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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

05 junho 2013

ENTREVISTA  COM MIA COUTO



LIVRO NÃO PODE SER REFÉM DA VONTADE DO MERCADO - MIA COUTO, VENCEDOR DO PRÉMIO CAMÕES, GOSTARIA QUE O ESTADO “SE PREOCUPASSE MAIS” COM O ACESSO À LITERATURA

O ESCRITOR moçambicano que mais livros publicou, Mia Couto, acaba de ganhar o Prémio Camões, o mais prestigiado galardão literário da língua portuguesa (em valor pecuniário, 100 mil euros, é idêntico ao Prémio Leya). Tornou-se, semana passada, no segundo laureado moçambicano, depois de José Craveirinha o ter recebido em 1991.
                                                                                                                                                           
As reacções à distinção ao autor que se evidenciou da poesia ao romance, passando pela crónica e pelo conto, foram várias, surgidas do interior de Moçambique e do exterior, sobretudo nas porções do mundo onde o português é falado. Também foram várias as reacções de Mia Couto, evidenciadas pela satisfação e pela preocupação nesta entrevista ao “Notícias”, que teve que ser breve dado o assédio que desde a manhã de terça-feira estava a ser alvo o autor pela imprensa nacional e estrangeira baseada na capital do país. Deixamos, nesta edição, algumas das linhas desse diálogo com um escritor singular no nosso panorama e que leva uma carreira de 30 anos.
- Acaba de vencer o maior prémio literário em língua portuguesa. Para além do óbvio sentimento de satisfação, que reacção tem ao facto de estar a ganhar o Prémio Camões, isso tendo em conta que é alguém já habituado aos prémios?
- Devo dizer que seria grave que alguém se habituasse a prémios, porque isso significaria que a pessoa estaria a viver fora do território reservado ao artista, ao criador, que, penso, tem ou deve ter como grande prémio o que faz. Os prémios que tenho recebido trazem-me tudo menos hábito. No caso do escritor, quem deve ser premiado é o livro e não necessariamente o escritor. Essa é a minha filosofia. Mas é também preciso dizer, no que toca a mim e neste caso específico, este prémio é muito particular. É um prémio muito particular na constelação que é o conjunto dos países de língua portuguesa. Fiquei bastante comovido e satisfeito sobretudo porque me recordei bastante do meu próprio pai. Recordei-me o quanto ele está vivo dentro de mim. Sei que ele está satisfeito, porque vivo dentro de mim, pelo facto de aquilo que foi o empenho da vida dele, que foi criar os filhos num ambiente de poesia e de literatura, tem estado a surtir efeito.
- Muitas vezes disse ser um homem de poesia. No entanto, é na prosa que mais se evidencia. Se formos a prestar atenção a muitas actas dos júris que o premiaram muitas vezes há a referência do conjunto da obra ou pela capacidade inventiva ou inovadora na língua, o que, quanto a mim, se evidencia muito na sua prosa. Acha que o poeta que mora em si é ostracizado em favor do prosador?
- Isso é verdade. Bem mesmo! Mas o poeta no sentido geral, não apenas eu. O que eu faço por exemplo na invenção de palavras é uma parte da minha abordagem poética do mundo. Quando se isola isso e se dá um nome específico a isso que para mim faz parte do meu trabalho poético sinto que se não está a dar o nome verdadeiro às coisas. Eu como pessoa acho que há uma certa invisibilidade da poesia, na maneira como se olha para a poesia. Falo isso não só para o meu caso. Por exemplo, os grandes prémios da literatura normalmente são atribuídos a escritores de prosa, aos romancistas e aos demais que trabalham na ficção em prosa, embora possa dizer também, e como tu sabes, há uma tentativa de corrigir isso.
Portanto, há alguma coisa que caminha contra a corrente e faz tornar visível a poesia. Um exemplo disso é este prémio, que premiou o cabo-verdiano (Arménio Vieira, em 2009), que é um poeta. Mas são casos raros. Mas tenho a esperança de ver a poesia reconhecida por toda a sua capacidade criativa no plano linguístico e não só.
- Muitas vezes que falamos de livros levanta-se várias questões. Moçambique tem agora o segundo prémio Camões e vários outros laureados em vários outros prémios; tem havido uma significativa produção literária mas se atentarmos a questões como mercado, políticas para a produção e circulação do livro, etc., veremos que há uma espécie de dar muito e receber pouco panorama…
- Eu penso que alguma coisa tem que ser feita, falando disso, que ultrapassa a vontade das editoras. Não se pode deixar que o assunto livro à vontade do mercado. Não podem ser as leis do mercado a decidirem o destino ou o tratamento do assunto livro. Tem que haver uma aposta política e uma vontade do governo para subsidiar. Gostaria que o Estado se preocupasse muito mais com esta questão. No nosso país a situação do livro é humilhante para o autor, é humilhante para a editora e é humilhante em alguma instância também para o próprio leitor. Acaba-se por mendigar para que a edição do livro possa ficar mais barata ou aceitável e que confesso que não fica aceitável para os moçambicanos. Estive recentemente numa conferência em Nova Iorque e um escritor uruguaio dizia com muita graça que nem é preciso que haja uma repressão política sobre os livros porque só o preço já proíbe que os livros tenham circulação. Esta afirmação encaixa-se à nossa realidade. Isso não é uma coisa que o escritor possa resolver, nem na sua relação contratual com a editora. Tem que haver alguma coisa acima disso, que estabeleça que os livros sejam vistos não como uma mercadoria mas muito acima disso. O governo neste aspecto não se pode demitir de tomar acção, ele é a peça fundamental para que algo mude.
- Acha que Moçambique tem nas condições actuais condições para materializar esse desejo de ver o livro tão barato quanto se pretende e evitar deste modo que as regras do mercado tornem mais dolorida a trajectória que vai da escrita à leitura?
- Eu acho que há coisas que se pode fazer. Na minha opinião primeiro tinha que haver essa declaração aberta ou manifestação de vontade de que queremos chegar lá. Nem esse primeiro passo existe e aceita-se que é assim e que estamos condenados a ficar nesse esquema mercantilista. Mais do que isso vemos uma profunda demissão dos governos que nem sequer tentam dar passos mais ousados na questão do livro. Portanto, há uma desistência à partida para uma luta que mesmo que tenha que ser dura tem que ser travada em prol da nossa sociedade. Já que agora estamos nesta onda de negociarmos coisas porque é que escritores, editores e governo não se sentam e tratem deste assunto tão útil quanto muitas outras utilidades no nosso país. Usando aqui a metáfora (do escritor uruguaio que advoga haver uma repreensão política sobre os livros), há aqui uma guerra que está sendo feita; há aqui uma espécie de impossibilidade de acesso da população ao livro em razão do preço e devemos todos tentar resolver isso.
- É um escritor único no nosso país, pelo número de livros publicados e pela projecção que tem fora de portas. Julgo saber que é de facto o mais bem projectado dos escritores moçambicanos. Como é que encara esse facto, num país que lhe tem como referência mas com muitos outros bons escritores?
- Eu vejo isso com preocupação porque eu não quero, nunca, e tenho feito todo o possível e que esteja ao meu alcance para que as coisas não sejam assim. É verdade que cada escritor quer ser único, do ponto de vista de ser incomparável e não no sentido de querer eliminar os outros. Cada escritor quer ser o único no sentido de que ele cria o seu universo. Escolher o melhor para mim é uma questão estúpida entre os escritores, pois cada um só pode ser julgado por aquilo que é. Há essa parte em todo o lado no mundo e o escritor, o artista gostaria mesmo de ser único. Mas por outro lado sinto que este é um país que tem vários escritores e todos eles são bons, ou não seriam, escritores se não o fossem. Os que já somos ainda somos poucos. Então eu acho que esta preocupação eu tenho e temos que fazer algo para nos afirmarmos cada vez mais no panorama literário nacional e internacional. Há uma coisa que eu sou muito contra, que são os workshops de escrita criativa, mas eu acho que em Moçambique temos que ir esse caminho. Tenho mobilizado colegas meus de escrita para ver se a gente consegue ter essa relação directa com os jovens sem nenhuma instituição que premeie os escritores; juntam-se e criam grupos de trabalho e trabalham com jovens de escolas de maneira que possa ser estimulada essa inventividade criativa.
Mia Couto gostaria de usar o valor do Prémio Camões para desenvolver um projecto que dê “espaço aos jovens escritores moçambicanos”, algo que – considera –, Moçambique não dispõe nesta altura.
“Gostaríamos (ele e os irmãos) muito de poder intervir (...) em áreas junto do livro, dos jovens escritores que não têm espaço”, afirmou o autor durante uma conferência de imprensa em Maputo a propósito do Prémio Camões.
Segundo Mia Couto, "todas as semanas", algum jovem escritor lhe bate à porta com um "manuscrito para mostrar", o que lhe causa "muita impressão", pois revela "uma grande solidão", uma vez que "essas pessoas" não têm com quem partilhar a "preocupação" do valor da obra.
"Não existe instituição em Moçambique que possa receber esta gente, que possa organizar um momento que é essencial, que é alguém escutar, olhar aquele texto preparado pelo jovem e poder ver se ali há uma potencialidade de alguém que pode ser amanhã um escritor", disse.
Sobre a importância do Prémio Camões que recebeu para a literatura moçambicana, Mia Couto afirmou ter dúvidas quanto ao seu significado, argumentando que ela "é muito maior que a contribuição de um escritor", apontando ainda críticas à situação que o país vive neste aspecto.
"Literatura não é produzir livros, é esta dinâmica que anda à volta da escrita literária, que envolve as escolas, as famílias, as bibliotecas, a circulação dos livros. Tudo isso faz uma literatura. Não pensemos que há literatura moçambicana porque há meia dúzia de escritores que têm alguma projecção", sublinhou.
"Se a política oficial e prática do Governo não a tomar como prioridade, estamos a colocar em risco isso que se chama de literatura moçambicana", acrescentou.
Sobre o espaço da lusofonia e do seu potencial literário no mundo, Mia Couto entende que é necessário "acertar, dentro da família" de países de expressão portuguesa, "determinadas coisas", antes de se começar a "pensar num território tão grande, que é o mundo".
"Se não nos impomos, se não somos capazes de mostrar alguma coisa que tem um valor único, alguma espécie de contribuição inovadora, o mundo não quer saber de nós", considerou.
"Mesmo nós temos uma posição de grande ambiguidade: às vezes a língua portuguesa é nossa, outras vezes, não é nossa; às vezes, é tida como língua nacional, outras vezes, não", lamentou.
Entre a ficção e a poesia, Mia Couto soma perto de 30 livros, sendo os títulos "O Último Pé da Sereia", "O Último Voo do Flamingo", "Terra Sonâmbula" e "Raiz de Orvalho", alguns dos mais conhecidos.
O júri da 25.ª edição do Prémio Camões decidiu, semana passada, distinguir Mia Couto pela “vasta obra ficcional, caracterizada pela inovação estilística e pela profunda humanidade”

PRÉMIO PARA DAR ESPAÇO A JOVENS

Mia Couto gostaria de usar o valor do Prémio Camões para desenvolver um projecto que dê “espaço aos jovens escritores moçambicanos”, algo que – considera –, Moçambique não dispõe nesta altura.
“Gostaríamos (ele e os irmãos) muito de poder intervir (...) em áreas junto do livro, dos jovens escritores que não têm espaço”, afirmou o autor durante uma conferência de imprensa em Maputo a propósito do Prémio Camões.
Segundo Mia Couto, "todas as semanas", algum jovem escritor lhe bate à porta com um "manuscrito para mostrar", o que lhe causa "muita impressão", pois revela "uma grande solidão", uma vez que "essas pessoas" não têm com quem partilhar a "preocupação" do valor da obra.
"Não existe instituição em Moçambique que possa receber esta gente, que possa organizar um momento que é essencial, que é alguém escutar, olhar aquele texto preparado pelo jovem e poder ver se ali há uma potencialidade de alguém que pode ser amanhã um escritor", disse.
Sobre a importância do Prémio Camões que recebeu para a literatura moçambicana, Mia Couto afirmou ter dúvidas quanto ao seu significado, argumentando que ela "é muito maior que a contribuição de um escritor", apontando ainda críticas à situação que o país vive neste aspecto.
"Literatura não é produzir livros, é esta dinâmica que anda à volta da escrita literária, que envolve as escolas, as famílias, as bibliotecas, a circulação dos livros. Tudo isso faz uma literatura. Não pensemos que há literatura moçambicana porque há meia dúzia de escritores que têm alguma projecção", sublinhou.
"Se a política oficial e prática do Governo não a tomar como prioridade, estamos a colocar em risco isso que se chama de literatura moçambicana", acrescentou.
Sobre o espaço da lusofonia e do seu potencial literário no mundo, Mia Couto entende que é necessário "acertar, dentro da família" de países de expressão portuguesa, "determinadas coisas", antes de se começar a "pensar num território tão grande, que é o mundo".
"Se não nos impomos, se não somos capazes de mostrar alguma coisa que tem um valor único, alguma espécie de contribuição inovadora, o mundo não quer saber de nós", considerou.
"Mesmo nós temos uma posição de grande ambiguidade: às vezes a língua portuguesa é nossa, outras vezes, não é nossa; às vezes, é tida como língua nacional, outras vezes, não", lamentou.
Entre a ficção e a poesia, Mia Couto soma perto de 30 livros, sendo os títulos "O Último Pé da Sereia", "O Último Voo do Flamingo", "Terra Sonâmbula" e "Raiz de Orvalho", alguns dos mais conhecidos.
O júri da 25.ª edição do Prémio Camões decidiu, semana passada, distinguir Mia Couto pela “vasta obra ficcional, caracterizada pela inovação estilística e pela profunda humanidade”
PALMARÉS DO “CAMÕES”

O PRÉMIO Camões foi criado em 1989 pelos governos de Portugal e Brasil para premiar o mérito literário no contexto dos países de língua portuguesa. Ao longo destes 25 anos Moçambique já foi distinguido por duas vezes, primeiro através do falecido poeta José Craveirinha, em 1991, e agora por Mia Couto. Portugal e Brasil são os que mais coleccionam premiados, com dez distinções.
Angola, embora contabilize dois, contar com apenas um, já que o escritor José Luandino Vieira, em 2006, recusou o prémio. Cabo Verde também conbtabiliza um através de Arménio Vieira, em 2009, enquanto a Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe nao viram qualquer dos seus escritores distinguidos.
Eis a lista dos vencedores do Prémio Camões:
1989 – Miguel Torga, Portugal
1990 – João Cabral de Melo Neto, Brasil
1991 – José Craveirinha, Moçambique
1992 – Vergílio Ferreira, Portugal
1993 – Rachel Queiroz, Brasil
1994 – Jorge Amado, Brasil
1995 – José Saramago, Portugal
1996 – Eduardo Lourenço, Portugal
1997 – Pepetela, Angola
1998 – António Cândido de Mello e Sousa, Brasil
1999 – Sophia de Mello Breyner Andresen, Portugal
2000 – Autran Dourado, Brasil
2001 – Eugénio de Andrade, Portugal
2002 - Maria Velho da Costa, Portugal
2003 – Rubem Fonseca, Brasil
2004 – Agustina Bessa-Luís, Portugal
2005 – Lygia Fagundes Telles, Brasil
2006 – José Luandino Vieira, Portugal/Angola
2007 – António Lobo Antunes, Portugal
2008 – João Ubaldo Ribeiro, Brasil
2009 – Arménio Vieira, Cabo Verde
2010 – Ferreira Gullar, Brasil
2011 – Manuel António Pina, Portugal
2012 – Dalton Trevisan, Brasil
2013 - Mia Couto, Moçambique
  • Lusa
In: Maputo, Quarta-Feira, 5 de Junho de 2013:: Notícias



30 maio 2013

VIAJANDO PELA ÁFRICA COM IBN BATTUTA

VIAJANDO PELA ÁFRICA COM IBN BATTUTA

O vídeo-documentário Viajando pela África com Ibn Battuta foi elaborado a partir da articulação de sucessivas formas narrativas que, integradas, pretendem produzir algo novo e original a respeito dos conhecimentos gerais sobre os povos antigos do continente africano. Essas sucessivas camadas narrativas reconstituem os poucos resíduos da cultura material e o testemunho direto, singular, deixado pelo viajante marroquino que viveu no século XIV da era cristã conhecido como Ibn Battuta. Veja o vídeo bastando clicar no link abaixohttp://www.youtube.com/watch?v=bsXeUZwjq-g




06 maio 2013

REINO UNIDO PONDERA COMPENSAÇÃO DAS VÍTIMAS MAU MAU

REINO UNIDO PONDERA COMPENSAÇÃO DAS VÍTIMAS MAU MAU

O governo britânico está a negociar a compensação de milhares de quenianos que dizem ter sido maltratados pelos seus colonizadores durante a década 50 na insurreição do grupo Mau Mau, reporta o jornal “The Guardian” na sua edição de hoje.

Segundo uma carta enviada aos advogados que representam algumas das vítimas, o Gabinete dos Negócios Estrangeiros está a adiar um recurso contra uma decisão do Tribunal Supremo que deu luz verde às vítimas para intimar o governo.

Por outro lado, o governo britânico diz estar disposto a negociar com eles, diz o relatório.
“As partes estão agora a explorar a possibilidade de resolver a questão trazida a lume pelos nossos clientes,” disse Dan Leader, parceiro da companhia de advogados Leigh Day ao “The Guardian”.
“Claramente, dado o actual estágio das negociações não podemos fornecer mais detalhes.”
Por sua vez, o Gabinete dos Negócios Estrangeiros disse ser “inapropriado” avançar detalhes sobre as negociações.

“Acreditamos que deve haver um debate sobre o passado,” disse um porta-voz do gabinete.
“É uma página da nossa democracia que queremos aprender da nossa história. Reconhecemos e entendemos a dor daqueles que por ambos os lados, estiveram envolvidos nos divisos e sangrentos eventos da Emergência do Quénia. É justo que aqueles que acham ter uma causa a colocar o façam perante os tribunais.”
“O nosso relacionamento com o Quénia e o seu povo tem sido contínua e é caracterizada por estrita cooperação e parceria, baseada na nossa história partilhada,” acrescenta o documento.
O Tribunal Supremo ouviu ano passado alegações de que Paulo Muoka Nzili, Wambungu Wa Nyingi, e Jane Muthoni Mara foram sujeitos a torturas e mutilação sexual.
Os advogados do trio disseram que Nzili foi castrado, Nyingi foi espancado barbaramente e Mara foi sujeito a abusos sexuais em campos detenção durante a rebelião dos Mau Mau.
Um quarto indivíduo, Susan Ngondi, morreu desde que começaram as démarches legais.
O governo britânico na altura aceitou que as forças britânicas torturaram os prisioneiros mas disse estar “desapontado” com o julgamento.
O governo alertou sobre “a possibilidade de implicações legais”.
Londres tinha inicialmente argumentado que todos os custos seriam transferidos aos novos governantes do Quénia quando o país ascendeu à independência.
Pelo menos 10 mil pessoas morreram durante a rebelião dos Mau Mau 1952-1960, enquanto outras fontes reportam números muito mais altos.
Dezenas de milhares foram presos, incluindo o avô do actual do presidente dos Estados Unidos, Barak Obama.
The Guardian/bm/sg
AIM – 06.05.2013




01 maio 2013

"O REGRESSO DO MORTO”, DE SULEIMANE CASSAMO: ORALIDADE, MEMÓRIA E TRADIÇÃO CONSTITUINTES DA IDENTIDADE NACIONAL

"O REGRESSO DO MORTO”, DE SULEIMANE CASSAMO: ORALIDADE, MEMÓRIA E TRADIÇÃO CONSTITUINTES DA IDENTIDADE NACIONAL 



Este ensaio tem como objeto de estudo o livro O Regresso do Morto, de Suleiman Cassamo, autor moçambicano. Serão discutidos alguns aspectos da oralidade, memória e tradição como constituintes da identidade nacional.

BREVÍSSIMO HISTÓRICO DA LITERATURA MOÇAMBICANA 
O apego à terra é uma característica marcante nos moradores de sociedades rurais. Na maior parte das sociedades africanas, a vida é rural, o processo de urbanização está ocorrendo gradualmente após as independências e fim das guerras civis, daí a literatura africana ser repleta de cenas de ambientes rurais. Nestes ambientes não urbanizados são guardadas as tradições: expressas no respeito aos mais velhos, na importância da palavra falada (seja no ato de falar agindo no mundo, seja no ato de contar, a fim de modificar ou entender alguma coisa do mundo), na valorização dos elementos da natureza, na reverência aos antepassados falecidos, enfim, em todos os elementos que de alguma forma identificam os grupos formadores de África.
Moçambique é independente desde 1975 e livre da guerra civil desde 1992, ou seja, é uma sociedade que ainda está se acostumando com o fato de ser nação, no sentido moderno.
Está dividida entre a vida rural e a vida urbana. Aqueles que abandonaram o campo, para empreender uma nova vida na cidade, geralmente acabam se afastando dos princípios e costumes da vida rural, os quais são fundamentais na construção da identidade cultural do país.
A assimilação cultural exigida para a ascensão na escala social obriga os moçambicanos a abandonarem suas raízes culturais e religiosas. Para ser assimilado pela cultura branca europeia (dominante mesmo após o processo de independência) é necessário falar português, deixando de lado os dialetos do país; estar inserido no mundo letrado e de alguma forma abandonando as raízes da oralidade; e aceitar os dogmas cristãos, contrários aos princípios das religiões locais. Estas e outras práticas produzem um processo de “branqueamento cultural”, pois obrigam o africano a deixar suas vivências e aceitar o estilo de vida importado da Europa e de outros lugares. 
Este processo de desenraizamento é doloroso, pois, mesmo quando as pessoas optam por uma vida na cidade e de alguma forma aceitam as regras propostas pelo sistema dominante, a dor é sentida: há uma quebra no sistema de valores individuais e grupais. Essa dor está sendo registrada na literatura e nas artes em geral. 
As primeiras manifestações literárias nos meados de 1975 tinham o intuito de convocar os moçambicanos leitores e os leitores de literatura moçambicana a repensar as suas posições políticas sobre o país. Nesta época temos a presença de Luís Bernardo Honwana, José Craveirinha e outros, que, através da literatura, levantaram a bandeira da independência, denunciando o estado de abandono e a crise que havia se instaurado com a saída dos portugueses do território moçambicano.
Os anos passaram e outras pessoas surgiram no espaço literário, porém a bandeira agora não é de convocação, mas sim de denúncia, pois Moçambique sofrera um processo de abandono por parte da ONU, durante a guerra civil que assolou o país. Os primeiros livros de Mia Couto e de Noémia de Souza são reveladores dos aspectos históricos deste momento. Em Terra Sonâmbula, Mia Couto (1992) apresenta a situação daqueles que fogem da guerra civil, começando a viver o desapego da terra e da vida rural: “Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.” (COUTO, 1992. p 15).
Quinze anos (altura em que foi escrito o texto) marcam o fim da guerra civil em Moçambique, o cenário teve algumas modificações, porém as questões relativas à tradição e a terra ainda são importantes. O processo de assimilação não é uma prática tranquila, pois os moradores do mundo rural ainda precisam abandonar suas raízes tradicionais.
A literatura continua o seu registro, porém a situação não é de apenas denúncia, o papel dos escritores da atualidade é também o de resistir à imposição da cultura europeia. Muitos são os nomes que surgem no cenário da atualidade: Mia Couto continua escrevendo, e talvez seja o mais conhecido escritor moçambicano; Paulina Chiziane tem quatro romances publicados; vários poetas e prosadores têm surgido, entre eles Suleiman Cassamo, autor de quatro livros, publicados em Moçambique e Portugal.
É sobre Suleiman Cassamo e seu livro O Regresso do Morto (1997) que passaremos a deter nosso olhar neste ensaio. 

VISÃO PANORÂMICA DE "O REGRESSO DO MORTO" (1997)

O Regresso do Morto é uma coletânea de contos, publicada em 1989 em Moçambique, onde recebeu o Prêmio da Associação dos Escritores. Em 1997 foi publicado em Portugal e já obteve uma tradução para o francês. A obra é marcada por um profundo amor pela terra: a terra vista como a mãe, como símbolo de vida e guardiã dos ancestrais. O autor dedica o livro aos seus pais: “A meus pais: porque o sangue é veículo da memória” (CASSAMO,1997 p.07).
Já na dedicatória do livro percebe-se a importância dos antepassados, marcada não só na dedicatória aos pais, mas principalmente na maneira como se refere ao sangue e à memória. A memória, ao ser conduzida pelo sangue, simboliza a vitalidade e força contida num passado; o sangue, veículo da memória, deixa de ser apenas o elemento natural do ser humano, assume o compromisso de transmitir às gerações vindouras o passado de uma família, comunidade, ou nação.
Há, na abertura do livro, uma mensagem aos leitores, onde o autor expressa o que deseja oferecer através de seu livro: “Que da leitura destes contos vos fique um leve, levíssimo sabor a terra. O sabor da nossa terra” (CASSAMO,1997, p.09). Talvez a principal pergunta que nos surja desta nota inicial seja: “Quem é este leitor?”. Uma primeira tentativa de resposta, talvez aponte para um leitor não-moçambicano. Pensamos, porém que o escritor se refere tanto ao leitor estrangeiro, quanto ao leitor nacional, pois o livro se presta a dar um sabor da terra: uma oportunidade para o estrangeiro degustar, e para o moçambicano um renovo em seu prazer. Inferimos que a literatura, neste caso, o livro de CASSAMO (1997), passa a ser “um molho” que, além de incrementar o sabor, faz aumentar o apetite por um alimento já conhecido – a terra de Moçambique. 
Os dez contos que compõem o livro trazem aspectos da vida urbana e rural. Ao apresentar a vida nas cidades, o autor ora apresenta os moradores bem sucedidos, ora os habitantes das periferias, com suas tristezas ou dificuldades. Nestes contos, o autor marca a ambiguidade da vida urbana, que impõe o afastamento das tradições, mas não consegue eliminar, com os encantos da pós-modernidade, os conhecimentos e saberes tradicionais.
A temática central do livro é a morte, que ora representa o fim natural da vida, ora simboliza as dificuldades e percalços cotidianos. Um segundo tema que pode ser apreendido é a situação da mulher: o autor apresenta as mulheres como portadoras de força motriz na sociedade. Pensamos que as mulheres podem significar vida, se opondo, desta forma, à morte.
Os contos são curtos, apenas um é narrado em primeira pessoa, tendo um aspecto epistolar – o narrador é claramente culto e assimilado. Os outros nove contos são narrados em terceira pessoa, dando-nos a sensação de estar diante de um contador de histórias. Os elementos da natureza são constituintes do universo literário africano, pois as culturas africanas estabelecem uma relação de valoração e intimidade com a natureza. Em O Regresso do morto isso não é diferente, porém o autor escolhe o elemento terra como principal em suas narrativas.
Após uma brevíssima revisão da história literária de Moçambique, e uma visão panorâmica da obra O Regresso do Morto, buscaremos assinalar aspectos relevantes da tradição, da oralidade e da memória, expressos nesta obra. Dividiremos nossa análise em duas partes: primeiramente pensaremos sobre os movimentos da tradição na sociedade moçambicana; logo após, discutiremos alguns aspectos relativos à memória e à oralidade na constituição da identidade do país.
Queremos fechar esta parte do trabalho contrapondo dois conceitos: o moderno de BAUMAN (1999) e o tradicional, proposto por CASSAMO (1997) no conto “O regresso do morto”.
 BAUMAN (1999) após analisar os tempos modernos, aponta a pós-modernidade como saída, mas não consegue ser optimista. O professor ocidental afirma: “o que é realmente novo na nossa atual situação, em outras palavras, é o nosso ponto de observação” (BAUMAN, 1999, p. 288). Desta forma ele não dá muitas expectativas para o homem livrar-se do conflito imposto pela ambivalência de conceitos.
Cassamo (também professor universitário em Moçambique), através do narrador em “O regresso do morto”, diz que, quando o jovem fitou sua mãe rachando lenha, “o fogo avivou os olhos mortos” (CASSAMO, 1997 p.82). Vemos nisso uma metáfora de vida e de liberdade que o regresso à casa e às tradições pode dar ao homem. Estamos diante de dois conceitos, não poderia ser diferente em tempos modernos ou pós-modernos, cabe a cada um fazer sua opção.   

Memória e Oralidade na identidade cultural moçambicana
 “A memória é a mais épica de todas as faculdades” (BENJAMIN, 1985, p. 210): sendo assim, é forma discursiva que recria e fixa vivências, transformando-as em interpretações que atravessam tempos e desdobram realidades. Desta forma, o passado pode apresentar diversas versões, está instalado entre a memória e a história e encontra na linguagem a sustentação que “reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho, a imagem lembrada e as imagens da vigília atual” (BOSI, 1996, p.56).
Para os africanos, particularmente, a memória tem um papel fundamental para a preservação da cultura, pois em África a tradição e a história foram, durante muito tempo, repassadas aos jovens, basicamente, por via oral. Assim, a ausência de memória equivaleria à perda de parte da história e das tradições. Os velhos são os cronistas dos acontecimentos que devem ser passados aos jovens. Ao contarem as histórias passadas, eles asseguram o viver da tradição. A figura do contador de histórias passa a um lugar de destaque, pois nela se encerram não apenas os saberes que precisam ser repassados, mas também as formas de repasse. O contador de histórias (griot) tem um papel que vai além do contar, visto que ele também deve formar outros contadores, pois, deste modo, garantirá a perpetuação das tradições.
Ao nos voltarmos para a obra O regresso do morto de CASSAMO (1997), percebemos este cuidado, ou seja, o autor instala, na figura do narrador, a responsabilidade de perpetuar a tradição.
Como falamos na abertura de nosso texto, o início do livro (dedicatória e epígrafe) já aponta para isso, mas é na figura do narrador que o autor consolida o seu projeto. O narrador de Cassamo seduz o leitor de forma que este tem desejo de ouvi-lo, é impossível a realização da história sem a sua voz. Há interação entre o narrador/contador e os seus leitores/ouvintes: homens, mulheres ou crianças o ouvirão com atenção, pois ele cria um ambiente que permite muitas leituras e aprendizados com uma única história. O conto “Nyeleti” exemplifica isto. 
Esse conto trata de uma temática básica: dois jovens disputando o amor de uma moça. Um é amado, o outro rejeitado. O amado parte para fazer fortuna, e o rejeitado aproveitando a ausência dele, usa um feitiço que encanta a jovem, e esta casa com ele. Quando o amado retorna, há uma disputa, e o final não é feliz, pois a moça acaba ficando sem nenhum dos dois.
O narrador seduz o leitor, instaurando um clima poético, pois as personagens e seus atos são descritos a partir de metáforas da natureza. Na abertura do conto, ele convida o seu interlocutor a prestar atenção numa papaieira, com isso ele exemplifica o espaço de sua história. O narrador nos coloca tanto na posição de ouvintes, sentados no chão, quanto na posição de leitores que podem imaginar o cenário.
Queremos nos ater, contudo, às inúmeras temáticas possíveis de serem depreendidas desta história. Sabemos que muitos são os sentidos que um texto pode ter, mas, particularmente neste conto, pensamos em alguns sentidos pedagógicos que podem ser transmitidos numa contação para público misto.
Há toda uma crítica à partida do jovem amado, pois este abandona sua terra e sua amada para ir em busca de dinheiro, assim desvincula-se das tradições, abrindo espaço para que o segundo entre em jogo. Malatana, o rejeitado, tenta seduzir Nyeleti, porém não é bem-sucedido, então decide partir e buscar artifícios religiosos: o feitiço. Assim o rejeitado passa a amado, porém, não age de forma honesta, pois ele sabe que a jovem não o ama e que já fora firmado um compromisso de lobolo. Nyeleti também erra, pois na ausência do amado ficara ouvindo a voz de Malatana, ou seja, deixando que seu coração tivesse esperanças, quando ela estava comprometida com o jovem Foliche.
Em “Nyeleti”, o narrador, nos fala do respeito às entidades sagradas da natureza, pois é na floresta e nas águas que Malatana busca o feitiço. Ao descrever Foliche voltando agressivo como um tsotsi, relembra que o país é formado por diversos grupos, cada um com suas características. O conto é pedagógico, no sentido de ensinar aos mais jovens algumas tradições: cuidado com a natureza, pois ela abriga o sagrado; o uso do feitiço não pode ser de qualquer forma; o poder da palavra está acima de tudo, pois havia compromisso de lobolo, o qual foi quebrado quando Nyeleti abandonou a casa dos pais para viver com Malatana.
Independente de quem seja o público, o conto se presta a ensinar alguma coisa, seja para uma moça ou para um moço que deseje casar, ou ainda para uma criança ou um velho, que ouvirá a história pelo seu encanto de ser história.
Ana Mafalda Leite (1998) prefere usar o termo oralidades, que permitiria dar conta de diferenciar a maneira como os escritores se relacionam com as histórias orais e com as línguas. Ela postula que existem três tipos de apropriação da oralidade: oralizar a língua portuguesa; hibridizar, através da recriação sintática e lexical; ou interseccionar com as diferentes línguas africanas. Percebemos que Cassamo faz uso da intersecção, pois ele constrói as frases usando palavras de diferentes línguas. Faz uso de onomatopéias, e escreve algumas palavras de forma que venham marcar cada segmento do texto com um ritmo diferenciado. Além disso, o escritor insere palavras inglesas nos textos, as quais, geralmente, são usadas nas atividades financeiras de compra e venda de produtos ou de força de trabalho.
Ao final do livro é inserido um glossário, pois a ausência deste impossibilitaria aos de fora terem uma boa compreensão do texto.
As estratégias narrativas usadas pelo autor combinam elementos da modernidade e da tradição. Da modernidade, usa a fragmentação: seja nos aspectos linguísticos, seja na construção das histórias; da tradição, recupera os aspectos culturais fundamentais, ao mesmo tempo em que questiona as heranças negativas ainda presentes na sociedade moçambicana.
Cassamo, através deste narrador, se constitui contador de histórias, inscrevendo em seus textos uma visão crítica tanto do contexto social, quanto da própria arte de narrar e escrever. 
Pelo viés de Stuart Hall (2006), uma das figuras mais importantes na área de estudos sociais da atualidade, uma cultura nacional é uma comunidade imaginada. As nações são formadas por diversos povos, logo abrigam diversas culturas. Em cada nação há uma cultura dominante, e geralmente, a sua dominação se dá ou se deu, através de processos violentos. Ao discutirmos a identidade de uma nação, “devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais contribuem para ‘costurar’ as diferenças numa única identidade”, (HALL, 2006 p.65).
O contexto africano, mais especificamente moçambicano, vive este processo de luta para a construção desta cultura nacional. A literatura tem registrado os inúmeros embates culturais que o país tem vivido. Ao olhar a obra de Cassamo, e através dela, pensarmos este momento de construção da identidade nacional, verificamos que a sociedade atual tem lutado contra a globalização, que tenta exterminar todas as culturas. Sabemos que a luta é desigual, e que a oponente globalização possui armas poderosas, porém Stuart Hall (2006, p. 58) nos aponta que “as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança” são os conceitos constituintes de uma comunidade imaginada. 
 A Literatura, junto com outras artes e em parceria com algumas ciências, tem buscado construir esta comunidade imaginada. Na obra de CASSAMO (1997), percebemos que há voz para homens e mulheres, não fazendo distinção de gêneros; espaço para jovens e velhos, abrindo mão dos preconceitos de idade; ambiente para brancos e negros, independente dos julgamentos errôneos a respeito de raça; discussão dos diversos grupos culturais e religiosos do país, sem julgamento de superioridade ou inferioridade; convivência de oralidade e escrita, não atribuindo a uma ou outra, aspectos mais ou menos positivos; e por fim, lugar para modernidade e tradição, discutindo as contribuições de ambas para uma vida melhor. 
A memória e a oralidade, desta forma, contribuem para o processo de construção da identidade moçambicana, no momento em que homens e mulheres falam como Lucas, personagem central do conto Casamento de um casado : “- É do meu primeiro casamento: lutar pela nossa terra!” (CASSAMO, 1997 p.77) 


Harmonia contraditória: palavras finais
 O movimento de regresso às tradições e a terra é a ênfase desta obra de Suleiman Cassamo. Nela o autor apresenta uma mescla de culturas que dividem o mesmo espaço: Moçambique. Através do hibridismo cultural ele procura afirmar uma identidade nacional moçambicana: é na diversidade cultural do país que o autor encontra os ingredientes de seus contos, que darão novo sabor à terra. 
Benjamin postula que é necessário que a história seja desvendada, não apenas os fatos históricos que se encontram registrados nos livros oficiais, mas também aqueles que correspondem aos relatos orais do povo. Segundo ele, é preciso recuperar o imaginário dos oprimidos, armazenado nos mitos, nas lendas, nas crenças e nos testemunhos orais.
Percebemos que Cassamo busca, através da memória, recuperar os fatos importantes da história e da tradição moçambicana. O autor promove um encontro de culturas ao colocar num mesmo espaço, o livro: as histórias do patrimônio oral e os relatos das dificuldades cotidianas da vida no campo ou na cidade.
A concepção de tradicional na obra de Cassamo não pode ser compreendida como conservadorismo simplesmente, visto que ela abre espaço para o desenvolvimento de uma outra versão da História de Moçambique, contada e experimentada pelos sujeitos cindidos que a (pós) modernidade tem criado. Aos leitores/ouvintes resta decidir entre os encantos modernos e a tradição; ou ainda buscar este “novo”, fusão do moderno e do tradicional, que é proposto por Homi Bhabha:
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “novo” que não seja parte de um continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estático; ela renova o passado, refigurando-o como um “entre-lugar” contigente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia de viver. (BHABHA, 2007 p.27) 
A construção de identidades nacionais modernas, a partir do que expusemos, deve privilegiar o contato dos diferentes, numa relação de paridade. A literatura e as artes têm apontado para a existência de uma harmonia entre idéias contraditórias. Cremos que, apesar de parecer uma ideia romântica, essa é a única porta para um mundo “pós-moderno” melhor.  

Referências
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1999. 
BENJAMIN, Walter. KOTHE, Flávio (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985 (Coleção Grandes Cientistas Sociais).  
BHABHA, Hommi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. 
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhias das Letras, 1996. 
CASSAMO, Suleiman. O regresso do morto. Lisboa: Ed. Caminho, 1997. 
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Caminhos, 1992. 
HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP and A, 2006. 
LEITE, Ana Mafalda. Oralidades e escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Colibri, 1998. 
MOREIRA, Terezinha Taborda. O vão da voz : a metamorfose do narrador na ficção moçambicana. Belo Horizonte: Ed. PUC-Minas, 2005. 
ROSÁRIO, Lourenço. Singularidades II . Maputo: Texto Editores, 2007.




NR - Este texto é uma readaptação do texto  Regresso do Morto: a vida escondida na obscuridade da morte, apresentado como trabalho de conclusão da Disciplina: Oralidade Memória e Tradição (PPG-Letras/UFRGS) em 2007/01. Logo após foi comunicado e publicado no III Encontro de Professores Literatura Africana na UFRJ.
  • Rosilene Silva da Costa - Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestranda do Programa de Pós- Graduação em Letras da referida universidade, na especialidade Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Literaturas Luso-africanas. Email: lenecostas@hotmail.com

Maputo, Quarta-Feira, 1 de Maio de 2013:: Notícias



23 abril 2013

“DE MEDO MORREU O SUSTO”: MAIS UMA MORTE A NÃO CHORAR

“DE MEDO MORREU O SUSTO”: MAIS UMA MORTE A NÃO CHORAR
Aurélio Furdela


A leitura de um livro que neste 2013 completa dez anos de existência, pode acrescer o desgosto que se tem na vida sobre a natureza mais questionada pela humanidade: a morte. A morte sempre será mais uma. Mas esta, retratada no “De Medo Morreu o Susto” (2ª Ed. Imprensa Universitária, 2003) de Aurélio Furdela, o “mais uma vez” que se aplica não se refere à repetição dos actos, mas à forma como o caos é retratado.

Aurélio Furdela sabe como contar as suas peripécias de um mudo que não chega a fazê-lo como uma narrativa escrita. Começa assim… como se o que dirá não será, no fim, um vaticino, anúncio de uma morte ou falecimento, mais uma frustração, mais uma enrascada em que a condição humana nos impõe, como é a morte, o medo ou o susto como o autor destaca um dos contos do livro.
Na verdade, ciente de que a sociedade moçambicana está saciada de desgraças que imperam lágrimas e terrores com cicatrizes eternas, o autor de “De Medo Morreu o Susto” pauta por rir-se da desgraça do vivo-morto e vice-versa. Ou até, podia simplesmente chamá-lo de Mafa-Vuka, aquele que morre e acorda:
“Diante de Mafa-Vika tinha-se sempre uma nítida sensação de se estar perante um ser imaterial, quase fantasmagórico. Falava calma e pausadamente, com gestos demorados, vagarosos como passos de uma noite de Inverno: não dispensava pressa a nada. Parecia ter o tempo deste e do outro mundo controlado no olhar…” (p.15)
Esse conto, como pontapé de saída, é capaz de definir o presépio em que é aplicada a existência como uma estrada, onde não se veio para ficar, veio-se como se irá. “a morte é uma viagem digna de ser empreendida”, como dizia o personagem Mafa-Vuka no texto com mesmo título.
É nessa expressão de mortos que acordam, ou vivos que morrem vivos que Aurélio Furdela vai contar com o sarcástico humor as suas nove estórias, olhando para aquele assunto que, embora triste, é daqueles que a qualquer hora pode fazer romper do âmago o riso distante.
O conto “A morte de Jowawa” (p.19-20), por exemplo, encaixa-se no retrato obscurantista habituado nas convivências diárias. Aquela morte em que a vítima dos deuses, apenas teve o corpo a repousar durante dias, mas o coração continuava a clamar espaço entre os vivos, palpitando com uma saúde que o próprio Jowawa não podia aguentar mais, nem por vontade própria. Daqueles vizinhos que suspeitam feitiço da esposa do finado, que ainda não morreu, estando num estágio incógnito de permanência entre os vivos.
Uma morte não certa, indecisão permanente. Um conflito em que o leitor não é chamado a resolver, pelas narrativas fechadas de Furdela, ao mesmo tempo que os pontos finais bruscos que o autor escolhe, podem desiludir a espectativa.
Aliás, quando li esse conto no específico, recordei-me do velho Mariano, da obra “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra” (Ndjira, 2002) do escritor Mia Couto em que o referido personagem permanece no mesmo estado, meio falecido e meio vivo. O seu coração ainda palpitava mas o corpo estava num silencioso repouso e não tinha força nenhuma se não esse motor que turbinava sem parar, facto que até o médico que o examinou ficou sem explicação, principalmente quando perguntado: ele morreu ou ainda está vivo?
Ciente que dessa feliz semelhança, recordo-me também da que é assim que se contam estórias como essas, em noites de amanhecer sentados em grupo revivendo esses insólitos que só vem de um absorvedor de ideias retalhistas. O “De Medo Morreu o Susto” é a escolha de Aurélio Furdela em retratar o retalho do grosso que se vive na terra.
É grosso, por exemplo, o bem que a crença faz ao Homem, mas é retalho, os males que os homens que alimentam essa fé aos outros fazem, ao olhar o conto “Amén, pessoal” (p.27-35) onde um povo da aldeia chamada Cumba Li Ethele que vivia uma seca interminável, capaz de tirar todas as esperanças dos aldeões sobre o futuro das suas vidas, é prometido por um pastor que cairá chuva em dois dias desde que à Deus seja dado o que Lhe é roubado. “Com maldição sois amaldiçoado, porque me roubais a mim, vós, toda nação” – diz a bíblia lida pelo pastor a referir-se ao dízimo não dado ao “Senhor”. Com todo o remorso de roubar à Deus e com a mensagem enviada por esse divino de que as chuvas solver-se-ão dos céus em dois dias, o povo deu tudo de si, até os régulos entregaram as casas  em gesto de devolver ao “Senhor” o que a Si pertence, mas qual chuva veio?
O próprio conto “De Medo Morreu o Susto” (p.53-56) que o autor escolheu nomear o livro, não é caso de rir-se do medo que o personagem Susto, nome dado por ser um problema incorrigível de “Medo” que chega a confundir peixe e formigas com cobras e lagartos. Susto é um autêntico apavorado que chega a morrer em baixo da cama, enquanto por cima, a mulher, Mariazinha, encontrava-se com um homem, que o convidou por incumbência do marido com o intento de “dar uma lição” ao perseguidor da sua esposa que já não se servia da prostituição para sobreviver desde que se casou consigo.
Ao ouvir que o homem que estava com sua esposa tinha matado outros maridos das mulheres com quem amantizou, Susto, escondeu o medo dentro do seu coração que parrou de funcionar só de imaginar-se esmagado diante da sua esposa pelo homem que ele mesmo prometeu “dar lição”. Se tivesse que responder a pergunta que Aurélio Furdela não formulou, sobre o que terá matado o Susto, diria, sem dúvida, que foi a cobardia.
O jeito curto das estórias de Furdela que, até nos levam ao equívoco(?) de terem sido cortadas pela impaciência do autor, além de o marcar singularmente entre vários contistas moçambicanos levam-me a associá-lo ao tão afamado escritor brasileiro Machado de Assis que, para mim, tem mais contacto com o autor de “De Medo Morreu o Susto” particularmente  pelo tratamento da morto e vida em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
NR - “De Medo Morreu o Susto”. 2ª Edição – Imprensa Universitária, Maputo, 2003. 61
páginas
  • Eduardo Quive

Maputo, Quarta-Feira, 24 de Abril de 2013:: Notícias