HISTÓRIA SOCIAL E O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL
EM MOÇAMBIQUE
Jorge Fernando Jairoce
Introdução
Este artigo pretende analisar o alcance da
nova abordagem da História Social, que se enquadra na perspectiva da abordagem da História Nova no
ensino de História em Moçambique, ou seja pretende contribuir para uma proposta
de ensino de História mais inclusivo (considerando os papéis dos grupos sociais
desfovorecidos) nas escolas moçambicanas.
I. Abordagem de História Social
A História Social visa reflectir sobre
construções de conhecimento histórico voltada para mudança social, um
conhecimento histórico relacionado com as práticas sociais e culturais dos indivíduos no dia a dia. A História Social preocupa-se com as desigualdades
sociais, pobreza, a marginalização do indivíduo, etc e reflecte o indivíduo
inserido num determinado contexto sócio-cultural que precisa ser compreendido.
Tal metodologia de análise coloca o aluno diante de factos próximos da sua
realidade, portanto, gerando maior curiosidade e consequentemente promovendo
conhecimento.
“A História Social, delimita a cultura
enquanto campo privilegiado do sentido de viver e da reflexão histórica e
empreender criticamente a reavaliação das referências teóricas e metodológicas,
académicas e políticas assumidas neste processo” (Maciel, 2006, p.10).
Assim sendo esta nova abordagem histórica
abre-se aos objectos mais variados, como a cultura popular, a cultura letrada,
as representações, as práticas discursivas partilhadas por diversos grupos
sociais, os sistemas educativos, a mediação cultural através dos intelectuais,
ou quaisquer outros campos temáticos atravessados pela polissêmica noção de “cultura”
entendido como modos de vida. Esta proposta da História que toma a cultura como
elemento central de análise histórica amplia as possibilidades de explicação,
interpretação e perspectivas de investigação e de intervenção no social. É uma
abordagem que valoriza a memória que não está apenas nas lembranças das
pessoas, mas também nas marcas que a história deixou ao longo do tempo em suas
avenidas, monumentos, equipamentos, ou seus espaços de convivência e várias
linguagens utilizadas em História, imprensa, literatura, fotografia, cinemas e
narrativas orais.
É uma análise do passado a partir da
perspectiva do presente. É uma perspectiva de análise histórica que implica
mudanças na prática do professor na sala de aula, no seu relacionamento com os
alunos. É uma proposta que exige uma reformulação das metodologias de ensino;
da organização curricular; dos manuais escolares, etc. Esta proposta sugere ao historiador
que nas suas análises reflicta sobre a utilização das diferentes possibilidades
de linguagens com vista a produção do conhecimento histórico.
Exige um diálogo permanente do pesquisador com os documentos. É uma perspectiva
de análise histórica, cuja compreensão só pode ser na totalidade histórica. Em
suma é uma perspectiva de análise histórica voltada ao olhar político, que significa
por outras palavras, a tomada de atitude crítica em relação aos problemas da
sociedade (Sarlo, 1997).
A partir desta perspectiva histórica pode-se explorar
as potencialidades da história local no ensino básico em Moçambique. A análise
sócio-cultural da História encontra em Edward Thompson um aliado científico e metodológico de relevo, conforme demonstra-se na sua
obra “A miséria da teoria: um planetário de erros” que têm influenciado
os estudantes de História em várias universidades da Europa e do Brasil .
II. Breve comentário sobre a obra de Edward Thompson
Na obra de Edward Thompson, com o título “ A
miséria da teoria: um planetário de erros” ele trava um acirrado debate
contra o estruturalismo marxista.
O abandono, pelo marxismo estruturalista, da
noção de “ experiência” que era material de demonstração de discursos
históricos, implicaria inúmeros problemas de ordem teórica e prática, pois, ao
priscindir do diálogo necessário entre o “ser social” e “consciência social”, o
materialismo histórico perderia suas referências princípais. Contudo, apesar de
reinvidicar o lugar da experiência na
história, e portanto, no materialismo histórico Thompson não está invalidando o
papel da teoria ou mesmo proclamando o “empirismo” como a forma mais correcta
de se lidar com a história. Pelo contrário, o procedimento adequado para o
trabalho
com materiais históricos, dizia Thompson,
pressuporia um método que articulasse o diálogo permanente entre teoria e
prática, entre hipóteses e evidências. A experiência surgiria, compondo uma
espécie de “dialéctica de conhecimento histórico”.
Para Thompson, a história conheceria causas necessárias,
mas nunca suficientes, “pois as leis” (ou, a lógica ou as apreensões) do
processo social e económico estão sendo continuamente infrigidas pelas
contigências, de modo que invalidaram qualquer regra nas ciências
experimentais.
A análise histórica de Thompson valoriza
muito a cultura e experiência. Aliás, temos que recordar que foi Thompson que
procurou dar significado a categoria de “classe”, retirando-a do campo “essencialista”
da estrutura e inserindo-a no campo das identidades e relações constituídas
historicamente.
Para ele, nenhuma categoria histórica foi
mais incompreendida, atormentada, des-historicizada do que a categoria de
classe social; uma formação histórica autodefinidora, que homens e mulheres elaboram
a partir da sua própria experiência de luta foi reduzida a uma categoria
estática, das quais os homens não são autores, mas vectores.
Ele construíu uma metodologia de análise histórica
que trabalha materiais históricos, em que se recortavam, no fundamental, as
classes sociais em um permanente processo de fazer-se. Daí se abstrairiam a
experiência, a cultura, a política – tudo aquilo que no marxismo dogmático era
deixado de fora. Em torno da pesquisa Thompson considerava que a mesma não pode
ser fechada, finita, acabada, absoluta, mas sim um conhecimento em operações, se
considerarmos que o campo de historicidade é aberta, problemática que exige uma
investigação flexível e permanentemente aberta.
III. Relação da abordagem teórica da História
Social, perspectiva teórica de Edward Thompson e o ensino de História em
Moçambique
A abordagem teórica da História Social e
visão apresentada pelo E. Thompson acima referido inspirou-me a pensar
seriamente no sistema educacional moçambicano, concretamente no tipo de ensino de História que ministramos nas nossas
escolas, desde o ensino básico até o nível médio geral. O ensino de História em
Moçambique, considerando os diferentes níveis continua pautado na memorização e repetição oral de textos
escritos, isso significa dizer que a História é ensinada numa concepção
cronológica e linear. Um ensino com finalidade de perpetuar a história dos “heróis”
da classe dominante da considerada “nomenclatura política’’, deixando no
anonimato outros sujeitos que construiram o quotidiano das relações
sócio-culturais, económicas e políticas.
É um tipo de ensino que têm revelado os resquícios
da cultura historiográfica ainda centrada num paradigma conservador. Os
professores trabalham os conteúdos da forma fragmentada baseada numa concepção
de História cronológica. Muitos deles ou quase a maioria utiliza o livro
didáctico como referencial para o seu trabalho pedagógico sem fazer uma
adaptação a realidade do meio onde o aluno está inserido. É um tipo de ensino
dependente dos programas e currículos baseados em modelos culturais europeus,
ou seja, é um ensino cujo centro é a história da Europa. Daí que a periodização
adoptada é a tradicional baseada em épocas sucessivas “ história antiga,
medieval, moderna e contemporânea”. Em relação aos conteúdos sobre a história
de Moçambique e de África, a sua análise é a partir de experiência europeia,
que é considerado como modelo de desenvolvimento, provocando uma abordagem centrada
nas ausências, ou seja, naquilo que falta nestas sociedades em relação à
Europa, tal como referiu Cabrini (2000).
É um tipo de ensino com predominância da noção
linear de desenvolvimento das sociedades que anula a acção dos indivíduos na história,
pois o processo histórico toma um sentido único e irreversível, duma
trajectória que não depende da realidade concreta dos sujeitos históricos
comuns, uma vez que suas acções não são consideradas (Fonseca, 2003).
As nossas práticas escolares no ensino de
História fragmentam as diversas dimensões que constituem a realidade social. A divisão didáctica da
sociedade é feita em níveis (social, político, económico e cultural) como se
pode observar nos manuais e programas da (4ª a 10ª Classe). Nesta divisão em
categorias estanques, normalmente com o predomínio do político e/ou económico,
rompe com a ideia da totalidade histórica, a qual a história deveria se ocupar
de construir ideia que permite pensar na possibilidade de aproximação da
história a partir de qualquer tema, objecto ou personagem. Este ensino exclui
os sujeitos, acções e lutas sociais.
Analisando a situação do ensino de História
em Moçambique comparando com os pontos de vista da historiografia social
inglesa defendidos por Edward Thompson e Raymonds Williams, remete-nos a pensar
num tipo de ensino que aposta a recuperação de diferentes experiências vividas
por diversos sujeitos históricos comuns, numa perspectiva da história vista de
baixo e romper com a linearidade e determinismo e onde a história se apresenta
como um campo de possibilidades.
É neste contexto educacional que proponho um tipo
de ensino de História que se baseia na realidade local do aluno.
O estudo de temas locais oferece sérias possibilidades
de análise histórica. Daí que para a mudança da concepção de ensino de História
atrás referido, devemos tomar em conta as diferentes instituições, lugares e
linguagens de História, ou seja, analisarmos museus, bibliotecas e famílias (instituições),
história de vida, bairro, cidade e testemunhos de pessoas (linguagens) que viveram
factos históricos num passado recente e que são fontes vivas do quotidiano vivido
por estas comunidades.
Os estudos da História local revelam-se extremamente
motivadores para os alunos porque lhes permitem realizar actividade sobre temas
que lhes despertam o interesse, pela sua relação com o passado do que ainda reconhecem os mais
variados vestígios. A motivação deve contudo ultrapassar a satisfação de
simples curiosidade para fomentar um verdadeiro trabalho de investigação
(Ibid., p.158).
A história local dá possibilidade para
questionar o tipo de História que ensinamos nas nossas escolas, porque ela põe
o aluno em contacto directo com dados empíricos de pesquisa e factos concretos,
reais, possibilitando um aprendizado de maior interesse da sua parte (Fonseca,
2003). Ao estudar temas de localidade, de sua aldeia, princípio de concreto,
pode-se articular na esfera do particular a sua preocupação singular em conexão
com o universal. A história forma consciência de inserção dos educandos na sociedade
e no mundo, construir identidade (além de tomar consciência da sua própria
identidade e de outras), a consciência social tal como referiu Thompson (1978).
É de realçar que no ensino básico, o
Ministério de Educação e Cultura de Moçambique orienta que os professores
aproveitem 20%, reservado para o trabalho com o Currículo Local, o que
constitue uma óptima oportunidade para a exploração da História Local. Porém,
existe uma dissociação entre o que é proposto e o que é desenvolvido nas
escolas com vista a formação das crianças. Isto deve-se a vários factores que a
seguir mencionamos:
• Valorização excessiva de aspectos políticos
como heróis, figuras políticas pertencentes às elites locais;
• Não existem fontes de estudo e documentos em
geral disponíveis aos professores. As existentes são, muitas vezes, produzidos
por orgãos administrativos locais, o que as transforma em expressão de difusão
e de preservação de memória dos grupos do poder político e económico das elites
locais. São documentos com restrito rigor científico. Quase sempre reflectem
uma construção que nega o movimento de fazer humano e da dialética da
sociedade. Portanto há escassez de recursos didácticos. O livro didáctico é o recurso
mais utilizado pelos professores nas aulas de História;
• Falta de preparação didáctico-pedagógica
dos professores primários em Metodologia de abordagem do Currículo Local.
• Falta de criatividade e desmotivação de
alguns professores em explorar a realidade social local nas suas aulas.
Conclusão
Face ao exposto e a partir da proposta da
História Social e de Edward Thompson abre-se o espaço para a pesquisa sobre o
ensino de História em Moçambique desde o período da dominação colonial até a actualidade
considerando as finalidades de ensino em cada período no sentido de perceber a
noção de conceitos da classe social, consciência social, práticas culturais,
identidade, cidadania, sujeitos históricos comuns e o lugar da História Local
no ensino de História e diferentes fases da história de Moçambique. Por fim
proponho uma revisão dos conteúdos dos programas de História de diferentes
níveis com vista a ter um ensino de História que respeita os valores culturais
da sociedade. Uma proposta que inculca o aluno como sujeito histórico activo no
movimento da História. Uma história que valoriza a realidade social do aluno,
que o ajuda a entender a sociedade onde vive. Um ensino de História que visa
afastar-se da abordagem linear, cronológica, política, hegemónica, elitista,
antidemocrática, parcial da realidade.
Bibliografia
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