NA
“ZONA QUENTE” PÓS-COLONIAL
Regulação de gênero
A forma particular, histórica, como aparece a regulação das
posições de gênero em Moçambique, não dissimula, é óbvio, o caráter estrutural
das disposições simbólicas que são necessárias para produzir a
sujeição/subjetificação de um sujeito dispersivo e heteróclito que chamaríamos
“a mulher”. Desse modo, ampla engenharia social e todo o poder das disposições
simbólicas, e da violência, foram mobilizados para reconformar/reconhecer a
mulher como um sujeito (assujeitado) no interior das estruturas em transformação
do Estado em construção. O que parece algo perturbador, entretanto, é a
continuidade dessa produção subjetificante que observamos entre o período
colonial e o período frelimista, como aponta Signe Arnfred (2011),
entre outros.
Fotografia do autor, Maputo
Realizando pesquisa sobre a regulação estatal
de gênero1 em
Maputo, me deparei por diversas vezes com duas enormes fotografias no Hall de
entrada do Arquivo Histórico de Moçambique (AHM). Samora Machel, em uniforme
militar, e Joaquim Chissano, de terno e gravata. Ícones da memória
revolucionária vigiavam os dois, gigantes e masculinos minha curiosidade,
pairando imaginários, como guardiões da História reconstruída em Moçambique. No
interior dessa história de luta e lib
ertação, parecem respirar baixinho,
outras histórias e perspectivas que expõem as contradições do processo
revolucionário. A mulher, e as relações de gênero e sexualidade, figuram no
interior dessa história de emancipação e luta.
Mulheres Makhuwa fotografadas por Weule,
em 1906
O etnólogo evolucionista alemão, Karl Weule,
realizou em 1906 expedição etnográfica pela então África Oriental Alemã2. Weule descreve a viagem entre o que é hoje
Tanzânia e Moçambique, na qual pôde registrar inúmeros traços das culturas Yao,
Makonde e Makhuwa. Neste livro, descreve e fotografa inúmeras técnicas
corporais nativas, notadamente aquelas ligadas à mulher e à produção de um
corpo feminino erotizado. Ora, tais práticas que foram duramente combatidas e
criticadas, quer seja pela igreja católica no tempo colonial, quer seja pela
FRELIMO no tempo socialista, encontraram um imprevisto defensor relativista em
José Cota, jurista-etnólogo, designado pelo General José Tristão de
Bettencourt, em 1941, para proceder à elaboração dos Códigos Penal e Civil dos
Indígenas de Moçambique, a partir de estudo etnográfico dos povos
da coloniais.
Na Zona Quente, rua do pecado
Em agosto de 2011, na minha última viagem a
Maputo, estive sozinho pela primeira vez na “Zona Quente”. A “Hot Zone” da
prostituição, instalada em torno de dois ou três quarteirões na Baixa, por onde
circula por toda a noite a multidão característica de ambientes tais quais
esses: as moças, e obviamente seus clientes, taxistas, vendedores, turistas, e hustlers indecifráveis.
Já havia estado lá com amigos para “uns copos”. Ouvindo rock & roll no
Gipsy, bebendo e conversando. Nessa noite, entretanto, fui sozinho, não,
obviamente, buscando os serviços das raparigas, mas curioso em interagir com o
território, saturado da memória das políticas sexuais e de seus embates no
trânsito (pós)colonial. Na escada de acesso ao banheiro um enorme gordo me abre
os braços, como um urso familiar: “Há quanto tempo não vinhas cá, dá-me lá
um abraço”. Eu não sabia de quem se tratava e suspeitei que ali se encenava
um ritual de reconhecimento ou inspeção, e uma ponta de apreensão picou meu
coração. Todos viam que eu era estrangeiro e tive um pouco de trabalho em
recusar, com polidez, a oferta insistente das moças.
Lá, na Zona Quente, recordava como à questão
da prostituição era um ponto crítico na plataforma ideológica da FRELIMO, que
via na ocupação colonial, também um aviltamento à honra das mulheres
moçambicanas e, por conseguinte, de seus maridos, irmãos e esposos3. A prostituição e o uso abusivo do corpo da
mulher, humilhante metáfora carnal do próprio colonialismo (Machel, 1984).
Ao mesmo tempo a política colonial empenhou-se
na produção do corpo, e na sua submissão a uma alma, singular e imortal,
entidade abstrata imposta como dispositivo político. A ela contrapunham-se as
técnicas corporais locais e seu compromisso com as estruturas culturais de
poder e gênero (Weule, 2000; Arnfred, 2011). Tais práticas eram anátema
para a moral revolucionária da FRELIMO, que buscava submeter a
sexualidade da mulher, e via nas prostitutas a imagem incorporada da devassidão
e degradação moral do colonialismo. Como diz Samora em discurso às Forças
Populares de Libertação de Moçambique, alertando-as sobre os perigos
pós-coloniais: “Temos inimigos muito fortes nas cidades: o alcoolismo e as
prostitutas” (Machel apud Muiane, 2006: 554).
Em belo opúsculo, Fátima Ribeiro discute o tema da prostituição
na obra do poeta nacional moçambicano, José Craveirinha. Como ela apontou com
grande perspicácia, a prostituição operava no ambiente (pós)colonial como uma
perversa zona de contato entre o mundo branco e o mundo negro.
“A transposição da barreira entre um mundo
e outro realizava-se nos dois sentidos havendo uma interpenetração nociva por
trazer consigo a humilhação, a degradação física e moral da mulher, a alienação
cultural” (Ribeiro, 1995: 17).
Neste mesmo livrinho encantador, Ribeiro
traz-nos uma foto de 1973, de Ricardo Rangel, que mostra a Rua Araujo, coração
da “Hot Zone” colonial. Nela, vemos homens brancos que circulam entre as
raparigas negras, representação instantânea da contradição sexual na zona
quente do contato colonial. Fanon apontou para como a fronteira no mundo
colonial está estabelecida pela delegacia de polícia (1979), nesse caso
deveríamos acrescentar que também o bordel pode estabelecer-se como fronteira
colonial4.
Rua Araujo, Lourenço Marques, 1973, fotografia
de Ricardo Rangel em Ribeiro, 1995
Craveirinha antecipa no poema “Doce
Albertina das Cervejarias” (1961) a fúria revolucionária que, mobilizada
pelo ultraje colonial de gênero, se alevantaria na luta de libertação nacional
no ano seguinte, do Rovuma até o Maputo:
Mas tu!
Tu minha doce Albertina assídua nos snack-bares.
Neste mundo os encervejados filhos de tuas tarefas
com um milhão de pais e padrastos incógnitos
mas cedo ou mais tarde nos todos juntos
havemos de preencher as certidões de nascimento
com os verdadeiros apelidos escritos na correcta
caligrafia dos irrefutáveis argumentos
Moçambicanos desengatilhados no norte
ao sul e do sul ao norte
fumegando em prol das Albertinas
desde Tete a Negomano
e de Quiterajo a Angoche
emboscados depois via Zumbo
Maxixe…zzzzz!!!Gaza e Magude
marchando irresistíveis até Xinavane
Manhiça e Marracuene
Até chegarmos em triunfo
A Goba e Catuane!
(José Craveirinha,
1960, citado em Ribeiro, 1995).
No mesmo dia em que estive no Gipsy, li na
internet, meio por acaso, o interessante texto “Na Rota dos Pecados
Noctívagos” (Verdade, 2011). O autor deplora a presença de jovens na “Zona
Quente”, as “bebedeiras” e a prostituição.
“A actual juventude maputense bebe
mais do que nunca. Aliás, hoje, bebe-se muito mais cedo, mas não é só o álcool
que faz parte do itinerário da juventude noctívaga: droga e prostituição
completam o rol das prioridades juvenis. / (…) O destino é a ´zona quente´, na
baixa da cidade./Por detrás destes seis jovens esconde-se uma história de vida
igual à da maioria da sua geração que parece ignorar que está à beira do
precipício” (Verdade, 2011)
O tom conservador, o moralismo, a culpabilização da mulher
e o retorno a imaginados valores tradicionais da família (nuclear, patriarcal e
burguesa), isso tudo volta, depois de tantos anos, e por outros meios, como
elementos duradouros, presentes na cultura moçambicana. Tudo então naquela
noite me assediava a imaginação: Weule, Cota, Samora, Albertina. No frio ar
avermelhado da Zona Quente Pós-Colonial.
Phallus Fantasma
Em Achille Mbembe, o conceito de postcolony está
vinculado à ideia de uma “age”, com temporalidades concorrentes. Desse
ponto de vista a produção do Estado, ou a “estatização” da sociedade, não advém
da dissolução de antigos laços sociais, mas da superposição de velhas
hierarquias e redes (Mbembe, 2001: 42). Outras dimensões da postcolony referem-se
à ética da vulgaridade e à conversão fálica ao cristianismo, como obsedante
possessão fantasmagórica do Estado e de sua erótica de alteridade e poder: “The
phantasm of power and the power of the phantasm” (Mbembe, 2001: 231)5. Desse modo, a dominação consiste, para
dominantes e dominados, na assombração pelos mesmos fantasmas, manifestada sob
a forma avassaladora de uma economia da sexualidade:
“The form of domination imposed during both
the slave trade ns colonialism in Africa could be called phallic. During the
colonial era and its aftermath, phallic domination has been all the more
strategic in power relationships, not only because it’s based on a mobilization
of the subjective foundations on masculinity and femininity but also because it
has direct, close connections with the general economy of sexuality”
(Mbembe, 2001: 13).
O que observamos é que o fundamento de tal economia política
enraíza-se, no trânsito colonial, pela incorporação do destino da mulher, e de
sua sexualidade, ao front do debate político.
Referências Bibliográficas
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Nordic Africa Institute. 2011.
BUTLER, Judith. Gender Regulation. In . ___ Undoing
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FANON, F. Os condenados da terra.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
HONWANA, Alcinda M. Espíritos Vivos,
Tradições Modernas: Possessão de Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no
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LIESEGANG, Gerhard. Prefácio Biográfico e
Notas Técnicas do Tradutor. In __ . WEULE, Karl.Resultados Científicos de
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Ministério da Cultura. Departamento de Museus. Maputo. 2000. Pp. xix- xxxiii.
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MACHEL, Samora. Discurso do Presidente Samora
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MUIANE, Armando Pedro. Datas e Documentos Históricos da FRELIMO.
Edição do autor. Maputo. 2006. Pp.552-555.
MBEMBE, Achile. On the Postcolony.
University of California Press. 2001
MOORE, Henrietta L. Women and the State. In .
__ . Feminism and Anthropology. Minneapolis. University of
Minnesota Press. 1988.pp. 129-185.
RIBEIRO, Fátima. Uma Abordagem do Tema
da Prostituição na Poesia de José Craveirinha. Maputo. AMOLP. 1995.
WEULE, Karl. Resultados Científicos de
Minha Viagem de Pesquisas Etnográficas no Sudeste da África Oriental.
Ministério da Cultura. Departamento de Museus. Maputo. 2000.
Agradeço a Aissa Mithá Issak, Hector Guerra Hernandez e Omar
Ribeiro Thomaz, pelo apoio e inspiração.
·
1.Sobre regulação de gênero Cf.
Butler, 2004.
·
2.Ver o esclarecedor prefácio de G. Liesegang
ao livro (2000).
·
3.Sobre o Estado e a honra masculina cf.
Moore, 1988.
·
4.O trecho em “Os Condenados da Terra” diz: “O
mundo colonizado é um mundo cindido em dois. A linha divisória, a fronteira, é
indicada pelos quartéis e delegacias de polícia. (…) Nas colônias, o
interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do
regime colonial de opressão é o gendarme e o soldado. Vê-se que o intermediário
do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não torna
mais leve a opressão, não dissimula a dominação. Exibe-as, manifesta-as com a
boa consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência a casa e
ao cérebro do colonizado” (1979).
·
5.Sobre fantasmas, obsessões e o Poder Cf.
Derrida, 1994. Sobre “espíritos” em Moçambique Cf. Honwana, 2002.