” (p.15)
Esse conto, como pontapé de saída, é capaz de definir o presépio em que é aplicada a existência como uma estrada, onde não se veio para ficar, veio-se como se irá. “a morte é uma viagem digna de ser empreendida”, como dizia o personagem Mafa-Vuka no texto com mesmo título.
É nessa expressão de mortos que acordam, ou vivos que morrem vivos que Aurélio Furdela vai contar com o sarcástico humor as suas nove estórias, olhando para aquele assunto que, embora triste, é daqueles que a qualquer hora pode fazer romper do âmago o riso distante.
O conto “A morte de Jowawa” (p.19-20), por exemplo, encaixa-se no retrato obscurantista habituado nas convivências diárias. Aquela morte em que a vítima dos deuses, apenas teve o corpo a repousar durante dias, mas o coração continuava a clamar espaço entre os vivos, palpitando com uma saúde que o próprio Jowawa não podia aguentar mais, nem por vontade própria. Daqueles vizinhos que suspeitam feitiço da esposa do finado, que ainda não morreu, estando num estágio incógnito de permanência entre os vivos.
Uma morte não certa, indecisão permanente. Um conflito em que o leitor não é chamado a resolver, pelas narrativas fechadas de Furdela, ao mesmo tempo que os pontos finais bruscos que o autor escolhe, podem desiludir a espectativa.
Aliás, quando li esse conto no específico, recordei-me do velho Mariano, da obra “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra” (Ndjira, 2002) do escritor Mia Couto em que o referido personagem permanece no mesmo estado, meio falecido e meio vivo. O seu coração ainda palpitava mas o corpo estava num silencioso repouso e não tinha força nenhuma se não esse motor que turbinava sem parar, facto que até o médico que o examinou ficou sem explicação, principalmente quando perguntado: ele morreu ou ainda está vivo?
Ciente que dessa feliz semelhança, recordo-me também da que é assim que se contam estórias como essas, em noites de amanhecer sentados em grupo revivendo esses insólitos que só vem de um absorvedor de ideias retalhistas. O “De Medo Morreu o Susto” é a escolha de Aurélio Furdela em retratar o retalho do grosso que se vive na terra.
É grosso, por exemplo, o bem que a crença faz ao Homem, mas é retalho, os males que os homens que alimentam essa fé aos outros fazem, ao olhar o conto “Amén, pessoal” (p.27-35) onde um povo da aldeia chamada Cumba Li Ethele que vivia uma seca interminável, capaz de tirar todas as esperanças dos aldeões sobre o futuro das suas vidas, é prometido por um pastor que cairá chuva em dois dias desde que à Deus seja dado o que Lhe é roubado. “Com maldição sois amaldiçoado, porque me roubais a mim, vós, toda nação” – diz a bíblia lida pelo pastor a referir-se ao dízimo não dado ao “Senhor”. Com todo o remorso de roubar à Deus e com a mensagem enviada por esse divino de que as chuvas solver-se-ão dos céus em dois dias, o povo deu tudo de si, até os régulos entregaram as casas  em gesto de devolver ao “Senhor” o que a Si pertence, mas qual chuva veio?
O próprio conto “De Medo Morreu o Susto” (p.53-56) que o autor escolheu nomear o livro, não é caso de rir-se do medo que o personagem Susto, nome dado por ser um problema incorrigível de “Medo” que chega a confundir peixe e formigas com cobras e lagartos. Susto é um autêntico apavorado que chega a morrer em baixo da cama, enquanto por cima, a mulher, Mariazinha, encontrava-se com um homem, que o convidou por incumbência do marido com o intento de “dar uma lição” ao perseguidor da sua esposa que já não se servia da prostituição para sobreviver desde que se casou consigo.
Ao ouvir que o homem que estava com sua esposa tinha matado outros maridos das mulheres com quem amantizou, Susto, escondeu o medo dentro do seu coração que parrou de funcionar só de imaginar-se esmagado diante da sua esposa pelo homem que ele mesmo prometeu “dar lição”. Se tivesse que responder a pergunta que Aurélio Furdela não formulou, sobre o que terá matado o Susto, diria, sem dúvida, que foi a cobardia.
O jeito curto das estórias de Furdela que, até nos levam ao equívoco(?) de terem sido cortadas pela impaciência do autor, além de o marcar singularmente entre vários contistas moçambicanos levam-me a associá-lo ao tão afamado escritor brasileiro Machado de Assis que, para mim, tem mais contacto com o autor de “De Medo Morreu o Susto” particularmente  pelo tratamento da morto e vida em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
NR - “De Medo Morreu o Susto”. 2ª Edição – Imprensa Universitária, Maputo, 2003. 61
páginas
  • Eduardo Quive

Maputo, Quarta-Feira, 24 de Abril de 2013:: Notícias



FORA DOS PALCOS - HITLER, STALIN, FREUD E TROSTSKY EM VIENA: OS VIZINHOS QUE MUDARAM A HISTÓRIA DO SÉCULO XX

FORA DOS PALCOS - HITLER, STALIN, FREUD E TROSTSKY EM VIENA: OS VIZINHOS QUE MUDARAM A HISTÓRIA DO SÉCULO XX
Adolf Hitler


 HÁ 100 anos, a região de Viena, então capital do Império Austro-Húngaro, serviu de casa para cinco homens que viriam a ter papéis determinantes no Século XX: Adolf Hitler, Leon Trotsky, Josip Broz Tito, Sigmund Freud e Joseph Stalin.

Em Janeiro de 1913, um homem cujo passaporte trazia o nome Stavros Papadopoulos desembarcou de um comboio vindo da Cracóvia, na Polónia, com um bigode típico dos camponeses e uma mala de madeira, muito simples.
“Eu estava sentado à mesa quando a porta se abriu com uma batida e um homem desconhecido entrou. Ele era baixo, magro, a sua pele, escura, coberta por pequenas marcas e cicatrizes... não vi nada nos seus olhos que se assemelhasse a simpatia”, relembrou, muitos anos depois, o homem que Papadoulos tinha vindo encontrar na cidade.
Mas a real identidade do forasteiro era outra. Nascido Iosif Vissarionovich Dzhugashvili, o homem recém-chegado à Viena era, na verdade, Joseph Stalin, também conhecido pelos amigos como Koba.
E o seu anfitrião, um intelectual dissidente russo, então editor do jornal radical “Pravda” (A Verdade), chamava-se Leon Trotsky.
Obviamente, nem todos os “quase vizinhos” que viriam a moldar grande parte do Século XX nos anos que se seguiram dividiam as mesmas visões do mundo, e nem todos estavam no mesmo momento de vida.
Stalin e Trotsky, por exemplo, estavam a fugir do seu país.
Já o psicanalista Sigmund Freud viva um momento de exaltação por, de acordo com os seus seguidores, abrir os segredos da mente, e estava bem estabelecido na rua Berggasse, onde morava e atendia os seus pacientes.
O jovem Josip Broz Tito, que mais tarde viria a ser conhecido como o marechal Tito, líder da Iugoslávia, trabalhava na fábrica de automóveis Daimler, em Wiener Neustadt, uma vila ao sul de Viena, e procurava emprego, dinheiro e diversão.
E havia ainda um jovem de 24 anos do noroeste da Áustria cujos sonhos de estudar pintura na Academia de Belas Artes de Viena haviam sido destruídos duas vezes e que agora vivia numa pensão na rua Meldermannstrasse, próximo ao Danúbio.
Frustrado, o austríaco que viria a transformar a história de maneira terrível chamava-se Adolf Hitler.
E reinando sobre todos eles, no Palácio Hofburg estava o já envelhecido imperador Franz Joseph, que detinha o trono austro-húngaro desde o ano das grandes revoluções, 1848.
O arquiduque Franz Ferdinand, designado como seu sucessor, morava no Palácio Belvedere, nas proximidades, e aguardava com ansiedade o momento de tomar o poder. O seu assassinato, em 1914, seria o estopim da Primeira Guerra Mundial.


IMPÉRIO E DIVERSIDADE
Sigmund Freud

 A Viena de 1913 era a capital do Império Austro-Húngaro, que consistia em 15 nações e mais de 50 milhões de habitantes.
“Embora não fosse exactamente um caldeirão de diversidade, Viena tinha o seu próprio tipo de charme cultural, atraindo os mais ambiciosos de todas as partes do império. Menos de metade dos dois milhões de habitantes da cidade eram nativos e cerca de um quarto vinha da Boêmia (região no oeste da República Tcheca) e da Morávia (no leste do mesmo país), então o tcheco era falado ao lado do alemão em muitas ocasiões”, explica Dardis McNamee, editora-chefe do “Vienna Review”, único periódico mensal em inglês da Áustria, e moradora da cidade há 17 anos.
Ela acrescenta que, na época, os súbditos austro-húngaros pertenciam a um império onde 12 línguas diferentes eram faladas.
“Oficiais do Exército Austro-Húngaro tinham de estar aptos a dar ordens em 11 línguas além do alemão, e cada uma tinha a sua própria versão do hino nacional”, diz.
Além disso, outras características tornavam a cidade atraente, entre elas o tipo de governo e os famosos cafés, onde intelectuais de várias origens se encontravam e mantinham calorosos debates.
“A comunidade intelectual vienense era na verdade razoavelmente pequena e todos se conheciam, o que tornava possível um intercâmbio através das fronteiras culturais”, explica Charles Emmerson, autor de 1913: Em Busca do Mundo Antes da Grande Guerra, que também actua como pesquisador sénior no instituto de política externa Chatam House, na Grã-Bretanha.
“Não havia um Estado central muito forte. Ele era na verdade um pouco displicente. Se você quisesse encontrar um lugar para se esconder na Europa onde pudesse conhecer muitas outras pessoas interessantes, Viena era o lugar para se estar”, diz.
Embora todos frequentassem os cafés da cidade e tivessem os seus favoritos, ninguém sabe se Hitler esbarrou em Trotsky ou se Tito conheceu Stalin. Mas obras como “Dr. Freud está pronto para recebê-lo agora, senhor Hitler”, uma radionovela de 2007 escrita por Laurence Marks e Maurice Gran, dão uma amostra de como esses encontros poderiam ter-se desenrolado.
O que se sabe, de facto, é que a guerra que emergiu no ano seguinte destruiu muito da vida intelectual de Viena, levando à implosão do império anos mais tarde, em 1918, e dando a Hitler, Stalin, Trotsky e Tito papéis cruciais na História.

Maputo, Quarta-Feira, 24 de Abril de 2013:: Notícias


10 abril 2013

NA “ZONA QUENTE”  PÓS-COLONIAL

Regulação de gênero
A forma particular, histórica, como aparece a regulação das posições de gênero em Moçambique, não dissimula, é óbvio, o caráter estrutural das disposições simbólicas que são necessárias para produzir a sujeição/subjetificação de um sujeito dispersivo e heteróclito que chamaríamos “a mulher”. Desse modo, ampla engenharia social e todo o poder das disposições simbólicas, e da violência, foram mobilizados para reconformar/reconhecer a mulher como um sujeito (assujeitado) no interior das estruturas em transformação do Estado em construção. O que parece algo perturbador, entretanto, é a continuidade dessa produção subjetificante que observamos entre o período colonial e o período frelimista, como aponta Signe Arnfred (2011), entre outros.

Fotografia do autor, Maputo


Realizando pesquisa sobre a regulação estatal de gênero1 em Maputo, me deparei por diversas vezes com duas enormes fotografias no Hall de entrada do Arquivo Histórico de Moçambique (AHM). Samora Machel, em uniforme militar, e  Joaquim Chissano, de terno e gravata. Ícones da memória revolucionária vigiavam os dois, gigantes e masculinos minha curiosidade, pairando imaginários, como guardiões da História reconstruída em Moçambique. No interior dessa história de luta e lib
ertação,  parecem respirar baixinho, outras histórias e perspectivas que expõem as contradições do processo revolucionário. A mulher, e as relações de gênero e sexualidade, figuram no interior dessa história de emancipação e luta.

 Mulheres Makhuwa fotografadas por Weule, em 1906



O etnólogo evolucionista alemão, Karl Weule, realizou em 1906 expedição etnográfica pela então África Oriental Alemã2. Weule descreve a viagem entre o que é hoje Tanzânia e Moçambique, na qual pôde registrar inúmeros traços das culturas Yao, Makonde e Makhuwa. Neste livro, descreve e fotografa inúmeras técnicas corporais nativas, notadamente aquelas ligadas à mulher e à produção de um corpo feminino erotizado. Ora, tais práticas que foram duramente combatidas e criticadas, quer seja pela igreja católica no tempo colonial, quer seja pela FRELIMO no tempo socialista, encontraram um imprevisto defensor relativista em José Cota, jurista-etnólogo, designado pelo General José Tristão de Bettencourt, em 1941, para proceder à elaboração dos Códigos Penal e Civil dos Indígenas de Moçambique, a partir de estudo etnográfico dos povos da coloniais.

Na Zona Quente, rua do pecado
Em agosto de 2011, na minha última viagem a Maputo, estive sozinho pela primeira vez na “Zona Quente”. A “Hot Zone” da prostituição, instalada em torno de dois ou três quarteirões na Baixa, por onde circula por toda a noite a multidão característica de ambientes tais quais esses: as moças, e obviamente seus clientes, taxistas, vendedores, turistas, e hustlers indecifráveis. Já havia estado lá com amigos para “uns copos”. Ouvindo rock & roll no Gipsy, bebendo e conversando. Nessa noite, entretanto, fui sozinho, não, obviamente, buscando os serviços das raparigas, mas curioso em interagir com o território, saturado da memória das políticas sexuais e de seus embates no trânsito (pós)colonial. Na escada de acesso ao banheiro um enorme gordo me abre os braços, como um urso familiar: “Há quanto tempo não vinhas cá, dá-me lá um abraço”. Eu não sabia de quem se tratava e suspeitei que ali se encenava um ritual de reconhecimento ou inspeção, e uma ponta de apreensão picou meu coração. Todos viam que eu era estrangeiro e tive um pouco de trabalho em recusar, com polidez, a oferta insistente das moças.
Lá, na Zona Quente, recordava como à questão da prostituição era um ponto crítico na plataforma ideológica da FRELIMO, que via na ocupação colonial, também um aviltamento à honra das mulheres moçambicanas e, por conseguinte, de seus maridos, irmãos e esposos3. A prostituição e o uso abusivo do corpo da mulher, humilhante metáfora carnal do próprio colonialismo (Machel, 1984).
Ao mesmo tempo a política colonial empenhou-se na produção do corpo, e na sua submissão a uma alma, singular e imortal, entidade abstrata imposta como dispositivo político. A ela contrapunham-se as técnicas corporais locais e seu compromisso com as estruturas culturais de poder e gênero (Weule, 2000; Arnfred, 2011). Tais práticas eram anátema  para a moral revolucionária da FRELIMO, que buscava submeter a sexualidade da mulher, e via nas prostitutas a imagem incorporada da devassidão e degradação moral do colonialismo. Como diz Samora em discurso às Forças Populares de Libertação de Moçambique, alertando-as sobre os perigos pós-coloniais: “Temos inimigos muito fortes nas cidades: o alcoolismo e as prostitutas” (Machel apud Muiane, 2006: 554).
Em belo opúsculo, Fátima Ribeiro discute o tema da prostituição na obra do poeta nacional moçambicano, José Craveirinha. Como ela apontou com grande perspicácia, a prostituição operava no ambiente (pós)colonial como uma perversa zona de contato entre o mundo branco e o mundo negro.
A transposição da barreira entre um mundo e outro realizava-se nos dois sentidos havendo uma interpenetração nociva por trazer consigo a humilhação, a degradação física e moral da mulher, a alienação cultural” (Ribeiro, 1995: 17).
Neste mesmo livrinho encantador, Ribeiro traz-nos uma foto de 1973, de Ricardo Rangel, que mostra a Rua Araujo, coração da “Hot Zone” colonial. Nela, vemos homens brancos que circulam entre as raparigas negras, representação instantânea da contradição sexual na zona quente do contato colonial. Fanon apontou para como a fronteira no mundo colonial está estabelecida pela delegacia de polícia (1979), nesse caso deveríamos acrescentar que também o bordel pode estabelecer-se como fronteira colonial4.


 Rua Araujo, Lourenço Marques, 1973, fotografia de Ricardo Rangel em Ribeiro, 1995 


Craveirinha antecipa no poema “Doce Albertina das Cervejarias” (1961) a fúria revolucionária que, mobilizada pelo ultraje colonial de gênero, se alevantaria na luta de libertação nacional no ano seguinte, do Rovuma até o Maputo:

Mas tu!
Tu minha doce Albertina assídua nos snack-bares.
Neste mundo os encervejados filhos de tuas tarefas
com um milhão de pais e padrastos incógnitos
mas cedo ou mais tarde nos todos juntos
havemos de preencher as certidões de nascimento
com os verdadeiros apelidos escritos na correcta
caligrafia dos irrefutáveis argumentos
Moçambicanos desengatilhados no norte
ao sul e do sul ao norte
fumegando em prol das Albertinas
desde Tete a Negomano
e de Quiterajo a Angoche
emboscados depois via Zumbo
Maxixe…zzzzz!!!Gaza e Magude
marchando irresistíveis até Xinavane
Manhiça e Marracuene
Até chegarmos em triunfo
A Goba e Catuane!
(José Craveirinha, 1960, citado em Ribeiro, 1995).

No mesmo dia em que estive no Gipsy, li na internet, meio por acaso, o interessante texto “Na Rota dos Pecados Noctívagos” (Verdade, 2011). O autor deplora a presença de jovens na “Zona Quente”, as “bebedeiras” e a prostituição.
A actual  juventude maputense bebe mais do que nunca. Aliás, hoje, bebe-se muito mais cedo, mas não é só o álcool que faz parte do itinerário da juventude noctívaga: droga e prostituição completam o rol das prioridades juvenis. / (…) O destino é a ´zona quente´, na baixa da cidade./Por detrás destes seis jovens esconde-se uma história de vida igual à da maioria da sua geração que parece ignorar que está à beira do precipício” (Verdade, 2011)
O tom conservador, o moralismo,  a culpabilização da mulher e o retorno a imaginados valores tradicionais da família (nuclear, patriarcal e burguesa), isso tudo volta, depois de tantos anos, e por outros meios, como elementos duradouros, presentes na cultura moçambicana. Tudo então naquela noite me assediava a imaginação: Weule, Cota, Samora, Albertina. No frio ar avermelhado da Zona Quente Pós-Colonial.
Phallus Fantasma
Em Achille Mbembe, o conceito de postcolony está vinculado à ideia de uma “age”, com temporalidades concorrentes. Desse ponto de vista a produção do Estado, ou a “estatização” da sociedade, não advém da dissolução de antigos laços sociais, mas da superposição de velhas hierarquias e redes (Mbembe, 2001: 42). Outras dimensões da postcolony referem-se à ética da vulgaridade e à conversão fálica ao cristianismo, como obsedante possessão fantasmagórica do Estado e de sua erótica de alteridade e poder: “The phantasm of power and the power of the phantasm” (Mbembe, 2001: 231)5. Desse modo, a dominação consiste, para dominantes e dominados, na assombração pelos mesmos fantasmas, manifestada sob a forma avassaladora de uma economia da sexualidade:
The form of domination imposed during both the slave trade ns colonialism in Africa could be called phallic. During the colonial era and its aftermath, phallic domination has been  all the more strategic in power relationships, not only because it’s based on a mobilization of the subjective foundations on masculinity and femininity but also because it has direct, close connections with the general economy of sexuality” (Mbembe, 2001: 13).
O que observamos é que o fundamento de tal economia política enraíza-se, no trânsito colonial, pela incorporação do destino da mulher, e de sua sexualidade, ao front do debate político.
Referências Bibliográficas
ARNFRED, Signe. Sexuality and Gender Politics in Mozambique – Rethink Gender in Africa. Woodbridge. James Currey/The Nordic Africa Institute. 2011.
BUTLER, Judith. Gender Regulation. In . ___ Undoing Gender. New York. Routledge. 2004. Pp. 40-56.
DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Rio de Janeiro. Relume Dumará. 1994.
FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
HONWANA, Alcinda M. Espíritos Vivos, Tradições Modernas: Possessão de Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique. Trad. Orlando Mendes; Promédia, 2002.
LIESEGANG, Gerhard. Prefácio Biográfico e Notas Técnicas do Tradutor. In __ . WEULE, Karl.Resultados Científicos de Minha Viagem de Pesquisas Etnográficas no Sudeste da África Oriental. Ministério da Cultura. Departamento de Museus. Maputo. 2000. Pp. xix- xxxiii.
MACHEL, Samora. A Harmonia deve Começar no Seio da Cada  Família. Presidente Samora na abertura da Conferência Extraordinária da OMM. CEA – UEM. Pasta 160/ZC. 1984.
MACHEL, Samora. Discurso do Presidente Samora Machel no jantra das Forças Populares de Libertação de Moçambique. In ___ . MUIANE, Armando Pedro. Datas e Documentos Históricos da FRELIMO. Edição do autor. Maputo. 2006. Pp.552-555.
MBEMBE, Achile. On the Postcolony. University of California Press. 2001
MOORE, Henrietta L. Women and the State. In . __ . Feminism and Anthropology. Minneapolis. University of Minnesota Press. 1988.pp. 129-185.
RIBEIRO, Fátima. Uma Abordagem do Tema da Prostituição na Poesia de José Craveirinha. Maputo. AMOLP. 1995.
WEULE, Karl. Resultados Científicos de Minha Viagem de Pesquisas Etnográficas no Sudeste da África Oriental. Ministério da Cultura. Departamento de Museus. Maputo. 2000.


Agradeço a Aissa Mithá Issak, Hector Guerra Hernandez e Omar Ribeiro Thomaz, pelo apoio e inspiração.
·         1.Sobre regulação de gênero Cf. Butler, 2004.
·         2.Ver o esclarecedor prefácio de G. Liesegang ao livro (2000).
·         3.Sobre o Estado e a honra masculina cf. Moore, 1988.
·         4.O trecho em “Os Condenados da Terra” diz: “O mundo colonizado é um mundo cindido em dois. A linha divisória, a fronteira, é indicada pelos quartéis e delegacias de polícia. (…) Nas colônias, o interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime colonial de opressão é o gendarme e o soldado. Vê-se que o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não torna mais leve a opressão, não dissimula a dominação. Exibe-as, manifesta-as com a boa consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência a casa e ao cérebro do colonizado” (1979).
·         5.Sobre fantasmas, obsessões e o Poder Cf. Derrida, 1994. Sobre “espíritos” em Moçambique Cf. Honwana, 2002.

Corpo | 9 Abril 2013 | géneromoçambiquepos-colonial


DHLAKAMA ASSUME QUE MANDOU ATACAR ACAMPAMENTO DA FIR EM MUXÚNGUÈ


DHLAKAMA ASSUME QUE MANDOU ATACAR ACAMPAMENTO DA FIR EM MUXÚNGUÈ
Dhlakama em Santugira, Gorongosa


Lourenço do Rosário está a mediar diálogo entre Guebuza e Dhlakama 
Gorongosa (Canalmoz) - O líder da Renamo assumiu hoje em conferência de Imprensa que concedeu na sua base em Satungira, Gorongosa, que a ordem de retaliar o ataque ao acampamento da FIR em Muxungue, onde morreram quatro agentes desta unidade policial, foi dada por si. Dhlakama garantiu ainda que a Renamo irá retaliar todos os ataques que forem protagonizados pelos pelas forças policiais contra os membros da Renamo.

Lourenço do Rosario na mediação
Afonso Dhlakama anunciou ainda que neste momento o Professor Lourenço do Rosário está a mediar diálogo entre o Presidente da República, Armando Guebuza e o líder da Renamo, mas disse que para que a aproximação prossiga exige a libertação dos 15 membros do seu partido detido pela Polícia quarta-feira da semana passada em Muxungue, quando a FIR atacou a sede da Renamo, forçado a retaliação já referida.

Fim do cerco a Gorongosa

Dhlakama disse que as forças de defesa e segurança estão a cercar a sua base em Gorongosa e exigiu que recuem imediatamente, pois do caso contrário "não vai permitir ser atacado primeiro".
Exigiu igualmente que a "Frelimo pare de atacar os membros da oposição, não somente da Renamo".


Revisão imediata da lei eleitoral
Sobre o processo eleitoral que se avizinha, Dhlakama disse que é urgente a revisão da Lei eleitoral para garantir a paridade na representação dos partidos políticos na Comissão Nacional de Eleições. 
Dhlakama considera os membros da sociedade civil na CNE, "campangas da Frelimo".
(Fernando Veloso, em Satungira)


AFONSO DHLAKAMA GARANTE QUE NÃO VAI VOLTAR À GUERRA


Afonso Dhlakama garantiu hoje na conferência de imprensa, a partir da sua base na Gorongosa, que não vai voltar à guerra, mas advertiu o Governo que se se sentir atacado, atacará.


“Nunca vai haver mais guerra, mas não estou nada satisfeito com a situação e é preciso que sejam resolvidos rapidamente os problemas pendentes”, nomeadamente a composição dos órgãos eleitorais, que a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) contesta.
Dhlakama disse ainda que estão a ocorrer contactos com o Presidente moçambicano, Armando Guebuza, intermediados por um académico moçambicano, na sequência dos ataques da semana passada, que provocaram pelo menos oito mortos.
O líder da Renamo falou numa antiga base militar na Gorongosa, onde se encontra desde outubro do ano passado.
Nas negociações que estão a decorrer com o Governo de Armando Guebuza, o líder da Renamo revelou que exigiu a retirada dos efetivos policiais que, disse, o estão a cercar na serra da Gorongosa e a libertação de 15 militantes da Renamo detidos na última semana em Muxunguè.
Dhlakama disse ainda que haveria abertura da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo, no poder) para uma alteração à lei eleitoral, que a Renamo contesta. “As coisas estão a andar”, disse.
Na última semana, confrontos em Muxunguè entre elementos da Renamo e a polícia causaram cinco mortos e, no sábado, um ataque a um camião cisterna provocou três mortos.
Hoje, Dhlakama assumiu que autorizou o ataque ao quartel da polícia de Muxunguè, no distrito de Chibabava, de onde o líder da Renamo é natural.
“Tinha conhecimento e autorizei”, disse, revelando ter sido procurado pelos militantes do seu partido, na sequência de um ataque da polícia à sede do partido em Muxunguè.
“Não posso esconder, eu disse-lhes: ‘arranjem-se desenrasquem-se, vocês fizeram a guerra, sabem onde apanhar armas, defendam-se’, e no dia seguinte responderam”, disse Dhlakama.
Na conferência de imprensa na Gorongosa, o líder da Renamo acusou a comunidade internacional de pactuar com a “existência de eleições não transparentes” em Moçambique.
“Os europeus sabem o que acontece aqui e que não podem acontecer em Portugal ou na União Europeia, mas no fim dão condecorações” aos dirigentes da Frelimo.
Durante a sua longa intervenção, Dhlakama referiu-se diversas vezes ao que considerou serem as diferenças entre o sul, por um lado, e o centro e o norte de Moçambique, por outro, e disse que “a Frelimo tem planos para destruir o centro e o norte daqui a 20 anos”.
O PAÍS – 10.04.2013



09 abril 2013

DONA DEMOCRACIA E SEUS DEMÓNIOS

DONA DEMOCRACIA E SEUS DEMÓNIOS
Não sou fã de Paulo Coelho, o escritor brasileiro. Mas isso não o impede de escrever coisas bem interessantes. Por exemplo, numa das suas obras, “O demônio e a Senhorita Prym”, ele escreve o seguinte: “Há dois tipos de idiotas; aqueles que não agem porque receberam uma ameaça e aqueles que pensam que estão a agir porque eles próprios proferiram uma ameaça”.
De certeza que muitos leitores se vão sentir tentados a encontrar nesta observação perspicaz uma descrição adequada dos perigos que o retiro eremita do líder da Renamo representa.
Embora haja paralelos preocupantes, há muito mais que podemos extrair da observação. Na verdade, mais preocupante na instrumentalização política da ameaça pode ser o que ela diz acerca da nossa cultura política. E dizendo isso, pode ser que o líder da Renamo seja o mal menor.

Dois reparos
Preciso de dizer duas coisas antes de prosseguir. São importantes para melhor contextualização do alcance da citação de Paulo Coelho. A primeira é simples. O perigo do retorno à guerra em Moçambique é, objectivamente falando, bastante ínfimo. Parece gigantesco porque há gente apostada em o amplificar.Mais por isso. Moçambique em 2012 não é Moçambique dos anos setenta. Não há vizinhos agressivos como os que tivemos naquela altura; não há um contexto internacional de polarização ideológica como o tivemos naquela altura; o nosso país não é uma sociedade feita de indivíduos que seguem docilmente a vontade dum grupo de gente que se considera encarregue de tornar feliz todo o povo; Moçambique é feito de muitos moçambicanos com propriedade e, portanto, com interesse em desfrutar essa propriedade em paz, incluindo muita gente nas hostes dos partidos que neste momento são enteados da nossa democracia de partido único; mesmo aqueles que não têm nada – e são a maioria – têm interesse em manter o ambiente de paz; qualquer potencial rebelde, sobretudo na cúpula, virá sempre de alguém que ao contrário dos tempos do “bandido armado”, tem mesmo algo a perder.
 É certo que para haver guerra não é preciso mais nada senão alguém suficientemente insensato para pensar que tem razões fortes para enveredar por esse caminho. Esta é de facto a situação trágica dum país com um Estado frágil como o nosso. O potencial de desestabilização interna é enorme e para isso não são necessários homens armados. Na verdade, o maior perigo à estabilidade deste país vem mais da rua e dos mercados informais do que duma rebelião armada. Esse potencial reside na natureza espontânea, e explosiva, da violência que sempre pode vir desse canto. Agora, para que haja guerra, porém, não basta o primeiro tiro. O mais importante é produzir uma dinâmica suficientemente forte para que haja o segundo, terceiro e quarto tiros. E isso nas condições actuais de Moçambique é extremamente improvável tanto mais que ao contrário do passado aqueles – de fora – que teriam interesse em atiçar esse tipo de conflitos estão mais interessados em preservar os seus interesses económicos. Iniciar uma guerra nas condições actuais de Moçambique seria um acto suicida. Jonas Savimbi não está aqui para o confirmar. E essa é a confirmação.
A segunda coisa que eu quero dizer antes de prosseguir é mais complexa. Tem a ver com a forma como abordamos a racionalidade da acção política. Sobretudo entre a massa pensante do país prevalece a ideia de que a acção política se explica pela forma como ela responde a considerações normativas. Agimos politicamente com o intuito de preservar a democracia, combater a pobreza, criar uma sociedade mais justa e, geralmente, desenvolver Moçambique. Quem me dera que fosse assim! Para já, Moçambique seria uma excepção mundial porque a lógica da acção política funda-se, e, lamentavelmente, esgota-se na acumulação do poder como um fim em si próprio. E não estou a ser cínico. É verdade que de vez em quando falamos de “socialismo”, “capitalismo”, “liberalismo”, “justiça social” e não sei que mais. Contudo, esse palavreado tem mais servido – e repito: em todo o mundo – para justificar retroactivamente a nossa acção política. Este é um problema estrutural da democracia para o qual não há remédio santo, razão pela qual cada democracia é bem diferente da outra. É por isso que nos EUA temos cada vez mais uma democracia oligárquica – em que só aquele que consegue reunir muito dinheiro (na base de promessas que inviabilizam o seu manifesto eleitoral) concorre – enquanto que no continente europeu assistimos a uma profissionalização da sociedade civil que vai definhando a esfera pública.
Com isto quero discordar profundamente de algumas leituras que são feitas dos nossos partidos políticos. É perfeitamente racional que a Frelimo se transforme cada vez mais numa máquina política apostada apenas em manter o poder. Se isso significa mandar para o diabo princípios que ela própria defendeu no passado ou valores que alguns dos seus membros nutrem, oh pá, manda passear! Classificar isto de anti-democrático, imoral e traição da memória de Eduardo Mondlane e Samora Machel faz bem ao nosso próprio equilíbrio moral como críticos, mas parece-me inútil e analíticamente pobre. A preservação do poder pela Frelimo vai implicar necessariamente, nas condições actuais, o definhamento da esfera pública e, o que é ainda mais infeliz, o enfraquecimento da oposição. À medida que cresce o poder da Frelimo aumenta também a sua atractividade. Jovens formados, inteligentes e com ambição verão nela o principal veículo de realização profissional. Quadros das mais variadas áreas no aparelho do Estado e no sector privado verão na cumplicidade com coisas que não estão bem – mas são, aos seus olhos, no interesse da Frelimo – a melhor maneira de preservarem as suas posições. Se as pessoas se juntassem à Frelimo só por convicção, ela de certeza que não teria tantos membros quantos tem. Curiosamente, há mais probabilidade de encontrar mais militantes por convicção nos outros partidos do que na Frelimo. Para usar uma metáfora mais acessível às mentes menos descolonizadas do país: há mais convicção no adepto (que restou) do Sporting de Portugal hoje do que numa boa parte dos adeptos do FC Porto. O sucesso exerce o mesmo tipo de atracção que detritos duma certa natureza exercem sobre as moscas. E muitas vezes a única maneira de manter as moscas é continuar a produzir os cheiros que as atraíram. E essa produção pode ser feita à revelia de quem manda, mas sempre na crença na ideia de que ele (ou eles) assim quer(em).
Reconheço que a imagem não é agradável, mas devia ajudar a perceber melhor as coisas. A lógica que estou a tentar expôr vale também para a oposição. O uso da ameaça como instrumento político, sobretudo pela Renamo, não revela, num primeiro momento, pouca convicção democrática, falta de sentido estratégico e inépcia política. A ameaça continua simplesmente a ser um dos melhores instrumentos políticos que a Renamo tem. Não sendo – e nunca tendo sido – um movimento social que articula preocupações genuinas de sectores da sociedade moçambicana o seu principal trunfo na prossecução do poder político é a força bruta que a catapultou para as esferas mais altas da determinação política dos destinos do poder. E nem estou a sugerir que haja cálculo na acção do líder da Renamo. Na verdade, e curiosamente, se houvesse cálculo ele resistiria ao canto sedutor da ameaça. Bem vistas as coisas, há uma lógica quase que perversa do nosso sistema político. O único recurso viável que a oposição tem ao seu dispôr – a ameaça – acaba sendo funcional ao reforço do poder da Frelimo. Deve ser muito frustrante para a oposição, o que fomenta ainda mais a “irracionalidade” da sua acção política. É bem provável que quando o líder da Renamo se deslocou à Gorongosa não tivesse nenhum plano de convidar o governo para um “diálogo” lá, mas que uma vez lá, e rodeado de toda a simbologia que o catapultou para as esferas do poder político – refiro-me à simbologia da guerra – lhe tivesse ocorrido nesse preciso instante a ideia de proferir uma ameaça que depois ganhou vida própria nas mãos dos sectores mais histéricos da nossa opinião pública. Se calhar ele já está arrrependido, mas não tem maneira de recuar sem “confirmar” a sua inépcia política. Repito: ser oposição num país de democracia de partido único é extremamente frustrante. Está-se condenado a ajudar a reproduzir o poder de quem está no poder.

Qual é o “idiota” que vai salvar Moçambique?

Com estes dois reparos longos já posso entrar para o tema propriamente dito. E o tema consiste ainda na relação que existe entre os dois tipos de idiotas identificados por Paulo Coelho e a nossa cultura política. Um não age por medo e outro age porque pensa que a palavra o comprometeu. Esta tensão descreve, em minha opinião, a nossa cultura política. Deposito toda a minha esperança no primeiro “idiota”, pois só ele pode salvar o país se assumir a sua responsabilidade como cidadão. O segundo “idiota” é a causa dos nossos problemas, por isso ele não pode ser a solução. Mas qual antídoto, se calhar não faria mal conhecê-lo melhor. É justamente isso que me proponho fazer nos parágrafos que se seguem.
Na verdade, há um certo sentido em que podemos dizer que a cultura política do país é refém dum discurso político dos anos 50, 60 e 70 do século passado que tem sido o maior calcanhar de aquiles do Estado em África. Trata-se dum discurso messiánico, portanto, milenarista, que aposta profundamente na ideia duma eleição divina que vai preparar o reino do Senhor. É um discurso que se funda numa concepção política baseada, curiosamente, na rejeição da política como instrumento de gestão das relações sociais. Os paralelos com a religião – sobretudo com religiões monoteístas – não são fortuitos. Há na verdade uma afinidade electiva muito grande entre religiões como o Cristianismo e o Islão e a concepção política em que se baseia o discurso fundador do Estado africano. Essa afinidade está na utopia, isto é na imaginação duma sociedade radicalmente diferente da actual e que vai trazer a harmonia eterna nas relações entre os homens. Continue a ler que eu ainda vou explicar melhor.
O nacionalismo em Moçambique surgiu do descontentamento com a ordem social colonial. Esse descontentamento ganhou coerência como discurso utópico que se pôs a imaginar Moçambique sem o poder colonial. Essa ideia dum Moçambique livre do jugo colonial estimulou a acção de jovens intrépidos que apostaram as suas vidas na prossecução dessa utopia. Lutar por Moçambique implicou, necessariamente, a adopção da convicção segundo a qual os sentimentos nobres representados pelas pessoas que fizeram a luta constituiriam também a legitimação do seu papel como aqueles que iriam produzir uma sociedade mais justa, harmoniosa e consistente com a História. A ideia corrente naqueles tempos de que certos grupos seriam os “representantes legítimos do povo não-sei-quantos” reforçou a convicção destes indivíduos na sua eleição ao estatuto messiánico de anunciadores da nova ordem social. Foi assim em Moçambique como também foi noutros países africanos com a sua lista interminável de “pais da nação” e “libertadores da nação”. Nos países onde foi necessária a luta armada para tornar possível a independência – Angola, Argélia, África do Sul, etc. – surgiu um novo fenómeno, o fenómeno conhecido na literatura apropriada como “movimentos de libertação no poder”, cuja característica essencial é a sua rejeição instintiva da política como instrumento de regulação social. O momento onde isto se manifestou com maior clareza no nosso país foi logo a seguir à independência com o projecto marxista e sua ideia dum partido de vanguarda repositório das aspirações legítimas do povo moçambicano. A abertura do sistema político em 1992 não alterou de forma significativa esta rejeição da política, pois a ela acrescentou-se o messianismo da Renamo com a sua ideia de que a “luta pela democracia” lhe devia conferir o direito de ditar os destinos do país.
Este é o principal problema da nossa cultura política. Por norma, o jogo político é um jogo da soma zero. Isso é, em princípio, assim em todo o lado. O que um partido ganha é o que o outro partido perde. A forte ascendência da Frelimo, portanto, encontra a sua justificação neste princípio. Não é necessariamente por maldade de quem dirige a Frelimo, nem é mesmo por astúcia dos seus militantes. Não me parece prudente, nem sensato basearmos a análise do nosso sistema político na espectativa de que o partido forte perca uma parte do seu ascendente por uma questão de “defender a democracia”. Se a Renamo ou o MDM também tivessem o mesmo ascendente político comportavam-se da mesma maneira. Não iam oferecer votos à Felimo só para “equilibrar” o jogo democrático. Se o Maxaquene manteve o suspense durante tanto tempo antes de conquistar o título a duas jornadas do fim, foi porque não conseguiu arrecadar os pontos necessários a tempo; não foi para tornar o campeonato interessante... O jogo da soma zero é próprio do sistema político democrático. Do fim da segunda guerra europeia até aos anos noventa produziu nos países escandinavos quase os mesmos resultados que produz, ao nível da estrutura política, no nosso país. Os partidos social-democratas (ou laborais) governavam efectivamente em democracias de partido único.
No nosso contexto, porém, esse jogo da soma zero ganha contornos extremamente problemáticos sob o pano de fundo da convicção segundo a qual a existência de pontos de vista diferentes e, acima de tudo, de projectos de sociedade diferentes, constituiria um atentado ao direito histórico que certos grupos ganharam – os da “luta de libertação nacional” e os da “luta pela democracia” – de definir o que a nação moçambicana deve ser. As vitórias eleitorais da Frelimo confirmam, aos olhos dos seus militantes, a justeza da sua convicção numa eleição história; os desaires sofridos pela Renamo confirmam, aos olhos dos seus militantes, a injustiça dos homens que se opõem à realização da sua convicção numa eleição histórica. É muito complicado! Mas é isto que constitui o maior desafio à democracia em Moçambique. A visão messiánica que os nossos principais actores políticos têm torna-os extremamente desconfiados em relação a tudo quanto seja diferente. Eles apostam literalmente numa unidade nacional que implica uniformidade e são impacientes com tudo quanto atente contra a visão de sociedade que eles têm. E não importa se esta visão se modifica diariamente. A sua convicção numa eleição histórica garante que eles tenham sempre razão. Por extensão, enquanto o líder da Renamo não conduzir os destinos deste país nenhum diálogo será conclusivo, pois na sua perspectiva messiánica – que ele partilha com a Frelimo – os outros são usurpadores dum poder que lhe pertence por determinação histórica. Curiosamente, este tipo de postura está de novo a ganhar força nas democracias mais maduras, sobretudo sob a influência do fanatismo religioso. Há 200 anos Alexis de Tocqueville, o grande analista francês da cultura política americana, apostava no sucesso da democracia nos EUA com base na convicção segundo a qual a existência de várias denominações protestantes garantia a aceitação implícita da legitimidade duma visão diferente para o país. Hoje esse quadro alterou-se com os fundamentalistas cristãos, ao estilo da nossa cultura messiánica, a considerarem inimigo e herético todo aquele que pensa diferente. A democracia americana entrou em declínio, em minha opinião.
Ora, a visão messiánica em si é que constitui uma ameaça. É uma ameaça que pesa sobre todos nós. É ela que paralisa uma boa parte de nós. É ela que faz com que muitos de nós pactuem com a incompetência, a impunidade, o nepotismo, o oportunismo e tantos outros defeitos da nossa cultura política onde quer que eles se manifestem. O único escudo contra esses defeitos não é perfeccionar a arte de chamar nomes à Frelimo ou à Renamo; nem é procurar refúgio no conforto da crítica simplista, da crítica que foge dos méritos duma questão e nada no mar sujo das suas próprias convicções ideológicas muitas vezes mal formuladas. O único escudo contra esta cultura política messiánica e seus efeitos perversos é cada um de nós assumir os seus deveres como cidadão. Isso, mais do que um compromisso natural dos políticos com os valores da democracia, é que civiliza a acção política e educa os políticos. É assim nos lugares onde a democracia funciona melhor do que entre nós. Angela Merkel, Barack Obama, Passos Coelho e François Hollande não são mais democratas do que Jacob Zuma, Armando Guebuza ou Afonso Dhlakhama. Eles têm simplesmente menos oportunidades de serem como são, nomeadamente pessoas normais. E isso é assim porque agem politicamente em sociedades com indivíduos que assumem as suas responsabilidades como cidadãos. É assim porque insistem na importância da política que os “pais de...” rejeitam e odeiam.
Com isto não quero sugerir a ideia de que as pessoas devam ir à rua ou desencadear uma acção qualquer dramática. Não! As pessoas têm que prestar atenção às pequenas coisas da vida. Não jogar lixo no chão, não saltar a bicha porque alguém se considera mais importante do que os outros, dar emprego a quem achamos estar à altura do desafio profissional, exigir a nós próprios (e não só aos políticos e figuras públicas) probidade, integridade e respeito pelos procedimentos administrativos, indignarmo-nos contra tudo que torna a vida dos menos afortunados da nossa sociedade mais difícil ainda, nunca agir no interesse duma ideia fantástica de quem a violação dos preceitos da integridade pode prejudicar ou ajudar. Quando Paulo Coelho escreve que o primeiro tipo de idiota é aquele que não age porque alguém o ameaçou, ele referia-se ao cidadão que se esconde por detrás do expediente político para não honrar o lugar que ocupa na sociedade. Chamar a Frelimo de arrogante e a Renamo de fraca, repito, é o mais fácil. Exigir responsabilidade cívica a nós próprios é mais complicado. E por isso mesmo optamos pelo simples.
A Dona Democracia é uma dama caprichosa com forte inclinação suicida. Ela não é aquilo que a Frelimo quer, muito menos o que a Renamo quer. Ela é aquilo que a sociedade quer que ela seja. É uma oportunidade renovada que se apresenta constantemente à sociedade em plena consciência de como a máquina inexorável da política pode minar os seus alicerces e chegar mesmo a inviabilizá-la. Assim, quando se cria alarido em torno do retiro eremita do líder da Renamo passa-se perigosamente por cima de processos mais básicos que precisam de ser equacionados. Seguindo a lógica da acção política não há coisa mais normal neste mundo do que o líder da oposição fazer recurso a esse tipo de acções. E quanto mais gente houver que fale disso, melhor para ele. Igualmente, não há coisa mais natural neste mundo do que um partido no poder, neste caso a Frelimo, que tenta apoderar-se de todo o poder. E quanto mais gente houver que se desdobre em clamores contra a sua trivialização ideológica, melhor para ela e para aqueles que reconheceram que a arrecadação do poder é o que está a dar. Uma Frelimo dirigida só por intelectuais que apostam no valor terapêutico do raciocínio e da ponderação não estaria no poder para contar a sua própria história. A medida da perplexidade desses intelectuais – na verdade, demagogos marxistas ultrapassados pelos acontecimentos – está no facto de nem mesmo conseguirem segurar os seus lugares nos orgãos decisores desse partido e procurarem consolo em teorias de conspiração segundo as quais eles teriam sido afastados por vontade de “alguém”. Estão completamente desnorteados. O único “idiota” que vai salvar este país é o cidadão responsável, não o pseudo-intelectual que foi afastado da Frelimo ou que o líder da Renamo não tem. Dói, para mim como académico, reconhecer isso, mas a vida é assim mesmo. O resto são demônios, um dos quais é pensar que os ventos que sopram da Gorongosa são perigosos. Não me parece.

Elísio Macamo