17 junho 2014

FINALMENTE, Simeão Cachamba ou Thahula Ndindane, escritor moçambicano de barba rija, estreou-se em livro. E, por decisão tutelar, o primogénito responde então pelo nome de “A mão invisível que não é de Adam Smith”, uma obra poética afinal vencedora do concurso literário organizado por ocasião dos 35 anos do Banco de Moçambique, por conseguinte a entidade patrocinadora.
Dizemos finalmente porque, de facto, Simeão Cachamba não é qualquer imberbe nestas coisas de escrita e de resto toda a sua malta, maioritariamente, até já publicou mais do que um livro, um dos quais ele mesmo prefaciou, na circunstância “Vozes que falam de verdade”, a obra primeira do consagrado Marcelo Panguana.
E nisto de prefácios, os anais da literatura moçambicana têm também registado mais um de Simeão Cachamba no caso vertente à antologia de poesia intitulada “As palavras Amadurecem”, editada pelo Diário de Moçambique a propósito dos 10 anos da sua página literária, Diálogo, na qual pontificam a maioria dos grandes nomes da poesia nacional como, não podendo citar todos, José Craveirinha, Heliodoro Baptista, Armando Artur, Eduardo White, Mia Couto, Filimone Meigos, Luis Carlos Patraquim, Elton Rebelo, Daniel Macaringue, Filimone Meigos, Bassane Adamugy e, claro, o próprio dito Simeão Cachamba.
Mas, voltando à vaca fria, a última quarta-feira testemunhou, no Centro Recreativo do Banco de Moçambique, na Beira, cidade onde o poeta viu cair o seu cordão umbilical, o lançamento do “A mão invisível que não é de Adam Smith”, o que já havia aliás acontecido, ao que se depreende, mais discretamente, em Março na cidade da Matola e em Abril no Instituto Camões, na capital do país.
No evento da Beira, como de praxe, foi apresentado o autor, pela voz de Maria Pinto de Sá, presidente da Casa do Artista daquela cidade, e a obra pelo docente da Universidade Pedagógica, João Fenhane. O autor usou igualmente o microfone para falar de si e dos contornos deste projecto.
O livro de Simeão Cachamba consta de três cadernos. O primeiro leva precisamente o mesmo título da obra, enquanto os dois restantes são “A solidão que não é de Garcia Marques” e “A viragem que não é de Castro Soromenho”.
Mas a pergunta que não cala é mesmo esta:
Que estranha mão invisível que não é a de Adam Smith/Que mexe os cordelinhos da economia de Moçambique/Que é capaz de levantar tempestade num copo de água/E as leis do mercado e a propriedade desonra e magoa?
Como se impunha, convidámo-lo também a dois dedos de conversa sobre a obra que acabava de lançar e sobre o estágio da nossa literatura nos dias que correm e quejandos.
Começámos mesmo por pedir ao autor que se explicasse sobre a escolha de um título tão sugestivo como este: “A mão invisível que não é de Adam Smith”. E a reposta, sem evasivas, veio nos seguintes termos:
“Há um filósofo chamado Adam Smith, considerado o pai espiritual da economia, cujo livro referencial intitula-se ‘A riqueza das Nações’. Nesse livro, Adam Smith fala dos pressupostos da economia de mercado e uma das coisas que diz é que o interesse geral de uma sociedade pode ser realizado pelos interesses particulares, por exemplo, quando um padeiro faz pão resolve o seu problema mas acaba resolvendo também o problema dos outros.
 Existe, por conseguinte, uma mão que a gente não vê mas que traz soluções para os nossos problemas. Mas não é dessa mão que falo neste livro, daí o título “A mão invisível que não é de Adam Smith”.
Tributo ao jornalista Santos Artur
E o que é que o livro em si nos sugere?
Como sabemos, o nosso país enveredou por um sistema de economia centralizada que no entanto deu no que deu. Fizemos depois uma reviravolta. Então, este livro fala das coisas que aconteceram entre a Independência Nacional e o período em que entramos para a economia de mercado.
Numa leitura rápida do livro deparámos, de forma algo surpreendente, com o poema “Reza Emília” (pág. 47) à memória do jornalista Santos Artur, citado como autor de uma notícia sobre o apodrecimento de feijão nos armazéns da Companhia Grossista de Produtos Alimentares (COGROPA) que induziu o Presidente Samora Machel ao lançamento da Ofensiva Política e Organizacional no termo da sua visita à cidade da Beira em Janeiro de 1981. O que é que se passou afinal?
“Sim, foi mesmo assim. O presidente Samora Machel desencadeou a Ofensiva Política e Organizacional no termo da sua visita à cidade da Beira em Janeiro de 1981, na sequência de um artigo do nosso colega Santos Artur sobre o apodrecimento de feijão nos armazéns da COGROPA. O Santos Artur saiu da redacção com a Celeste, repórter-fotográfica, para uma reportagem e voltou com a história desse apodrecimento de feijão no armazém da COGROPA, numa altura em que o presidente Samora estava de visita à Beira. Eu era chefe da reportagem e disse ao Santos que fosse para casa e que se houvesse problemas no dia seguinte depois de o artigo sair que ele permanecesse em casa. Eis que, no dia seguinte, o presidente Samora começa o seu comício na Manga, precisamente fazendo alusão a essa situação do feijão apodrecido. A partir dai, regressado a Maputo, desencadeou as famosas ofensivas a várias instituições. Foi marcante e achei que podia fazer essa dedicatória ao Santos Artur neste livro e nesse poema”.
Santos Artur foi um proeminente jornalista do Noticias da Beira que mais tarde passou a designar-se Diário de Moçambique. Até à data da sua morte desempenhava as funções de Delegado do Jornal Notícias na Beira.
Olhando para o percurso de Simeão Cachamba, que já vai longo, fica a ideia de que estamos perante uma estreia tardia ou nem por isso. Sobre o assunto, ele responde:
“Embora eu já escreva desde a minha adolescência, de facto, não avancei para a publicação em livro, talvez porque tendo entrado cedo para o jornalismo não tenha tido muito entusiasmo para a publicação. Como jornalista, depois de transferir as minhas coisas para o papel quase que ficava por ai. Depois aconteceu eu ser o primeiro coordenador da “Diálogo”, a página literária do Diário de Moçambique, então passei a servir os outros. Mesmo ai publicava os meus textos, mas apenas para tapar buracos. Na verdade não me posso queixar de falta de oportunidades porque também fui gestor de empresas jornalísticas (Diário de Moçambique e Tempográfica) mas sempre evitei pôr as minhas coisas à frente. Também não tinha assumido ainda que devia publicar. A minha relação com a literatura foi sendo assim”.
Mas depois veio a pressão de amigos, colegas e outras pessoas que sabem que Cachamba escreve, daí ter decidido arrumar alguns trabalhos literários por afinidade temática e a passá-las para o computador.
E enquanto fazia a arrumação, eis que se depara com um anúncio do Banco de Moçambique, dando conta de um concurso literário. O tema era livre mas encorajava assuntos de economia. Como tinha muita coisa sobre isso, ele decidiu concorrer, tendo saído vencedor do concurso, que mais tarde deu no presente livro.
Mas agora que tudo começou, o resto só vai fluir, eis a questão. E a resposta:
“Para começar, como o concurso do banco impunha algumas limitações há muita coisa que ficou de fora e que poderei reaproveitar para futuras oportunidades. Mas tenho outro material literário, contos e projectos de novelas até para que as pessoas não pensem que a economia é a minha única musa.
Procuramos saber a razão do livro poético, pois, afinal quem conhece este autor sabe que tem um forte cunho de prosa.
“Se calhar esteja a seguir a mesma ordem. Eu comecei por escrever poesia e só depois entrei na prosa. Por isso, quem sabe, a prosa pode estar a caminho”.
Sobre a saúde da literatura moçambicana, o escritor fala dos desafios que existem sobretudo na componente temática e no campo da edição e publicação de livros.
“Penso que há dois grandes desafios. O primeiro está do lado dos próprios fazedores. Não há muita diversificação de temas. A nossa sociedade é rica de problemas que não aparecem reflectidos no espelho da literatura. Podíamos ter romances policiais, inspirados, por exemplo, naquela coisa do G20 que se falou muito. Há um certo afunilamento de temas mas se calhar com o tempo isso se ultrapasse. O outro desafio está do lado da publicação. É constrangedor que o próprio autor tenha que andar à procura de patrocínios para publicar as suas obras. Acaba fazendo mal uma das coisas. A edição de livros é uma espécie de fauna acompanhante. O estado tinha que repensar a maneira de realizar o seu compromisso com a literatura. É verdade que existe o Fundo Nacional para o Desenvolvimento Cultural (FUNDAC), mas não sei se o modelo que adopta é o mais adequado. Eu pergunto: qual é o foco? O autor? A obra? A editora? Não sei se não seria mais eficaz se esses recursos fossem unificados numa única base. Se calhar a coisa funcionasse de forma mais fluida”.
O Ministro da Cultura é poeta. Isso faz alguma diferença? Há dias um grupo de músicos sugeria ao candidato da Frelimo às eleições de Outubro que o próximo Ministro devia ser um músico. O que lhe parece, questionamos, ao que nos respondeu: “Penso que um Ministro tem que ser um bom gestor. O artista é artista. Está para produzir arte, ele não vai lá cantar, escrever ou esculpir. Pessoalmente, acho que ter um ministro artista não é garantia de que as coisas vão melhorar. A garantia só pode vir da mudança de procedimentos. Há um pensador, de que já não me lembro o nome, que diz que à medida que a pessoa vai subindo vai atingindo o seu nível de incompetência. Aí vai perder tudo. E não teremos nem bons gestores nem bons artistas”.
A Beira já deve ter um prémio cultural
A legislação autárquica confere responsabilidades aos órgãos municipais para realizarem também acções que de alguma maneira contribuam para a exaltação dos valores culturais locais.
Nesta esteira, o nosso poeta manifesta a sua preocupação pelo facto de isso não estar a acontecer, neste caso numa cidade como a Beira que já produziu grandes nomes da cultura moçambicana, inclusivamente um prémio Camões, que é o caso de Mia Couto, escritor natural desta cidade. E outros nomes como Shikane, Carlos Beirão, David Mazembe por aí fora.
E a comparação é mesmo inevitável neste particular: A cidade de Maputo tem, por exemplo, um prémio 10 de Novembro. Por que é que a Beira, que é a segunda maior do país, não pode ter um prémio similar? Eis a questão.
“A Beira, além da tradição que tem nesse sentido, conta hoje com uma série de instituições académicas e um tecido empresarial que pode muito bem comparticipar num projecto desta natureza. Isso serviria também para criar referências para a juventude que bem precisa disso. Falo de um prémio como falaria da toponímia. Por que é que não se pode avançar para a atribuição de nomes de figuras da cultura às ruas ou avenidas?”, indaga.
Thahula Ndindane
Um dos momentos mais emocionantes da noite de quarta-feira terá ocorrido quando o autor, no uso da palavra, explicou a origem do pseudónimo Thahula Ndindane.
Contou o poeta que entre os seus irmãos foi o único a quem foi dado um nome que vinha da sua linhagem matrilinear. O Simeão.
Vai acontecer que o pequeno Simeão só chorava, chorava e não parava de chorar.
Como não podia deixar de ser, era preciso saber o que se passava com o menino até que um nhamussoro (curandeiro) recomendou: tem que lhe ser dado o nome do seu progenitor, Thahula Ndindane. Assim aconteceu e assim terão parado os choros.
Já adulto e quando foi então a vez do concurso literário do banco e era solicitado que os trabalhos fossem assinados por um pseudónimo, nem mais, Cachamba preferiu resgatar o Thahula Ndindane.
E agora esta: Vencido o concurso e chegada a hora do livro, perguntou-se ao autor se não teria chegado a altura de assiná-lo pelo seu nome verdadeiro, Simeão Cachamba.
A resposta foi tão-somente a seguinte: “Antes que eu entre outra vez em crise de choros é melhor mesmo continuar a assinar Thahula Ndindane. (Risos) E aqui está então “A mão invisível que não é de Adam Smith”, de Thahula Ndindane!
Eliseu Bento

É o seu décimo primeiro livro. Primeiro foram os contos em “Xitala-Mati”, obra publicada em 1987. Seguiram-se depois "Magustana" (novela-1992), “A Noiva de Kebera” (contos 1994), “A Rosa Xintimana” (romance 2001), “O Domador de Burros” (contos 2003), “Meledina ou a Estória duma Prostituta” (romance 2004), “A Metamorfose” (contos 2005), “Contos Rústicos” (contos 2007), “Contravenção, uma História de Amor em Tempo de Guerra” (romance 2008), Caderno de Memórias, Vol I” (contos 2010) e o recém lançado livro de prosa “Mitos – histórias de espiritualidades” a que debruçamos neste artigo.
Estamos a falar de Aldino Muianga, nascido a 1 de Maio de 1950, considerado um autor impossível de se prever o que vai lançar e quando o vai fazer. Mas há quem o tenta decifrar.
Felipe Matusse e Nataniel Ngomane escalam a vasta obra deste autor, este último que vai mais longe, ao colocar Aldino Muianga ao lado de outras duas ilustres figuras da Literatura Moçambicana – Aníbal Aleluia e Paulina Chiziane.
Estas comparações surgem mesmo a propósito do novo lançamento de Aldino Muianga, da obra “Mitos – histórias de espiritualidade” – uma consagração deste escritor como um autor do além. Servindo-se do ser médico, que o é há longos anos, para espreitar outras medicinas capazes de tratar outras doenças, que ascendem ao meio físico humano – o espírito. E assim navega Muianga, desta vez em estórias curiosíssimas que se podem considerar da tradição moçambicana, mas que em algum momento, se associam ao obscurantismo, mesmo que uma considerável maioria a valorize.
Aliás, mesmo sem querer esquivar do assunto em tratamento neste artigo, vale a pena recordar que há dias, quando se celebrava o dia da medicina tradicional, foram divulgados dados que indicam claramente a associação dos moçambicanos a esta medicina de que se serve cerca de 70 por cento de concidadãos nossos.
Voltando ao assunto, Aldino Muianga, segundo estas duas figuras ligadas à nossa literatura e não só, demonstram que é de facto um perito na matéria, de acordo com o meio em que nasceu e cresceu (bairro Indígena, actualmente chamado Munhuana) e do trabalho que faz.
ESCRITA QUE REVELA A NOSSA IDENTIDADE
Para Filipe Matusse, a quem coube a apresentação do livro, Aldino Muianga é um autor no qual se revela a moçambicanidade e em “Mitos – histórias de espiritualidade” encontramos “uma nova proposta que aborda a nossa essência como seres humanos, porque nós somos seres biológicos, sociais, espirituais e psíquicos. Então, Aldino Muanga neste livro foi captar a dimensão espiritual e escorrer a volta dela”.
Matusse vai mais longe ao considerar a obra um “manual” em que se pode achar respostas daquilo que sempre quisemos saber como “por que é que existo, vale a pena realmente viver?” e conclui : “é um livro que nos apazigua, nos leva a um encontro connosco próprios.”
Mas também na óptica de Matusse, Aldino Muianga é uma referência da nossa literatura e, como médico/escritor, constitui uma figura que desbravou o caminho que muitos outros médicos seguem.
“Existe mais dois ou três médicos já com livros no país, mas ele foi o primeiro e todos estes o seguem. Quando publicou o seu primeiro livro em 1987, eu estava entrar na faculdade e já o tinha como referência.”
Comprometido com a causa da escrita
Por seu turno, o académico Nataniel Ngomane considera Aldino Muianga como um escritor de grande dimensão, isto porque tem um percurso e coerência na sua entrega na arte de escrever, facto que é comprovado pela sua vasta publicação literária.
Entretanto, Ngomane explica que há grandes autores que se tornaram grandes apenas por um único livro, o caso de Luís Bernardo Honwana, mas este de Aldino tem a ver com a perseverança e entrega na escrita.
“Mas também é grande autor porque ele consegue fazer nos seus livros, aquilo que se quer que a literatura faça. Que é, de alguma forma, mostrar muitos possíveis e aproveitar esses muitos possíveis para criar imaginários reais. E ele consegue.
Os textos de Aldino Muianga, particularmente aqueles em que retrata os subúrbios de Lourenço Marques (Maputo), conseguem criar o imaginário real desses cenários.”
Nataniel Ngomane compara Aldino Muianga com outros autores moçambicanos como José Craveirinha, Aníbal Aleluia e Paulina Chiziane.
Segundo o académico, há um elemento comum a todos eles que é o compromisso com o País, ao trazerem por dentro dos seus textos as diversas realidades moçambicanas.
“Da forma como eles escrevem, embora cada um o faça da sua maneira, colocando-os juntos, nós percebemos que há, a partir desses autores, uma construção suficiente de um imaginário da nação, de um imaginário cultural e esse imaginário acaba construindo nos leitores um imaginário da coesão nacional, portanto, a ideia da nação e de uma identidade.”
Contudo, a grande comparação que Nataniel Ngomane faz do Aldino é com Aníbal Aleluia.
“Não necessariamente o Craveirinha, porque os dois exploram antropologicamente o nosso mundo, trazem ao de cima, as nossas crenças, preocupações e inquietações. “Quando estou doente aonde vou? Vou ao médico (hospital) ou ao curandeiro? Alguém morre e tenho preocupações sociais, vou à campa de um familiar para poder sossegar o meu espírito. Isso é explorado por esses dois autores.”
As ideias de Nataniel Nogmane, que é professor de Literatura Moçambicana na Faculdade de Letras e Ciências Sociais e Director da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade Eduardo Mondlane, levam-no a comparar ainda o autor com Paulina Chiziane, por que esta também explora a espititualidade.
Aldino Muianga, o Aníbal e a Paulina desenvolvem esses temas. Estes são autores que exploram esse lado com mais veemência.
Mas, Ngomane avança outros nomes como Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa e Suleimane Cassamo que entram nessas histórias. Tal como acontece com a Lília Momplé e Calane da Silva.
“Mas o Aníbal, Aldino e Paulina exploram de uma forma mais profunda e em obras singulares. É isso que me faz os colocar juntos. Há várias linhas que colocam o Aldino Muianga ao lado de outros autores.
Feitas estas análises, Ngomane conclui que estamos perante um autor de obrigatória leitura por que contribui para a imagem de Moçambique não só como País, mas uma imagem das crenças moçambicanas, hábitos, sonhos, preocupações, organização social, cultural e religiosa.
“É como se fosse um cartão postal, uma radiografia da nossa sociedade. E a vivência que ele tem no âmbito da medicina, como médico a receber doentes desde que se formou há mais de 25 anos. É uma experiência fundamental porque a partir daí ele pode construir várias histórias que reflectem de alguma maneira, o jeito de pensar desses pacientes.”, considerou Ngomane.
E reflectir isso nos textos é, de acordo com o académico, uma forma de produzir um desenho de Moçambique e é importante que nós conheçamos esse desenho para sabermos quem somos, para onde vamos e para onde nós queremos ir.
Por causa disso, a Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane (FLCS-UEM), tem, no curso de Literatura Moçambicana, uma lista de textos literários moçambicanos em que está inclusa a obra “O Domador de Burros”, de Aldino Muianga.
Mas a nossa fonte refere que a outros níveis mais acima, nós começamos a introduzir mais livros deste autor para que o estudante tenha um leque de escolhas e poder trabalhar com um deles.
“Mas já vínhamos fazendo isto com vários autores, como é o caso de Ungulani Ba Ka Khosa, Paulina Chiziane e Mia Couto, mas sentimos uma necessidade de ir introduzindo mais escritores no leque de escolhas de estudantes. Fazendo isso, damos uma grande oportunidade aos estudantes de ter várias escolhas, mas ao mesmo tempo estamos a valorizar institucionalmente os nossos autores. Todos nós conhecemos Machado de Assis, Fernando Pessoa, mas não conhecenmos os próprios nossos autores. É papel da universidade contribuir na divulgação desses autores.” Concluiu.


O REGRESSO DO MORTO: ORALIDADE, MEMÓRIA E TRADIÇÃO*
Este ensaio tem como objeto de estudo o livro O Regresso do Morto, de Suleiman Cassamo, autor moçambicano. Serão discutidos alguns aspectos da oralidade, memória e tradição como constituintes da identidade nacional.

BREVÍSSIMO HISTÓRICO DA LITERATURA MOÇAMBICANA
O apego à terra é uma característica marcante nos moradores das sociedades rurais. Na maior parte das sociedades africanas a vida é rural. O processo de urbanização está a ocorrer gradualmente após as independências e fim das guerras civis, daí a literatura africana ser repleta de cenas de ambientes rurais. Nestes ambientes não urbanizados são guardadas as tradições: expressas no respeito aos mais velhos, na importância da palavra falada (seja no acto de falar agindo no mundo, seja no acto de contar, a fim de modificar ou entender alguma coisa do mundo), na valorização dos elementos da natureza, na reverência aos antepassados falecidos, enfim, em todos os elementos que de alguma forma identificam os grupos formadores de África.
Moçambique é independente desde 1975 e livre da guerra civil desde 1992, ou seja, é uma sociedade que ainda está se acostumando com o facto de ser nação, no sentido moderno.
Está dividida entre a vida rural e a vida urbana. Aqueles que abandonaram o campo, para empreender uma nova vida na cidade, geralmente acabam se afastando dos princípios e costumes da vida rural, os quais são fundamentais na construção da identidade cultural do país.
A assimilação cultural exigida para a ascensão na escala social obriga os moçambicanos a abandonarem as suas raízes culturais e religiosas. Para ser assimilado pela cultura branca europeia (dominante mesmo após o processo de independência) é necessário falar português, deixando de lado os dialetos do país; estar inserido no mundo letrado e de alguma forma abandonando as raízes da oralidade; e aceitar os dogmas cristãos, contrários aos princípios das religiões locais. Estas e outras práticas produzem um processo de “branqueamento cultural”, pois obrigam o africano a deixar as suas vivências e aceitar o estilo de vida importado da Europa e de outros lugares.
Este processo de desenraizamento é doloroso, pois, mesmo quando as pessoas optam por uma vida na cidade e de alguma forma aceitam as regras propostas pelo sistema dominante, a dor é sentida: há uma quebra no sistema de valores individuais e grupais. Essa dor está sendo registrada na literatura e nas artes em geral.
As primeiras manifestações literárias nos meados de 1975 tinham o intuito de convocar os moçambicanos leitores e os leitores de literatura moçambicana a repensar as suas posições políticas sobre o país. Nesta época temos a presença de Luis Bernardo Honwana, José Craveirinha e outros, que, através da literatura, levantaram a bandeira da independência, denunciando o estado de abandono e a crise que havia se instaurado com a saída dos portugueses do território moçambicano.
Os anos passaram e outras pessoas surgiram no espaço literário, porém a bandeira agora não é de convocação, mas sim de denúncia, pois Moçambique sofrera um processo de abandono por parte da ONU, durante a guerra civil que assolou o país. Os primeiros livros de Mia Couto e de Noémia de Souza são reveladores dos aspectos históricos deste momento. Em Terra Sonâmbula,Mia Couto (1992) apresenta a situação daqueles que fogem da guerra civil, começando a viver o desapego da terra e da vida rural: “Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.” (COUTO, 1992. p 15)
Quinze anos marcam o fim da guerra civil em Moçambique, o cenário teve algumas modificações, porém as questões relativas à tradição e a terra ainda são importantes. O processo de assimilação não é uma prática tranqüila, pois os moradores do mundo rural ainda precisam abandonar suas raízes tradicionais. A literatura continua o seu registro, porém a situação não é de apenas denúncia, o papel dos escritores da atualidade é também o de resistir à imposição da cultura européia. Muitos são os nomes que surgem no cenário da atualidade: Mia Couto continua escrevendo, e talvez seja o mais conhecido escritor moçambicano; Paulina Chiziane tem quatro romances publicados; vários poetas e prosadores têm surgido, entre eles Suleiman Cassamo, autor de quatro livros, publicados em Moçambique e Portugal.
É sobre Suleiman Cassamo e seu livro O Regresso do Morto (1997) que passaremos a deter nosso olhar neste ensaio.
VISÃO PANORÂMICA DE O Regresso do Morto (1997)
O Regresso do Morto é uma coletânea de contos, publicada em 1989 em Moçambique, onde recebeu o Prêmio da Associação dos Escritores. Em 1997 foi publicado em Portugal e já obteve uma tradução para o francês. A obra é marcada por um profundo amor pela terra: a terra vista como a mãe, como símbolo de vida e guardiã dos ancestrais. O autor dedica o livro aos seus pais: “A meus pais: porque o sangue é veículo da memória” (CASSAMO,1997 p.07).
Já na dedicatória do livro percebe-se a importância dos antepassados, marcada não só na dedicatória aos pais, mas principalmente na maneira como se refere ao sangue e à memória. A memória, ao ser conduzida pelo sangue, simboliza a vitalidade e força contida num passado; o sangue, veículo da memória, deixa de ser apenas o elemento natural do ser humano, assume o compromisso de transmitir às gerações vindouras o passado de uma família, comunidade, ou nação.
Há, na abertura do livro, uma mensagem aos leitores, onde o autor expressa o que deseja oferecer através de seu livro: “Que da leitura destes contos vos fique um leve, levíssimo sabor a terra. O sabor da nossa terra” (CASSAMO,1997, p.09). Talvez a principal pergunta que nos surja desta nota inicial seja: “Quem é este leitor?”. Uma primeira tentative de resposta, talvez aponte para um leitor não-moçambicano. Pensamos, porém que o escritor se refere tanto ao leitor estrangeiro, quanto ao leitor nacional, pois o livro se presta a dar um sabor da terra: uma oportunidade para o estrangeiro degustar, e para o moçambicano um renovo em seu prazer. Inferimos que a literatura, neste caso, o livro de CASSAMO (1997), passa a ser “um molho” que, além de incrementar o sabor, faz aumentar o apetite por um alimento já conhecido – a terra de Moçambique.
Os dez contos que compõem o livro trazem aspectos da vida urbana e rural. Ao apresentar a vida nas cidades, o autor ora apresenta os moradores bem sucedidos, ora os habitantes das periferias, com suas tristezas ou dificuldades. Nestes contos, o autor marca a ambigüidade da vida urbana, que impõe o afastamento das tradições, mas não consegue eliminar, com os encantos da pós-modernidade, os conhecimentos e saberes tradicionais.
A temática central do livro é a morte, que ora representa o fim natural da vida, ora simboliza as dificuldades e percalços cotidianos. Um segundo tema que pode ser apreendido é a situação da mulher: o autor apresenta as mulheres como portadoras de força motriz na sociedade. Pensamos que as mulheres podem significar vida, se opondo, desta forma, à morte.
Os contos são curtos, apenas um é narrado em primeira pessoa, tendo um aspect epistolar – o narrador é claramente culto e assimilado. Os outros nove contos são narrados emterceira pessoa, dando-nos a sensação de estar diante de um contador de histórias. Os elementos da natureza são constituintes do universo literário africano, pois as culturas africanas estabelecem uma relação de valoração e intimidade com a natureza. Em O Regresso do morto isso não é diferente, porém o autor escolhe o elemento terra como principal em suas narrativas.
Após uma brevíssima revisão da história literária de Moçambique, e uma visão panorâmica da obra O Regresso do Morto, buscaremos assinalar aspectos relevantes da tradição, da oralidade e da memória, expressos nesta obra. Dividiremos nossa análise em duas partes: primeiramente pensaremos sobre os movimentos da tradição na sociedade moçambicana; logo após, discutiremos alguns aspectos relativos à memória e à oralidade na constituição da identidade do país.
OS MOVIMENTOS DA TRADIÇÃO NA SOCIEDADE MOÇAMBICANA
Zygmunt Bauman (1999) postula que a modernidade é marcada por uma profunda ambivalência, ou seja, pela presença concomitante de juízos contraditórios sobre o mesmo objeto. Os indivíduos modernos são atraídos simultaneamente por dois impulsos opostos, deixando-os sem saber qual adotar. Esse desejo de atender a ambos os impulsos, coloca o sujeito num constante estado de tensão e de indecisão. A dúvida gera a divisão, advindo daí uma das palavras chaves da modernidade: fragmentação. A sociedade moderna, fragmentada, apresenta um homem cindido em seus conceitos, tornando-o agitado, inquieto ou paralisado, pois não pode se firmar naquilo que acredita, visto que, muitas vezes é ultrapassado, e, no entanto, não sente segurança diante do novo porque ainda o desconhece. O tempo presente se constitui em verdadeira guerra, onde passado e futuro lutam, sendo perdedor no conflito o homem moderno.
A obra de CASSAMO (1997) nos apresenta este homem cindido que habita os diversos lugares de Moçambique. Em muitos contos de O Regresso do Morto, este sujeito fragmentário aparece, mas cremos que o mais chocante e que melhor exemplifica essa fragmentação da modernidade é o conto “Madalena, xiluva do meu coração”. Fabião (narrador e protagonista do conto) abandonou sua terra, suas raízes e seu amor em busca da vida na cidade e da assimilação cultural: em troca recebeu a tristeza de nem ao menos ter coragem para escrever uma carta à mulher que ama. Esta personagem exemplifica a distância que existe entre o mundo urbano e rural, e o quanto dói estar inserido na cultura moderna.
Fabião, ao ser assimilado, passa a atender pelo nome de Neves e a ter costumes de branco.
Não pode assim dedicar seu amor à Madalena, já que ela ficou no campo e é ignorante no ambiente urbano. Ao justificar o abandono de Madalena, desculpa também à abdicação das tradições, pois, de certa forma, ele fora obrigado a recusar suas raízes, a fim de ver o país rescer e acompanhar o desenvolvimento. Fabião e Neves exemplificam a cisão ou fragmentação da modernidade, a ambivalência de conceitos num mesmo sujeito. Em um mesmo corpo habita o Fabião, que ama Madalena, as tradições, e a terra; mas há também o Neves, que reconhece que, “Estudar é ainda necessário. Fabião busca nos livros o saber para forjar o ferro da tua enxada, o cobre para tuas pulseiras de Nhancuave, teu nome de criança que vem dos avôs-dos-avôs, para fazer o teu sabão, o pente e sapatos para pôr e vir no Xilunguini.” (CASSAMO, 1997 p. 42).
A tradição (do latim traditio, significa entrega) resiste em muitos outros aspectos do cotidiano moçambicano: no significado dos sonhos, na aparição de fantasmas, na expressão dos elementos da natureza, etc. O conto “Vovó Velina” é outro revelador deste traço ambivalente dos sujeitos, visto que um casal assimilado, da cidade, espera um bebê. Presumese que por viverem no ambiente urbano e serem letrados têm condições de saber o sexo do bebê por meios modernos, porém a personagem mãe revela: “Mamana, não falta muito vou ter bebé. Sonhei, vai ser minina xonguile parece xiluva e xiphatiphati parece nyeleti. Nome dela vai ser Velina”.(CASSAMO, 1997. p. 71). Embora a vida da cidade tenha furtado muitas crenças tradicionais do casal, conforme o narrador do conto nos apresenta, ela não consegue apagar o sentido que os sonhos têm nesta cultura. Nas culturas tradicionais, os sonhos não são apenas os postulados freudianos: expressão do subconsciente. Eles assumem o papel de vidente ou profeta, visto que são anunciadores de coisas boas ou más. O sonho tanto revela o sexo do bebê, trazendo a boa notícia que muda o ânimo de Vovó Velina, quanto é portador de maus agouros, como podemos ver no conto “José, pobre pai natal”. Neste conto é através do sonho, chamado de pesadelo, que a personagem Maria vê prenunciada a morte de seu marido José:
Levava uma bacia na cabeça e gritava: Ama-rhumbo! Ama-rhumbo! Ama-rhumbo!... Ia a todo
lado e ninguém comprava. Fechavam portas e janelas, fugiam dela. A bacia crescia e pesava na
cabeça. Cansada, regressou. Pôs a bacia no chão. Oh, o que ela não viu!...
-Em vêgi de tripa, um morto, Senhora. A rir-me com dentes assim!... (CASSAMO, 1997. p.60)
Mencionamos que o autor estabelece, a partir do nosso ponto de vista, uma oposição entre vida e morte, sendo a vida expressa nas personagens femininas. Laurinda, personagem central, do segundo conto do livro, é moradora da periferia. Laurinda precisa levar pão para sua família – e isto quase lhe custa a própria vida e a dignidade, porém vemos inscrita nesta mulher uma força capaz de superar os maiores obstáculos para preservar a família e a si mesma. Em sua espera pelo pão, ela faz reflexões sobre a vida cotidiana, e intervém nas situações corriqueiras indicando a força e o desejo que tem de manter-se honesta, mesmo quando está em jogo a sobrevivência de sua família.
Laurinda mordeu, outra vez, o lábio, com força. Sentiu o sangue na língua. Que o sangue sabia a sal, há muito, sabia. Mas misturado com raiva tinha um sabor novo, um sabor de merda.
Explodiu:
-Sacana! Eu não me vende com pãozinho! Eu não é puta, ouviu? Tem marido, tem filhos, eu.
Eu... eu... – batia com a mão no peoti – eu não é cadela , ouviu? Você és moluene! Vai-te
subir, moluene! Mbuianguana! Agora qu’star massar tricô quer dormir com mulher de dono.
Não tem virgonha. ( CASSAMO, 1997 p. 23)
O autor registra o idioma de Laurinda: o português, língua oficial de Moçambique, porém repleto de expressões das línguas locais. Este imbricamento de línguas assinala mais um ponto de resistência das culturais tradicionais à imposição da modernidade. A convivência das diversas línguas em Moçambique sabe-se que ainda não é harmônica, pois é necessário falar português, mas segundo o Professor Lourenço do Rosário:
Da mesma maneira que o português no Brasil, com toda a sua plasticidade, consegue hoje, responder e corresponder à tropicalidade do brasileiro, o português africano (de cada país africano), se for amparado e acompanhado, poderá saber representar e bem a ritmicidade africana. (ROSÁRIO, 2007 p.13)
A temática feminina está presente em vários contos desta obra, embora o autor não dê voz a essa mulher, suas histórias sempre aparecem na voz do narrador. Inferimos que o narrador, pelo distanciamento que tem das personagens femininas, é um sujeito masculino. O conto que abre livro evoca a prática do tradicional lobolo, na qual o homem oferece alguns bens à família da esposa, tornando-se assim proprietário dela. Ao marcar a experiência do lobolo, mais recorrente nas camadas mais pobres, a narrativa demonstra a existência de dois discursos antagônicos: o discurso feminista, contrário à coisificação da mulher, e o discurso tradicional resistindo a esse e a outros discursos.
Um ano passou. O marido começou com zangas. Diz Nglina não nasce filhos. Não sabe porque a lobolou. Não é mulher. Batea-a por tudo e por nada. Com cinto que tem ferro, com paus, com socos , com pontapés, com tudo. Coitadinha, Nglina, era uma minina xonguile mas agora ficou velha num ano só. Ngilina é xiluva que murclhou.
O corpo dói, sim, mas dói é muito muito o coração. O coração ‘sta inchado, vai rebentar no peito. Nglina, tu vai morrer. Pode ir para casa descansar sofrimento. Mas qual manera se o pai comeu todo o dinheiro do lobolo no nhonthontho e no vinho do monhé da vila? Yotatanéé, é melhor não pensar nada. (CASSAMO, 1997 p. 17)
A personagem central desta narrativa não parece ser uma mulher consciente de que nela estejam impressos conceitos divergentes sobre a constituição familiar, especificamente a feminina, porém ela vive o conflito comum do homem moderno, o qual apontamos no início desta sessão: a cisão. Ela acaba conseguindo sua liberdade, infelizmente, através da morte.
Os mitos e histórias de Moçambique são registrados ao longo dos contos. Em vários momentos eles aparecem, demonstrando que este processo de modernização e assimilação cultural pode até conseguir furtar algumas pessoas das suas origens, mas não é capaz de apagar delas as marcas impressas pela memória.
O conjunto de contos nos coloca em volta da fogueira, diante do griot (contador de história). Em muitos contos o narrador se transforma no contador de histórias, conforme veremos adiante, ao falarmos sobre oralidade. Esse movimento da literatura, ou seja, do escrito, demonstra, novamente, o sujeito ambivalente. O escritor recria no seu narrador a figura do contador tradicional, o que nos mostra que, junto da necessidade de belas histórias escritas, convive a necessidade de belas histórias faladas.
A terra constitui um elemento importantíssimo para o conjunto de contos de CASSAMO (1997), pois os homens mantêm uma ligação profunda com ela. A terra representa a mãe geradora de vida, ao mesmo tempo em que é aquela que encerra um ciclo de vida para dar início a outro na morte. Esta terra, sagrada para a maior parte dos africanos, tem sido furtada no processo de urbanização e de assimilação cultural do país. O autor registra este movimento de desapego dos homens a sua mãe terra, conseqüentemente às suas tradições. Em “O regresso do morto” (conto que nomeia o livro) vimos que a personagem principal parte para trabalhar na cidade, ainda muito jovem. O moço sai da sua terra sem a menor reverência às suas raízes, pois nem mesmo se despede de sua mãe. Ao regressar (após a noticia de sua suposta morte) não tem o reconhecimento dos seus, causa espanto, torna-se um fantasma naquele mundo, porém a mãe, representando a terra e as tradições, o reconhece.
Queremos fechar esta parte do trabalho contrapondo dois conceitos: o moderno de BAUMAN (1999) e o tradicional, proposto por CASSAMO (1997) no conto “O regresso do morto”. BAUMAN (1999) após analisar os tempos modernos, aponta a pós-modernidade como saída, mas não consegue ser otimista. O professor ocidental afirma: “o que é realmente novo na nossa atual situação, em outras palavras, é o nosso ponto de observação”.(BAUMAN, 1999, p. 288) Desta forma ele não dá muitas expectativas para o homem livrar-se do conflito imposto pela ambivalência de conceitos. Cassamo (também professor universitário em Moçambique), através do narrador em “O regresso do morto”, diz que, quando o jovem fitou sua mãe rachando lenha, “o fogo avivou os olhos mortos” (CASSAMO, 1997 p.82). Vemos nisso uma metáfora de vida e de liberdade que o regresso à casa e às tradições pode dar ao homem. Estamos diante de dois conceitos, não poderia ser diferente em tempos modernos ou pós-modernos, cabe a cada um fazer sua opção.
MEMÓRIA E ORALIDADE NA IDENTIDADE CULTURAL MOÇAMBICANA
“A memória é a mais épica de todas as faculdades” (BENJAMIN, 1985, p. 210): sendo assim, é forma discursiva que recria e fixa vivências, transformando-as em interpretações que atravessam tempos e desdobram realidades. Desta forma, o passado pode apresentar diversas versões, está instalado entre a memória e a história e encontra na linguagem a sustentação que "reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho, a imagem lembrada e as imagens da vigília atual" (BOSI, 1996, p.56).
Para os africanos, particularmente, a memória tem um papel fundamental para a preservação da cultura, pois na África a tradição e a história foram, durante muito tempo, repassadas aos jovens, basicamente, por via oral, assim a ausência de memória equivaleria à perda de parte da história e das tradições. Os velhos são os cronistas dos acontecimentos que devem ser passados aos jovens. Ao contarem as histórias passadas, eles asseguram o viver da tradição. A figura do contador de histórias passa a um lugar de destaque, pois nela se encerram não apenas os saberes que precisam ser repassados, mas também as formas de repasse. O contador de histórias (griot) tem um papel que vai além do contar, visto que ele também deve formar outros contadores, pois, deste modo, garantirá a perpetuação das tradições.
Ao nos voltarmos para a obra O regresso do morto de CASSAMO (1997), percebemos este cuidado, ou seja, o autor instala, na figura do narrador, a responsabilidade de perpetuar a tradição. Como falamos na abertura de nosso texto, o início do livro (dedicatória e epígrafe) já aponta para isso, mas é na figura do narrador que o autor consolida o seu projeto. O narrador de Cassamo seduz o leitor de forma que este tem desejo de ouvi-lo, é impossível a realização da história sem a sua voz. Há interação entre o narrador/contador e os seus leitores/ouvintes: homens, mulheres ou crianças o ouvirão com atenção, pois ele cria um ambiente que permite muitas leituras e aprendizados com uma única história. O conto “Nyeleti” exemplifica isto.
Esse conto trata de uma temática básica: dois jovens disputando o amor de uma moça. Um é amado, o outro rejeitado. O amado parte para fazer fortuna, e o rejeitado aproveitando a ausência dele, usa um feitiço que encanta a jovem, e esta casa com ele. Quando o amado retorna, há uma disputa, e o final não é feliz, pois a moça acaba ficando sem nenhum dos dois.
O narrador seduz o leitor, instaurando um clima poético, pois as personagens e seus atos são descritos a partir de metáforas da natureza. Na abertura do conto, ele convida o seu interlocutor a prestar atenção numa papaieira, com isso ele exemplifica o espaço de sua história. O narrador nos coloca tanto na posição de ouvintes, sentados no chão, quanto na posição de leitores que podem imaginar o cenário. Queremos nos ater, contudo, às inúmeras temáticas possíveis de serem depreendidas desta história. Sabemos que muitos são os sentidos que um texto pode ter, mas, particularmente neste conto, pensamos em alguns sentidos pedagógicos que podem ser transmitidos numa contação para público misto. Há toda uma crítica à partida do jovem amado, pois este abandona sua terra e sua amada para ir em busca de dinheiro, assim desvincula-se das tradições, abrindo espaço para que o segundo entre em jogo. Malatana, o rejeitado, tenta seduzir Nyeleti, porém não é bem sucedido, então decide partir e buscar artifícios religiosos: o feitiço. Assim o rejeitado passa a amado, porém, não age de forma honesta, pois ele sabe que a jovem não o ama e que já fora firmado um compromisso de lobolo. Nyeleti também erra, pois na ausência do amado ficara ouvindo a voz de Malatana, ou seja, deixando que seu coração tivesse esperanças, quando ela estava comprometida com o jovem Foliche.
Em “Nyeleti”, o narrador, nos fala do respeito às entidades sagradas da natureza, pois é na floresta e nas águas que Malatana busca o feitiço. Ao descrever Foliche voltando agressivo como um tsotsi, relembra que o país é formado por diversos grupos, cada um com suas características. O conto é pedagógico, no sentido de ensinar aos mais jovens algumas tradições: cuidado com a natureza, pois ela abriga o sagrado; o uso do feitiço não pode ser de qualquer forma; o poder da palavra está acima de tudo, pois havia compromisso de lobolo, o qual foi quebrado quando Nyeleti abandonou a casa dos pais para viver com Malatana.
Independente de quem seja o público, o conto se presta a ensinar alguma coisa, seja para uma moça ou para um moço que deseje casar, ou ainda para uma criança ou um velho, que ouvirá a história pelo seu encanto de ser história.
Ana Mafalda Leite (1998) prefere usar o termo oralidades, que permitiria dar conta de diferenciar a maneira como os escritores se relacionam com as histórias orais e com as línguas. Ela postula que existem três tipos de apropriação da oralidade: oralizar a lingual portuguesa; hibridizar, através da recriação sintática e lexical; ou interseccionar com as diferentes línguas africanas. Percebemos que Cassamo faz uso da intersecção, pois ele constrói as frases usando palavras de diferentes línguas. Faz uso de onomatopéias, e escreve algumas palavras de forma que venham marcar cada segmento do texto com um ritmo diferenciado. Além disso, o escritor insere palavras inglesas nos textos, as quais, geralmente, são usadas nas atividades financeiras de compra e venda de produtos ou de força de trabalho.
Ao final do livro é inserido um glossário, pois a ausência deste impossibilitaria aos de for a terem uma boa compreensão do texto.
As estratégias narrativas usadas pelo autor combinam elementos da modernidade e da tradição. Da modernidade, usa a fragmentação: seja nos aspectos lingüísticos, seja na construção das histórias; da tradição, recupera os aspectos culturais fundamentais, ao mesmo tempo em que questiona as heranças negativas ainda presentes na sociedade moçambicana.
Cassamo, através deste narrador, se constitui contador de histórias, inscrevendo em seus textos uma visão crítica tanto do contexto social, quanto da própria arte de narrar e escrever.
Pelo viés de Stuart Hall (2006), uma das figuras mais importantes na área de estudos sociais da atualidade, uma cultura nacional é uma comunidade imaginada. As nações são formadas por diversos povos, logo abrigam diversas culturas. Em cada nação há uma cultura dominante, e geralmente, a sua dominação se dá ou se deu, através de processos violentos. Ao discutirmos a identidade de uma nação, “devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais contribuem para ‘costurar’ as diferenças numa única identidade”. (HALL, 2006 p. 65)
O contexto africano, mais especificamente moçambicano, vive este processo de luta para a construção desta cultura nacional. A literatura tem registrado os inúmeros embates culturais que o país tem vivido. Ao olhar a obra de Cassamo, e através dela, pensarmos este momento de construção da identidade nacional, verificamos que a sociedade atual tem lutado contra a globalização, que tenta exterminar todas as culturas. Sabemos que a luta é desigual, e que a oponente globalização possui armas poderosas, porém Stuart Hall (2006, p. 58) nos aponta que “as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança” são os conceitos constituintes de uma comunidade imaginada.
A Literatura, junto com outras artes e em parceria com algumas ciências, tem buscado construir esta comunidade imaginada. Na obra de CASSAMO (1997), percebemos que há voz para homens e mulheres, não fazendo distinção de gêneros; espaço para jovens e velhos, abrindo mão dos preconceitos de idade; ambiente para brancos e negros, independente dos julgamentos errôneos a respeito de raça; discussão dos diversos grupos culturais e religiosos do país, sem julgamento de superioridade ou inferioridade; convivência de oralidade e escrita, não atribuindo a uma ou outra, aspectos mais ou menos positivos; e por fim, lugar para modernidade e tradição, discutindo as contribuições de ambas para uma vida melhor.
A memória e a oralidade, desta forma, contribuem para o processo de construção da identidade moçambicana, no momento em que homens e mulheres falam como Lucas, personagem central do conto Casamento de um casado: “- É do meu primeiro casamento: lutar pela nossa terra!” (CASSAMO, 1997 p.77)

HARMONIA CONTRADITÓRIA: PALAVRAS FINAIS
O movimento de regresso às tradições e a terra é a ênfase desta obra de Suleiman Cassamo. Nela o autor apresenta uma mescla de culturas que dividem o mesmo espaço:
Moçambique. Através do hibridismo cultural ele procura afirmar uma identidade nacional moçambicana: é na diversidade cultural do país que o autor encontra os ingredientes de seus contos, que darão novo sabor à terra.
Benjamin postula que é necessário que a história seja desvendada, não apenas os fatos históricos que se encontram registrados nos livros oficiais, mas também aqueles que correspondem aos relatos orais do povo. Segundo ele, é preciso recuperar o imaginário dos oprimidos, armazenado nos mitos, nas lendas, nas crenças e nos testemunhos orais.
Percebemos que Cassamo busca, através da memória, recuperar os fatos importantes da história e da tradição moçambicana. O autor promove um encontro de culturas ao colocar num mesmo espaço, o livro: as histórias do patrimônio oral e os relatos das dificuldades cotidianas da vida no campo ou na cidade.
A concepção de tradicional na obra de Cassamo não pode ser compreendida como conservadorismo simplesmente, visto que ela abre espaço para o desenvolvimento de uma outra versão da História de Moçambique, contada e experimentada pelos sujeitos cindidos que a (pós) modernidade tem criado. Aos leitores/ouvintes resta decidir entre os encantos modernos e a tradição; ou ainda buscar este “novo”, fusão do moderno e do tradicional, que é proposto por Homi Bhabha:
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “novo” que não seja parte de um continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estático; ela renova o passado, refigurando-o como um “entre-lugar” contigente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia de viver. (BHABHA, 2007 p.27)
A construção de identidades nacionais modernas, a partir do que expusemos, deve privilegiar o contato dos diferentes, numa relação de paridade. A literatura e as artes têm apontado para a existência de uma harmonia entre idéias contraditórias. Cremos que, apesar de parecer uma idéia romântica, essa é a única porta para um mundo “pós-moderno” melhor.
*Este texto é uma readaptação do texto O regresso do morto: a vida escondida na obscuridade da morte, apresentado como trabalho de conclusão da Disciplina: Oralidade Memória e Tradição (PPG-Letras/UFRGS) no em 2007/01. Foi comunicado e publicado no III Encontro de Professores Literatura Africana na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
** Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da referida universidade, na especialidade Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Literaturas Luso-africanas.

Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1999.
BENJAMIN, Walter. KOTHE, Flávio (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985
(Coleção Grandes Cientistas Sociais).
BHABHA, Hommi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhias das Letras, 1996.
CASSAMO, Suleiman. O regresso do morto. Lisboa: Ed. Caminho, 1997.
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Caminhos, 1992.
HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
LEITE, Ana Mafalda. Oralidades e escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Colibri, 1998.
MOREIRA, Terezinha Taborda. O vão da voz: a metamorfose do narrador na ficção
moçambicana. Belo Horizonte: Ed. PUC-Minas, 2005.
ROSÁRIO, Lourenço. Singularidades II. Maputo: Texto Editores, 2007.