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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

25 maio 2012

VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E REPRESSÃO EM ÁFRICA

VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E REPRESSÃO EM ÁFRICA


Vários são os casos de violação dos Direitos humanos e repressão em África em pleno século XXI. Alguns países africanos recusam democratizar as instituições públicas com vista a responder a questão do respeito pelos direitos universais. Para o caso da África Austral temos exemplos de dois países: Angola e Zimbábwe. E na África Ocidental temos a Guiné –Bissau.
Não quero com isso transmitir a idéia de que somente nestes países existem violação dos direitos humanos. Mesmo em Moçambique temos casos gritantes. O exemplo dado é só para elucidar alguns casos flagrantes. Para mais consulta veja: Angola (http://www.apostolado-angola.org/articleview.aspx?id=782), Zimbábwe  ( http://www.zanupfcrime.com/  ) e Guiné-Bissau (http://www.ditaduradeconsenso.blogspot.com).

Jorge Fernando Jairoce

24 maio 2012

A INVENÇÃO DOS HERÓIS: NAÇÃO, HISTÓRIA E DISCURSOS DE IDENTIDADE EM MOÇAMBIQUE


A INVENÇÃO DOS HERÓIS:

NAÇÃO, HISTÓRIA E DISCURSOS DE IDENTIDADE EM MOÇAMBIQUE


 Por Fernando Bessa Ribeiro

 Resumo

O artigo reflecte sobre o processo de construção dos heróis em Moçambique, com base na análise, ancorada no espaço e no tempo, de duas das maiores figuras da história de Moçambique: Ngungunhane, o último soberano do Império de Gaza, e Eduardo Mondlane, o primeiro presidente da Frelimo, o movimento de libertação contra o colonialismo português que ocupa o poder desde a independência do país em 1975. Relevando o carácter profundamente histórico da invenção dos heróis, marcada por lutas políticas e sociais, procura-se mostrar que o trabalho de heroificação tem de ser compreendido no contexto dos processos de construção da memória e da identidades colectivas da nação moçambicana levada a cabo pelo Estado e suas elites.

Entre Maio de 2001 e Janeiro de 2004 efectuei dois períodos de trabalho campo em Moçambique para uma dissertação de doutoramento sobre as dinâmicas do capitalismo neste país. Socorrendo-me dos dados etnográficos e outros elementos recolhidos e em parte utilizados num dos capítulos da tese, neste texto tenta-se compreender os processos de heroificação colocados em prática em Moçambique, no contexto das políticas de identidade e da construção da nação por parte do Estado. Neste sentido é necessário sublinhar que a discussão se centrará nos discursos produzidos pelas lideranças nacionais e outros agentes do Estado, não cabendo neste artigo a reflexão demorada, ainda que relevante, sobre o processo de apropriação e incorporação desiguais dos heróis por parte das populações moçambicanas.

Considerando a sua relevância para a problemática em exame, considerou-se que a análise deveria dar especial atenção a duas figuras históricas: Ngungunhane e Eduardo Mondlane. Ligados a Manjacaze, um lugar primordial para a construção da nação moçambicana, procura-se mostrar que a invenção dos heróis é um processo fortemente enraizado na história e nas lutas políticas e sociais em torno dos processos de construção da memória e da identidade nacionais.



A nação e os heróis

Nenhum Estado-nação abdica da produção e evocação de um imaginário político e identitário, feito de histórias de lutas e de resistências homéricas, com os protagonistas investidos de um papel essencial no processo de construção e instituição de uma identidadenacional. Relativamente a esta deve-se assinalar o carácter processual, quer dizer, histórico, da sua criação, como justamente sublinha Sobral (1999: 84). Aliás, o mesmo se aplica à nação e ao Estado: “Nem os Estados nem as nações existiram sempre e em quaisquer circunstâncias.

Além disso, as nações e os Estados não constituem a mesma contingência” (Gellner 1993:19). Quer isto dizer que não são inseparáveis, isto é, a nação pode existir sem o Estado e este pode existir sem aquela. Por outro lado, ao invés do defendido pelos nacionalismos das mais diversas matizes, as nações estão muito longe de encontrarem as suas origens em tempos quase imemoriais, antes possuem um carácter profundamente histórico (Sobral 2001: 2).

Os processos de construção da nação são marcados pela intervenção decisiva do Estado, como sublinha Sobral (1999: 84), aliás na esteira do que defende Hobsbawm: “O Estado não só fazia a Nação, como era obrigado a fazê-la” (1990: 190). No caso moçambicano a nação começou a construir-se pela acção do movimento nacionalista a partir das estruturas e práticas do Estado colonial:

Como todo o nacionalismo africano, o de Moçambique nasceu da experiência do colonialismo europeu. A fonte da unidade nacional é o sofrimento comum durante os últimos cinquenta anos sob o domínio português. O movimento nacionalista não surgiu numa comunidade estável, historicamente com uma unidade linguística, territorial, económica e cultural. Em Moçambique foi a dominação colonial que deu origem à comunidade territorial e criou as bases para uma coerência psicológica, fundada na experiência da discriminação, exploração, trabalho forçado e outros aspectos da dominação colonial [Mondlane 1995 (1969): 87].

A construção da nação dependia, em boa medida, da eficácia da dicotomia nós, os moçambicanos, em oposição a eles, os colonialistas, fundada na experiência da opressão colonial que unia todos os povos que viviam sob o domínio português em MoçambiqueConquistada a independência, a construção da nação prosseguiu através da consolidação das estruturas jurídico-administrativas e da produção de discursos identitários orientados para o enraizamento da ideia de pertença a um colectivo nacional capaz de integrar e subordinar as diferenças fundadas na etnia, na língua e na religião (v. Chabot s.d.: 120). Ou seja, tratava-se de transformar os habitantes do Estado moçambicano em cidadãos moçambicanos, apesar da sua vinculação a diferentes grupos étnicos e o uso de línguas locais muito diversas, através da acção estatal na produção de símbolos, liturgias e discursos, a “identidade instituída” (M. Martins 1996), nos quais as figuras históricas elevadas à condição de heróis ocupam uma posição fundamental.

O trabalho de heroificação é inseparável da produção de uma memória colectiva de dimensão nacional por parte do Estado e seus agentes. A memória colectiva é, como argumenta Pujadas (1994: 618), simultaneamente a depositária do conjunto de atributos e símbolos de uma sociedade e um dos instrumentos de legitimação da ordem social dominante.

Falar da memória colectiva implica convocar a tradição. Na perspectiva de Giddens, ambas trabalham, nomeadamente através de práticas rituais, “a organização do passado em relação ao presente” (2000: 60). Neste domínio o argumento de Hobsbawm (1995) acerca do carácter inventado das tradições é fundamental para iluminar os processos de construção da nação moçambicana. Construídas e instituídas pelo Estado, reclamando-se da imutabilidade porcontraponto à mudança, as tradições permitem meter em acção práticas simbólicas que funcionam como instrumentos de inculcação de valores e referências que se pretendem partilhadas por toda a nação. Trata-se, entre outros aspectos, de elaborar respostas ancoradas no passado para responder a problemas de identidade no presente (Bouju 1995), isto é, no caso em discussão, da nação em construção contra os particularismos étnicos, linguísticos ereligiosos pré-existentes. Em Moçambique os rituais e as cerimónias comemorativas dos acontecimentos mais marcantes da sua história, como a independência, a batalha de Coolela ou a morte de Eduardo Mondlane, são momentos concretos da expressão e fixação da memória colectiva e da tradição, quer dizer, de produção da verdade (Cunha 2001: 25) sobre um destino que se deseja singular e irrepetível da nação, o qual identifica e abraça os indivíduos que o Estado decreta a ela pertencerem.

Apesar de cada nação tender a ver a sua história como absolutamente original, a fabricação dos heróis moçambicanos está longe de constituir uma situação singular, antes possuindo semelhanças com processos ocorridos noutros países, sobretudo com aqueles que saíram de dependências coloniais. Simultaneamente referências históricas e símbolos da identidade colectiva, formas concretas de popularização dos discursos da identidade nacional (cf. Sobral 1999: 72), os heróis são inseparáveis dos momentos fortes do processo histórico, das datas consideradas mais marcantes da construção da independência nacional. Presentes nas celebrações estatais mais importantes, fazem parte do mito nacional, cuja função primordial é dar resposta à interrogação lancinante sobre o “carácter” da nação, como justamente refere Marienstras (1998: 65ss) na sua reflexão sobre os Estados Unidos.

Para Fabre (1998: 254) são três os elementos caracterizadores do herói: i) a imanência (e iminência) da morte; ii) a necessidade de agir; iii) a arbitrariedade do sentido. Na Íliada, a narração épica da guerra de Tróia por Homero, pressentimos a natureza profunda da heroicidade. Vejamos o que pensava o príncipe troiano Heitor, momentos antes do combate mortal com o grande Aquiles, dos prantos de sua mãe que lhe suplicava que não enfrentasse o poderoso aqueu:

Mas, afinal, porque se detém o meu coração nesta ideia? Não vamos suplicar-lhe; ele não terá piedade nem respeito por mim, e matar-me-á, desarmado como uma mulher, visto que terei abandonado as minhas armas. Não há agora meio algum, do alto de um carvalho ou de um rochedo, de conversar com ele, à semelhança de uma donzela e de um jovem, de uma donzela e de um jovem que conversam um com o outro. Mais vale, nesta querela, atirar um contra o outro, quanto antes. Saibamos a qual dos dois o Olímpico oferecerá a glória (Homero s.d.: 311).

Trazer à discussão os heróis antigos é relevante, pois eles ajudam-nos a esclarecer outros aspectos da heroificação em Moçambique. Talvez o mais evidente seja o da sedução irresistível pelo arcaísmo relativamente a Ngungunhane por parte das lideranças nacionais moçambicanas, repetindo de certa forma o mesmo gosto detectado por Fabre (1998: 261) em Napoleão relativamente aos heróis da antiguidade.

Entre Ngungunhane e Mondlane os organizadores da memória colectiva da nação tentam estabelecer uma ligação histórica muito estreita. Segundo a narrativa de Numaio (1999), antigo governador de Gaza e descendente de Ngungunhane, este terá afirmado no dia do seu embarque para o desterro nos Açores: “Mas o rei um dia há-de vir e sairá de Mandlakazi!...”. O rei não poderia ser outro senão Eduardo Chivambo Mondlane. Apesar de ser hoje hegemónica, a esta opõem-se outras narrativas. Nesta luta pela configuração da história pelo texto literário, Khosa coloca na voz de Ngungunhane palavras que nada têm a ver com Mondlane:

E por todo o lado, como uma doença, começarão a nascer crianças com a pele da cor do mijo que expelis com agrado nas manhãs. [...] e haverá homens com vestes de mulher que percorrerão campos e aldeias, obrigando-vos a confessar males cometidos e não cometidos, convencendo-vos que os espíritos nada fazem [...] E aí o mundo terá mudado para sempre. [...] A nossa história e os nossos hábitos serão vituperados nas escolas sob o olhar atento dos homens com vestes de mulher que obrigarão as crianças a falar da minha morte e a chamarem-me criminoso e canibal (Khosa 1990: 119-121).

Na narrativa hegemónica, abraçada pelas instituições que têm o poder de prescrever e legitimar os discursos identitários fundados na história, pressente-se o esboço de um mito fundador da nacionalidade, em que o herói Ngungunhane é conectado a Eduardo Mondlane através das suas palavras de despedida, que trazem em si a profecia da chegada do sucessor. Aliás, este conhecia desde a infância e com grande detalhe a história do Estado de Gaza e do seu último rei, contada pela mãe, num registo que está muito apartado daquele que lhe é dado por Numaio. Como se lê em Khambane e Clerc:

Os teus antepassados foram grandes senhores que reuniram e comandaram os exércitos contra o invasor zulu, há dezenas e dezenas de anos. Mas foram obrigados a submeter-se e a pagar imposto aos vencedores zulus que ocuparam o território. [...] O nosso opressor zulu, Gungunhana, que quis expulsar os brancos, foi preso por eles e mandado para o norte. Nunca mais foi visto (1990: 14 e 60).

Por último, em Moçambique estão presentes também outras dimensões da construção clássica dos heróis (v. Unfried 1998). Por exemplo, e repetindo situações bem conhecidas na Europa, nomeadamente em Portugal, o Estado moçambicano procedeu à panteaonização dos seus heróis – cujos restos mortais foram, em alguns casos, devolvidos por países estrangeiros, como aconteceu com Ngungunhane, Mondlane e, mais recentemente, o próprio Samora Machel – através da edificação de mausoléus, transformados de imediato em símbolos e lugares de produção de rituais e de fixação da memória colectiva da nação.



Manjacaze, Mandlakazi: a terra dos heróis

A história de Manjacaze está indissoluvelmente ligada ao processo de penetração do colonialismo português em Moçambique. Última capital de Ngungunhane, foi saqueada por forças do exército português em Novembro de 1895. Apesar da devastação, a zona continuou a manter atracção suficiente para nela se estabelecer um aglomerado populacional moderno, assente no pequeno comércio colonial dos cantineiros indianos e, mais tarde, portugueses.

A palavra Mandlakazi é de origem zulu, tendo sido traduzida por Liengme – descendente do missionário médico suíço que viveu em Gaza de 1892 a 1895, designado por Ngungunhane com o nome de Muzaga (filho de Gaza) – por grande força ou cidade forte e bela (Liesegang 1986: 32). Teria como função designar a aldeia real. No entender de Vilhena(1996: 105), “onde quer que Gungunhana se fixasse, sempre a sua povoação se chamaria Manjacaze”. Outros dão-lhe uma interpretação diferente, considerando que resulta da palavra Va lhakazi” – a quem golpearam com as lanças e mataram [Tempo, n.º 600 de 11/4/1982(suplemento)]. Actualmente, este significado parece ter-se perdido, substituído por um outro que acentua a sua condição de terra de lutas e de heróis, de mortes e sangue vertido. Assim, temos “mãos de sangue” – mandla ya gázi –, expressão do forte derramamento de sangue que se verificou aquando da instalação de Ngungunhane nestes territórios do sul de Gaza (v. Savana de 1/9/1995), cuja versão corrente é “comer sangue”, tal como foi contada logo nas primeiras horas da minha chegada a Manjacaze por um informante local. Segundo este, à sombra da árvore onde, diz a tradição, dava as ordens aos seus guerreiros, Ngungunhane confrontado com as enormes baixas causadas pelos muchopes interrogou-se: “porquê este sofrimento, porque é que estou a comer sangue?” Na expressão de um outro informante, muito idoso, conhecedor da história pelas narrativas do seu pai, um dos primeiros intérpretesdos portugueses, “os muchopes estavam a chegar-lhe bem”.

É de sublinhar que a literatura histórica aponta para uma forte atomização do território que constitui as actuais províncias de Gaza e Inhambane, dividido por Estados e chefaturas de etnias diferentes. Uma das mais activas era a muchope (chopi) que se mostrou sempre reticente à hegemonia nguni, preferindo até a submissão ao domínio português. Em diversos momentos opuseram-se também os khambanes, grupo a que pertenciam os antepassados de Eduardo Mondlane, tendo chegado a estabelecer, em algumas ocasiões, alianças com as forças portuguesas (Liesegang 1996: 46-48 e Serra 2000: 91). Em suma, mais do que relevar uma certa concordância entre a tradição oral e a literatura histórica, esta também alimentada por aquela, é de salientar a permanência na memória colectiva das lutas que envolveram os diversos povos presentes no território e das interacções estabelecidas com o colonialismo português, às quais Manjacaze está para sempre ligada.

Subsistem algumas dúvidas em relação ao local efectivo da capital do império de Gaza. De acordo com os elementos reunidos por Liengme (v. Vilhena 1996 e Liesegang 1986), quando Ngungunhane veio do norte e se instalou por volta de 1889 fê-lo efectivamente junto à lagoa Sulé, numa zona localizada a sudoeste desta, onde permaneceu até 1891. Posteriormente mudaria para uma posição mais próxima da actual Manjacaze, onde terá ficado pouco tempo. Acabará por se afastar da lagoa, fixando-se na planície de Manguanhane ,alguns quilómetros a norte da actual vila, hoje parte do distrito do Chibuto. Segundo diversas estimativas, a povoação possuía entre 600 a 1.600 palhotas, sendo pois, para a época, de grande dimensão, embora inferior a Lourenço Marques ou Inhambane (Liesegang 1986: 34). Teria sido este o aglomerado populacional atacado e queimado pelas tropas portuguesas em 1895 (v. Liesegang 1986: 9-10 e Tempo, n.º 413 de 3/9/1978).

A Manjacaze contemporânea desenvolve-se no sentido nordeste-sudeste, na encruzilhada de três estradas: duas levam ao Xai-Xai, uma via Mangunze, outra via Malehice, que permite chegar também ao Chibuto; a restante dá acesso às terras do extremo norte do distrito, como Jongué e Macuácua, passando por Coolela e pela Aldeia das Laranjeiras. Oeixo principal do centro urbano é definido pela grande avenida. No topo sudeste encontramos o edifício da administração distrital. Numa das frentes abre-se um grande espaço, composto pela praça Ngungunhane e um terreno livre, de onde se pode avistar boa parte da lagoa Sulé. Um dos elementos marcantes é o canhoeiro onde, segundo a memória colectiva, Ngungunhane se reunia para conversar com o seu povo e dar as ordens aos seus chefes militares. Eis como Eduardo e Janet Mondlane viram o local quando visitaram Manjacaze em 1961:

A administração estava situada num local maravilhoso com vista para um grande lago. À frente, os portugueses tinham construído um bonito parque com estatuetas no interior de um pequeno lago, como acontece em muitas outras pequenas cidades. Mas o que era extraordinário aqui é que perto da porta de entrada havia uma grande árvore, o Eduardo reconheceu-a como uma Ndsondso, com uma pequena placa dizendo que ali era o lugar onde Ngungunyana se costumava sentar com os seus conselheiros quando tinha de tomar decisões (Manghezi, 2001: 203).

O outro topo é rematado pela Praça dos Heróis, com a pira da união nacional –monumento evocativo da luta pela independência –, e onde se realizam algumas das manifestações do Estado mais solenes. No miolo desta artéria temos o jardim dos Heróis Moçambicanos. Em termos político-partidário, Manjacaze é um feudo da Frelimo desde que esta se fundou. Muitos dos seus principais dirigentes nasceram aí, com destaque para o seu primeiro presidente, Eduardo Mondlane. Durante a guerra civil foi severamente fustigada pelas incursões das forças da Renamo, sobretudo a partir da 2ª metade dos anos 80. Mais de dez anos após o fim das hostilidades, os horrores da guerra estão bem presentes na memória colectiva da população. O maior deles – o massacre do dia 10 de Agosto de 1987 – é anualmente recordado com uma romagem à vala comum, onde estão enterradas parte das 92 vítimas (v. Tempo de 23/08/1987). Desinteressada, nesta zona do território moçambicano, daadesão das populações à sua causa, a acção da Renamo contribuiu para consolidar o amplo apoio que a Frelimo detinha desde há muito em Gaza.



A invenção dos heróis: Ngungunhane

Até ao século XIX a presença colonial portuguesa pouco foi além da fundação e controlo das feitorias localizadas em pontos estratégicos ao longo da costa e algumas incursões terrestres para organizar o tráfico de escravos. A viragem decisiva dá-se com a Conferência de Berlim. Apesar de ser uma potência pequena e decadente, Portugal conseguiu também assegurar o seu quinhão, no qual se incluíam os territórios que dariam origem a Angola e Moçambique. Contudo, os termos impostos para o reconhecimento internacional eram leoninos, pois exigiam a ocupação efectiva dos territórios e a imposição do poder colonial aos povos que neles viviam. Tal implicava acabar com a presença sitiada, como justamente lembrou Mondlane, citando o historiador Oliveira Martins, na sua análise do colonialismo português:

Estar de arma – sem gatilho – ao ombro, sobre os muros de uma fortaleza arruinada, com uma alfândega e um palácio onde vegetam maus empregados mal pagos, a assistir de braços cruzados ao comércio que os estranhos fazem e nós não podemos fazer; a esperar todos os dias os ataques dos negros, e a ouvir atodas as horas o escárnio e o desdém com que falam de nós os que viajam na África – não vale, sinceramente, a pena [O. Martins in Mondlane 1995 (1969): 25].

No sul de Moçambique o principal obstáculo era o Estado de Gaza (v., entre outros, Rita-Ferreira 1975, Liesegang 1986 e Pélissier 1994). Falhadas todas as tentativas de subordinação desta entidade política ao domínio colonial português, incluindo os acordos estabelecidos entre ambas as partes em 1885 e 1887 (v. Vilhena 1996: 48 e AHU – DGU - Moçambique, 1ª Repartição, n.º 1312 de 13 de Dezembro de 1893) e após vários anos de tensão, em que Ngungunhane se mostrou esquivo aos interesses portugueses, a opção pelo confronto militar acabou por se impor. Ao longo do ano de 1894 a vigilância e a inquietação dos portugueses sobre as intenções do Ngungunhane eram muito vivas. Em vários documentos oficiais e na própria correspondência particular trocada entre o governador do distrito de Inhambane e o governo-geral da colónia são patentes os avisos da proximidade da guerra (AHU – DGU – Moçambique, 1ª Repartição, 1ª Secção, 1894).

O seu desenlace dar-se-ia em Coolela, a 7 de Novembro de 1895, com o esmagamento das forças africanas. Conhecemos bem os acontecimentos mais marcantes deste embate, poissão muitos os contemporâneos desse tempo que os relataram com detalhe. Um dos mais interessantes é o de Junod:

Durante várias semanas, todo o exército do Nghunghunyane, calculado em 25 ou 30.000 homens, acampou junto do seu régulo, pronto para o combate. Mas por razão desconhecida o exército português tardou, e o grosso dos batalhões tsongas, não tendo que comer, dispersou-se. Contudo, uma forte guarda de corpo, composta dos melhores soldados angónis, ficou no quartel-general. Quando finalmente os Portugueses chegaram aos arredores de Mandlakazi, travou-se um combate violento. Os guerreiros ngonis atacaram valentemente o quadrado português, mas foram repelidos com grandes perdas (305 mortos, segundo o comunicado oficial), a povoação do régulo, Mandlakazi, foi tomada e destruída e o Nghunghunyane fugiu para Xaimite, o bosque sagrado onde os seus antepassados estavam enterrados.

Algumas semanas mais tarde, o capitão Mouzinho de Albuquerque, depois duma marcha forçada, fê-lo prisioneiro sem combate e levou-o para Lourenço Marques, donde foi deportado para o oeste africano (1996: 460-461, tomo I). Como salientou Mousinho, aquando da sua captura em Chaimite, a neutralização de Ngungunhane era o principal objectivo do exército português: “com a prisão do Gungunhana desapparecem quaesquer probabilidades d’uma rebelião séria ao sul do Save” (in Albuquerque 1896: 25). O tempo acabaria por lhe dar razão: a soberania portuguesa ficaria assegurada por muitas décadas.

No Portugal coevo, os acontecimentos de Gaza causaram viva impressão. A campanha militar foi narrada como um feito heróico da maior grandeza, com os comandantes militares elevados à condição de heróis singulares do domínio colonial português (Roque 2001: 40). No imaginário popular a figura de Ngungunhane e todas as peripécias ligadas à sua prisão e desterro ficaram bem marcadas. Um exemplo elucidativo é a canção cantada no Minho após a
chegada do “rei preto” aos Açores (Giacometti 1981: 60):


O GUNGUNHANA ’STÁ PRESO

Ai! ai! que me rasga a saia,

nun me agrada a brincadeira;

se casei pra trabalhar,

mais balia ’star solteira.

O rei preto Gungunhana

é parente de Jacó;

home de sete mulheres,

agora nen ũa só!

A! ai! que me rasga a saia,

nun me agrada a brincadeira;

lebar o Gungunhana

para a ilha da Madeira.

As mulheres do Gungunhana

tamén foro castigadas;

foro para Cabo-Berde,

todas sete degradadas.

Ai! ai! que me rasga a saia,

nun me agrada a brincadeira;

se casei pra trabalhar,

mais balia ’star solteira.



Tendo permanecido na memória colectiva dos povos de Gaza, esta derrota acabaria por ser assumida pelo Estado moçambicano como um símbolo maior da luta contra o colonialismo e Ngungunhane progressivamente transformado no mais antigo herói nacional. Não existindo como entidade política, cultural ou social até ao século XIX, a identidade nacional de Moçambique teve de ser construída de um modo acelerado pelos militantes e dirigentes políticos nacionalistas. A elite nacionalista moçambicana soube transformar uma derrota numa alavanca para a construção da identidade nacional. Enfatizando, “a derrota do Estado de Gaza, seja de que maneira vemos este acontecimento, permitiu a construção de Moçambique” (Liesegang 1986: 91). Converter uma derrota militar num pedra angular da identidade nacional não é caso original na história. Na Europa, os sérvios elegeram também uma derrota militar como um dos acontecimentos fundadores da sua nacionalidade. De acordo com a história sérvia, o exército sob o comando do príncipe Lazar foi derrotado pelos turcos na batalha de Polje (Kosovo), em 28 de Junho de 1389 (v. http://w3.tyenet.com/kozlich/METOHIA.htm,). O aniquilamento das forças sérvias, incluindo a morte do seu príncipe no campo de batalha, foi transformado pelo imaginário popular e literário ao longo dos séculos de ocupação otomana num fonte inspiradora para o nacionalismo sérvio do século XIX. Necessitando de heróis, Ngungunhane preenchia, como veremos, as condições suficientes ao projecto de construção da nação. Saliente-se, antes de qualquer outro aspecto, o facto de não existirem heróis sem inimigos, como justamente sublinha Unfried (1998: 194). Ora, neste caso não há dúvidas sobre quem era o inimigo: o colonialismo português. Liesegang (1986: 73-93) percorre a vida desta personalidade, tentando identificar asqualidades mais marcantes. Apoiando-se na vasta documentação existente sobre Ngungunhane, muita dela produzida por observadores coevos, este autor coloca em evidência  aspectos contrastantes da sua personalidade: a vontade de ferro disfarçada pela doçura do olhar em contraponto com a crueldade; a inteligência e a argúcia face ao comportamento tirânico desprovido de sentido moral e de ética, acompanhado pelo consumo desmedido de álcool. Como sempre acontece nos processos de heroificação (v. Marienstras 1998), havia que eliminar os aspectos mais negativos e brutais de Ngungunhane, ao mesmo tempo que se fazia a sobrevalorização das características mais positivas, como a “coragem”, a “inteligência” e a “liderança”. Com o tempo, graças ao trabalho porfioso dos historiadores, dos escritores e dos intelectuais nacionalistas, impuseram-se os aspectos positivos sobre o esquecimento dos aspectos mais negativos.

É de notar que o peso danoso de Ngungunhane na memória colectiva das gentes de Gaza perdurou durante largas décadas. Daí não surpreender que Liesegang (1986: 76) admita que “o Estado de Gaza e a sua violência deixaram poucas saudades”. Se no passado foi afirmado de uma forma mais aberta, até por figuras nacionalistas como Abner Sansão Mutemba, que os nguni eram uma força invasora e Ngungunhane o último rei de um Estado colonizador e opressor, a narrativa institucional é hoje bem diferente. Na literatura, Khosa (1987) é um dos poucos escritores moçambicanos contemporâneos a assumir uma posição inequivocamente contra-a-corrente. Numa das passagens mais fascinantes do seu romance, Ualalapi, Khosa escreve:

- Estou com medo, Ualalapi. Estou com medo. Vejo muito sangue, sangue que vem dos nossos avós que entraram nestas terras matando e os seus filhos e netos mantêm-se nela matando também. Sangue,Ualalapi, sangue! Vivemos do sangue destes inocentes. Porquê, Ualalapi?...

- É necessário, mulher. Nós somos um povo eleito pelos espíritos para espalhar a ordem por estas terras. E é por isso que caminhamos de vitória em vitória. E antes que o verde floresça é necessário que o sangue regue a terra (1987: 32).

Menos de duas décadas após a sua queda, começava a impor-se a visão positiva e apologética de Ngungunhane e do seu papel histórico. Em 1914, nos inícios do nacionalismo moçambicano, despertado pela visibilidade do colonialismo no meio urbano e beneficiando, provavelmente, da fraqueza dos laços tribais [Mondlane 1995 (1969): 89-90)] João Albasini escrevia no jornal O Africano que o último imperador de Gaza tinha sido o responsável pela unificação do sul de Moçambique, antes de ele ter caído sob o domínio dos portugueses. Por volta dos finais da década de 20, pela mão de Aron Mukombo, estabelece-se a primeira relação entre a resistência incarnada por Ngungunhane e a acção dos nacionalistas moçambicanos pioneiros (Liesegang 1986: 75ss). Mais tarde, nos anos 40, os cânticos da Igreja etiópica Luso-Africana denunciavam as atrocidades e barbaridades do colonialismo e a angústia da população. Sob uma fórmula dissimulada – “ficaremos a governar com catanas” – apelavam à revolta contra os colonizadores, tal como fizera Ngungunhane, também evocado nos seus cânticos (Moreira 2000: 224).

Com a luta armada a Frelimo tomou para si a figura de Ngungunhane. A sua resistência passaria a ser usada como um exemplo heróico face ao colonialismo, lembrando também que foi a falta de unidade dos africanos que conduziu à vitória dos portugueses. Neste período ter-se-á desenvolvido “uma visão popular que identificava todos os negros moçambicanos com o povo moçambicano, e como havia negros no passado, concluiu-se que devia ter existido um povo moçambicano” (Liesegang 1986: 80). Mais tarde, em 1975, em vésperas da independência, durante o percurso épico do Rovuma ao Maputo da “chama da unidade”, Samora Machel visitou Manjacaze, acompanhado de Marcelino dos Santos e de Fernando Matavel. Apesar de não ter sido acidental a escolha desta vila como ponto de paragem, a Ngungunhane não coube qualquer papel preponderante, pelo facto de a liderança da Frelimo ainda não ter expurgado completamente os aspectos contraditórios e menos positivos da sua personalidade. Na sua intervenção Machel, em coerência com o programa político-ideológico da Frelimo, preferiu antes as palavras de ordem que denunciavam o colonialismo, o tribalismo e o racismo, tendo sublinhado o facto de serem poucos os que falavam a língua portuguesa, consequência da dominação colonial que brutalizara os moçambicanos, “precisamente para que não houvesse consciência de pedir a liberdade para poder pilhar as riquezas do nosso país e fazer de nós minas para a exploração” (Notícias, n.º 16.521: 3 de 23/6/1975).

De certo modo bloqueado, o processo de heroificação de Ngungunhane só se alteraria definitivamente na década seguinte, imposto pela urgência de reforçar a identidade e a coesão nacionais num contexto de guerra civil e agressão externa. Não será, portanto, fortuito que em 1982, em nova visita a Manjacaze, Machel faça de Ngungunhane uma figura heróica da nação moçambicana. No estádio de futebol, falando para 10.000 pessoas, afirma: Viemos a este distrito porque a história de Moçambique está intimamente ligada a Mandlakazi [...] Aqui foram travadas grandes batalhas. Os habitantes deste distrito nunca aceitaram a dominação. Por isso
viemos render-lhes homenagem, ver as árvores onde repousou Gungunhana (Notícias, n.º 16.521: 8, de 23/6/1975). Escrutinando a imprensa, damo-nos conta da mudança política e institucional em relação à figura de Ngungunhane. Enquanto que em 1978 ainda se pode ler que Ngungunhane “soube organizar o povo para a resistência ao invasor” [tendo lutado para] manter a independência do seu reino”, não deixando porém de relevar que “como chefe feudal, como rei, oprimiu o seu povo [...] tinha escravos [e] impunha ritos religiosos desumanos e cruéis” (Tempo, n.º413 de 3/9/1978), em 1982 estes aspectos estão já completamente ignorados, estabelecendo-se uma ligação directa entre Ngungunhane e a nação moçambicana, privada da liberdade durante os quase 90 anos que mediaram a sua derrota da proclamação da independência. A estratégia era muito clara. Ao agudizar da actividade operacional da Renamo no terreno havia que contrapor o reforço da identidade nacional e a fabricação de um herói que, pela sua oposição ao agressor comandado do estrangeiro, se constituísse numa referência ao novo “invasor” (v. Tempo, n.º 596 de 14/3/1982). No ano seguinte um longo artigo publicado pela Tempo (n.º 687 de 11/12/1983), e num momento em que Moçambique dava os primeiros passos para a recuperação dos restos mortais de Ngungunhane, confronta-nos com o “herói da luta anticolonial” na sua mais acabada grandeza e força. Para a hegemonia das qualidades heróicas de Ngungunhane faltava apenas a exaltação final: as exéquias fúnebres, porque disso se trataram efectivamente as cerimónias realizadas em 15 de Junho de 1985 na cidade de Maputo. Recordemos alguns dos momentos mais significativos, relatados pela revista Tempo:

Foram enchentes de gente diversa as que no passado sábado, dia 15, formavam um verdadeiro cortejo à berma das estradas, gente vinda de pontos uns distantes outros menos, mas irmanadas no comumsentimento de honrar aquele que, tendo partido a “ferros” – palavras do Marechal Samora Machel – paracativeiro, já lá vai cerca de um século, regressava Herói para o solo da Pátria libertada por homens que, a seu exemplo, não deixaram jamais esmorecer o seu sentimento de dignidade, de soberania.

Ngungunhane regressa” era uma frase como que algo de mágico, pronunciada de boca em boca, cantada pelos inúmeros grupos culturais que fizeram da solenidade uma festa, jornada de afirmação da identidade.

Chegados a Maputo, a bordo do DC-10 das Linhas Aéreas de Moçambique, no qual viajaram a partir de Lisboa, os restos mortais do Imperador de Gaza mereceriam no Aeroporto, ao longo do trajecto e no Salão Nobre do Conselho Executivo, honras militares. [...]

“Este é um momento emocionante para todos nós”, afirmaria o Presidente Samora Machel no seu discurso [...]. “É uma ocasião em que resgatamos ao passado a sua verdadeira grandeza para nela reafirmarmos os traços permanentes da nossa cultura, da nossa personalidade, da nossa identidade nacional” (n.º 767, 14-17 de 23/6/1985).

Se neste herói poderá ser discutível a sua ligação ao “povo”, nele está bem presente a vitimização provocada por um poder julgado estrangeiro, a que se deve juntar o comprometimento da sua acção com um campo identitário relacionado com a nação, isto é, adefesa de um território (cf. Albert 1998: 25). Ou seja, na esteira do sugerido por Bryan (1998: 34) sobre as qualidades heróicas, é manifesto que a elite dirigente tentou fazer de Ngungunhane um símbolo colectivo que pudesse ser apropriado pelas populações. Em suma, estava finalmente fabricado o primeiro dos grandes heróis do Estado moçambicano. Talvez aquele que mais obedece aos cânones clássicos, de perfeita compatibilidade com os interesses da liderança do regime e o contexto político então muito difícil, dominando por uma guerra sem fim à vista.



A invenção dos heróis: Eduardo Mondlane

Eduardo Mondlane nasceu a 20 de Setembro de 1920 na pequena aldeia de Nwadjahane, localizada a oito quilómetros a norte da vila de Manjacaze e a somente quatro quilómetros do lugar onde se deu a batalha de Coolela. Herói da maior grandeza para a nação moçambicana, quase tudo o afasta de Ngungunhane. Era um homem com uma cultura cosmopolita e engajado na luta por um outro destino para o seu povo, o qual não passava apenas pelo fim da soberania portuguesa em Moçambique.  Ainda que para este “entusiasmo” popular possa ter concorrido a acção dos Grupos Dinamizadores – grupos de activistas encarregues pelo poder frelimista da mobilização e vigilância da população – e o factor religioso-simbólico – presença para satisfazer e apaziguar o espírito do desaparecido, de forma a que ele não cause desgraças aos vivos – é fundamental não obnubilar o papel desempenhado pelo prestígio político e pela influência social do regime na adesão popular a esta manifestação, apesar da erosão nele provocada pela guerra e pelas dificuldades económicas. dominação com base na raça, isso não o impediu de objectivar também a sua própria cultura, criticando os aspectos que considerava mais injustos.

Apesar de nascido numa pequena aldeia do sul de Moçambique, numa família tradicional africana que tinha na agricultura e na pastorícia os seus principais meios de sustento e rendimento, “o primeiro negro educado que viria a fazer do negro um igual ao branco” (Manghezi 2001: 206) teve acesso a uma educação ocidental na escola colonial e, sobretudo, nas escolas da Missão Suíça, uma instituição religiosa calvinista. Sempre apoiado pelos missionários, realizou estudos secundários e superiores. A expulsão imposta pelo governo sul-africano, quando frequentava neste país a universidade, levou-o aos Estados Unidos, onde prosseguiu a licenciatura e obtém o doutoramento em sociologia e antropologia.

Em 1957 ingressou nas Nações Unidas, que abandonará quatro anos depois para se dedicar à luta pela independência de Moçambique, a par da docência na Universidade de Siracusa, em Nova Iorque. Dois anos mais tarde afasta-se de todos os seus compromissos profissionais para
se dedicar a tempo inteiro à causa nacionalista. Nos sete anos em que esteve à frente da Frelimo fez um trabalho notável na organização do movimento e no aprofundamento da luta de libertação, inseparável do seu amadurecimento político e ideológico. Para melhor o discernirmos, fiquemos com o testemunho de um camarada de luta:

Ele ama uma mulher branca e casa com ela, tendo para isso de afrontar todos os preconceitos de dois tipos. Por um lado, tem de fazer face ao profundo racismo da sociedade americana da época, que se repercutia na própria família da mulher [...] Com essa escolha de uma branca e esse casamento, ele passa a ter de enfrentar uma nova forma de racismo, o dos seus familiares e amigos, que também não viam com bons olhos essa ligação [...] Por isso Mondlane é daqueles que mais cedo compreendeu que a moçambicanidade não se podia avaliar pela cor da epiderme. [...] Quando Mondlane constituiu a Frelimo talvez ainda não tivesse uma visão marxista da luta de classes, o que era natural para quem tinha vivido tantos anos nos EUA e sobretudo no ambiente religioso em que viveu. Contudo, sentia e muito bem, que nas condições de Moçambique em 1961/65, a contradição fundamental não era entre diversas classes sociais moçambicanas, como veio a ser mais tarde e como é hoje. A principal contradição era entre o povo moçambicano e o colonialismo (H. Martins 2001: 177-178 e 255-256).

A visita a Moçambique, depois de 10 anos de ausência, revelar-se-ia decisiva para o seu trajecto de vida, estando na origem de uma viragem que mudaria a própria história do país. Chegou a Lourenço Marques em Fevereiro de 1961, permanecendo no seu país natal, juntamente com a sua mulher e filhos, até 1 de Abril do mesmo ano. Para além desta cidade, Mondlane visitou Manjacaze, Ricatla, João Belo, Maússe, Cambine e Chicúque, T. C. Silva (2001: 123) sublinha precisamente o entusiasmo popular que rodeou a vista de Mondlane, assinalando deste modo a dimensão política e o capital de prestígio que ele adquiriu como personalidade internacional, sendo reconhecido em simultâneo como um filho de um povo oprimido e seu representante.

Ainda que suspeitando das intenções de Mondlane, a administração colonial não tinha objectivamente elementos que justificassem medidas intimidatórias, como a restrição da liberdade de circulação. Atendendo à sua condição de funcionário superior das Nações Unidas, qualquer acção deste tipo não deixaria de ter repercussões internacionais danosas para o lado português. Por seu lado Mondlane mobilizou habilmente todo o seu saber diplomático na relação com os altos responsáveis portugueses, pelo que não havia para estes outra solução que não fosse a vigilância discreta, ao mesmo tempo que mantinham o diálogo e disponibilizavam meios logísticos, incluindo o avião, para as suas deslocações em território moçambicano. Mas não só, acompanharam-no também em visitas a vários locais do sul de Moçambique e organizaram banquetes em sua honra, como o que ocorreu na vila de João Bello (actual Xai-Xai).

Em Manjacaze, repetindo-se o verificado um pouco por todo o lado, foi acolhido com enorme emoção e júbilo. Aos colonos, alguns dos quais participaram em almoços e outros eventos, o visitante não levantou grandes apreensões, apesar de serem previsíveis os passos futuros de Eduardo Mondlane:

[Foi] como uma visita de estudo, para ver a situação que existia, para ele continuar com o programa que tinha determinado: a revolta militar, uma vez que não havia outra solução para chegar ao entendimento com o governo português. Percebi isso em 1961. Foi recebido em Manjacaze com entusiasmo. Era uma pessoa com prestígio. Não havia nada contra ele. Era um filho da terra que se distinguiu, achávamos bem (M. Neto, informante).

É forçoso insistir que a visita a Moçambique foi decisiva para a vida de Mondlane. De facto, como está abundantemente relatado, inclusive por ele próprio (cf. Reis e Muivane 1975), foram os contactos e as experiências vividas que o confrontaram com duas realidades. Por um lado a impossibilidade de se persuadir o governo português a participar numa outra solução política para as suas colónias, por outro lado a receptividade de camadas significativas do povo moçambicano às causas nacionalistas.

Esta visita iria desempenhar um papel-chave na invenção do herói. Na vida de Mondlane existem acontecimentos que acabam por ser amalgamados com o imagináriomitológico pelas gerações que vivem a heroificação (v. T. C. Silva 2001: 124). Assim, alguns dos episódios mais marcantes da visita são hoje ligados à acção maléfica da PIDE – é o caso do acidente rodoviário próximo da Maxixe, associado ao rumor nascido em Lourenço Marques sobre a colocação de uma bomba na viatura – ou descritos de modo a sobrevalorizar as ligações do herói ao povo e o comprometimento deste para com ele e os seus interesses (v. Manghezi 2001: 204-209).

Mondlane está presente por toda a parte: é a egrégia estátua no cimo da principal artéria da cidade de Maputo, a avenida Eduardo Mondlane, à qual emprestou o seu nome, bem como a muitas ruas das pequenas vilas e aldeias, bairros e escolas. Tudo contribui para a sua fixação na memória colectiva dos moçambicanos. Herói nacional, é também um herói da Frelimo, talvez o mais consensual dos ligados à luta armada, cujos dirigentes se têm encarregado, juntamente com os historiadores e outros configuradores da memória colectiva, de amplificar a sua heroicidade estreitamente vinculada a valores populares, ao contrário do que acontece com Ngungunhane. Nas discursos e nos textos sobre Mondlane encontramos de forma regular os elementos que a moldam, como a sobrevalorização das origens humildes e da ligação ao povo, a sublimação do papel da mãe, considerada a responsável pela inculcação da cultura de revolta contra o colonialismo, e a exaltação da sua personalidade como homem honesto, afável e trabalhador.

Hoje pertence, juntamente com Samora Machel, Filipe Samuel Magaia e Josina Machel, ao grupo restrito dos heróis fundadores da nacionalidade, a que se junta Ngungunhane. Com este e com Samora Machel constitui a tríade insigne do panteão heróico da moçambicanidade, as referências maiores do Estado moçambicano. Apesar da força dos discursos produzidos pelas instituições estatais e seus agentes, eles confrontam-se a nível político com a oposição da Renamo, interessada em juntar a estes os seus heróis, alguns deles caídos em combate durante a guerra civil. E assim reforçar a legitimidade da sua luta e do papel, menos desigual, que pretende ocupar na memória colectiva de Moçambique. Aliás, conquanto o dinamismo destes processos de heroificação exerça uma força poderosa na acomodação dos cidadãos às configurações identitárias projectadas pelo Estado, é forçoso sublinhar que a oposição da Renamo exprime, do ponto de vista político, as reservas manifestadas por numerosas populações a estes heróis, nomeadamente do centro do país (v. Florêncio 2003 para o caso dos Ndau). heróis são figuras históricas cujos actos e vontades não são condição suficiente para a heroificação. Como vimos para os casos de Ngungunhane e de Eduardo Mondlane, foi preciso que aqueles que têm autoridade para definir e colocar em prática políticas de identidade decidissem proceder ao trabalho, inevitavelmente porfioso, de os transformar em heróis.

A invenção dos heróis é inseparável das opções dos detentores do poder político e das lutas políticas e sociais travadas. Ngungunhane e Mondlane são expressões concretas da vontade de um poder que se fundou primeiro na luta armada contra o colonialismo português e depois na guerra civil contra a Renamo. Mas este trabalho de invenção está também ligado aos percursos de vida dos indivíduos que se pretende heroificar. Quer dizer, está fortemente escorado no próprio desenrolar da acção histórica à qual os heróis estão ligados e foram protagonistas. Assim, é pertinente considerar que a autonomia dos construtores dos heróis é sempre relativa, não podendo escapar aos constrangimentos da história, ainda que esta esteja também sujeita a uma permanente (re)interpretação. Daí que as diferenças entre Ngungunhane e Mondlane enquanto heróis não deixem de reflectir as singularidades das suas vidas e do tempo em que viveram. Em comum sobressai somente a oposição activa ao colonialismo português em terras africanas. Os heróis são peças estruturantes da tradição. É nela que as instituições e a vontade vão buscar e oferecer ao Estado moçambicano, já definido pelo poder colonial que lhe deu uma existência administrativa, a sua nação. Para que esta existisse não bastavam, como bem perceberam os principais responsáveis políticos moçambicanos, a disseminação de uma língua comum, inevitavelmente a do colonizador, e a exaltação de uma história, inevitavelmente a da luta contra o colonialismo. Era necessário também que se procurassem, na tradição, símbolos “nacionalizáveis”, como os heróis, com os quais os indivíduos se pudessem identificar e o Estado produzir discursos de alteridade (Zonabend 1980: 310). A construção dos heróis, como Ngungunhane e Mondlane, ligados pelo destino a Manjacaze, constituiu (e constitui) uma tarefa decisiva para a elite moçambicana no seu esforço de produção de uma identidade nacional. Aos discursos que, tentando exacerbar as diferenças, nomeadamente étnicas, ideológicas e religiosas, apelaram num passado recente à secessão do país, separando o norte e centro do sul, ao qual pertence o grosso da elite que comanda o Estado, opõem-se os discursos da identidade nacional que têm concorrido para o enraizamento da legitimidade interna do Estado moçambicano enquanto entidade política, cuja autoridade e reconhecimento, externo e interno, não suscitam hoje contestação relevante e, sobretudo, determinante para a estabilidade geral do regime.   

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