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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

01 maio 2013

"O REGRESSO DO MORTO”, DE SULEIMANE CASSAMO: ORALIDADE, MEMÓRIA E TRADIÇÃO CONSTITUINTES DA IDENTIDADE NACIONAL

"O REGRESSO DO MORTO”, DE SULEIMANE CASSAMO: ORALIDADE, MEMÓRIA E TRADIÇÃO CONSTITUINTES DA IDENTIDADE NACIONAL 



Este ensaio tem como objeto de estudo o livro O Regresso do Morto, de Suleiman Cassamo, autor moçambicano. Serão discutidos alguns aspectos da oralidade, memória e tradição como constituintes da identidade nacional.

BREVÍSSIMO HISTÓRICO DA LITERATURA MOÇAMBICANA 
O apego à terra é uma característica marcante nos moradores de sociedades rurais. Na maior parte das sociedades africanas, a vida é rural, o processo de urbanização está ocorrendo gradualmente após as independências e fim das guerras civis, daí a literatura africana ser repleta de cenas de ambientes rurais. Nestes ambientes não urbanizados são guardadas as tradições: expressas no respeito aos mais velhos, na importância da palavra falada (seja no ato de falar agindo no mundo, seja no ato de contar, a fim de modificar ou entender alguma coisa do mundo), na valorização dos elementos da natureza, na reverência aos antepassados falecidos, enfim, em todos os elementos que de alguma forma identificam os grupos formadores de África.
Moçambique é independente desde 1975 e livre da guerra civil desde 1992, ou seja, é uma sociedade que ainda está se acostumando com o fato de ser nação, no sentido moderno.
Está dividida entre a vida rural e a vida urbana. Aqueles que abandonaram o campo, para empreender uma nova vida na cidade, geralmente acabam se afastando dos princípios e costumes da vida rural, os quais são fundamentais na construção da identidade cultural do país.
A assimilação cultural exigida para a ascensão na escala social obriga os moçambicanos a abandonarem suas raízes culturais e religiosas. Para ser assimilado pela cultura branca europeia (dominante mesmo após o processo de independência) é necessário falar português, deixando de lado os dialetos do país; estar inserido no mundo letrado e de alguma forma abandonando as raízes da oralidade; e aceitar os dogmas cristãos, contrários aos princípios das religiões locais. Estas e outras práticas produzem um processo de “branqueamento cultural”, pois obrigam o africano a deixar suas vivências e aceitar o estilo de vida importado da Europa e de outros lugares. 
Este processo de desenraizamento é doloroso, pois, mesmo quando as pessoas optam por uma vida na cidade e de alguma forma aceitam as regras propostas pelo sistema dominante, a dor é sentida: há uma quebra no sistema de valores individuais e grupais. Essa dor está sendo registrada na literatura e nas artes em geral. 
As primeiras manifestações literárias nos meados de 1975 tinham o intuito de convocar os moçambicanos leitores e os leitores de literatura moçambicana a repensar as suas posições políticas sobre o país. Nesta época temos a presença de Luís Bernardo Honwana, José Craveirinha e outros, que, através da literatura, levantaram a bandeira da independência, denunciando o estado de abandono e a crise que havia se instaurado com a saída dos portugueses do território moçambicano.
Os anos passaram e outras pessoas surgiram no espaço literário, porém a bandeira agora não é de convocação, mas sim de denúncia, pois Moçambique sofrera um processo de abandono por parte da ONU, durante a guerra civil que assolou o país. Os primeiros livros de Mia Couto e de Noémia de Souza são reveladores dos aspectos históricos deste momento. Em Terra Sonâmbula, Mia Couto (1992) apresenta a situação daqueles que fogem da guerra civil, começando a viver o desapego da terra e da vida rural: “Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.” (COUTO, 1992. p 15).
Quinze anos (altura em que foi escrito o texto) marcam o fim da guerra civil em Moçambique, o cenário teve algumas modificações, porém as questões relativas à tradição e a terra ainda são importantes. O processo de assimilação não é uma prática tranquila, pois os moradores do mundo rural ainda precisam abandonar suas raízes tradicionais.
A literatura continua o seu registro, porém a situação não é de apenas denúncia, o papel dos escritores da atualidade é também o de resistir à imposição da cultura europeia. Muitos são os nomes que surgem no cenário da atualidade: Mia Couto continua escrevendo, e talvez seja o mais conhecido escritor moçambicano; Paulina Chiziane tem quatro romances publicados; vários poetas e prosadores têm surgido, entre eles Suleiman Cassamo, autor de quatro livros, publicados em Moçambique e Portugal.
É sobre Suleiman Cassamo e seu livro O Regresso do Morto (1997) que passaremos a deter nosso olhar neste ensaio. 

VISÃO PANORÂMICA DE "O REGRESSO DO MORTO" (1997)

O Regresso do Morto é uma coletânea de contos, publicada em 1989 em Moçambique, onde recebeu o Prêmio da Associação dos Escritores. Em 1997 foi publicado em Portugal e já obteve uma tradução para o francês. A obra é marcada por um profundo amor pela terra: a terra vista como a mãe, como símbolo de vida e guardiã dos ancestrais. O autor dedica o livro aos seus pais: “A meus pais: porque o sangue é veículo da memória” (CASSAMO,1997 p.07).
Já na dedicatória do livro percebe-se a importância dos antepassados, marcada não só na dedicatória aos pais, mas principalmente na maneira como se refere ao sangue e à memória. A memória, ao ser conduzida pelo sangue, simboliza a vitalidade e força contida num passado; o sangue, veículo da memória, deixa de ser apenas o elemento natural do ser humano, assume o compromisso de transmitir às gerações vindouras o passado de uma família, comunidade, ou nação.
Há, na abertura do livro, uma mensagem aos leitores, onde o autor expressa o que deseja oferecer através de seu livro: “Que da leitura destes contos vos fique um leve, levíssimo sabor a terra. O sabor da nossa terra” (CASSAMO,1997, p.09). Talvez a principal pergunta que nos surja desta nota inicial seja: “Quem é este leitor?”. Uma primeira tentativa de resposta, talvez aponte para um leitor não-moçambicano. Pensamos, porém que o escritor se refere tanto ao leitor estrangeiro, quanto ao leitor nacional, pois o livro se presta a dar um sabor da terra: uma oportunidade para o estrangeiro degustar, e para o moçambicano um renovo em seu prazer. Inferimos que a literatura, neste caso, o livro de CASSAMO (1997), passa a ser “um molho” que, além de incrementar o sabor, faz aumentar o apetite por um alimento já conhecido – a terra de Moçambique. 
Os dez contos que compõem o livro trazem aspectos da vida urbana e rural. Ao apresentar a vida nas cidades, o autor ora apresenta os moradores bem sucedidos, ora os habitantes das periferias, com suas tristezas ou dificuldades. Nestes contos, o autor marca a ambiguidade da vida urbana, que impõe o afastamento das tradições, mas não consegue eliminar, com os encantos da pós-modernidade, os conhecimentos e saberes tradicionais.
A temática central do livro é a morte, que ora representa o fim natural da vida, ora simboliza as dificuldades e percalços cotidianos. Um segundo tema que pode ser apreendido é a situação da mulher: o autor apresenta as mulheres como portadoras de força motriz na sociedade. Pensamos que as mulheres podem significar vida, se opondo, desta forma, à morte.
Os contos são curtos, apenas um é narrado em primeira pessoa, tendo um aspecto epistolar – o narrador é claramente culto e assimilado. Os outros nove contos são narrados em terceira pessoa, dando-nos a sensação de estar diante de um contador de histórias. Os elementos da natureza são constituintes do universo literário africano, pois as culturas africanas estabelecem uma relação de valoração e intimidade com a natureza. Em O Regresso do morto isso não é diferente, porém o autor escolhe o elemento terra como principal em suas narrativas.
Após uma brevíssima revisão da história literária de Moçambique, e uma visão panorâmica da obra O Regresso do Morto, buscaremos assinalar aspectos relevantes da tradição, da oralidade e da memória, expressos nesta obra. Dividiremos nossa análise em duas partes: primeiramente pensaremos sobre os movimentos da tradição na sociedade moçambicana; logo após, discutiremos alguns aspectos relativos à memória e à oralidade na constituição da identidade do país.
Queremos fechar esta parte do trabalho contrapondo dois conceitos: o moderno de BAUMAN (1999) e o tradicional, proposto por CASSAMO (1997) no conto “O regresso do morto”.
 BAUMAN (1999) após analisar os tempos modernos, aponta a pós-modernidade como saída, mas não consegue ser optimista. O professor ocidental afirma: “o que é realmente novo na nossa atual situação, em outras palavras, é o nosso ponto de observação” (BAUMAN, 1999, p. 288). Desta forma ele não dá muitas expectativas para o homem livrar-se do conflito imposto pela ambivalência de conceitos.
Cassamo (também professor universitário em Moçambique), através do narrador em “O regresso do morto”, diz que, quando o jovem fitou sua mãe rachando lenha, “o fogo avivou os olhos mortos” (CASSAMO, 1997 p.82). Vemos nisso uma metáfora de vida e de liberdade que o regresso à casa e às tradições pode dar ao homem. Estamos diante de dois conceitos, não poderia ser diferente em tempos modernos ou pós-modernos, cabe a cada um fazer sua opção.   

Memória e Oralidade na identidade cultural moçambicana
 “A memória é a mais épica de todas as faculdades” (BENJAMIN, 1985, p. 210): sendo assim, é forma discursiva que recria e fixa vivências, transformando-as em interpretações que atravessam tempos e desdobram realidades. Desta forma, o passado pode apresentar diversas versões, está instalado entre a memória e a história e encontra na linguagem a sustentação que “reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho, a imagem lembrada e as imagens da vigília atual” (BOSI, 1996, p.56).
Para os africanos, particularmente, a memória tem um papel fundamental para a preservação da cultura, pois em África a tradição e a história foram, durante muito tempo, repassadas aos jovens, basicamente, por via oral. Assim, a ausência de memória equivaleria à perda de parte da história e das tradições. Os velhos são os cronistas dos acontecimentos que devem ser passados aos jovens. Ao contarem as histórias passadas, eles asseguram o viver da tradição. A figura do contador de histórias passa a um lugar de destaque, pois nela se encerram não apenas os saberes que precisam ser repassados, mas também as formas de repasse. O contador de histórias (griot) tem um papel que vai além do contar, visto que ele também deve formar outros contadores, pois, deste modo, garantirá a perpetuação das tradições.
Ao nos voltarmos para a obra O regresso do morto de CASSAMO (1997), percebemos este cuidado, ou seja, o autor instala, na figura do narrador, a responsabilidade de perpetuar a tradição.
Como falamos na abertura de nosso texto, o início do livro (dedicatória e epígrafe) já aponta para isso, mas é na figura do narrador que o autor consolida o seu projeto. O narrador de Cassamo seduz o leitor de forma que este tem desejo de ouvi-lo, é impossível a realização da história sem a sua voz. Há interação entre o narrador/contador e os seus leitores/ouvintes: homens, mulheres ou crianças o ouvirão com atenção, pois ele cria um ambiente que permite muitas leituras e aprendizados com uma única história. O conto “Nyeleti” exemplifica isto. 
Esse conto trata de uma temática básica: dois jovens disputando o amor de uma moça. Um é amado, o outro rejeitado. O amado parte para fazer fortuna, e o rejeitado aproveitando a ausência dele, usa um feitiço que encanta a jovem, e esta casa com ele. Quando o amado retorna, há uma disputa, e o final não é feliz, pois a moça acaba ficando sem nenhum dos dois.
O narrador seduz o leitor, instaurando um clima poético, pois as personagens e seus atos são descritos a partir de metáforas da natureza. Na abertura do conto, ele convida o seu interlocutor a prestar atenção numa papaieira, com isso ele exemplifica o espaço de sua história. O narrador nos coloca tanto na posição de ouvintes, sentados no chão, quanto na posição de leitores que podem imaginar o cenário.
Queremos nos ater, contudo, às inúmeras temáticas possíveis de serem depreendidas desta história. Sabemos que muitos são os sentidos que um texto pode ter, mas, particularmente neste conto, pensamos em alguns sentidos pedagógicos que podem ser transmitidos numa contação para público misto.
Há toda uma crítica à partida do jovem amado, pois este abandona sua terra e sua amada para ir em busca de dinheiro, assim desvincula-se das tradições, abrindo espaço para que o segundo entre em jogo. Malatana, o rejeitado, tenta seduzir Nyeleti, porém não é bem-sucedido, então decide partir e buscar artifícios religiosos: o feitiço. Assim o rejeitado passa a amado, porém, não age de forma honesta, pois ele sabe que a jovem não o ama e que já fora firmado um compromisso de lobolo. Nyeleti também erra, pois na ausência do amado ficara ouvindo a voz de Malatana, ou seja, deixando que seu coração tivesse esperanças, quando ela estava comprometida com o jovem Foliche.
Em “Nyeleti”, o narrador, nos fala do respeito às entidades sagradas da natureza, pois é na floresta e nas águas que Malatana busca o feitiço. Ao descrever Foliche voltando agressivo como um tsotsi, relembra que o país é formado por diversos grupos, cada um com suas características. O conto é pedagógico, no sentido de ensinar aos mais jovens algumas tradições: cuidado com a natureza, pois ela abriga o sagrado; o uso do feitiço não pode ser de qualquer forma; o poder da palavra está acima de tudo, pois havia compromisso de lobolo, o qual foi quebrado quando Nyeleti abandonou a casa dos pais para viver com Malatana.
Independente de quem seja o público, o conto se presta a ensinar alguma coisa, seja para uma moça ou para um moço que deseje casar, ou ainda para uma criança ou um velho, que ouvirá a história pelo seu encanto de ser história.
Ana Mafalda Leite (1998) prefere usar o termo oralidades, que permitiria dar conta de diferenciar a maneira como os escritores se relacionam com as histórias orais e com as línguas. Ela postula que existem três tipos de apropriação da oralidade: oralizar a língua portuguesa; hibridizar, através da recriação sintática e lexical; ou interseccionar com as diferentes línguas africanas. Percebemos que Cassamo faz uso da intersecção, pois ele constrói as frases usando palavras de diferentes línguas. Faz uso de onomatopéias, e escreve algumas palavras de forma que venham marcar cada segmento do texto com um ritmo diferenciado. Além disso, o escritor insere palavras inglesas nos textos, as quais, geralmente, são usadas nas atividades financeiras de compra e venda de produtos ou de força de trabalho.
Ao final do livro é inserido um glossário, pois a ausência deste impossibilitaria aos de fora terem uma boa compreensão do texto.
As estratégias narrativas usadas pelo autor combinam elementos da modernidade e da tradição. Da modernidade, usa a fragmentação: seja nos aspectos linguísticos, seja na construção das histórias; da tradição, recupera os aspectos culturais fundamentais, ao mesmo tempo em que questiona as heranças negativas ainda presentes na sociedade moçambicana.
Cassamo, através deste narrador, se constitui contador de histórias, inscrevendo em seus textos uma visão crítica tanto do contexto social, quanto da própria arte de narrar e escrever. 
Pelo viés de Stuart Hall (2006), uma das figuras mais importantes na área de estudos sociais da atualidade, uma cultura nacional é uma comunidade imaginada. As nações são formadas por diversos povos, logo abrigam diversas culturas. Em cada nação há uma cultura dominante, e geralmente, a sua dominação se dá ou se deu, através de processos violentos. Ao discutirmos a identidade de uma nação, “devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais contribuem para ‘costurar’ as diferenças numa única identidade”, (HALL, 2006 p.65).
O contexto africano, mais especificamente moçambicano, vive este processo de luta para a construção desta cultura nacional. A literatura tem registrado os inúmeros embates culturais que o país tem vivido. Ao olhar a obra de Cassamo, e através dela, pensarmos este momento de construção da identidade nacional, verificamos que a sociedade atual tem lutado contra a globalização, que tenta exterminar todas as culturas. Sabemos que a luta é desigual, e que a oponente globalização possui armas poderosas, porém Stuart Hall (2006, p. 58) nos aponta que “as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança” são os conceitos constituintes de uma comunidade imaginada. 
 A Literatura, junto com outras artes e em parceria com algumas ciências, tem buscado construir esta comunidade imaginada. Na obra de CASSAMO (1997), percebemos que há voz para homens e mulheres, não fazendo distinção de gêneros; espaço para jovens e velhos, abrindo mão dos preconceitos de idade; ambiente para brancos e negros, independente dos julgamentos errôneos a respeito de raça; discussão dos diversos grupos culturais e religiosos do país, sem julgamento de superioridade ou inferioridade; convivência de oralidade e escrita, não atribuindo a uma ou outra, aspectos mais ou menos positivos; e por fim, lugar para modernidade e tradição, discutindo as contribuições de ambas para uma vida melhor. 
A memória e a oralidade, desta forma, contribuem para o processo de construção da identidade moçambicana, no momento em que homens e mulheres falam como Lucas, personagem central do conto Casamento de um casado : “- É do meu primeiro casamento: lutar pela nossa terra!” (CASSAMO, 1997 p.77) 


Harmonia contraditória: palavras finais
 O movimento de regresso às tradições e a terra é a ênfase desta obra de Suleiman Cassamo. Nela o autor apresenta uma mescla de culturas que dividem o mesmo espaço: Moçambique. Através do hibridismo cultural ele procura afirmar uma identidade nacional moçambicana: é na diversidade cultural do país que o autor encontra os ingredientes de seus contos, que darão novo sabor à terra. 
Benjamin postula que é necessário que a história seja desvendada, não apenas os fatos históricos que se encontram registrados nos livros oficiais, mas também aqueles que correspondem aos relatos orais do povo. Segundo ele, é preciso recuperar o imaginário dos oprimidos, armazenado nos mitos, nas lendas, nas crenças e nos testemunhos orais.
Percebemos que Cassamo busca, através da memória, recuperar os fatos importantes da história e da tradição moçambicana. O autor promove um encontro de culturas ao colocar num mesmo espaço, o livro: as histórias do patrimônio oral e os relatos das dificuldades cotidianas da vida no campo ou na cidade.
A concepção de tradicional na obra de Cassamo não pode ser compreendida como conservadorismo simplesmente, visto que ela abre espaço para o desenvolvimento de uma outra versão da História de Moçambique, contada e experimentada pelos sujeitos cindidos que a (pós) modernidade tem criado. Aos leitores/ouvintes resta decidir entre os encantos modernos e a tradição; ou ainda buscar este “novo”, fusão do moderno e do tradicional, que é proposto por Homi Bhabha:
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “novo” que não seja parte de um continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estático; ela renova o passado, refigurando-o como um “entre-lugar” contigente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia de viver. (BHABHA, 2007 p.27) 
A construção de identidades nacionais modernas, a partir do que expusemos, deve privilegiar o contato dos diferentes, numa relação de paridade. A literatura e as artes têm apontado para a existência de uma harmonia entre idéias contraditórias. Cremos que, apesar de parecer uma ideia romântica, essa é a única porta para um mundo “pós-moderno” melhor.  

Referências
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1999. 
BENJAMIN, Walter. KOTHE, Flávio (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985 (Coleção Grandes Cientistas Sociais).  
BHABHA, Hommi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. 
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhias das Letras, 1996. 
CASSAMO, Suleiman. O regresso do morto. Lisboa: Ed. Caminho, 1997. 
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Caminhos, 1992. 
HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP and A, 2006. 
LEITE, Ana Mafalda. Oralidades e escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Colibri, 1998. 
MOREIRA, Terezinha Taborda. O vão da voz : a metamorfose do narrador na ficção moçambicana. Belo Horizonte: Ed. PUC-Minas, 2005. 
ROSÁRIO, Lourenço. Singularidades II . Maputo: Texto Editores, 2007.




NR - Este texto é uma readaptação do texto  Regresso do Morto: a vida escondida na obscuridade da morte, apresentado como trabalho de conclusão da Disciplina: Oralidade Memória e Tradição (PPG-Letras/UFRGS) em 2007/01. Logo após foi comunicado e publicado no III Encontro de Professores Literatura Africana na UFRJ.
  • Rosilene Silva da Costa - Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestranda do Programa de Pós- Graduação em Letras da referida universidade, na especialidade Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Literaturas Luso-africanas. Email: lenecostas@hotmail.com

Maputo, Quarta-Feira, 1 de Maio de 2013:: Notícias



23 abril 2013

“DE MEDO MORREU O SUSTO”: MAIS UMA MORTE A NÃO CHORAR

“DE MEDO MORREU O SUSTO”: MAIS UMA MORTE A NÃO CHORAR
Aurélio Furdela


A leitura de um livro que neste 2013 completa dez anos de existência, pode acrescer o desgosto que se tem na vida sobre a natureza mais questionada pela humanidade: a morte. A morte sempre será mais uma. Mas esta, retratada no “De Medo Morreu o Susto” (2ª Ed. Imprensa Universitária, 2003) de Aurélio Furdela, o “mais uma vez” que se aplica não se refere à repetição dos actos, mas à forma como o caos é retratado.

Aurélio Furdela sabe como contar as suas peripécias de um mudo que não chega a fazê-lo como uma narrativa escrita. Começa assim… como se o que dirá não será, no fim, um vaticino, anúncio de uma morte ou falecimento, mais uma frustração, mais uma enrascada em que a condição humana nos impõe, como é a morte, o medo ou o susto como o autor destaca um dos contos do livro.
Na verdade, ciente de que a sociedade moçambicana está saciada de desgraças que imperam lágrimas e terrores com cicatrizes eternas, o autor de “De Medo Morreu o Susto” pauta por rir-se da desgraça do vivo-morto e vice-versa. Ou até, podia simplesmente chamá-lo de Mafa-Vuka, aquele que morre e acorda:
“Diante de Mafa-Vika tinha-se sempre uma nítida sensação de se estar perante um ser imaterial, quase fantasmagórico. Falava calma e pausadamente, com gestos demorados, vagarosos como passos de uma noite de Inverno: não dispensava pressa a nada. Parecia ter o tempo deste e do outro mundo controlado no olhar…” (p.15)
Esse conto, como pontapé de saída, é capaz de definir o presépio em que é aplicada a existência como uma estrada, onde não se veio para ficar, veio-se como se irá. “a morte é uma viagem digna de ser empreendida”, como dizia o personagem Mafa-Vuka no texto com mesmo título.
É nessa expressão de mortos que acordam, ou vivos que morrem vivos que Aurélio Furdela vai contar com o sarcástico humor as suas nove estórias, olhando para aquele assunto que, embora triste, é daqueles que a qualquer hora pode fazer romper do âmago o riso distante.
O conto “A morte de Jowawa” (p.19-20), por exemplo, encaixa-se no retrato obscurantista habituado nas convivências diárias. Aquela morte em que a vítima dos deuses, apenas teve o corpo a repousar durante dias, mas o coração continuava a clamar espaço entre os vivos, palpitando com uma saúde que o próprio Jowawa não podia aguentar mais, nem por vontade própria. Daqueles vizinhos que suspeitam feitiço da esposa do finado, que ainda não morreu, estando num estágio incógnito de permanência entre os vivos.
Uma morte não certa, indecisão permanente. Um conflito em que o leitor não é chamado a resolver, pelas narrativas fechadas de Furdela, ao mesmo tempo que os pontos finais bruscos que o autor escolhe, podem desiludir a espectativa.
Aliás, quando li esse conto no específico, recordei-me do velho Mariano, da obra “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra” (Ndjira, 2002) do escritor Mia Couto em que o referido personagem permanece no mesmo estado, meio falecido e meio vivo. O seu coração ainda palpitava mas o corpo estava num silencioso repouso e não tinha força nenhuma se não esse motor que turbinava sem parar, facto que até o médico que o examinou ficou sem explicação, principalmente quando perguntado: ele morreu ou ainda está vivo?
Ciente que dessa feliz semelhança, recordo-me também da que é assim que se contam estórias como essas, em noites de amanhecer sentados em grupo revivendo esses insólitos que só vem de um absorvedor de ideias retalhistas. O “De Medo Morreu o Susto” é a escolha de Aurélio Furdela em retratar o retalho do grosso que se vive na terra.
É grosso, por exemplo, o bem que a crença faz ao Homem, mas é retalho, os males que os homens que alimentam essa fé aos outros fazem, ao olhar o conto “Amén, pessoal” (p.27-35) onde um povo da aldeia chamada Cumba Li Ethele que vivia uma seca interminável, capaz de tirar todas as esperanças dos aldeões sobre o futuro das suas vidas, é prometido por um pastor que cairá chuva em dois dias desde que à Deus seja dado o que Lhe é roubado. “Com maldição sois amaldiçoado, porque me roubais a mim, vós, toda nação” – diz a bíblia lida pelo pastor a referir-se ao dízimo não dado ao “Senhor”. Com todo o remorso de roubar à Deus e com a mensagem enviada por esse divino de que as chuvas solver-se-ão dos céus em dois dias, o povo deu tudo de si, até os régulos entregaram as casas  em gesto de devolver ao “Senhor” o que a Si pertence, mas qual chuva veio?
O próprio conto “De Medo Morreu o Susto” (p.53-56) que o autor escolheu nomear o livro, não é caso de rir-se do medo que o personagem Susto, nome dado por ser um problema incorrigível de “Medo” que chega a confundir peixe e formigas com cobras e lagartos. Susto é um autêntico apavorado que chega a morrer em baixo da cama, enquanto por cima, a mulher, Mariazinha, encontrava-se com um homem, que o convidou por incumbência do marido com o intento de “dar uma lição” ao perseguidor da sua esposa que já não se servia da prostituição para sobreviver desde que se casou consigo.
Ao ouvir que o homem que estava com sua esposa tinha matado outros maridos das mulheres com quem amantizou, Susto, escondeu o medo dentro do seu coração que parrou de funcionar só de imaginar-se esmagado diante da sua esposa pelo homem que ele mesmo prometeu “dar lição”. Se tivesse que responder a pergunta que Aurélio Furdela não formulou, sobre o que terá matado o Susto, diria, sem dúvida, que foi a cobardia.
O jeito curto das estórias de Furdela que, até nos levam ao equívoco(?) de terem sido cortadas pela impaciência do autor, além de o marcar singularmente entre vários contistas moçambicanos levam-me a associá-lo ao tão afamado escritor brasileiro Machado de Assis que, para mim, tem mais contacto com o autor de “De Medo Morreu o Susto” particularmente  pelo tratamento da morto e vida em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
NR - “De Medo Morreu o Susto”. 2ª Edição – Imprensa Universitária, Maputo, 2003. 61
páginas
  • Eduardo Quive

Maputo, Quarta-Feira, 24 de Abril de 2013:: Notícias



FORA DOS PALCOS - HITLER, STALIN, FREUD E TROSTSKY EM VIENA: OS VIZINHOS QUE MUDARAM A HISTÓRIA DO SÉCULO XX

FORA DOS PALCOS - HITLER, STALIN, FREUD E TROSTSKY EM VIENA: OS VIZINHOS QUE MUDARAM A HISTÓRIA DO SÉCULO XX
Adolf Hitler


 HÁ 100 anos, a região de Viena, então capital do Império Austro-Húngaro, serviu de casa para cinco homens que viriam a ter papéis determinantes no Século XX: Adolf Hitler, Leon Trotsky, Josip Broz Tito, Sigmund Freud e Joseph Stalin.

Em Janeiro de 1913, um homem cujo passaporte trazia o nome Stavros Papadopoulos desembarcou de um comboio vindo da Cracóvia, na Polónia, com um bigode típico dos camponeses e uma mala de madeira, muito simples.
“Eu estava sentado à mesa quando a porta se abriu com uma batida e um homem desconhecido entrou. Ele era baixo, magro, a sua pele, escura, coberta por pequenas marcas e cicatrizes... não vi nada nos seus olhos que se assemelhasse a simpatia”, relembrou, muitos anos depois, o homem que Papadoulos tinha vindo encontrar na cidade.
Mas a real identidade do forasteiro era outra. Nascido Iosif Vissarionovich Dzhugashvili, o homem recém-chegado à Viena era, na verdade, Joseph Stalin, também conhecido pelos amigos como Koba.
E o seu anfitrião, um intelectual dissidente russo, então editor do jornal radical “Pravda” (A Verdade), chamava-se Leon Trotsky.
Obviamente, nem todos os “quase vizinhos” que viriam a moldar grande parte do Século XX nos anos que se seguiram dividiam as mesmas visões do mundo, e nem todos estavam no mesmo momento de vida.
Stalin e Trotsky, por exemplo, estavam a fugir do seu país.
Já o psicanalista Sigmund Freud viva um momento de exaltação por, de acordo com os seus seguidores, abrir os segredos da mente, e estava bem estabelecido na rua Berggasse, onde morava e atendia os seus pacientes.
O jovem Josip Broz Tito, que mais tarde viria a ser conhecido como o marechal Tito, líder da Iugoslávia, trabalhava na fábrica de automóveis Daimler, em Wiener Neustadt, uma vila ao sul de Viena, e procurava emprego, dinheiro e diversão.
E havia ainda um jovem de 24 anos do noroeste da Áustria cujos sonhos de estudar pintura na Academia de Belas Artes de Viena haviam sido destruídos duas vezes e que agora vivia numa pensão na rua Meldermannstrasse, próximo ao Danúbio.
Frustrado, o austríaco que viria a transformar a história de maneira terrível chamava-se Adolf Hitler.
E reinando sobre todos eles, no Palácio Hofburg estava o já envelhecido imperador Franz Joseph, que detinha o trono austro-húngaro desde o ano das grandes revoluções, 1848.
O arquiduque Franz Ferdinand, designado como seu sucessor, morava no Palácio Belvedere, nas proximidades, e aguardava com ansiedade o momento de tomar o poder. O seu assassinato, em 1914, seria o estopim da Primeira Guerra Mundial.


IMPÉRIO E DIVERSIDADE
Sigmund Freud

 A Viena de 1913 era a capital do Império Austro-Húngaro, que consistia em 15 nações e mais de 50 milhões de habitantes.
“Embora não fosse exactamente um caldeirão de diversidade, Viena tinha o seu próprio tipo de charme cultural, atraindo os mais ambiciosos de todas as partes do império. Menos de metade dos dois milhões de habitantes da cidade eram nativos e cerca de um quarto vinha da Boêmia (região no oeste da República Tcheca) e da Morávia (no leste do mesmo país), então o tcheco era falado ao lado do alemão em muitas ocasiões”, explica Dardis McNamee, editora-chefe do “Vienna Review”, único periódico mensal em inglês da Áustria, e moradora da cidade há 17 anos.
Ela acrescenta que, na época, os súbditos austro-húngaros pertenciam a um império onde 12 línguas diferentes eram faladas.
“Oficiais do Exército Austro-Húngaro tinham de estar aptos a dar ordens em 11 línguas além do alemão, e cada uma tinha a sua própria versão do hino nacional”, diz.
Além disso, outras características tornavam a cidade atraente, entre elas o tipo de governo e os famosos cafés, onde intelectuais de várias origens se encontravam e mantinham calorosos debates.
“A comunidade intelectual vienense era na verdade razoavelmente pequena e todos se conheciam, o que tornava possível um intercâmbio através das fronteiras culturais”, explica Charles Emmerson, autor de 1913: Em Busca do Mundo Antes da Grande Guerra, que também actua como pesquisador sénior no instituto de política externa Chatam House, na Grã-Bretanha.
“Não havia um Estado central muito forte. Ele era na verdade um pouco displicente. Se você quisesse encontrar um lugar para se esconder na Europa onde pudesse conhecer muitas outras pessoas interessantes, Viena era o lugar para se estar”, diz.
Embora todos frequentassem os cafés da cidade e tivessem os seus favoritos, ninguém sabe se Hitler esbarrou em Trotsky ou se Tito conheceu Stalin. Mas obras como “Dr. Freud está pronto para recebê-lo agora, senhor Hitler”, uma radionovela de 2007 escrita por Laurence Marks e Maurice Gran, dão uma amostra de como esses encontros poderiam ter-se desenrolado.
O que se sabe, de facto, é que a guerra que emergiu no ano seguinte destruiu muito da vida intelectual de Viena, levando à implosão do império anos mais tarde, em 1918, e dando a Hitler, Stalin, Trotsky e Tito papéis cruciais na História.

Maputo, Quarta-Feira, 24 de Abril de 2013:: Notícias


10 abril 2013

NA “ZONA QUENTE”  PÓS-COLONIAL

Regulação de gênero
A forma particular, histórica, como aparece a regulação das posições de gênero em Moçambique, não dissimula, é óbvio, o caráter estrutural das disposições simbólicas que são necessárias para produzir a sujeição/subjetificação de um sujeito dispersivo e heteróclito que chamaríamos “a mulher”. Desse modo, ampla engenharia social e todo o poder das disposições simbólicas, e da violência, foram mobilizados para reconformar/reconhecer a mulher como um sujeito (assujeitado) no interior das estruturas em transformação do Estado em construção. O que parece algo perturbador, entretanto, é a continuidade dessa produção subjetificante que observamos entre o período colonial e o período frelimista, como aponta Signe Arnfred (2011), entre outros.

Fotografia do autor, Maputo


Realizando pesquisa sobre a regulação estatal de gênero1 em Maputo, me deparei por diversas vezes com duas enormes fotografias no Hall de entrada do Arquivo Histórico de Moçambique (AHM). Samora Machel, em uniforme militar, e  Joaquim Chissano, de terno e gravata. Ícones da memória revolucionária vigiavam os dois, gigantes e masculinos minha curiosidade, pairando imaginários, como guardiões da História reconstruída em Moçambique. No interior dessa história de luta e lib
ertação,  parecem respirar baixinho, outras histórias e perspectivas que expõem as contradições do processo revolucionário. A mulher, e as relações de gênero e sexualidade, figuram no interior dessa história de emancipação e luta.

 Mulheres Makhuwa fotografadas por Weule, em 1906



O etnólogo evolucionista alemão, Karl Weule, realizou em 1906 expedição etnográfica pela então África Oriental Alemã2. Weule descreve a viagem entre o que é hoje Tanzânia e Moçambique, na qual pôde registrar inúmeros traços das culturas Yao, Makonde e Makhuwa. Neste livro, descreve e fotografa inúmeras técnicas corporais nativas, notadamente aquelas ligadas à mulher e à produção de um corpo feminino erotizado. Ora, tais práticas que foram duramente combatidas e criticadas, quer seja pela igreja católica no tempo colonial, quer seja pela FRELIMO no tempo socialista, encontraram um imprevisto defensor relativista em José Cota, jurista-etnólogo, designado pelo General José Tristão de Bettencourt, em 1941, para proceder à elaboração dos Códigos Penal e Civil dos Indígenas de Moçambique, a partir de estudo etnográfico dos povos da coloniais.

Na Zona Quente, rua do pecado
Em agosto de 2011, na minha última viagem a Maputo, estive sozinho pela primeira vez na “Zona Quente”. A “Hot Zone” da prostituição, instalada em torno de dois ou três quarteirões na Baixa, por onde circula por toda a noite a multidão característica de ambientes tais quais esses: as moças, e obviamente seus clientes, taxistas, vendedores, turistas, e hustlers indecifráveis. Já havia estado lá com amigos para “uns copos”. Ouvindo rock & roll no Gipsy, bebendo e conversando. Nessa noite, entretanto, fui sozinho, não, obviamente, buscando os serviços das raparigas, mas curioso em interagir com o território, saturado da memória das políticas sexuais e de seus embates no trânsito (pós)colonial. Na escada de acesso ao banheiro um enorme gordo me abre os braços, como um urso familiar: “Há quanto tempo não vinhas cá, dá-me lá um abraço”. Eu não sabia de quem se tratava e suspeitei que ali se encenava um ritual de reconhecimento ou inspeção, e uma ponta de apreensão picou meu coração. Todos viam que eu era estrangeiro e tive um pouco de trabalho em recusar, com polidez, a oferta insistente das moças.
Lá, na Zona Quente, recordava como à questão da prostituição era um ponto crítico na plataforma ideológica da FRELIMO, que via na ocupação colonial, também um aviltamento à honra das mulheres moçambicanas e, por conseguinte, de seus maridos, irmãos e esposos3. A prostituição e o uso abusivo do corpo da mulher, humilhante metáfora carnal do próprio colonialismo (Machel, 1984).
Ao mesmo tempo a política colonial empenhou-se na produção do corpo, e na sua submissão a uma alma, singular e imortal, entidade abstrata imposta como dispositivo político. A ela contrapunham-se as técnicas corporais locais e seu compromisso com as estruturas culturais de poder e gênero (Weule, 2000; Arnfred, 2011). Tais práticas eram anátema  para a moral revolucionária da FRELIMO, que buscava submeter a sexualidade da mulher, e via nas prostitutas a imagem incorporada da devassidão e degradação moral do colonialismo. Como diz Samora em discurso às Forças Populares de Libertação de Moçambique, alertando-as sobre os perigos pós-coloniais: “Temos inimigos muito fortes nas cidades: o alcoolismo e as prostitutas” (Machel apud Muiane, 2006: 554).
Em belo opúsculo, Fátima Ribeiro discute o tema da prostituição na obra do poeta nacional moçambicano, José Craveirinha. Como ela apontou com grande perspicácia, a prostituição operava no ambiente (pós)colonial como uma perversa zona de contato entre o mundo branco e o mundo negro.
A transposição da barreira entre um mundo e outro realizava-se nos dois sentidos havendo uma interpenetração nociva por trazer consigo a humilhação, a degradação física e moral da mulher, a alienação cultural” (Ribeiro, 1995: 17).
Neste mesmo livrinho encantador, Ribeiro traz-nos uma foto de 1973, de Ricardo Rangel, que mostra a Rua Araujo, coração da “Hot Zone” colonial. Nela, vemos homens brancos que circulam entre as raparigas negras, representação instantânea da contradição sexual na zona quente do contato colonial. Fanon apontou para como a fronteira no mundo colonial está estabelecida pela delegacia de polícia (1979), nesse caso deveríamos acrescentar que também o bordel pode estabelecer-se como fronteira colonial4.


 Rua Araujo, Lourenço Marques, 1973, fotografia de Ricardo Rangel em Ribeiro, 1995 


Craveirinha antecipa no poema “Doce Albertina das Cervejarias” (1961) a fúria revolucionária que, mobilizada pelo ultraje colonial de gênero, se alevantaria na luta de libertação nacional no ano seguinte, do Rovuma até o Maputo:

Mas tu!
Tu minha doce Albertina assídua nos snack-bares.
Neste mundo os encervejados filhos de tuas tarefas
com um milhão de pais e padrastos incógnitos
mas cedo ou mais tarde nos todos juntos
havemos de preencher as certidões de nascimento
com os verdadeiros apelidos escritos na correcta
caligrafia dos irrefutáveis argumentos
Moçambicanos desengatilhados no norte
ao sul e do sul ao norte
fumegando em prol das Albertinas
desde Tete a Negomano
e de Quiterajo a Angoche
emboscados depois via Zumbo
Maxixe…zzzzz!!!Gaza e Magude
marchando irresistíveis até Xinavane
Manhiça e Marracuene
Até chegarmos em triunfo
A Goba e Catuane!
(José Craveirinha, 1960, citado em Ribeiro, 1995).

No mesmo dia em que estive no Gipsy, li na internet, meio por acaso, o interessante texto “Na Rota dos Pecados Noctívagos” (Verdade, 2011). O autor deplora a presença de jovens na “Zona Quente”, as “bebedeiras” e a prostituição.
A actual  juventude maputense bebe mais do que nunca. Aliás, hoje, bebe-se muito mais cedo, mas não é só o álcool que faz parte do itinerário da juventude noctívaga: droga e prostituição completam o rol das prioridades juvenis. / (…) O destino é a ´zona quente´, na baixa da cidade./Por detrás destes seis jovens esconde-se uma história de vida igual à da maioria da sua geração que parece ignorar que está à beira do precipício” (Verdade, 2011)
O tom conservador, o moralismo,  a culpabilização da mulher e o retorno a imaginados valores tradicionais da família (nuclear, patriarcal e burguesa), isso tudo volta, depois de tantos anos, e por outros meios, como elementos duradouros, presentes na cultura moçambicana. Tudo então naquela noite me assediava a imaginação: Weule, Cota, Samora, Albertina. No frio ar avermelhado da Zona Quente Pós-Colonial.
Phallus Fantasma
Em Achille Mbembe, o conceito de postcolony está vinculado à ideia de uma “age”, com temporalidades concorrentes. Desse ponto de vista a produção do Estado, ou a “estatização” da sociedade, não advém da dissolução de antigos laços sociais, mas da superposição de velhas hierarquias e redes (Mbembe, 2001: 42). Outras dimensões da postcolony referem-se à ética da vulgaridade e à conversão fálica ao cristianismo, como obsedante possessão fantasmagórica do Estado e de sua erótica de alteridade e poder: “The phantasm of power and the power of the phantasm” (Mbembe, 2001: 231)5. Desse modo, a dominação consiste, para dominantes e dominados, na assombração pelos mesmos fantasmas, manifestada sob a forma avassaladora de uma economia da sexualidade:
The form of domination imposed during both the slave trade ns colonialism in Africa could be called phallic. During the colonial era and its aftermath, phallic domination has been  all the more strategic in power relationships, not only because it’s based on a mobilization of the subjective foundations on masculinity and femininity but also because it has direct, close connections with the general economy of sexuality” (Mbembe, 2001: 13).
O que observamos é que o fundamento de tal economia política enraíza-se, no trânsito colonial, pela incorporação do destino da mulher, e de sua sexualidade, ao front do debate político.
Referências Bibliográficas
ARNFRED, Signe. Sexuality and Gender Politics in Mozambique – Rethink Gender in Africa. Woodbridge. James Currey/The Nordic Africa Institute. 2011.
BUTLER, Judith. Gender Regulation. In . ___ Undoing Gender. New York. Routledge. 2004. Pp. 40-56.
DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Rio de Janeiro. Relume Dumará. 1994.
FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
HONWANA, Alcinda M. Espíritos Vivos, Tradições Modernas: Possessão de Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique. Trad. Orlando Mendes; Promédia, 2002.
LIESEGANG, Gerhard. Prefácio Biográfico e Notas Técnicas do Tradutor. In __ . WEULE, Karl.Resultados Científicos de Minha Viagem de Pesquisas Etnográficas no Sudeste da África Oriental. Ministério da Cultura. Departamento de Museus. Maputo. 2000. Pp. xix- xxxiii.
MACHEL, Samora. A Harmonia deve Começar no Seio da Cada  Família. Presidente Samora na abertura da Conferência Extraordinária da OMM. CEA – UEM. Pasta 160/ZC. 1984.
MACHEL, Samora. Discurso do Presidente Samora Machel no jantra das Forças Populares de Libertação de Moçambique. In ___ . MUIANE, Armando Pedro. Datas e Documentos Históricos da FRELIMO. Edição do autor. Maputo. 2006. Pp.552-555.
MBEMBE, Achile. On the Postcolony. University of California Press. 2001
MOORE, Henrietta L. Women and the State. In . __ . Feminism and Anthropology. Minneapolis. University of Minnesota Press. 1988.pp. 129-185.
RIBEIRO, Fátima. Uma Abordagem do Tema da Prostituição na Poesia de José Craveirinha. Maputo. AMOLP. 1995.
WEULE, Karl. Resultados Científicos de Minha Viagem de Pesquisas Etnográficas no Sudeste da África Oriental. Ministério da Cultura. Departamento de Museus. Maputo. 2000.


Agradeço a Aissa Mithá Issak, Hector Guerra Hernandez e Omar Ribeiro Thomaz, pelo apoio e inspiração.
·         1.Sobre regulação de gênero Cf. Butler, 2004.
·         2.Ver o esclarecedor prefácio de G. Liesegang ao livro (2000).
·         3.Sobre o Estado e a honra masculina cf. Moore, 1988.
·         4.O trecho em “Os Condenados da Terra” diz: “O mundo colonizado é um mundo cindido em dois. A linha divisória, a fronteira, é indicada pelos quartéis e delegacias de polícia. (…) Nas colônias, o interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime colonial de opressão é o gendarme e o soldado. Vê-se que o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não torna mais leve a opressão, não dissimula a dominação. Exibe-as, manifesta-as com a boa consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência a casa e ao cérebro do colonizado” (1979).
·         5.Sobre fantasmas, obsessões e o Poder Cf. Derrida, 1994. Sobre “espíritos” em Moçambique Cf. Honwana, 2002.

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