OPERAÇÃO PRODUÇÃO FORÇOU MILHARES DE
PESSOAS ÀS “MACHAMBAS” EM MOÇAMBIQUE
Após a independência de Moçambique, o governo tentou
implementar um sistema económico marxista-leninista. Lançou em 1983 a Operação
Produção que obrigou milhares de pessoas a deixar as famílias e a ir para o
Niassa.
Samora Machel, primeiro Presidente de Moçambique, tinha a
braços uma difícil missão após a independência, em 1975: a reorganização do
novo país. A queda do regime colonial português abalou a estrutura do Estado
(uma vez que, até à data, os portugueses controlavam o aparelho produtivo,
económico e burocrático).
Após a independência, registou-se um forte fluxo de pessoas das zonas rurais para as grandes cidades, à procura de melhores condições de vida mas sobretudo porque não se sentiam seguras nos campos com o início da guerra civil em 1976.
Assim, o desemprego disparou, os já frágeis serviços de educação e saúde entraram em ruptura nos centros urbanos (segundo o historiador e antropólogo brasileiro Omar Ribeiro Thomaz) e diminuiu a capacidade de produção de alimentos nas zonas rurais.
Após a independência, registou-se um forte fluxo de pessoas das zonas rurais para as grandes cidades, à procura de melhores condições de vida mas sobretudo porque não se sentiam seguras nos campos com o início da guerra civil em 1976.
Assim, o desemprego disparou, os já frágeis serviços de educação e saúde entraram em ruptura nos centros urbanos (segundo o historiador e antropólogo brasileiro Omar Ribeiro Thomaz) e diminuiu a capacidade de produção de alimentos nas zonas rurais.
“Vinte pessoas numa
família e quem trabalha é uma pessoa só. E são adultas! A quantidade é grande
que come.(…) De todas estas zonas vinha dantes o tomate, a couve, o repolho, a
cebola, a batata, o arroz, o milho, o feijão, a mandioca, a alface, a banana,
tudo aquilo que esta cidade consumia. É isto que vamos produzir!”, disse Samora
Machel num discurso.
O primeiro Presidente de Moçambique temia que as pessoas desempregadas, consideradas improdutivas, enveredassem pela criminalidade e prostituição, agravando a instabilidade social. Assim, o governo da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) lançou, em 1983, em plena guerra civil, a Operação Produção.
Milhares de deportados das cidades para os campos
De acordo com estudos do historiador e antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, o programa consistia numa ação policial repressiva, destinada a enviar as pessoas alegadamente improdutivas, marginais e prostitutas, das grandes cidades, para as zonas rurais com baixa densidade demográfica, em particular para o Niassa. Deviam dedicar-se ao trabalho no campo, tornando-se cidadãos produtivos para a sociedade, e aprender a ideologia marxista-leninista.
O primeiro Presidente de Moçambique temia que as pessoas desempregadas, consideradas improdutivas, enveredassem pela criminalidade e prostituição, agravando a instabilidade social. Assim, o governo da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) lançou, em 1983, em plena guerra civil, a Operação Produção.
Milhares de deportados das cidades para os campos
De acordo com estudos do historiador e antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, o programa consistia numa ação policial repressiva, destinada a enviar as pessoas alegadamente improdutivas, marginais e prostitutas, das grandes cidades, para as zonas rurais com baixa densidade demográfica, em particular para o Niassa. Deviam dedicar-se ao trabalho no campo, tornando-se cidadãos produtivos para a sociedade, e aprender a ideologia marxista-leninista.
Ao longo da Operação Produção, as rusgas podiam acontecer a
qualquer momento. Segundo o especialista da Universidade Estadual de Campinas,
no Brasil, as forças de segurança saíam pelas ruas de Maputo ou da Beira, por
exemplo, solicitando comprovativos de trabalho ou estudante aos homens, e os
mesmos ou de casamento às mulheres.
Quem era apanhado sem documentos ficava automaticamente detido e, normalmente ao final do dia, era transportado em aviões lotados para o norte do país. Os detidos não tinham como recorrer da decisão num tribunal (como seria normal num Estado de direito).
A Operação Produção efetou entre 50 a 100 mil pessoas apenas na cidade de Maputo, segundo estudos de Ribeiro Thomaz.
Quem era apanhado sem documentos ficava automaticamente detido e, normalmente ao final do dia, era transportado em aviões lotados para o norte do país. Os detidos não tinham como recorrer da decisão num tribunal (como seria normal num Estado de direito).
A Operação Produção efetou entre 50 a 100 mil pessoas apenas na cidade de Maputo, segundo estudos de Ribeiro Thomaz.
Operação produção enquadrava-se na construção do Homem Novo |
Três, quatro vôos por dia para o Niassa
Maria, nome fictício de uma ativista moçambicana, que pediu anonimato à DW África e que acompanhou de perto a Operação Produção, recorda a chegada das pessoas à província do Niassa, a partir de junho de 1983: “a partir das quatro horas, os aviões chegavam ao Niassa com essas pessoas. E daqui eram encaminhadas imediatamente para vários centros. Esses centros não eram na aldeia, eram mato, completamente mato. Cada um recebia os seus instrumentos, enxada, catana, foice, quando chegasse lá, cortava pau, fazia a sua casa para viver. (…) Não posso precisar o número, só sei que passou um tempo e que eram três, quatro vôos por dia. Era muita gente”.
Apanhadas de surpresa nas ruas, deixando tudo para trás,
muitas pessoas chegavam ao Niassa apenas com a roupa que levavam no corpo.
“Foi muito difícil porque faz muito frio aqui. E eles como eram apanhados na rua, de qualquer maneira, sem agasalhos nem cobertores, viviam assim mesmo. Muitos deles perderam a vida, não só por causa do frio, mas lá no mato, nos centros onde eram colocados, pelos animais. Uns foram comidos pelos animais e outros doentes morriam pelo caminho, talvez na tentativa de fugir”, recorda a ativista Maria.
Abandonadas à sua sorte
Em vez de encontrarem centros organizados da Operação Produção, as pessoas eram praticamente abandonadas no mato denso, terra de ninguém.
“Eles eram deixados lá, nos centros para produzir. Mas muitos saíram da cidade, não conseguiam capinar. E depois essa retirada compulsiva retirou um bocado moral de fazer alguma coisa e de viver num sítio sem as mínimas condições para um ser humano. Então, no dia-a-dia, a preocupação era a de procurar comida para poder sobreviver”, relata Maria.
Zélia, a voluntária na Operação Produção
Sem possibilidade de se despedirem ou de contactarem os seus familiares, a maioria das pessoas chegava frustrada ao Niassa – à exceção de Zélia Charles.
Natural da Beira, Zélia chegou ao Niassa, em 1983, como voluntária. O marido, que antes tinha trabalhado nos Caminhos-de-Ferro, fora forçado a integrar a Operação Produção. Por amor, Zélia pegou nos filhos e foi com ele.
Foram para a zona montanhosa de Cavago, distrito de Sanga.
Mas a guerra civil (entre 1976 e 1992) obrigou tanto Zélia como muitas outras
pessoas a procurarem terreno mais seguro. Fixou-se em Unango, no mesmo
distrito, onde vive até hoje.
Centro de reeducação de Unango, Niasssa |
As precárias condições de vida numa província imensa e inóspita, aliadas à guerra civil, que se estendia a todo o país, tornavam difícil a sobrevivência.
Zélia Charles, que tinha chegado como voluntária na Operação Produção, “não viu muito sofrimento, mas aquele que foi capturado sofreu”, conta, recordando que muitas pessoas “dormiam em sacos, nem tinham pratos, levavam papel para receber a comida e comiam”.
Governo autoriza regresso mas não dá meios
Após a morte de Samora Machel, em 1986, Joaquim Chissano sucede na Presidência da República. Em 1988, Chissano autorizou o regresso para as zonas de origem das pessoas que tinham sido forçadas a ir para o Niassa.
Praticamente deixadas à sua sorte, no Niassa, as pessoas puderam contar apenas com o apoio da Caritas, organização humanitária ligada à Igreja Católica: “quando o governo autorizou, a Caritas foi assistir com mantas, comida. E foi nessa altura que víamos esqueletos humanos, pedaços dos corpos humanos, quando íamos para o terreno distribuir”, diz a ativista moçambicana Maria.
Etelvino Carlos, atual coordenador da Caritas Diocesana de
Lichinga, conta que na época foi fundamental o apoio da Caritas alemã que
“ofereceu um camião, para além de fundos para combustível e para conseguir
comprar alimentação para as pessoas, nas viagens de regresso a Maputo".
"Essas pessoas estavam aqui perdidas e não sabiam como localizar os seus
familiares”, explica Etelvino Carlos.
Com o apoio da Caritas alemã, Maria, que trabalhava para a Caritas Moçambique, no Niassa, ajudou a preparar as viagens de regresso de muitos moçambicanos, entre 1988 e o ano 2000.
“Então, no princípio, quando a nossa guerra civil dos 16 anos foi muito intensa, foi um pouco difícil por via terrestre. Mas [as pessoas] foram por via aérea. Depois com o término da guerra ou quando abrandou começaram a ir por via terrestre, porque a Caritas alemã doou um camião para transporte dessa gente. O carro fez muitas viagens. Viagens difíceis, as vias de acesso eram pouco seguras. Mas nunca tivemos problemas de ataques pelo caminho”, relata Maria.
Rompimento com o passado
Com o apoio da Caritas alemã, Maria, que trabalhava para a Caritas Moçambique, no Niassa, ajudou a preparar as viagens de regresso de muitos moçambicanos, entre 1988 e o ano 2000.
“Então, no princípio, quando a nossa guerra civil dos 16 anos foi muito intensa, foi um pouco difícil por via terrestre. Mas [as pessoas] foram por via aérea. Depois com o término da guerra ou quando abrandou começaram a ir por via terrestre, porque a Caritas alemã doou um camião para transporte dessa gente. O carro fez muitas viagens. Viagens difíceis, as vias de acesso eram pouco seguras. Mas nunca tivemos problemas de ataques pelo caminho”, relata Maria.
Rompimento com o passado
Até ao momento, não se sabe quantas pessoas regressaram do
Niassa às terras de origem. Mas sabe-se que muitas romperam ligação ao passado.
Perderam irremediavelmente o rasto da família e, por vontade própria, voltaram
ao Niassa para recomeçar uma nova vida.
Já sem o marido, Zélia Charles preferiu ficar com os filhos em Unango. Nunca recebeu qualquer apoio que, com o término da Operação Produção, foi prometido pelo governo. Até hoje a maioria das pessoas que integrou a Operação Produção vive da agricultura de subsistência.
Já sem o marido, Zélia Charles preferiu ficar com os filhos em Unango. Nunca recebeu qualquer apoio que, com o término da Operação Produção, foi prometido pelo governo. Até hoje a maioria das pessoas que integrou a Operação Produção vive da agricultura de subsistência.
Humanismo ou violação dos direitos
humanos?
No entanto, o antigo presidente Joaquim Chissano mantém-se como defensor da Operação Produção, programa que ele próprio terminou. “Era um bom programa que visava recuperar delinquentes e marginais. Hoje ridicularizam-nos, dizem que era um programa criminoso, enquanto estava cheio de humanismo”, afirmou Chissano a um jornal moçambicano em 2004.
Fora dos círculos da FRELIMO, o programa é visto como tendo violado os Direitos Humanos e falhado os seus objetivos de reduzir os problemas urbanos e de aumentar a produção de alimentos nas zonas rurais.
Tanto o processo de reeducação como a Operação Produção marcaram a história de Moçambique, em particular da província do Niassa, nos primeiros anos pós-independência. Hoje ainda é um tema sensível entre a maioria da população. Contudo, Maria, a ativista moçambicana, diz que é "uma página ultrapassada".
No entanto, o antigo presidente Joaquim Chissano mantém-se como defensor da Operação Produção, programa que ele próprio terminou. “Era um bom programa que visava recuperar delinquentes e marginais. Hoje ridicularizam-nos, dizem que era um programa criminoso, enquanto estava cheio de humanismo”, afirmou Chissano a um jornal moçambicano em 2004.
Fora dos círculos da FRELIMO, o programa é visto como tendo violado os Direitos Humanos e falhado os seus objetivos de reduzir os problemas urbanos e de aumentar a produção de alimentos nas zonas rurais.
Tanto o processo de reeducação como a Operação Produção marcaram a história de Moçambique, em particular da província do Niassa, nos primeiros anos pós-independência. Hoje ainda é um tema sensível entre a maioria da população. Contudo, Maria, a ativista moçambicana, diz que é "uma página ultrapassada".
AS FERIDAS ABERTAS
PELO PROCESSO DE REEDUCAÇÃO EM MOÇAMBIQUE
Entre 1974 e o início da década de 1980,
milhares de pessoas – entre elas prostitutas, dissidentes políticos e
Testemunhas de Jeová – foram forçadas a ir para campos de reeducação. A
maior parte não voltou.
Os primeiros anos da história de Moçambique
independente foram um período conturbado. Ainda antes da independência de
Moçambique (1975), o governo marxista da FRELIMO (Frente de Libertação de
Moçambique) sentia a necessidade de eliminar os comportamentos e costumes
associados ao colonialismo português e ao sistema capitalista, criar uma nova
mentalidade e uma sociedade socialista.
Pelo que ainda em 1974, Armando Guebuza, atual chefe de Estado e na época ministro da Administração Interna do governo de transição, anunciou a criação de campos ou centros de reeducação. Este tipo de programa foi característica de outros regimes totalitários socialistas, como o da antiga União Soviética ou da China, por exemplo.
Pelo que ainda em 1974, Armando Guebuza, atual chefe de Estado e na época ministro da Administração Interna do governo de transição, anunciou a criação de campos ou centros de reeducação. Este tipo de programa foi característica de outros regimes totalitários socialistas, como o da antiga União Soviética ou da China, por exemplo.
O plano inicial era reeducar, nas zonas
rurais, as prostitutas das grandes cidades. Na época, o ministro Guebuza
estimou que existiam 75 mil prostitutas só na capital (embora o número
contemple, presumivelmente, mulheres que viviam sozinhas e mães solteiras),
como reporta um artigo do jornal português "A Capital" de 1974.
O alvo das rusgas alargou-se depressa. Além de
prostitutas, milhares de outras pessoas como dissidentes políticos, suspeitos
de ligação ao poder colonial português, alcoólicos, autoridades tradicionais
(como régulos e curandeiros) e Testemunhas de Jeová (um grupo cristão que
recusa, entre outros, o serviço militar obrigatório) foram apanhados nas ruas
das principais cidades de Moçambique, em particular em Maputo, Beira e
Inhambane, segundo relatos em jornais internacionais.
Cerca de 10 mil reeducandos em 1980
Os detidos eram, normalmente, encaminhados para os postos da polícia e, sem qualquer comunicação à família e sem decisão de um tribunal, eram transportados para centros de reeducação, sobretudo no norte do país. Era como um castigo.
Cerca de 10 mil reeducandos em 1980
Os detidos eram, normalmente, encaminhados para os postos da polícia e, sem qualquer comunicação à família e sem decisão de um tribunal, eram transportados para centros de reeducação, sobretudo no norte do país. Era como um castigo.
Através do trabalho forçado na agricultura, ou
machamba, como habitualmente se diz em Moçambique, as pessoas deveriam ser
reeducadas e, nesse processo, aprender os princípios do marxismo-leninismo.
Apesar de não haver dados oficiais, estima-se que, em 1980, cerca de 10 mil pessoas estariam concentrados em 12 centros de reeducação. O número viria a crescer nos anos seguintes - segundo estudos do historiador e antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, da Universidade Estadual de Campinas, no Brasil.
Em novembro de 1975 foi anunciada a detenção de três mil pessoas em rusgas efetuadas nas cinco principais cidades do país, segundo o jornal tanzaniano Daily News. E em 1982 foi anunciada a suspensão de mais de 500 funcionários públicos e a necessidade de enviá-los para a reeducação.
O mais terrível
Alguns dos centros de reeducação ocuparam as instalações de antigas bases militares. Estavam em locais remotos, distantes das comunidades, de difícil acesso. Conta-se que os fugitivos, quando não eram apanhados pelos guardas, acabavam por ser denunciados pelos camponeses da região ou devorados por feras.
A maior parte dos centros de reeducação localizava-se na província noroeste do Niassa, a maior e menos habitada do país.
Apesar de não haver dados oficiais, estima-se que, em 1980, cerca de 10 mil pessoas estariam concentrados em 12 centros de reeducação. O número viria a crescer nos anos seguintes - segundo estudos do historiador e antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, da Universidade Estadual de Campinas, no Brasil.
Em novembro de 1975 foi anunciada a detenção de três mil pessoas em rusgas efetuadas nas cinco principais cidades do país, segundo o jornal tanzaniano Daily News. E em 1982 foi anunciada a suspensão de mais de 500 funcionários públicos e a necessidade de enviá-los para a reeducação.
O mais terrível
Alguns dos centros de reeducação ocuparam as instalações de antigas bases militares. Estavam em locais remotos, distantes das comunidades, de difícil acesso. Conta-se que os fugitivos, quando não eram apanhados pelos guardas, acabavam por ser denunciados pelos camponeses da região ou devorados por feras.
A maior parte dos centros de reeducação localizava-se na província noroeste do Niassa, a maior e menos habitada do país.
O centro de M’telela, no Niassa, para onde foram enviados vários
inimigos políticos da FRELIMO, é considerado o mais terrível. Segundo o livro
“Uria Simango - Um homem, uma causa” de Barnabé Lucas Ncomo, dos 1.800
prisioneiros que lá entraram, desde 1975, menos de 100 saíram com vida, até
1983. Em M’telela ou nas imediações terão morrido, por exemplo, Uria Simango e
Joana Simeão, personalidades ligados à fundação da FRELIMO, que viriam a ser
acusadas de traição.
“Lavar a cabeça” de ideias colonialistas
Natural da Beira, Félix Bingala, hoje com 57 anos, veio para a província por força da reeducação. Conta que foi integrado no programa, em 1975, depois da visita à cidade da Beira do então ministro da Administração Interna, Armando Guebuza. O ministro acusou muitos jovens de serem defensores do colonialismo português.
Natural da Beira, Félix Bingala, hoje com 57 anos, veio para a província por força da reeducação. Conta que foi integrado no programa, em 1975, depois da visita à cidade da Beira do então ministro da Administração Interna, Armando Guebuza. O ministro acusou muitos jovens de serem defensores do colonialismo português.
Na altura com 19 anos, Félix Bingala trabalhava numa loja da
Beira quando foi apanhado numa rusga: “carregaram-me. Entrei no machimbombo,
fui à 5ª esquadra. Dali mandara-me para o Grande Hotel. Logo de manhã,
apareceram muitos machimbombos, carros, e carregaram-me para Sakuze, na
Gorongosa. Atravessei o rio Sakuze. Fomos para o mato. Disseram-nos: aqui têm
de construir cidade, trazer as vossas mulheres para aqui, para tirar as ideias
do tempo colonial, para nos ‘lavar a cabeça’. E ficámos. Era muita gente, toda
a raça estava acumulada ali: moçambicana, mista, portuguesa, havia uma mistura
de pessoas em Sakuze”, recorda.
Desde esse momento, há 38 anos atrás, Félix Bingala rompeu irremediavelmente ligação com o passado: “desde que estou aqui não tenho possibilidade de contactar com a família. A minha família até pode dizer: ele já morreu; e eu ainda estou vivo”, admite.
Desde esse momento, há 38 anos atrás, Félix Bingala rompeu irremediavelmente ligação com o passado: “desde que estou aqui não tenho possibilidade de contactar com a família. A minha família até pode dizer: ele já morreu; e eu ainda estou vivo”, admite.
RENAMO recrutou homens
da reeducação
O centro de reeducação de Sakuze, para onde Félix foi enviado, em 1975, localizava-se na Serra da Gorongosa, na província central de Sofala. Durante a guerra civil (entre 1976 e 1992), a região foi um bastião da RENAMO, a Resistência Nacional Moçambicana.
O centro de reeducação de Sakuze, para onde Félix foi enviado, em 1975, localizava-se na Serra da Gorongosa, na província central de Sofala. Durante a guerra civil (entre 1976 e 1992), a região foi um bastião da RENAMO, a Resistência Nacional Moçambicana.
Foi lá onde a o principal partido da oposição começou a recrutar
homens para as suas fileiras, retirando-os do domínio da FRELIMO. “A RENAMO
estava a aproveitar estes homens, que já estavam preparados” militarmente, diz
Félix Bingala que nunca foi apanhado nas investidas.
Para escapar às rusgas da RENAMO, a FRELIMO transferiu os reeducandos. Depois de Sakuze, Félix Bingala foi para outro centro, em Panda, na província sul de Inhambane, onde, todavia, a RENAMO conseguiu recrutar mais homens. Pelo que em 1978, Félix foi novamente transferido para Majancaze, província de Gaza, onde, conta, também andaram homens da RENAMO.
Um ano mais tarde, em 1979, Félix Bingala foi encaminhado finalmente para o centro de reeducação de Msawize, no mato denso do distrito de Sanga, na província do Niassa.
Para escapar às rusgas da RENAMO, a FRELIMO transferiu os reeducandos. Depois de Sakuze, Félix Bingala foi para outro centro, em Panda, na província sul de Inhambane, onde, todavia, a RENAMO conseguiu recrutar mais homens. Pelo que em 1978, Félix foi novamente transferido para Majancaze, província de Gaza, onde, conta, também andaram homens da RENAMO.
Um ano mais tarde, em 1979, Félix Bingala foi encaminhado finalmente para o centro de reeducação de Msawize, no mato denso do distrito de Sanga, na província do Niassa.
Antigo Campo de reeducação de Gorongosa |
Obedecer para sobreviver
na reeducação
Olhando para trás, Félix recorda com amargura os centros de reeducação: “muitos moçambicanos perderam a vida, ao serem comidos por leões, ao fugirem”.
Olhando para trás, Félix recorda com amargura os centros de reeducação: “muitos moçambicanos perderam a vida, ao serem comidos por leões, ao fugirem”.
Quanto ao quotidiano, o ex-reeducando lembra: “de dia é
trabalho, pegar a enxada para a machamba, ir à pesca, fazer cestas (quem
soubesse), comida para a gente comer. Mas a comida não chegava para tudo e
vinha da província para lá. Houve dificuldades mesmo. Se alguém saísse um
pouco, a população iria amarrar. Nós éramos chamados presos, éramos amarrados,
bem esticados. Tinha que se cortar cabelo “assim”, usar saco, para se saber
quem é fugitivo. Até havia uma cova grande. Se você praticou alguma coisa, você
desce com a escada até lá, tira a escada, fica ali, “caga ali, mija”, de manhã
tira, comida vem, recebe e come. Essa era a punição”.
André Ernesto Embalato, natural de Gaza, passou também por centros de reeducação. Trabalhava numa pastelaria, em Maputo, quando em 1975 foi apanhado pela polícia sem documentos de identificação. Esteve igualmente em Sakuze antes de ser transferido até ao Niassa.
“A vida é de ser mandado, de ser batido de qualquer maneira. Quem não obedecia à ordem era batido. Quando tocava o apito, devia-se correr, se fosse quando se estivesse a comer devia-se deixar a comida e receber ordem. Se não receber ordem tem porrada, acontecia assim”, diz André Ernesto Embalato.
André Ernesto Embalato, natural de Gaza, passou também por centros de reeducação. Trabalhava numa pastelaria, em Maputo, quando em 1975 foi apanhado pela polícia sem documentos de identificação. Esteve igualmente em Sakuze antes de ser transferido até ao Niassa.
“A vida é de ser mandado, de ser batido de qualquer maneira. Quem não obedecia à ordem era batido. Quando tocava o apito, devia-se correr, se fosse quando se estivesse a comer devia-se deixar a comida e receber ordem. Se não receber ordem tem porrada, acontecia assim”, diz André Ernesto Embalato.
Ouvir o Contraste "As feridas abertas pelo processo de
reeducação em Moçambique"
Na reeducação as pessoas
regeneravam-se ou perdiam a vida?
O centro de Msawize durou pouco tempo mais desde que Feliz Bingala lá chegou, em 1979. Por ordem do governo, começou a trabalhar na empresa agrícola de Unango, no mesmo distrito de Sanga. A empresa estatal recebeu forte apoio da Alemanha Oriental comunista. Depois entrou em falência e Félix Bingala começou a trabalhar na horta, vendeu os seus produtos até conseguir dinheiro para pagar a viagem para Lichinga, a capital provincial do Niassa. Em 1984 encontrou apoio na organização Caritas, ligada à Igreja Católica, onde trabalha até hoje como guarda.
O centro de Msawize durou pouco tempo mais desde que Feliz Bingala lá chegou, em 1979. Por ordem do governo, começou a trabalhar na empresa agrícola de Unango, no mesmo distrito de Sanga. A empresa estatal recebeu forte apoio da Alemanha Oriental comunista. Depois entrou em falência e Félix Bingala começou a trabalhar na horta, vendeu os seus produtos até conseguir dinheiro para pagar a viagem para Lichinga, a capital provincial do Niassa. Em 1984 encontrou apoio na organização Caritas, ligada à Igreja Católica, onde trabalha até hoje como guarda.
Entretanto, o programa de reeducação tinha
terminado. Face à pressão da opinião pública internacional, o Presidente Samora
Machel ordenou inquéritos confidenciais sobre as condições de vida nos campos,
em finais de 1981, que acabariam por conduzir à suspensão do “processo
reeducativo”.
Na época, Joaquim Chissano ocupava a pasta do Ministério dos Negócios Estrangeiros e viria a suceder na Presidência da República, após a morte de Samora Machel, num acidente de avião em 1986.
Chissano elogia ainda o processo reeducativo, como disse numa entrevista, em 2012 , à DW África: “foi pena que nós não [continuássemos] a ter campos de reeducação. Porque não eram campos de tortura, eram realmente de reeducação. A pessoa regenerava-se. Nós criámos campos para pessoas criminosas, pessoas que tinham roubado ou até tinham assassinado. E eram reabilitadas. Era um lugar onde as pessoas faziam a sua agricultura, tinham o seu rendimento, refaziam a sua vida, tinham alfabetização, aprendiam ofícios”.
Na época, Joaquim Chissano ocupava a pasta do Ministério dos Negócios Estrangeiros e viria a suceder na Presidência da República, após a morte de Samora Machel, num acidente de avião em 1986.
Chissano elogia ainda o processo reeducativo, como disse numa entrevista, em 2012 , à DW África: “foi pena que nós não [continuássemos] a ter campos de reeducação. Porque não eram campos de tortura, eram realmente de reeducação. A pessoa regenerava-se. Nós criámos campos para pessoas criminosas, pessoas que tinham roubado ou até tinham assassinado. E eram reabilitadas. Era um lugar onde as pessoas faziam a sua agricultura, tinham o seu rendimento, refaziam a sua vida, tinham alfabetização, aprendiam ofícios”.
"Ainda bem que
terminou"
Contudo, opinião
diferente tem tanto quem passou pelos centros de reeducação como quem
acompanhou o fim do programa do governo.
Uma ativista moçambicana, que pediu o anonimato, viveu de perto, no Niassa, o fim do processo reeducativo assim como do programa que se seguiu, a Operação Produção (de trabalhos forçados).
Segundo a ativista“ falar abertamente nesse assunto é um pouco difícil, porque é considerada uma questão política e também foi um projeto menos sucedido que trouxe a perda de muitos cidadãos. (…) Houve feridas abertas, famílias separadas, pais e filhos, muitos perderam a vida. Não foi bem sucedido esse plano. Ainda bem que terminou, porque hoje em dia não vem ninguém para o Niassa para ser reeducado”.
Uma ativista moçambicana, que pediu o anonimato, viveu de perto, no Niassa, o fim do processo reeducativo assim como do programa que se seguiu, a Operação Produção (de trabalhos forçados).
Segundo a ativista“ falar abertamente nesse assunto é um pouco difícil, porque é considerada uma questão política e também foi um projeto menos sucedido que trouxe a perda de muitos cidadãos. (…) Houve feridas abertas, famílias separadas, pais e filhos, muitos perderam a vida. Não foi bem sucedido esse plano. Ainda bem que terminou, porque hoje em dia não vem ninguém para o Niassa para ser reeducado”.
LIVRO DE UNGULANI BA KA KHOSA – “ENTRE AS
MEMÓRIAS SILENCIADAS”
Um dos mais emblemáticos e conceituados escritores
moçambicanos Ungulani Ba Ka Khosa acaba de lançar, em Maputo, o seu sétimo
livro intitulado “Entre as Memórias
Silenciadas”, onde reedita algumas memórias silenciadas dos campos de reeducação.
O lançamento da obra de Ungulani Ba
Ka Khosa, tido como um dos melhores escritores africanos do século XX, esteve
sob a chancela da Alcance Editores e contou com o alto patrocínio da maior
operadora de telefonia móvel, a mcel.
Trata-se de um livro que retrata um
místico de memórias, desde os tempos idos até aos actuais com principal enfoque
aos campos de reeducação.
Tal como o próprio autor afirma,
“mais do que retratar as pequenas e grandes misérias da primeira República, o
livro, no meu entender, revela os desencontros de uma geração que já não se
exalta com os feitos de uma revolução que não consegue renovar o seu discurso.
Uma pátria é feita de identidades, de discursos múltiplos. Os meus personagens
procuram um chão sólido".
Para Ungulani, a sua obra pode ser
interpretada por alguns leitores como um “avivar de páginas recentes e triste
da nossa história”, acrescentado que as memórias do seu livro são bastante
sensíveis.
“Falo de homens que não estão
contentes com seus destinos. Quase todos, ricos ou pobres, geniais ou
medíocres, célebres ou obscuros, gostariam de ter uma vida diferente da que
vivem”, salientou.
VIRGEM MARGARIDA, FILME DE
LICÍNIO DE AZEVEDO
Virgem Margarida" tem como enredo a
história real de uma camponesa virgem moçambicana, internada à força num campo
de reeducação para prostitutas, como os muitos que surgiram no país no período
logo após a independência, cujo objectivo era construir o "homem/mulher
novos".
ENTREVISTA
COM LICÍNIO AZEVEDO SOBRE O FILME VIRGEM MARGARIDA
Em finais 1975, prostitutas de norte a sul de
Moçambique foram levadas para centros de reeducação na convicção de que,
através de muita disciplina e trabalhos forçados impostos por militares da
pureza revolucionária, corrigissem a “má vida” e se transformassem na “mulher
nova” socialista. Mas um equívoco destabiliza as mulheres rusgadas na boémia da
rua Araújo em Maputo: Margarida, que nunca esteve com homem, seria igualmente
levada. Todas se unem contra a opressão machista e põem a nu as injustiças da
“Operação Produção”. Estreou dia 9 no Festival de Cinema de Toronto, e passará
por Londres, Rio, Amiens, Córdoba e Dubai antes de brindar as salas
portuguesas. Licínio Azevedo, realizador brasileiro radicado há quase 40 anos
em Moçambique, conta-nos da sua admiração por estas mulheres e das peripécias
de um filme que traz a lume um episódio negro do período pós-independência,
quando o governo da Frelimo quis reeducar milhares de “anti-sociais”,
dissidentes intelectuais, Jeovás, homossexuais, criminosos, mães solteiras e
prostitutas, fazendo-os desaparecer misteriosamente para lugares recônditos de
antigas bases da guerrilha, em pleno mato, onde muitos sucumbiram aos castigos
e maus tratos. Em 1981 Samora Machel inicia a suspensão do processo
reeducativo. Que aconteceu aos reeducados?
Como surgiu a ideia de contar a história dos
centros de reeducação de prostitutas?
As prostitutas foram as primeiras a dar vivas à
revolução. Tenho acompanhado os 37 anos de Independência em Moçambique enquanto
documentarista e sempre me interessou o tema da mulher. É o caso do meu
filme A Última Prostituta, um documentário clássico de
entrevistas, a partir de uma fotografia de Ricardo Rangel, com dois
militares a escoltarem uma prostituta. Na altura chamou-me a atenção o depoimento
sobre uma camponesa que tinha ido à cidade comprar o enxoval e, indocumentada,
foi levada por engano para os campos. Construí o filme Virgem Margarida a
partir dessa história contada por reeducandas: uma virgem num centro de
reeducação entre 700 prostitutas.
Olhando para aquela época, como subjaz a ideia
de homem e mulher novos? O que poderia ter de apelativo a limpeza de costumes,
contra a indigência e degeneração?
Eu cheguei a acreditar que, através da
revolução, era possível purificar o ser humano, criar uma nova sociedade. Agora
quero compreender o lado humano destes processos, a contradição dos grandes
ideais que, por vezes, se transformam em tragédias pois as pessoas que os
dirigem são mais fracas do que os mesmos. No filme, um dos conflitos é o percurso
entre as prostitutas e as guardas dos centros de educação, encarregues de
reeducar as outras mulheres, que eram militares e camponesas da luta pela
independência, com uma visão tão deturpada do país que nem sabiam o que era a
prostituição. Os próprios soldados que faziam as capturas, acabados de chegar
da guerrilha, não estavam habituados à cidade e equivocavam-se com uma saia
curta ou um vestido mais ousado. Levavam mulheres para os campos só porque se
vestiam de maneira diferente, usavam batom, ou não tinham documentos. No filme
temos por exemplo a amante, a namoradinha com a mãe em casa, a dançarina mãe de
família que deixou os filhos pequenos sozinhos e a virgem.
Mulheres no campo de reeducação (cenas do filme Virgem Margarida) |
Vemos um país internamente desconhecido, com
mulheres do sul, norte, urbanas, rurais, que se vão transformando nesse
convívio em “mulheres de uma só nação”. O filme reflecte sobre a libertação
da mulher?
É sobre os antagonismos da sua libertação.
Remete para a emancipação das mulheres africanas em situações distintas:
alfabetizadas ou não, a mulher colonizada e a mulher revolucionária, que
percebe a disciplina imposta pelo homem. A reeducação funciona em vários
sentidos, todas se “purificam” num certo dualismo: as prostitutas purificam-se
porque aprendem coisas como a importância da liberdade e do trabalho, as
militares libertam-se das hierarquias superiores. A adolescente virgem torna-se
uma espécie de santa: todas a querem proteger ou ser protegidas por ela,
profunda conhecedora do mato, ao contrário das mulheres urbanas sem relação com
o mundo rural. A reeducação de prostitutas, militares e camponesas foi afinal
um processo de mútuo conhecimento, que as leva a unirem-se para
se libertarem.
Na união final, parece haver um grito feminista
que contrapõe o moralismo que quer reeducá-las para serem boas esposas e mães,
aprendizes dos ofícios femininos. Ou seja, os argumentos para a reeducação não
contradizem em parte o objectivo de acabar com a exploração da mulher
pelo homem?
O filme joga com essa dualidade. As camponesas
acusam as prostitutas na sua incapacidade de serem boas esposas, “mulheres da
má vida, vocês não sabem varrer o chão, não sabem cozinhar”, já elas vão buscar
água para os seus maridos e reflectem a sociedade tradicional moçambicana.
A desconstrução torna-se mais clara quando as
militares percebem a fragilidade daqueles a quem devem obediência cega, pois se
até o dirigente da Frelimo não cumpria o que mandava fazer.
Sim, o verdadeiro grito revolucionário provem
das militares quando dizem “filho da puta, passou para o lado do inimigo”.
Revoltada, usa a linguagem das prostitutas, coloca-se contra os homens, pois o
militar afinal é um símbolo masculino reaccionário. Já elas dão continuidade à
revolução, depois de perceberem que estão a ser julgadas, de maneira indecente,
pelo lado machista da revolução. A militar torna-se a verdadeira juíza
da revolução.
De onde vem a sua reflexão sobre
a prostituição?
Da minha infância. Vivia numa fazenda no Brasil
e houve um episódio curioso. Os meus pais viajaram e fiquei com um tio. Eu
tinha quatro anos e ele, bonitão tipo actor americano da época, tinha 18.
Levou-me a uma zona de prostituição ao longo da estrada, meteu-se numa
confusão, veio a polícia e fugiu, deixando-me ali. E de repente vi-me sozinho
com aquelas senhoras que me cuidavam. Só me lembro de um sofá vermelho e moças
de fatos bonitos e cabelos compridos a darem-me boa comida e bebida. Anos
depois soube que aquelas mulheres eram prostitutas. Vi muitos filmes do
Fellini, e sempre tive um grande respeito por estas mulheres. Imagino quando se
vêem numa situação de filhos para criar, com pouca escolaridade, classe social
baixa, seria incapaz de julgá-las.
A
personagem Rosa é uma trabalhadora do sexo emancipada, não tem nenhum
dependente, é forte, com princípios, faz valer a sua palavra,
como aparece?
Em cada personagem misturo várias que conheci, a
Rosa surgiu-me a partir de uma entrevistada. Era rebelde e muito forte, bem
mais marginal e menos lúcida. A Rosa do filme é anarquista, põe em causa a
autoridade, mostra o ridículo da disciplina militar. Ao longo do processo é ela
que adquire mais consciência de classe, transforma-se numa revolucionária
esperta. Não sei o que poderia acontecer-lhe depois do filme, mas com certeza
não voltaria à prostituição.
O que aconteceu a estas mulheres depois
dos campos de reeducação?
Duraram praticamente dois anos. Algumas voltaram
para Maputo, outras ficaram por lá, casaram com homens da região, fizeram
família. Hoje têm cerca de 60 anos. A ida foi bem organizada, já a volta uma
grande confusão.
É quase inexistente o confronto com a história
recente do país, como se houvesse uma sacralização do período pós-independência
que não permite mexer nas suas ambiguidades. Este filme vai ser problemático
em Moçambique?
As pessoas não estão habituadas a ter uma visão
crítica do passado, o que é essencial para evoluir. Não me interessam as
consequências ou o feedback do filme, quero apenas mostrar e quando vejo uma
história bonita, escrevo-a. Em Virgem Margarida, o contexto
político existe mas não é o mais importante. O próximo filme vai ser a partir
de um livro meu, O comboio de sal e açúcar, também mostra
atrocidades de um lado e de outro da guerra civil.
Qual era o seu envolvimento político
em 1975?
Trabalhava na Guiné-Bissau, só cheguei a
Moçambique em 1978 e nem sequer conhecia o processo dos campos de reeducação,
só passados dois anos é que se começou a falar disso. Mas à priori até
acharia benéfico, na minha visão idealista da época, porque também dizia um não
redondo à exploração sexual do colono às mulheres moçambicanas. Só depois,
confrontado com as condições reais dos campos, percebi que é preciso mais do
que boas ideias.
Em outros filmes seus mostra esta atenção para
acontecimentos paralelos a grandes processos históricos, enfoque maior para a
realidade rural de Moçambique?
Gosto do campo por estar mais relacionado com as
tradições e porque percebo melhor os problemas das mulheres. A realidade urbana
em geral é muito violenta, gostaria de contar histórias relacionadas com crime
mas é difícil conseguir dinheiro para tal, precisamos de buscar coisas que
toquem o coração dos financiadores.
Esta longa-metragem é a continuação do
trabalho documental?
A minha formação é jornalismo, trabalhei na
revista Versus, influenciado pelo novo jornalismo da escola
americana. Na Guiné Bissau escrevia histórias da guerra numa perspectiva
ficcionada. Quando vim trabalhar para o Instituto de Cinema de Moçambique foi
fácil a passagem para o documentário. Há continuidade enquanto cineasta e
escritor, pois os meus filmes estão ligados àquilo que escrevo, e a minha
ficção vem do documentário. Tento criar uma linguagem particular para
documentário com estrutura dramatúrgica de ficção. O Grande Bazar é
uma ficção misturada com documentário, filmado no meio das pessoas.
O Desobediência é um filme para televisão com dinheiro para
realização de documentário. Inscrevi-o em festivais de documentário e negaram
dizendo que era ficção. Depois ganhou o FIPA de ficção. Acabou por ser uma
ficção por responsabilidade dos festivais.
Como foi dirigir uma grande produção com equipa
técnica de múltiplos países e duzentas mulheres em cena?
Deve ter relação com a história da minha família
com muitos militares, habituei-me a comandar as tropas. Gosto muito de dirigir,
desde que haja um objectivo bem determinado, e uma ideia bem construída.
Comparando com outros realizadores acho que não sou autoritário, ouço opiniões,
deixo os actores improvisarem bastante, criando falas e cenas. É uma
contribuição que espelha uma boa relação entre o realizador e os actores, ambos
sabemos a ideia do filme e eles entendem como o estou a filmar. Não tenho
receio de falar com 200 pessoas, quer dizer, sou tímido mas não posso mostrar.
Havia dez nacionalidades diferentes envolvidas do começo ao fim do filme.
Moçambique, África do Sul, Zimbabué, Angola, Brasil, Portugal, França, Itália,
Alemanha, ex-Jugoslávia. Esta mistura de gente e estética podem criar o cinema
de periferia, em oposição ao cinema americano em que é todo
muito formatado.
Onde filmaram?
As filmagens foram feitas em vários locais
diferentes do país, numa zona inóspita. Escolhi Sussundenga, na Província de
Manica, no centro do país. O mesmo lugar do documentário A
Ponte, reserva Chimanimani, onde fica o Monte Benga, o mais alto ponto de
Moçambique. Descobri um rio maravilhoso, o Mussapa Pequeno, que escolhi pois
precisava de um rio sem crocodilos onde duzentas mulheres nuas pudessem tomar
banho. Fiquei maravilhado, nunca vi tantas mulheres bonitas tomando banho
juntas. Filmámos fora da vila onde os homens não tinham acesso. Sempre gostei
de trabalhar com mulheres, avisei logo que não queria fazer um filme sobre mulheres
só com homens na equipa.
E as actrizes? Imagino que não tenha sido fácil
para os maridos deixarem as suas mulheres irem para o mato gravar um filme sobre prostitutas…
Quase não havia actrizes profissionais.
Explicámos-lhe tudo muito bem, pediu-se autorização. A Margarida Cardoso gravou
a reunião com os maridos para o filme Licínio Azevedo – Crónicas
de Moçambique.
O que pode trazer este filme para a produção
audiovisual em Moçambique? Como foi o processo do filme?
Foi difícil e moroso. É uma produção
bem conseguida mas um esforço enorme e grande luta da produção. É preciso ter
nervos de aço para aguentar uma produção com dinheiro saindo aos pinguinhos durante
anos, tudo a complicar-se e conseguir agilizar os compromissos. Isto acontece
devido ao facto de Moçambique não ter fundos próprios para fazer cinema, de
toda esta dependência do exterior. Quando pedimos sujeitamo-nos, não se pode
fazer nada. Pondo na balança, o pobre paga mais caro. O nosso filme poderia ter
sido feito com 500 mil dólares e gastámos um milhão apenas porque o dinheiro
demorou, e por estar tudo atrasado paga-se mais caro. É uma falta de visão um
país como Moçambique, que há uns anos tinha dinheiro para o cinema,
negligenciá-lo hoje em dia.
Publicado no Jornal Público 10/9/2012