Bem vindos,

Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

03 dezembro 2012

DUAS ESTAÇÕES GOVERNAMENTALIZADAS (TVM E RM)*

DUAS ESTAÇÕES GOVERNAMENTALIZADAS (TVM E RM)*



Escrito por Ericino de Salema**

A Rádio Moçambique (RM) e a Televisão de Moçambique (TVM) foram, em 1994, formalmente transformadas de estações estatais para emissoras públicas de radiodifusão, o que, sob o ponto de vista material e/ou real, nos parece ser ainda utópico. Ambas as empresas são “publicamente financiadas” por via de contratos-programa que rubricam com o Ministério das Finanças, o que as torna frágeis em termos de estabilidade institucional. Os gestores do topo são ainda nomeados pelo governo, o que esvazia, quase em absoluto, os princípios da independência e da imparcialidade quem deve nortear o genuíno serviço público de radiodifusão.
Quando, a 15 de Março de 2002, a coligação anglo-americana atacou o Iraque de Saddam Hussein, as atenções dos principais órgãos de comunicação social existentes pelo mundo viraram-se para aquele país rico em petróleo e localizado entre os rios Tigres e Eufrates. A CNN, por exemplo, disse, naquele dia, que “Iraq is under strike”, enquanto que a BBC referiu, no mesmo dia, que “Iraq is under bombardment”.
As palavras usadas pelos dois media com muita influência internacional podem, a nosso ver, ser assim interpretadas: a CNN quis dar a entender que o que estava a suceder naquele dia tinha fortes motivações internas, ou seja, eram os próprios iraquianos em manifestação, enquanto que a BBC passou a clara mensagem de que o Iraque estava sob invasão externa.
Certamente que as repercussões daquele ataque expandiram-se para tantos outros quadrantes do mundo, incluindo para alguns governos, parlamentos e para as administrações dalguns grupos mediáticos. A BBC, que na altura tinha como director-geral Greg Dyke, não foi excepção, sobretudo pelo esforço que o canal público de radiodifusão britânica fez no sentido de documentar o que estava a acontecer de uma forma razoavelmente isenta, imparcial, independente e objectiva.
Enquanto ainda decorria a guerra no Iraque, a comissão do parlamento britânico responsável pelas questões de radiodifusão veio a público manifestar a sua insatisfação pelo facto de a BBC ter-se “comportado de uma forma desfavorável” à própria Grã-Bretanha, o que, frisaram naltura alguns deputados, “é inaceitável, por a estação ser suportada por fundos públicos”. Greg Dyke foi chamado ao parlamento para ir explicar porquê deixava os jornalistas que tinham sido enviados ao Iraque reportarem sem tomar em conta os “interesses estratégicos” daquele reino. O então director-geral da BBC disse aos deputados da comissão que cuida de questões dos media mais ou menos o seguinte: que não existe jornalismo do sector público e jornalismo do sector comercial ou de outra índole; só existe, frisou, bom e mau jornalismo; e o bom era aquele que obedecia aos mais elevados padrões éticos da profissão de jornalista, em linha com  valores-notícia e/ou critérios de noticiabilidade; e o bom repórter e o bom órgão de informação têm que desenvolver o seu trabalho com isenção, independência, neutralidade e objectividade. A explicação não foi suficiente para ilidir os fantasmas que inundavam as mentes dos deputados britânicos, pelo que Greg Dyke acabou pedindo demissão.
Na verdade, o distorcido entendimento, às vezes propositadamente e noutras de forma inocente, que levou os deputados britânicos a ‘torturar psicologicamente’ o então número um daquela estação pública de radiodifusão, acha-se, em maior ou menor intensidade, evidente em vários países, tendo, muitas das vezes, como fonte o facto de a essência do que constitui serviço público de radiodifusão nem sempre ser devidamente captada.



ESSÊNCIA DA RADIODIFUSÃO PÚBLICA
De acordo com o World Radio and Television Council, a radiodifusão pública é um lugar de encontro onde todos os cidadãos de um determinado país são bem-vindos e considerados iguais; ela [a radiodifusão pública] é um instrumento de informação e educação, que deve ser acessível a todos e ter sido concebido para todos, independentemente da sua situação social, económica, cultural ou política; o seu mandato não se restringe ao desenvolvimento informacional e cultural: a radiodifusão pública deve ser criativa e tem o dever de providenciar entretenimento; e tal deve ser feito preocupando-se com a qualidade dos seus conteúdos e produtos, que é o que, de resto, a torna – ou a deve tornar – diferente da radiodifusão comercial1. Steve Buckley, Kreszentia Duer, Toby Mendel e Seán Ó Siochrú (2008) (2) defendem que a radiodifusão [em termos gerais] pode ser definida com base em diferentes modelos de propriedade e de controlo, que vão desde a radiodifusão estatal à radiodifusão pública, da radiodifusão privada ou comercial, desde a perspectiva global à local, até à radiodifusão sem fins lucrativos e à radiodifusão comunitária.
Acrescentam que cada modelo é corporizado por diferentes dinâmicas e envolve um quadro diversificado de interesses, mas a configuração da radiodifusão num dado país é, geralmente, resultado de um processo histórico único, muitas vezes longo e complexo; nesses termos, não existem dois regimes idênticos e o conceito do que seria um modelo ideal de radiodifusão vê-se sempre enfraquecido quando posto em confrontação com a diversidade que caracteriza contextos nacionais diferentes.
Em termos gerais, os mesmos autores resumem essa situação de unicidade e inexistência de modelos iguais nos termos infra:
“Mesmo há 25 anos, o sistema de radiodifusão nacional poderia ser classificado de acordo com o sistema político vigente em cada um dos países. Muitos dos países europeus tinham uma única entidade monopolista a cuidar da radiodifusão, embora operando, cada um deles, de acordo com um quadro diversificado de princípios, sendo que na Europa ocidental a radiodifusão era pública e na Europa do leste era controlada pelo Estado. Em África e em parte considerável da Ásia, igualmente, a radiodifusão nacional era estritamente de propriedade e controlo governamental e era operada pelo próprio governo. Noutro extremo, o modelo americano de mercado livre se achava operacional em muitos dos estados  (com notáveis excepções). O número de países com modelos mistos era muito reduzido, pontificando países como Reino Unido da Grã-Bretanha, Japão, Austrália, Canadá e Finlândia. Onde existisse, a radiodifusão comunitária era um ‘fenómeno’ estritamente local e marginalizado, com muitas poucas ligações à radiodifusão convencional” (3).
Quanto aos tipos de radiodifusão existentes, diversos autores e/ou estudos por nós consultados referem-se à existência de quatro regimes, designadamente i) radiodifusão directamente controlada pelo governo, ii) radiodifusão pública, iii) radiodifusão comercial e iv) radiodifusão comunitária (4).
A radiodifusão directamente controlada pelo governo pressupõe, em termos formais, propriedade e controlo do governo do dia. São, actualmente, poucos países que ainda mantém, formalmente, essa modalidade, de entre os quais se destacam Belorússia, Zimbabwe e China; ela funciona de forma parcial, não isenta e neutra e totalmente dependente do governo. A radiodifusão comercial está inserta no quadro da liberalização do mercado e visa o lucro. A radiodifusão comunitária é, por definição, de propriedade comunitária, feita pela comunidade e para os interesses da própria comunidade, não possuindo fins lucrativos.
“O serviço público de radiodifusão, na sua situação óptima, é independente do governo e dos interesses comerciais e se ocupa exclusivamente em servir o interesse público. Em alguns casos o serviço continua numa certa modalidade de propriedade pública mas operando com base em estatutos que confirmam, de forma explícita, a sua independência editorial do governo do dia e são estabelecidos arranjos de governação com vista a garantir que assim seja” (Buckley et al, 2008: 37-38). 

DOS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES

A radiodifusão pública deve seguir um conjunto de princípios internacionais, de entre os quais pontificam, na perspectiva do Grupo de Governação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP), seis, designadamente i) universalidade, ii) diversidade, iii) independência [do Estado e dos interesses comerciais], iv) imparcialidade, v) comprometimenro com a cultura e vi) identidade nacional e financiamento público directo (5). A esses seis princípios, alguns quadrantes acrescentam o princípio da distintividade, na esteira do qual o serviço providenciado pela radiodifusão pública tem que ser, de longe, positivamente diferente do oferecido pela radiodifusão comercial, sobretudo em termos de programação (6).
O princípio da universalidade preconiza que o serviço público de radiodifusão deve se achar disponível e acessível a toda a população, sobretudo em termos de conteúdos produzidos e das línguas usadas para a sua veiculação. Já o da diversidade defende que a radiodifusão pública deve providenciar uma variedade de programas, incluindo conteúdos de natureza educativa e informacional produzidos com os mais elevados padrões de qualidade. O princípio da independência [do Estado e/ou governo e dos interesses comerciais] reza que as decisões sobre a programação e sobre conteúdos jornalísticos devem ser tomadas pelas entidades relevantes do órgão de radiodifusão sem pressão política e/ou comercial.
O princípio da imparcialidade, de resto muito similar ao da independência, funda-se da ideia de que é irrazoável que o governo do dia use, por exemplo, o seu poder para se beneficiar de propaganda promovida pela radiodifusão pública. O do comprometimento com a cultura e identidade nacionais tem que ver com a premência de parte considerável dos programas ter que possuir ligação com aquilo que é a cultura e a identidade da população de cada país. O princípio do financiamento público directo objectiva-se a evitar que, por via da modalidade de financiamento, o governo do dia influencie a independência e imparcialidade do órgão público de radiodifusão; o financiamento directo é feito por via da taxa de radiodifusão ou por intermédio de orçamentos aprovados pelo parlamento, e não com base em contratos-programa entre a firma de radiodifusão pública e o governo.
A definição do que será interesse público remonta ao próprio surgimento da radiodifusão (a rádio, sobretudo), nos princípios do século XX. Em 1960, Frank Stanton, na altura executivo editorial da CBS, disse que “um programa que seja do interesse de parte significativa da audiência é, exactamente por isso, de interesse público”. Já de forma um pouco mais elaborada, Gareth Grainger, que, na década de 60 trabalhou na entidade reguladora da radiodifusão australiana, posicionou-se da seguinte forma: “O interesse público é aquele interesse que governos, parlamentos e cidadãos de nações democraticamente governadas aceitam de forma consensual ou quase consensual e o fazem reflectir em leis, políticas, decisões e acções com o objectivo de garantir a paz, ordem, estabilidade, segurança, propriedade e direitos humanos para o bem-estar de todas as sociedades e nações que, em linha com a lei fundamental e os processos eleitorais, permitem que os cidadãos renovem o contrato social que eles democraticamente firmam com os seus governantes”.
Tomando em consideração o facto de a radiodifusão pública não se direccionar ao lucro, ela deve ser, além de inovativa, destemida, audaciosa e ousada, o que significa que, pela defesa do interesse público, tem que se predispor a correr riscos. É nessa linha que estudiosos como Anthony Smith chegaram à conclusão de que “[desde o seu surgimento até aos nossos dias], a radiodifusão pública provou, provavelmente, ser o mais poderoso instrumento da chamada social democracy” (7).
A importância dos media, incluindo da radiodifusão pública, para as emergentes democracias africanas, foi enfatizada na Declaração para a Promoção duma Imprensa Africana Independente e Pluralista, ou simplesmente “Declaração de Windhoek”, aprovada em 1991 na capital namibiana e endossada no mesmo ano pela Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua 26a sessão. A “Declaração de Windhoek” diz, no seu número um, que, em conformidade com o artigo 198 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o estabelecimento, manutenção e fortalecimento duma imprensa independente, pluralista e livre são indispensáveis ao progresso e preservação da democracia, bem como ao desenvolvimento económico duma nação.
Nos termos da “Declaração de Windhoek”, imprensa independente (número dois) é aquela que seja independente do controlo governamental, político ou económico, ou do controlo de materiais e infra-estruturas essenciais à produção e disseminação de jornais, revistas e periódicos; já por imprensa pluralista (número três) entende-se como sendo o fim do monopólio de qualquer tipo e a existência do maior número possível de jornais, revistas e periódicos que reflictam a mais vasta gama possível de opiniões no seio de uma comunidade.
Quando se celebrava, em 2001, o décimo aniversário da “Declaração de Windhoek”, foi apresentada, à Comissão Africana para os Direitos Humanos e dos Povos, a Carta Africana de Radiodifusão, que aborda, mais especificamente, o domínio da radiodifusão. No número um da sua parte primeira (Assuntos Gerais da Radiodifusão), diz a referida carta que “O quadro jurídico para a radiodifusão deve incluir uma exposição clara dos princípios basilares da regulamentação da radiodifusão, incluindo a promoção do respeito pela liberdade de expressão, a diversidade, a livre circulação de informação e ideias e, ainda, os três formatos de radiodifusão, ou seja: os serviços públicos, comerciais e comunitários”. [a radiodifusão governamental é o quarto modelo]
O mesmo instrumento insta, no número um da sua parte segunda (Emissoras de Serviço Público), todas as emissoras do Estado e sob controlo formal do governo a serem transformadas em emissoras de serviço público, que sejam responsáveis perante todas as classes sociais representadas por um conselho de direcção independente e que sirva o interesse global do público, evitando informação e programação unilateral em relação à religião, crenças políticas, cultura, raça e género. 

RADIODIFUSÃO PÚBLICA E DESENVOLVIMENTO HUMANO

De acordo com Amartya Sen, o conceito de desenvolvimento humano tem as suas origens no pensamento clássico, mais concretamente nas ideias de Aristóteles, que acreditava que alcançar a plenitude do florescimento das capacidades humanas é o sentido e o fim de todo o desenvolvimento. Na verdade, o conceito de desenvolvimento humano tem assumido algum paralelismo, ainda que não pacífico, com o de desenvolvimento económico, ainda que o primeiro (desenvolvimento humano) seja mais amplo, uma vez que se não limita em considerar os aspectos relativos à economia, pois integra ainda aspectos como qualidade de vida, educação e esperança de vida à nascença (9).
Em boa verdade, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida de desenvolvimento [na perspectiva humana] de cada país. O mesmo é elaborado pelo PNUD, comportando os três indicadores atrás mencionados (esperança de vida à nascença, educação e qualidade de vida), correspondendo, esses indicadores de dimensão sócio-estatística (10). Em 2010, o PNUD ajuntou a questão das assimetrias.
A radiodifusão pública, quando se assume efectiva e verdadeiramente como tal, se posiciona como ‘voz dos sem voz’, sempre em prol da defesa do interesse público. O serviço público de radiodifusão é igualmente apontado como desempenhando um papel central na promoção da consolidação das democracias, sobretudo as emergentes, e de reformas na governação.
Ao longo dos anos, os princípios basilares do serviço público de radiodifusão têm sido alvo de questionamentos, particularmente a asserção segundo a qual a radiodifusão pública é o modelo mais efectivo para responder às necessidades de informação e demais interesses da população. Contudo, experiências de vários países nos quais a radiodifusão comercial, em oposição à radiodifusão pública, é dominante, mostravam que o modelo de radiodifusão comercial possui significativas fraquezas: nela, os interesses e/ou direitos das minorias não são, muitas vezes, devidamente atendidos; decresce o volume de programação que toma como fonte os interesses de grupos específicos da sociedade e dá-se primazia ao entretenimento em detrimento de programas de informação e educação (11). 

RADIODIFUSÃO “PÚBLICA”  EM MOÇAMBIQUE

Numa perspectiva estritamente formal, a RM e a TVM, as duas estações de radiodifusão criadas pelo Estado, integram o que se denomina de serviço público de radiodifusão, tendo em conta que ambas foram, por decretos separados datados de 1994, transformadas para essa vertente. Com isso, passaram a estar dotadas de autonomia administrativa, patrimonial, financeira e, até, editorial, por decorrência da própria lei.
Com essa transformação, buscava-se, pelo menos formalmente, sair do sistema estatal em direcção a um sistema público de radiodifusão, embora se tenha mantido a determinação de que a nomeação dos directores gerais – hoje equivalentes a Presidentes de Conselhos de Administração (PCAs) – dos meios de comunicação social públicos é feita pelo Governo, nos termos da Lei número 18/91, de 10 de Agosto (Lei de Imprensa), o que faculta bastante espaço à interferência governamental (12).
Uma análise material do fenómeno da radiodifusão em Moçambique pode se basear nas constatações dos relatórios do African Media Barometer (AMB), exercício desenvolvido no país nos anos 2005, 2007, 2009 e 201113. Concretamente, a grande questão (depois desdobrada em várias sub-questões) que nessa ordem se levanta é de aferir se a regulação do sector de radiodifusão é transparente e se a radiodifusão estatal é transformada numa verdadeira radiodifusão pública.
Os últimos dois relatórios do AMB em Moçambique (2009 e 2011) referem, de forma cristalina, não existir legislação específica sobre radiodifusão no país. Apesar dessa lacuna, a RM e a TVM, formalmente públicos, são regulados por diversa legislação geral e/ou dispersa, de entre as quais se inclui a Lei de Imprensa.
Em Fevereiro de 2009, o governo anunciou o início de um processo de preparação de uma lei de radiodifusão, tendo convidado organizações da sociedade civil, particularmente as ligadas ao sector dos media, a darem o seu contributo, através da indicação e integração de elementos seus no Grupo Técnico.
Depois que o Grupo Técnico elaborou, de forma participativa, os relevantes Termos de Referência, o Gabinete de Informação contratou, já não de forma aberta, uma equipa de consultores para a elaboração do primeiro esboço. Os referidos consultores elaboraram uma proposta que foi, em meados de 2010, considerada inadequada, mormente por não responder aos padrões internacionais estabelecidos neste domínio. O ante-projecto não corresponde, por exemplo, aos compromissos assumidos pelo Estado moçambicano ao nível da Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão em África (2002), bem como da Carta Africana de Radiodifusão (2001). Em particular, o esboço foi criticado por não incluir nem definir de forma inequívoca o serviço público de radiodifusão e o estabelecimento de uma entidade reguladora independente (14).
Uma das sub-questões colocadas pelo AMB neste domínio visa captar se a radiodifusão estatal ou pública presta contas ao público através de um conselho de direcção representativo da sociedade no geral e que tenha sido composto de uma forma independente, aberta e transparente. As constatações do AMB de 2009 e de 2011 quanto a este ponto resumem a situação em que nos encontramos como país, não havendo nenhuma melhoria pelo menos de 2009 a 2011:
AMB de 2009: “Há um défice muito grande nesta área. Nenhuma das duas (RM e TVM) entidades de radiodifusão presta contas ao público. E não há nenhuma representatividade nos seus órgãos directivos. O artigo 10 da Lei número 17/91 (Lei de Empresas Públicas) refere que os administradores das empresas públicas são nomeados e exonerados pelo ministro de tutela, enquanto que o Presidente do Conselho de Administração é nomeado pelo Conselho de Ministros. Os dois órgãos de radiodifusão pública são regidos por este dispositivo legal, o que até certo ponto entra em choque com o artigo 5 da Constituição [da República], que estabelece a independência dos órgãos de comunicação do sector público. (…) De facto não há nenhuma transparência na maneira como são nomeados os corpos directivos da radiodifusão pública. A RM e a TVM, apesar do seu estatuto de entidades públicas, funcionam essencialmente como rádio e televisão estatais. Isso tem implicações nos seus conteúdos, que estão a ficar cada vez mais comprometidos politicamente, notando-se uma crescente tendência ao favoritismo que elas têm vindo a dar ao partido no poder, particularmente neste [2009] ano de eleições. Como exemplo, pode-se citar um caso recente em que a RM abandonou a transmissão que estava a fazer de uma sessão do Parlamento para transmitir em directo uma reunião do partido Frelimo que estava a decorrer na Matola, uma cidade adjacente a Maputo” (15).
AMB de 2011: “Os Conselhos de Administração da RM e da TVM são exclusivamente nomeados pelo governo. Os métodos de nomeação (…) são os mesmos que são aplicados na nomeação de Conselhos de Administração de outras empresas públicas, tais como Electricidade de Moçambique, Aeroportos de Moçambique, etc. Nesses termos, a constituição dos órgãos de gestão das empresas públicas de radiodifusão basea-se na Lei número 17/91 (Lei de Empresas Públicas), cujo artigo 10 refere que os administradores das empresas públicas são nomeados e exonerados pelo ministro de tutela, enquanto que o Presidente do Conselho de Administração é nomeado pelo Conselho de Ministros. Assim, a forma de constituição destes órgãos entra em choque com o número 5 do artigo 48 da Constituição da República, que estabelece o princípio da independência dos órgãos de comunicação social do sector público. Por essa razão, elas prestam contas não ao público, mas sim ao governo” (16).
Na verdade, não restam dúvidas de que no âmbito formal a RM e a TVM migraram do domínio estatal para o domínio público muito antes até da aprovação da Carta Africana sobre Radiodifusão (2001) e da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão em África (2002), mas, em termos materais ou reais, a situação em que operam os dois canais parece até estar a baixar do domínio estatal para o que me permito designar de domínio dominantemente partidário. 


DA “DEPENDENTE INDEPENDÊNCIA” EDITORIAL
Quanto às garantias de isenção e independência editorial da RM e TVM por parte do governo, Moçambique, conforme referimos atrás, se encontra, em termos formais, numa situação privilegiada, uma vez que essas garantias até possuem dignidade constitucional. De resto, a norma contida no número 5 do artigo 48 da Constituição da República diz que “O Estado garante a isenção dos meios de comunicação social do sector público, bem como a independência dos jornalistas perante o governo, a administração e os demais poderes políticos”.
Quando foi das manifestações de 5 de Fevereiro de 2008, o MISA e o CIP documentaram, em comunicado conjunto, a situação de excessiva dependência editorial em que operam os profissionais dos dois canais. Quanto à TVM, foi registado que “ao longo da manhã, as revoltas não foram notícia. Ao invés de informar sobre os acontecimentos, a TVM transmitia reportagens sobre o CAN. (…) No seu jornal da tarde daquela terça-feira, a TVM não dedicou um minuto sequer às manifestações, que haviam iniciado cedo pela manhã, embora alguns repórteres daquela estação pública se tivessem feito à rua com o propósito de documentar o que estava a acontecer. (…) Um veterano jornalista da TVM, hoje fora da chefia [formal] da redacção, terá recebido ‘ordens superiores’ para vigiar ‘conteúdos noticiosos subversivos’”. Quanto à RM, foi registado que “repórteres que se encontravam em vários pontos das cidades de Maputo e Matola foram obrigados, na tarde daquela terça-feira, a interromper as reportagens em directo que vinham fazendo desde as primeiras horas e instruídos a recolherem à redacção, supostamente como forma de se evitar um alegado ‘efeito dominó’ dos acontecimentos”. 
Estes e outros factos mostram que a cobertura noticiosa de acontecimentos sensíveis continua a ser alvo de controlo governamental, privando a opinião pública de ter acesso à informação. Estas marcas de censura são perniciosas para a sociedade moçambicana. No caso da TVM, “a mão do governo no controlo editorial mostra que a noção de serviço público com que a estação opera não significa colocá-la ao serviço do povo e dos contribuintes, informando com isenção e rigor. A forma como a TVM, de longe mais vergonhosa, e a RM se portaram quando foi das manifestações de 5 de Fevereiro de 2008 sugere um cada vez maior controlo governamental sobre o sector” (17). 
No âmbito desta pesquisa, entrevistámos três jornalistas seniores da RM, com o propósito de perceber como é que se escolhem as pessoas que comentam ou analisam diferentes aspectos sócio-políticos e económicos naquele canal, com o que foi-nos dito que, primeiro, o director de informação compila uma lista de nomes, depois que ouvidos alguns jornalistas influentes; seguidamente, a lista é levada ao Conselho de Administração, que se encarrega de ver ‘quem é nosso’; por fim, mas nem por isso menos importante, a lista é levada ao Secretariado do Comité Central da Frelimo, para o relevante ‘no objection’. “Nos tempos de Edson Macuácua, recebíamos a lista definitiva em menos de 48 horas, já com muitos nomes cortados. Agora, com Damião José como porta-voz, não sei como serão as coisas”, frisou um dos nossos entrevistados. 
A questão do financiamento à RM e à TVM é feita através de contratos-programa que as duas estações rubricam com o governo, concretamente com o ministro das Finanças. Do total do seu orçamento para este ano (2012), a TVM recebeu metade do governo, com a obrigação de buscar a outra metade no mercado. Quanto à RM, o que o governo deu este ano cobre 91% do salário anual, devendo, aquela firma pública, procurar o resto do financiamento no Mercado, esse que, de acordo com operadores bem posicionados, é suportado, em termos publicitários, em mais de 50% pelas empresas de telefonia móvel.
Há, na forma de financiamento da chamada radiodifusão pública em Moçambique, pelo menos dois problemas de fundo: os contratos-programa formalizam a governamentalização dos dois canais, enquanto que a sua excessiva confiança no mercado sufoca as televisões e rádios privadas e/ou comerciais, partindo do princípio de que, quem tem onde ir buscar, sempre, pelo menos o salário, pode negociar, de forma “deflacionada”, os seus espaços publicitários. 
A questão da adequacidade do mecanismo de financiamento da radiodifusão pública é uma das sub-questões do African Media Barometer. Na verdade, tanto a RM como a TVM não estão a ser adequadamante financiados, de tal forma que estejam livres de interferências. Nos moldes actuais, as duas empresas públicas de radiodifuão têm (conforme referimos atrás) aquilo a que se denomina de contrato-programa, através do qual o governo financia as suas actividades. Para além disso, a RM colecta uma taxa de radiodifusão, que é cobrada através das facturas de electricidade e do imposto automóvel. Contudo, nem este modelo tem sido cumprido com a devida regularidade, colocando as duas instituições numa situação de extrema vulnerabilidade. Ligado a isso, “os órgãos públicos de radiodifusão vêem-se obrigados a ter que funcionar como se fossem comerciais, impondo uma concorrência desleal ao sector comercial” (18). 

Os interesses domina(dos)ntes

Robert Dahl, um dos mais influentes teóricos da democracia, refere que quando um país passa de um governo não democrático para um governo democrático, os arranjos democráticos iniciais se tornam práticas e, em seu devido tempo, estas [práticas] tornam-se instituições políticas (19). 
No contexto moçambicano, atrevemo-nos a apontar a Constituição de 1990, a primeira de pendor democrático, como estando inserida no domínio de arranjos democráticos. As primeiras eleições gerais de 1994 e autárquicas de 1998 estariam, a nosso ver, ao nível de práticas democráticas. As eleições subsequentes estariam insertas no quadro do que Dahl denomina de instituições políticas. Mas será que Moçambique já pode dizer que as eleições são instituições políticas, com as desconfianças prevalecentes e a crescente instabilidade no quadro jurídico-legal aplicável às eleições?
As instituições políticas são a essência do que Dahl chama de democracia em grande escala, que pressupõe a observância de seis aspectos, designadamente governantes de topo eleitos (governadores e administradores, por exemplo); eleições regulares, livres, justas e transparentes; liberdade de expressão; acesso à informação; autonomia para as associações e liberdade política; e cidadania inclusiva. Isso, diria Joseph Stiglitz, só é possível com uma imprensa vibrante (20). 
Sem um serviço público de radiodifusão, jamais podemos falar, em termos globais, da existência de imprensa vibrante em Moçambique, tendo em conta, sobretudo, o facto de “…os telespectadores da TVM constituírem 96% do total dos telespectadores a nível nacional. Em termos territoriais, a audiência das rádios distribui-se igualmente entre as zonas rurais (45%) e as zonas rurais (55%), enquanto os poucos leitores de jornais e os telespectadores são essencialmente urbanos (69% e 95%, respectivamente)”21. O mesmo se aplica quanto à dahliana democracia em grande escala.
Considerando que não existe, no país, um regulador independente do serviço público de radiodifusão, o financiamento é politicamente programado e os gestores são precariamente nomeados, a RM e a TVM se encaixam melhor no que se denomina de radiodifusão governamental. 
Para que os dois canais se tornem verdadeiramente públicos, há, pelo menos, que:
• Criar mecanismos transparentes, sustentáveis e democráticos de financiamento, nomeadamente por via do Parlamento e de taxas geridas de forma transparente;
• Os gestores têm que ser seleccionados em concurso público e depois confirmados pelo Parlamento;
• Uma lei de radiodifusão deve ser aprovada, com a qual se deve estabelecer, por exemplo, uma entidade independente de regulação, o que, mais do que nunca, se mostra urgente, sobretudo com o processo da migração do analógico para o digital. 


* Versão editada da comunicação apresentada pelo autor na Conferência Internacional do Centro de Estudos Interdisciplinares de Comunicação (CEC), sob o lema “Comunicação Social e Desenvolvimento”, realizada em Maputo nos dias 22 e 23 de Novembro.

** Jornalista e Jurista. Mestrando em Direitos Humanos, Democracia e Governação [Universidade Federal do Pará (Brasil) e Universidade Técnica de Moçambique (UDM)]

In “Public Broadcasting: Why?
How?” (2000), da autoria do World Radio and Television Council, organismo associado ao Centro de Estudos sobre os Media, da Universidade de Laval, no Quebec, Canadá.

Os quatro são autores da obra Broadcasting, Voice and Accountability – a Public Interest Approach to Policy, Law and Regulation, publicada em 2008 pelo World Bank Institute.

Steve Buckley et al; 2008; Broadcasting, Voice and Accountability – a Public Interest Approach to Policy, Law and Regulation; Washington DC: World Bank Institute

No leque desses autores, destacam-se Buckley, Duer, Mendel e Siorchrú; a estes, juntam-se Karol Jakubowics e a World Radio and Television Council. A radiodifusão directamente controlada pelo governo é também denominada por radiodifusão estatal.

5 In  Supporting Public Service Broadcasting: Learning from Bosnia and HerzegovinaSs Experiences; 2004; New York: UNDP;s Democratic Governance Group; pág. 11.

In sPublic Broadcasting: Why? How?P; 2000; Quebec: World Radio and Television Council; pág 07.

Anthony Smith é considerado, em vários quadrantes especializados, como um dos gurus do/no estudo da radiodifusão pública.

Eis o conteúdo do artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: ;Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

9 Amartya Sen, economista indiano, ganhou, em 1998, o Prémio Nóbel da Economia, pela sua contribuição à Teoria Social da Decisão Social e do Estado do Bem-Estar Social

10 Relatório Anual de Desenvolvimento do PNUD.

11 Extraído do relatório .Supporting Public Service Broadcasting: Learning from Bosnia and HerzegovinaSs Experiences; 2004; New York: UNDP Democratic Governance Group; pág. 11.

12 In ;Moçambique: Democracia e Participação PolíticaM; 2009; Joanesburgo: AfriMAP e OSISA, pág. 64.

13 O AMB, desenvolvido e implementado pela FES e pelo MISA, é, na verdade, o primeiro exercício de análise concebido localmente sobre a situação dos media em África.

14  Relatório do AMB em Moçambique; 2011; Windhoek: FES e MISA; pág. 38

15  AMB de 2009, pág. 35.

16 AMB de 2011, pág. 41.

17  In comunicado conjunto MISA-Moçambique e CIP sobre a cobertura mediática das manifestações de 05 de Fevereiro de 2008.

18 AMB de 2009, pág. 38.

19 DAHL, Robert; 1998; Sobre a Democracia; Brasília: UNB; pág. 98.

20 In “The Right to Tell”; 2002; Washington DC: World Bank Institute.

21 In Moçambique: Democracia e Participação Política; 2009; Joanesburgo: AfriMAP e OSISA, págs.
61 e 6

In: http://www.savana.co.mz/index.php?option=com_content&view=article&id=1079

DIÁLOGO COMEÇA DIFÍCIL: NOVA RONDA NA SEGUNDA-FEIRA PRÓXIMA


DIÁLOGO COMEÇA DIFÍCIL: NOVA RONDA NA SEGUNDA-FEIRA PRÓXIMA
Encontro de trabalho entre as comissões do Governo e da Renamo

O GOVERNO e a Renamo acordaram, ontem, em Maputo, fixar para próxima segunda-feira a realização do segundo encontro entre as comissões criadas pelas duas partes, na sequência do pedido de audiência solicitada pelo partido da oposição para apresentar as suas preocupações.

O Ministro da Agricultura, José Pacheco, que chefia a comissão governamental, disse a jornalistas, à saída da primeira ronda, que o Governo registou as questões colocadas pela Renamo, mas espera que ela seja mais específica nas suas inquietações.
Segundo Pacheco, a Renamo apresentou matérias relativas à implementação do Acordo Geral de Paz que, alegadamente, não estão a ser observadas, nomeadamente na área da defesa e segurança, processos eleitorais, partidarizaçao da função pública e exclusão económica.
De acordo com aquele governante, a Renamo terá, a dado momento, sugerido a dissolução do Executivo e do Parlamento, para dar lugar à constituição de um governo de transição.
José Pacheco explicitou que tudo o que foi sendo feito no âmbito do Acordo Geral de Paz (AGP) já está inserido na Constituição da República, acrescentando, no entanto, que o Governo está aberto ao diálogo sobre as preocupações levantadas para o bem do país e dos moçambicanos, devendo, porém, serem especificadas, passando do geral ao particular.
“Recebemos em audiência, a delegação da Renamo e o Governo registou as suas preocupações. Pedimos que fossem mais precisos sobre as matérias que não estão a ser implementadas e por que instituição”, disse.
Sobre os processos eleitorais, o chefe da comissão governamental afirmou que o Governo entende que as eleições no país sempre foram livres e justas, como aliás se têm pronunciado os observadores nacionais e internacionais.
No que tange à exclusão económica, disse que qualquer cidadão moçambicano tem a liberdade de participar no processo de combate à pobreza, através do empreendedorismo. A partilha da riqueza se tem traduzido na criação de infra-estruturas sociais para benefício dos cidadãos, disse o ministro, acrescentando que o Fundo de Desenvolvimento Distrital (FDD), vulgo os sete milhões, constitui, também, um mecanismo inserido no âmbito de inclusão económica.
Quanto à partidarizacao da função pública, afirmou que a Renamo deve ser mais específica indicando em que instituição, onde isso ocorre. Explicou que o acesso à função pública é feito mediante concurso e independentemente das cores partidárias e existem dispositivos legais que estabelecem as condições para que os funcionários passem à reforma, depois de atingirem uma certa idade ou um determinado número de anos de serviço.
Pronunciando-se sobre a exigência, na circunstância feita pela Renamo, de que o próximo encontro deverá ter lugar na zona centro do país, num lugar a ser fixado pelo próprio Governo, José Pacheco lembrou que a cidade de Maputo é a capital da República de Moçambique, a sede das instituições nacionais e é onde também a sede da “perdiz” funciona.
“Não há razões para que o próximo encontro não tenha lugar em Maputo”, sublinhou, classificando, todavia, a ronda negocial de ter decorrido no ambiente de cordialidade.
Por seu turno, o chefe da comissão da Renamo, Manuel Bissopo, disse esperar que dentro de sete dias o Governo se pronuncie sobre as questões que lhe foram apresentadas, pois “já não temos muito tempo para esperar”. Ainda ontem, segundo o secretário-geral da Renamo, a comissão para o diálogo com o Executivo partiria com destino a Serra da Gorongosa, onde se encontra aquartelado o líder do partido, Afonso Dhlakama.
“Vamos voltar a Gorongosa para iniciar uma nova fase de implantação da democracia. Amamos a paz, mas também não tememos a guerra”, disse, acrescentando que foi naquele ponto de Sofala onde iniciou a guerra dos 16 anos.
Bissopo afirmou que a partir do encontro de ontem, depreende-se que o Governo não está convicto sobre a legitimidade das nossas preocupações.
Assim, a atitude que a Renamo irá tomar, segundo o seu secretário-geral, dependerá da posição que o Executivo irá tomar em relação às questões locadas.

Maputo, Terça-Feira, 4 de Dezembro de 2012:: Notícias

In: http://www.jornalnoticias.co.mz/pls/notimz2/getxml/pt/contentx/1545084

AS OPERAÇÕES MAIS PERIGOSAS DO AGENTE SECRETO DE SALAZAR


Reportava directamente ao ditador, usava identidades falsas e andava sempre com uma cápsula de cianeto. Liderou missões de alto risco, sequestros e a libertação de portugueses em África e na Índia. Jorge Jardim morreu há 30 anos.
O último aventureiro
Guerreiro, diplomata, político e empresário por vontade própria. Jorge Jardim superou a pequenez do regime do Estado Novo com acções que desafiam a imaginação humana, fazendo a sério o que o James Bond faz nos filmes. Ele foi o 007 de Salazar, retratado por José Freire Antunes ao longo de 605 páginas de Jorge Jardim Agente Secreto,  lançado pela Bertrand, no dia 3 de Abril de 2012.


Pedro Vieira
No dia 13 de Novembro de 1982, Jorge Jardim comemorou os seus 63 anos em casa de uma das filhas. A festa prolongou-se até às 6 da manhã. Poucos dias depois, regressou a Libreville, o Gabão, onde se casara em 1980, com palmira barral, antiga miss Quelimane. Mas, a 1 de Dezembro, teve uma paragem cardíaca, enquanto lia um contrato. Ao contrário do que ele sempre pedira, não foi autopsiado. O médico carlos Graça, mais tarde primeiro-ministro de São Tomé, mas na altura a viver no Gabão, disse a Freire Antunes: “Devíamos ter feito a autópsia”.
O corpo foi enbalsamado e depois transferido para Portugal. Repousa no cemitério de Queluz. Mas a família não esquece que ele gostaria de ser enterrado em Moçambique e ainda não pôs de parte a hipótese de tasladação para o Dondo, perto da beira, a terra, onde em 1952, começou a sua aventura africana.
Subsecretário de Estado do Comércio e Indústria aos 29 anos, Jardim parecia talhado para uma carreira ascencional nos meios do Salazarismo. Apesar, de no primeiro contacto com Salazar, este o ter exortado a usar chapéu - “Vá, tenha Juízo, compre um chapéu”, contou Baltasar Rebelo de Sousa a Freire Antunes - e do desgaste provocado pelo duelo com o ministro Ulisses Cortez, ele estava bem cotado junto do chefe do Governo e não lhe faltariam oportunidades no quadro do regime. Mas quando abandonou o Governo, em 1952, com quatro filhos e a mulher grávida do quinto, operou um corte radical na sua vida, aceitando um convite do empresário Raul Abecassis para dirigir a fábrica da Lusalite no Dondo, em Moçambique.
Jorge Jardim, que superara uma meningite em miúdo, que abraçou o escutismo, que chorou de raiva quando ficou livre da tropa, que, já membro do Governo, vestia a farda de bombeiro para ir combater incêndios, dificilmente caberia na estreiteza e na burocracia da vida portuguesa de 1950. Os apelos heróicos á defesa do Império vividos nos tempos de estudante de agronomia misturavam-se com as imagens grandiosas de áfrica transmitidas pelo general Baden-Powell, fundador do escutismo. Era hora de decidir.

A vertigem da acção 
As situações provocadas pelos processos de descolonização proporcionariam novos louros a a Jorge Jardim. A guerra civil no Congo Belga (hoje Zaire) afecta duramente a comunidade portuguesa naquele território. Conforme se narra no livro da Bertrand Editora, Jorge Jardim oferece-se como voluntário para participar na ponte aérea Léopoldville (Kinshasa)-Luanda. Acaba a chefiar a operação, a partir da torre de controle do aeroporto de Leopoldville, onde permanece durante três dias e três noites. Regressa a Luanda no último avião. Mas depois voltou várias vezes ao Congo, em viagens clandestinas, para resgatar portugueses e belgas. Escolhia o período crepuscular do amanhecer para aterrar. Na última vez, foi preso por soldados congoleses. Terá sido salvo do pelotão de fuzilamento por ter comovido os seus algozes com a fotografia da numerosa prole.
No início de 1961, estava metido noutra, sempre na base do voluntariado. Por altura do apresamento do Santa Maria, deslocou-se ao Brasil, saltou de cidade para cidade, e conseguiu fazer chegar informações cifradas a Lisboa, através da Companhia Nacional de Sabões, que supostamente tinha um negócio com uma empresa brasileira.
Logo a seguir, vamos encontrar Jorge Jardim, no norte de Angola, na resposta ao ataque da UPA aos fazendeiros portugueses. Mais tarde, participaria em operações militares no território. O mancebo sem físico para militar, vingava-se dessa humilhação e assumia-se como um general de campo.
Aliás, no mesmo ano, escrevia a Adriano Moreira, ministro do Ultramar, nos seguintes termos, citados por Freire Antunes: “Na hora em que vivemos prefiro, ali, cada vez mais acompanhar os militares - que aliás gostam de mim - e aparecer menos com os políticos, mesmo quando amigos pessoais.”
Mas a imaginação e a capacidade “james bondesca” de Jardim ainda não tinham atingido o seu ponto máximo. Faltava a Índia.

 Agente especial na Índia 
No final de 1961, as tropas de Nehru ocupam Goa em dois tempos e fazem prisioneiros os 4 mil militares portugueses da guarnição. Salazar tenta ganhar tempo e dar repercussão ao caso dos prisioneiros, ameaçando com a expulsão de cidadãos indianos residentes em Moçambique. Jorge Jardim concebe, então, um plano para ir à ìndia negociar a libertação dos prisioneiros portugueses, sendo recebido  ao mais alto nível pelo governo do país.
O primeiro passo, segundo a narrativa de Freire Antunes, foi uma espécie de sequestro moral de Kakoobbai, um indiano a viver em Moçambique, possuidor de grande fortuna. Enquanto ele está em Lourenço Marques, rouba-lhe documentos comprometedores, na sua casa na beira, mas consegue que Kakoobba ainda lhe fique agradecido, porque sugere que a PIDE tinha intenção de os confiscar. Por outro lado, Jorge Jardim manda montar guarda à casa onde estão a mulher e a filha do indiano, em Lisboa, dizendo de novo que era a PIDE, e faz-lhe uma proposta “irrecusável”: Kakoobba passa-lhe uma procuração sobre todos os seus bens em Moçambique e, ao mesmo tempo, abre-lhe as portas em Nova Deli. O “negócio” resultou em cheio. Em Fevereiro, Jorge Pereira Jardim partira da Suíça, munido de um passaporte com nome falso e visto da embaixada indiana naquele país, acompanhado de Kakoobbai. À chegada foi logo recebido pelo ministro dos Negócios Estrangeiros V.C. Trivedi. Das conversações resultaram medidas de confiança: a libertação de quatro indianos presos em Lisboa e de três jornalistas portugueses detidos em Goa.
Após várias viagens, a crise dos prisioneiros resolveu-se no início de Maio de 1962 com uma ponte aérea de Mormugão para Portugal. Salazar chegara a pretender que os navios levassem os indianos de Moçambique para a Índia  e trouxessem os portugueses tentando deste modo criar problemas a Nehru.
Nas suas andanças pela Índia, terá chegado a fugir, disfarçado de mulher, para não ser morto. Baltasar Rebelo de Sousa disse a Freire Antunes que Jorge Jardim esteve também na origem das bombas que rebentaram em Goa nessa altura. Houve um atentado falhado contra o governador, por a bomba posta na Câmara Municipal de Vasco da Gama ter explodido antes da hora prevista.
No dia 13 de Maio, quando o general Vassalo e Silva, o governador deposto, deixou o território, Jorge Jardim ainda entregou á enfermeira Ivone Reis, disfarçada de hospedeira francesa, um saco com documentos confidenciais. E não concedeu a vassalo e Silva a honra de ser a última pessoa a abandonar Goa. Ficou mais algum tempo no território.
Jardim trouxe para Lisboa o retrato de Afonso de Albuquerque, retirado do Palácio de Hidalcão. Adriano Moreira tinha-lhe pedido que recuperasse o de D. João de Castro. Perante a decepção do ministro do Umtramar ele voltou a Goa e conseguiu, não se sabe por que artes, trazer o quadro. Costa Gomes disse a Freire Antunes que a devolução dos referidos dois quadros “foi uma das primeiras coisas que Mário Soares fez quando se tornou Presidente da República”.

Um Salazar de preto
Acabada a aventura indiana, Jorge Jardim preparou-se para a inevitabilidade da guerrilha nacionalista chegar a Moçambique. Voltou as suas atenções para a Niassalândia, que mudaria o nome para Malawi, cujo território penetra profundamente no da ex-colónia portuguesa. Conhece, então, Pombeiro de Sousa, um português fixado em Blantyre desde 1946 que, em articulação com Jorge Jardim, irá desempenhar um papel decisivo no condicionamento da política do Malawi por Portugal. Pombeiro de Sousa, mais tarde nomeado cônsul de Portugal na capital daquele país, foi o fornecedor dos móveis da casa de Hastings Banda, médico e dirigente do Malawi Congress Party.
Apesar de alguma duplicidade do dirigente do Malawi, a política de Lisboa foi no sentido de uma aproximação. A oferta para melhorar o fornecimento de combustíveis ao país através da ligação a Nacala, constituiu a oportunidade de um contacto directo de Jorge Jardim com Banda, em meados de 1963.
Um ano mais tarde, em 6 de Julho de 1964, é proclamada a independência com a presença de uma forte delegação portuguesa. Dois meses antes, Banda fora recebido em Nacala e Nampula como se de um chefe de Estado se tratasse.
Ao mesmo tempo, Jorge Jardim e a sua mulher mobilizaram-se para os preparativos da festa da independência, ajudando nomeadamente as mulheres dos dignitários. João Barreto, piloto de Jardim, disse a Freire Antunes: “Levei em várias viagens máquinas de costura, linhas de coser e costureiras da Beira, para as mulheres se vestirem para a festa”.
Mas a ofensiva de Jardim não se limitou à costura. No mesmo ano, Boullosa (SNASP) juntou-se a Banda para formar a Oil Company of Malawi. Do mesmo passo, Jorge Jardim era nomeado cônsul do Malawi na Beira.
Ainda em 1964, Jardim que ganhara um estatuto único junto de Salazar, trouxe o seu amigo, Pombeiro de Sousa a São Bento. Pombeiro de Sousa contou a Freire Antunes esse encontro: “Falou três ou quatro vezes nos pretinhos. Eu disse, a certa altura: ‘O senhor presidente desculpe, mas olhe que há pretinhos com tanta ou mais capacidade de que os brancos’. Ele então disse, zangado:’O senhor não tem um avião para apanhar?’ Praticamente pôs-me fora da sala”. Nesse mesmo encontro Jardim instado por Salazar a explicar como era o Banda, teve uma resposta lapidar: “Tal e qual como V. Exª, mas em preto.”

Um susto para Banda
Em 25 de Setembro de 1964, a Frelimo lança as primeiras acções de guerrilha. Jardim tem o seu dispositivo de informações bem montado e colabora estreitamente com as Forças Armadas e com a PIDE. Mas mantém a habitual ousadia na frente diplomática. Convida para visitar Moçambique dois jornalistas da Pravda que conhecera nas festas de independência do Malawi. Claro que Domogatsky e Kolesnichenko eram oficiais do KGB. Talvez por isso se entenderam tão bem com o agente secreto português, ao longo de uma viagem de cinco mil quilómetros.
Só em 1965, Orlando Cristina, o caçador de elefantes que falava as línguas nativas e casava com as filhas dos régulos, se tornou um colaborador directo de Jorge Jardim. Desertara para a Frelimo, em Dar es Salaam, alegadamente numa missão de recolha de informações, mas no regresso foi preso por desconfiança em relação á autenticidade do seu comportamento. Sai da prisão quase de forma clandestina para ir dirigir o treino dos Young Pioneers. Um dia, na capital do Malawi, Jardim entra no palácio presidencial e chega à presença de Banda, sem ser interceptado por ninguém e pergunta, segundo conta Pezarat Correia, antigo comandante da Polícia da Beira:”’O senhor presidente sente-se seguro?’ Banda disse que sim. ‘Olhe que eu entrei por aqui dentro, ninguém me interceptou, se quisesse matá-lo já o tinha morto.’ Banda ficou impressionado com o golpe de teatro de Jardim e aceitou formar uma guarda pessoal”. Essa tornou-se uma das missões dos Young Pioneers dos opositores do presidente Banda. O próprio Pezarat Correia ia entregar armas ao campo de treino daquela força.

Negociações com a Frelimo
Entretanto, Jardim abre uma nova frente de relações públicas. Promove os concursos de misses, mas depois conta com elas como agentes secretas, como aconteceu com Palmira Barral, a mulher com quem casou em 1980, de pois de enviuvar de Teresa Monteiro de Sousa, mãe dos seus 12 filhos, dois dos quais, o mais velho e o mais novo, já falecidos. Com João Maria Tudela, palmira barral participou na vinda a Lisboa de Oscar Kambona, um opositor de Julius Nyerere. Esta deslocação fazia parte de uma operação mais vasta, destinada a apoiar o derrube do presidente da Tanzânia.
Em 1973, depois de tantos anos a lutar pelo Império ou por Portugal do Minho a Timor, Jorge Jardim descola pela primeira vez da articulação que mantinha em Lisboa. Ele pode perder tudo, menos Moçambique. Segundo Freire Antunes, o seu papel na divulgação do massacre de Wyriamu credita-o como um interlocutor aceitável para Kaunda. Inicia-se, então, um processo de negociações com a Frelimo através do presidente da Zâmbia, tendo como horizonte a independência. Mas Jardim chega tarde ao encontro com a história. No dia 25 de Abril de 1974 está em Lisboa. E, segundo Freire Antunes, quando pretende regressar a Moçambique, Spínola e Costa Gomes impedem a sua partida, receosos da dinâmica provocada pela sua presença. Não mais lá voltaria. Mas morreu na esperança de que esse dia havia de chegar.


O Malawi a seus pés
 Os caminhos de Costa Gomes e de Jorge Jardim que depois do 25 de Abril de 1974 ficariam em campos irredutivelmente opostos, cruzaram-se pela primeira vez em 1965, quando o futuro Presidente da República assumiu em 1965 o cargo de 2º comandante da Região Militar de Moçambique. Apesar de o entendimento não ser completo, nesse período Costa Gomes beneficiou do conhecimento do terreno e do ascendente de Jardim junto do presidente do Malawi, Hastings Kamuzu Banda. “Nunca esqueci os serviços relevantes que o Jardim prestou ao País”, disse Costa Gomes a José Freire Antunes. Banda é um das figuras centrais do capítulo nono de Jorge Jardim, Agente Secreto, intitulado Protectorado do Malawi 1968-1969, do qual publicamos alguns excertos. Com a chancela da Bertrand, o livro foi lançado  dia 3 de Abril no Centro Cultural de Belém, com apresentação de Adriano Moreira.
Os anos de 1968 e 1969 ficaram assinalados por dois acontecimentos decisivos: a subida ao poder de Marcelo Caetano e o assasssínio de Eduardo Mondlane, fundador da Frelimo. Na nova situação, Jorge Jardim continua a jogar fundo a cartada do Malawi.


 “Operação Likoma”
 As águas do lago Niassa - 500 quilómetros de comprimento e 110 quilómetros de largura no seu ponto máximo - foram divididas no século XIX, através do tratado de Portugal com a Inglaterra que se seguiu ao Ultimato de 1890. A Ilha de Likoma, habitada por ajauás-nyanjas, ficou integrada através do tratado na parte do que era a Niassalândia e viria a ser o Malawi. Em 1954, Paulo Cunha, ministro dos Negócios Estrangeiros, negociou com a Niassalândia a repartição da Ilha de Likoma com Moçambique, pela linha média das águas. A pequena ilha - oito quilómetros de comprimento por quatro de largura - pelo censo de 1966 tinha 5 000 habitantes, que viviam sobretudo da pesca. a terra era fraca, nela se produzindo milho e mandioca, “muito raquítico”. os produtos de primeira necessidade idos do Malawi a partir do porto lacustre de N’Kota Kota eram transportados de barco - espécie de “cacilheiros” pequenos - uma vez por mês. a ilha distava cerca de 40 quilómetros de N’Kota Kota e 8 quilómetros de Cobué, uma povoação moçambicana a 30 quilómetros de Matâmgula, capitania do Lago Niassa. Após o início da guerra, em 1964, Likoma tornou-se um destino de refugiados e também de elementos da Frelimo, ocorrendo um acréscimo súbito da população. A Frelimo usava a ilha como posto de vigia das lanchas da marinha portuguesa, o que preocupava tanto Banda como as autoridades de Moçambique. Era preciso agir, mas sem estardalhaço, ficando excluída a hipótese de um desembarque militar. “Muito menos sabendo nós ( o engenherio jorge Jardim e eu [Jorge Calrão]), que havia dois elementos do Peace Corps . Normalmente ligados á CIA - na ilha e que de vez em quando também apareciam, para visitas rotineiras, alguns ingleses ligados aos quadros da polícia do Malawi (esta polícia era enquadrada por ingleses).” O objectivo de J.J. foi “limpar” Likoma de guerrilheiros da Frelimo e para isso obteve luz verde de Banda. Com o seu piloto Calrão planeou então um two-men operation na ilha.
Sabiam, através de voos de reconhecimento, que existia em Likoma uma pista de aterragem, térrea e mal conservada, com cerca de 500 metros, que permitia a aterragem do Cessna 401. Prevendo anomalias na aterragem ou um ataque da Frelimo, levavam na bagageira do avião uma mini-mota eléctrica desmontável. J.J. pensou arrebatar os habitantes com ofertas e Calrão foi a Salisbury comprar 100 quilos de rebuçados, 50 quilos de bombons, pipocas, 20 rádios a pilhas, 200 cpas de pescador, 50 caixas de cerveja, coca-cola em lata, saquetas de arroz, feijão e grão, embalagens de sabão, caixas de primeiros socorros, agulhas, linhas, tesouras e uma enorme quantidade de capulanas, tecidos estampados com motivos de África. a etapa seguinte do Cessna 401 foi Vila Cabral, onde J.J. cumprimentou o governador distrital, coronel Nuno Melo Egídio. Enquanto Calrão adquiria garrafões de vinho normal, J.J. foi pedir ao bispo de Vila Cabral, D. Eurico de Nogueira, garrafas de vinho de missa, especialmente engarrafado por ele para oferecer ao velho padre anglicano M’zeca: “Só na altura soube, que ao dizerem a missa, os anglicanos também usam vinho. Levámos, pois, uma caixa desse vinho especial, ecuménica e gentilmente oferecida pelo bispo. Mais um pormenor que só ao Jorge Jardim lembraria” [Jorge Calrão]. Assim, carregados dirigiram-se para Metângula, onde pernoitaram, e na manhã seguinte aterraram normalmente em Likoma. J.J. pegou na mini-mota, em estilo espectaculoso, e abalou em direcção ao povoado para se encontrar com o padre M’zeca.
Enquanto isto, junto ao avião, e sem mãos a medir, Calrão começou a distribuir os presentes aos àvidos habitantes, sobretudo crianças. Algum tempo depois surgiram o padre M’zeca e J.J. que o convidou a entrar no avião e deu-lhe o vinho especial do bispo de Vila Cabral: “Ficou cheio de alegria e desfazia-se em agradecimentos. Foi-nos contando quais as dificuldades por que passavam os habitantes da ilha, que nós já conhecíamos pelo próprio dr. Banda” [Calrão]. O padre chamou alguns homens para ajudarem a descarregar o avião e a transportar tudo para a Casa central (caso do chefe). Os autóctones perceberam que tudo o que vinha a bordo era para eles e irromperam “em gritos de alegria e vivas”. M’zeca convidou-os depois para uma visita à ilha. Como o sacerdote usasse uns óculos velhos, colados com adesivo, ofereceram-se para o levar à beira, a uma consulta médica. a multidão despediu-se com uma sonora alegria, como se os dois doadores tivessem descido do céu: “E assim, numa acção baratíssima, conquistámos as boas graças da ilha de Likoma, que tantas preocupações vinha dando a tantos portugueses responsáveis e que já propunham até um desembarque de tropas numa acção (como vimos desnecessária) de força” [Calrão]. Foi a estratégia de conquista das bocas e dos corações que J.J. passou a usar, com sucesso na Ilha de Likoma.

Caetano no poder
Manuel Nazaré, um negro nascido em Quelimane, foi médico de análises clínicas de Salazar durante mais de 20 anos. Dedicou-se à sua carreira profissional, sem grandes entregas à política mas ainda assim serviu como deputado á Assembleia Nacional. Diz que Salazar pensou nele, em 1968, para governador de Moçambique e chegaram a falar em privado sobre essa hipótese. Ante a insistência de Salazar, Manuel Nazaré pôs como condição despachar directamente com ele, única maneira de resolver os problemas de Moçambique; o Presidente do Conselho disse que não podia ser, que não se podia passar por cima do ministro do Ultramar, Silva Cunha. manuel Nazaré sugeriu-lhe então J.J., de quem era amigo e que tratava por tu, mas Salazar argumentou:”Sabe, o Jorge Jardim seria um bom nome, simplesmente hoje está metido na indústria, já não tem o beneplácito das populações.” Salazar adiantou então o nome de Baltasar rebelo de Sousa, que tinha sido aluno de Manuel Nazaré na Faculdade de Medicina. davam-se bem. À noite, encontrou-o por acaso na ópera e revelou-lhe que ele ia ser governador de Moçambique: “Ele disse: ‘Você está maluco’ Ficou completamente tonto.” Mas no dia seguinte Salazar chamou Rebelo de Sousa e convidou-o. O velho amigo de J.J. tomou posse como governador em 27 de Julho de 1968. Consumava-se, enfim, o velho projecto de estarem os dois ao mesmo tempo em África.
Augusto dos Santos continuou como comandante-chefe e Costa Gomes como comandante da região Militar, e a articulação deles com o governador foi boa. Formalmente, a posição de J.J. ficou mais forte com Rebelo de Sousa na Ponta Vermelha, mas a amizade entre os dois vinha perturbar, de certo modo, o estilo e a vocação autónomas de J.J. nas suas deambulações. Rebelo de Sousa reagiu em 1976 ao livro de memórias de J.J., esclarecendo que, durante o seu mandato de governador, “nunca Jorge Jardim dispôs de serviços especiais de informação nem de grupos especiais de intervenção nem de facilidades que não fossem as de qualquer cidadão qualificado ou as que resultassem da representação consular do Malawi que detinha”.(...)
Com o afastamento de Salazar em 1968, começava uma nova fase na vida de J.J., o multifacetado gestor de empresas, “correio do Czar”, cônsul do Malawi, agente secreto, e guerrilheiro, frequentador de São bento e da State House, amigos de ricos e padrinho de pobres. Entre 1952 e 1968, sob a protecção de Salazar, adquirira um estatuto especial no Estado Novo e um poder considerável sobra a política, a economia, a sociedade e a estratégia de contra-subversão em Moçambique. Chefiava pelotões de combate no mato com o mesmo ritmo frenético com que conspirava nos salões da diplomacia ou entrava na Ponta Vermelha, movia-se entre as capitais de África e as capitais da Europa com a auréola de um poderoso na sombra e de um manobrador oculto. Tudo isto, mais o que sobre ele se imaginava, tornavam J.J. diz Hall Themido, “um agente do Governo”, de Salazar e de Franco Nogueira, um embaixador sem ser nomeado”. Funcionava como ponte para vários serviços secretos, favoráveis ou hostis a Portugal, da rodesiana CIO ao sul-africano BOSS, da americana CIA ao inglês MI-6 e, sobretudo, o francês Service de Documentation Extérieure et de Contre-Espionage (SDECE). Era um especialista em informação e contra-informação, um manipulador obedecido e o chefe de uma rede autónoma de peões e de apóstolos que o seguiam incondicionalmente, um impulsionador ardiloso. Articulava operações em África com a PIDE mas mantinha zonas de impenetrabilidade em relação á polícia e, por vezes, criava atritos. Álvaro Pereira de Carvalho, director dos serviços de Informações da PIDE, via J.J. como “um especialista ao alto nível no mundo da diplomacia”. Mas desde o verão de 1952, quando abalou para o Dondo, a sua proximidade meio filial a Caetano tinha sido substituída por uma distanciação humana e política e pela inserção num novo círculo de cumplicidade.(...)

Gestão do saco “azul”

Um ritual prático explicado por J.J. a Caetano durante os encontros iniciáticos em que se fixaram as normas funcionais, era o financiamento das operações secretas. Acertou-se um aumento das verbas atribuídas pelo Estado. Em 10 de Fevereiro, J.J. acusava a recepção: “Entretanto já me chegou o anúncio do esforço dos meios financeiros, dentro do plano estabelecido e já lhes fiz dar o seguimento habitual.” As verbas incluíam-se no Orçamento das Forças Militares Extraordinárias do Ultramar (OFMEU), um orçamento especial para as actividades das forças irregulares e das tropas especiais em África. O dinheiro era enviado através do serviço de Administração e Finanças, chefiado por Vicente Varela Soares, e depositado em contas pessoais de J.J., pedia a Caetano uma aceleração: “ Até ao momento ainda não tive notícia do solicitado depósito na minha conta, no Lisboa & Açores, dos meios normalmente atribuídos (1 500) e de acordo com o combinado no nosso último encontro em Lisboa. Muito agradeceria o favor das suas instruções em tal sentido.” Depreende-se que os depósitos não eram automáticos e que, por vezes, dependiam da luz verde de Caetano e dos seus ministros. Costa Gomes diz que J.J. recebia verbas dos ministérios da Defesa Nacional e do Ultramar, e do Governo-Geral de Moçambique: “Jardim tinha um orçamento de Estado para as Forças Armadas. Eram verbas especiais, de que não dava conta a ninguém, e de que não há escrita.” Para a Operação Malawi, com a abreviatura MW, J.J. recebeu entre Outubro de 1966 e Fevereiro de 1974, a quantia de 57 625 000$00, distribuída por verbas anuais que variaram entre 1 000 000$00 (em 1966) e 11 500 000$00 (em 1973). Para a Operação Oscar Kambona, com a abreviatura OK, o Governo atribuiu a J.J., entre 1971 e 1974, a quantia de 42 400 000$00. O total eleva-se a 100 025 000$00. Deve concluir-se que havia consenso no Governo quanto á utilidade das verbas que o Estado canalizava para J.J. e que eram geridas só por ele.

Um dos homens encarregados de encaminhar os dinheiros para J.J. era o tenente-coronel José Florêncio de Almeida, chefe dos serviços administrativos do Ministério da Defesa Nacional. Arnaud Pombeiro (membro dos SEII, na Beira) diz que J.J. guardava os recibos todos, fazia uma contabilidade expedita e apresentava-a em Lisboa: “Quando era despesas maiores , pedia autorização para as fazer. para as mais pequenas, ia ter com o actual coronel Florêncio de Almeida”. Álvaro Récio, já definitivamente conquistado por J.J., foi durante 13 anos um dos seus homens de maior confiança. J.J. fez-lhe teste de eficácia em situações difíceis , teve-o na Beira, ao seu serviço, entre 1961 e 1964 e depois enviou-o para Lourenço Marques, onde chefiava a delegação da Lusalite. Récio foi penetrando no apaixonante e perigoso mundo de J.J., onde se cruzavam o expediente do comércio e as missões escaldantes da política de guerra, e ficou subordinado: “Vivia aterrorizado com o que pudesse acontecer e o jardim tinha-me na mão. Era um homem superior, extraordinariamente vaidoso. Mas para mim a verdade era para se dizer. Ele fazia-me uma pergunta ou punha-me um problema e eu dizia a verdade. a maior parte das vezes o jardim zangava-se comigo, mas zangava-se de forma paternal.” J.J. atribuiu também a Récio a função de guardador e distribuidor de dinheiros: o “saco azul”  passava, em parte pelas suas mãos. A sua primeira experiência foi aterradora. Teve de ir buscar cash ao gabinete do governador, e levou os seus dois irmãos, armados de caçadeiras, trazendo duas malas cheias de dinheiro: “A única preocupação do governador era tirar as tiras que diziam de onde é que vinha o dinheiro: do Banco de Fomento, do BNU, de muitos sítios. Vinha também em notas estrangeiras.” Não havia contas nos bancos para este esforço de guerra das empresas de uma economia estatizada, o dinheiro circulava no género “saco azul, mala preta”, e os gerentes bancários sabiam de onde provinha o dinheiro para J.J., mas não diziam.
Militares como Costa Gomes, Rosa Coutinho e Pezarat Correia falaram muito nos fundos de J.J. oriundos dos cofres do estado, uma matéria delicada, mas ninguém até agora o acusou de ter feito fortuna graças a esses dinheiros públicos ou de ter usado a sua disponibilidade financeira para fins que não fossem os da causa do regime em áfrica. As operações mais sensíveis e mais dispendiosas que J.J. levou a cabo tiveram sempre cobertura de S. Bento ou dos ministérios. Por outro lado, ao nível dos negócios empresariais, J.J. fazia movimentar verbas avultadas: “Claro que fui um homem que ganhou muito dinheiro. Devo dizer que o ganhei sempre em empresas privadas. Nunca á mesa do orçamento.” Entre o temor e o deslumbre da importância de certas acções secretas de J.J., por mais sórdidas que lhe parecessem, Récio aprendia com o mestre as duras manobras da guerra africana: “Devo dizer que paguei durante dois anos a uma amante do Nkrumah que nos dava informações. Era uma mulher da África inglesa, era negra clara. Hospedava-se no Hotel Polana.” Para todos estes pequenos, mas às vezes vitais, circuitos da espionagem era necessário dinheiro, muito dele provinha do Estado e das empresas e uma parte, segundo afirma Récio, era canalizada para conspícuos destinos: “Cheguei a pagar a generais que depois apareceram ligados ao partido Comunista na fase de 1974-75.” J.J. organizou também uma estrutura de informações, chamada na gíria “mini-CIA”, que disseminava a sua actividade por vários países da África Negra. A sede da “mini-CIA” não dava nas vistas, era um pequeno escritório na Beira, em frente aos SEII (Serviços de Informação).

Livro-bomba: Mondlane morto
Sete meses depois da reabertura da frente de Tete, com a ajuda directa de tropas de Kaunda, a dissidência de Lázaro Kavandame, um líder Makonde, continuou a desagregar a Frelimo em clãs de natureza política e tribal. Filipe Magaya, primeiro comandante, foi assassinado. Devido ao facto de ter trazido brancos para as fileiras, Mondlane era criticaado e a influência da sua mulher, Janet Rae não era bem vista. Em Dezembro de 1968, junto a Rovuma, segundo reza a história oficiosa da Frelimo, a guerrilha makonde de Kavandame liquidou Samuel Kankhomba, membro do estado-maior de Machel. A direcção executiva da Frelimo, reunida em 3 de Janeiro de 1969, expulsou Kavandame, sendo a decisão comunicada ao líder makonde numa carta de Mondlane. No início de 1969, como notava Rebelo de Sousa a partir da Ponta vermelha, a guerrilha passava por um refluxo a que não seriam alheias as profundas dissensões internas: “O terrorismo tem estado quieto. Esperemos que por todo o mês de Fevereiro volte a aparecer com alguma intensidade. Como temos falta de tropa, só com material conseguiremos evitar desastres. Mas o material nunca mais chega.” O ambiente dentro da Frelimo ficou de cortar à faca. Foi neste quadro que morreu Mondlane, o pai fundador da organização e se ideólogo cimeiro. Miguel Murupa diz que nunca esquecerá o dia 3 de Fevereiro de 1969. Era então vice-secretário da Frelimo para as relações exteriores e funcionava nos escritórios de Dar-es-Salam, um rés-do-chão espaçoso, num edifício frente á linha de caminho-de-ferro. Aí mantinha a Frelimo a base para questões administrativas e financeiras, sendo que os serviços operacionais se encontravam em Nashingwea, onde estavam o vice-presidente, Uria Simango, e o chefe militar, Machel. Um mês antes, Miguel Murupa tinha acompanhado Mondlane ao Egipto e ao Sudão, onde participaram em conferências. Murupa sentia-se mais próximo de Uria Simango; mas não tem dúvidas em afirmar sa superioridade intelectual de Mondlane e em dizer que, com ele vivo, Moçambique seria hoje um país diferente.
Uma primeira circunstância estranha, a não ser por autoconfiança ou amadorismo, é que o presidente da Frelimo manuseava o correio que lhe era dirigido, incluindo encomendas. Assim fez Mondlane nesse dia. apareceu no escritório, por volta das nove da manhã, reuniu com  alguns dos presentes, e uma hora depois saiu, levando a correspondência como era seu hábito. O líder da Frelimo preferia trabalhar em casa da secretária, Betty King, uma branca americana, num arredor discreto de Dar-es-Salam. Entre o correio empilhado e dirigido a Mondlane contavam-se vários embrulhos com livros. Um deles chamou a atenção de Miguel Murupa porque, sendo uma encomenda de aspecto normal, com uma fita em volta, tinha no exterior a inscrição em inglês “Manual de Filosofia Marxista” (outra versão aponta para um encomenda com selo de Moscovo, contendo uma edição de textos de George Plekhanov). Fosse como fosse, Mondlane agarrou na pilha de correspondência, despediu-se com a sua jovialidade característica, e foi-se embora para não mais voltar.: “Por volta das 11 horas, apareceu o Chissano a chorar. Mondlane morreu ao abrir o livro. A explosão decepou-lhe as mãos e separou-lhe o tronco em duas partes.” Joaquim Chissano, futuro presidente de moçambique, era o responsável pela segurança da Frelimo. A polícia tanzaniana isolou a residência de Betty King e, segundo Murupa, apenas Nyerere e Marcelino dos Santos viram o cadáver de Mondlane no meio dos destroços provocados pelo livro-bomba. Nyerere promoveu um funeral de Estado a Mondlane com honras militares, no cemitério de Kinondini, em Dar-Es-Salam. Uria Simango, o vice-presidente assumiu formalmente o poder até á reunião seguinte do comité central. A morte do pai histórico da Frelimo foi o acontecimento capital da guerra em Moçambique no ano de 1969 e teve profundas consequências para o futuro do território.
Os autores do assassinato permaneceram envoltos em mistério, excepto para quem tem certezas adquiridas. Costa Gomes, um bom conhecedor dos mecanismos da PIDE, que o distinguiu com o seu Crachat d’Ouro, é definitivo: “Quem matou o Mondlane foi a PIDE.” No sentido oposto, aponta Silva Cunha, ministro do Ultramar, a quem interessava mais ter Mondlane á frente da Frelimo, por ser um homem moderado, do que Machel, que era “de um nível cultural mais baixo e mais rancoroso contra nós”. Silva Cunha observa que o mais curioso é que os selos da Rússia, supostamente apostos na encomenda letal, não estavam carimbados. Mas o antigo ministro não se pronuncia sobre quem cometeria o crime. Álvaro Corte-real, presidente da Associação Africana, a quem Mondlane fizera chegar, sem resultado, mensagens de aliciamento, é um outro homem sem dúvidas: “Por amor de Deus, toda a gente sabe que foi uma facção da Frelimo que matou Mondlane.” Outra pessoa muito segura  quanto á origem do crime, segundo J.J., foi Banda. Em 6 de Fevereiro , três dias após a morte de Mondlane, o líder do Malawi previu um endurecimento da Frelimo e atribuiu a morte “às manobras dos agentes da China”. Um antigo operacional da CIO rodesiana, Henrik Ellert, afirma que o goês Casimiro Jordão Monteiro, inspector da PIDE dado como responsável pela morte de Delgado, foi quem armou a cilada. Pombeiro de Sousa tem uma ideia diferente. Pensa que a operação foi demasiado bem montada para ser obra da polícia portuguesa: “A PIDE não fazia nada de jeito.” António Vaz nega o envolvimento da PIDE. porquê matar Mondlane, se ele era, para a política de Portugal, “o líder menos mau?”. Miguel Murupa põe a hipótese de intervenção de potências como uma indetectável capacidade operacional: “Só pode suspeitar-se de serviços secretos altamente sofisticados. Mas a minha pergunta é esta: porque é que Nyerere nunca publicou o relatório sobre o assassinato?” O mistério subsiste, 27 anos depois.
Também J.J. foi visado como co-autor da morte de Mondlane. segundo o Servizio Informazione Difesa (SDI), a espionagem italiana, a operação teria sido preparada por uma rede envolvendo J.J., Simango, Robert Leroy, a Aginter-Presse, organização transeuropeia de direita com sede em Lisboa, na Lapa, e ligações aos ministérios da defesa e dos negócios Estrangeiros. Como espião em Dar-es-Salam teria agido Robert Leroy e por detrás da acção teria estado Casimiro Monteiro. Numa versão que deu da sua condecoração por outros chefes da Frelimo, Simango terá contado que, após a morte de Mondlane, em reuniões em casa de Janet Rae, na Baía das Ostras, Machel, Joaquim Chissano, Marcelino dos Santos, Armando Guebuza, Aurélio Manave e Josina Abiatar Muthemba deliberaram que o vice-presidente e três outros militantes, Silvério Nungu, Maiano Masinye e Samuel Dhlakama, eram responsáveis e deveriam ser eliminados. A hipótese da cumplicidade de Simango é rejeitada por Miguel Murupa. Sendo um padre protestante, muito devoto, Simango não contemplaria o assassinato entre os critérios de acção, apesar das suas divergências com Mondlane. O chefe dos serviços secretos da Tanzânia, geoffrey Sawaya, concluiu que fora usado no livro-bomba material explosivo da casa Pfaff, em Lourenço Marques (Rua Joaquim Lapa, nº 5), e que a PIDE teria sido ajudada dentro da Frelimo por Lázaro Kavandame e Silvério Nungu, secretário administrativo no quartel-general de Dar-es-Salam, que morreu durante uma greve de fome. O chefe da delegação da PIDE na beira, inspector Gomes Lopes, íntimo de J.J., disse a um repórter americano que “ou os russos planearam os assassinatos, ou tratou-se de uma engenhosa armadilha montada pelos chineses”. J.J. negou durante anos a fio a sua ligação á morte de Mondlane. Disse que sentiu a maior pena e que, quando o crime ocorreu, Banda estava até a combinar um encontro entre ele, J.J. e Mondlane, só não tendo feito mais cedo “por duvidar da minha preparação para isso”. A Frelimo nunca levou até ao fim o inquérito á morte do seu pai histórico.(...)

Ordens a Sebastião Mabote
J.J. com a colaboração dos Young Pioneers, interceptou no Malawi correspondência enviada da Tanzânia por Sebastião Mabote, o chefe da secção operacional da Frelimo, para a base de Catur, dentro de Moçambique. A carta continha instruções operacionais, foi expedida da Tanzânia e levantada  no Limbe e, dado o seu interesse. “apressei-me a fornecer a fotocópia á PIDE, na beira”. Continuava a firmar, em abril de 1969, baseado nos seus serviços de vigilância, que a Frelimo não preparava actos armados dentro do Malawi nem tinha no território “qualquer actividade”. Mas em 10 de Maio, Augusto dos santos informou J.J. da existência de actividades da Frelimo na zona do Chala-Catur, com movimentos junto á fronteira e possível refúgio no Malawi. Combinou-se com Banda que as tropas portuguesas poderiam perseguir elementos que se refugiassem no Malawi, “mesmo que para tanto tivessem de penetrar em território daquele país”. J.J. soube que partidários de Henry Chipembere, o rival de Banda, estavam activos na zona de Makangila, onde houve assaltos a povoações, cantinas e viaturas, com armas idênticas ás usadas pela Frelimo. Detectaram-se quatro indivíduos, chefiados por um tal Canadá, mas não foram detidos devido “à protecção que recebem da população da área”. De posse da informação de que o posto português de Namizalo seria atacado, na noite de 14 de Maio, por elementos idos da Zâmbia, alertou Rebelo de Sousa pelo telefone e fez o mesmo a Vasco Futscher Pereira, que passou a informação aos militares da Beira: “O ataque veio a verificar-se na noite de 15 para 16, mas a nossa guarnição estava alertada. Ignoro detalhes.” Estava a fixar-se, segundo J.J., um esquema que visava limitar as consequências das múltiplas informações fantasiosas sobre a actividade subversiva proveniente do Malawi”. Por exemplo, o padre nacionalista Mateus Gwengere não estava no Malawi, segundo J.J., mas na Zâmbia. Os boatos davam como certos a sua presença no Malawi e um seu encontro com Banda. O que este negava.
A assistência da marinha de Portugal à “Marinha” do Malawi para fiscalização do lago Niassa era uma outra faceta da cooperação bilateral e mais uma aplicação dos entusiastas de juventude de J.J. como piloto naval e “marinheiro” da Legião Portuguesa. O tenente Manuel Agrellos, da reserva Navalk, comandava a lancha John Chilembwe, tripulada por Young Pionners treinados em Metangula. Notavam-se apenas deficiências em Nkata-Bay, devido á inexperiência do Malawi em tudo o que fosse actividade náutica, e ao facto os Young Pioneers viverem num “ambiente de rusticidade”. Alguns europeus residentes no Malawi consideravam a lancha uma unidade da Marinha portuguesa sob bandeira do Malawi, mas a actuação de Manuel Agrellos permitiu ultrapassar as dificuldades, e John Chilembwe controlava todas as embarcações do Malawi que se movimentavam no Lago Niassa. Banda pediu a J.J., em 31 de Janeiro de 1969, que os conselheiros portugueses ficassem por mais um ano, até estar seguro da capacidade dos tripulantes do Malawi que eram treinados em Metangula.(...)
O incremento de contactos sociais foi outra preocupação do cônsul do Malawi, que aproveitou o casamento de uma filha sua, na beira, para promover amizades políticas. rebelo de Sousa conheceu então Cecília Kadzamira, primeira dama do Malawi, que dispunha no país, segundo J.J., “de muito considerável influência”. O governador e a mulher convidaram-na a visitar Moçambique e Banda concordou, mas disse que gostaria de receber primeiro a visita no Malawi da esposa de Rebelo de Sousa. Banda queria que a visita coincidisse  com o Kamuzu Day, a festa do seu próprio aniversário natalício, e que J.J. e a sua mulher o acompanhassem. Convidou também o governador de Tete, coronel Cecílio Gonçalves, para a festa da independência do Malawi, em Julho J.J. achava que isso teria interesse dentro da estratégia de estreitamento das relações com o Malawi. Maria das Neves rebelo de Sousa esteve no Malawi entre 12 e 17 de Maio (1969). Banda distingui-a entre os convidados de diversas nacionalidades, e ela estabeleceu, segundo J.J. relações da maior cordialidade com Banda e “de intimidade com Miss Cecília Kadzamira, cuja importância na vida política do Malawi é conhecida”. A presença de um dos filhos de Rebelo de Sousa, pedro Miguel, então com 14 anos, contribuiu para reforçar os laços pessoais, devido até ao desembaraço juvenil e simpatia com que se comportou”. Nas cerimónias do Kamuzu Day esteve uma missão diplomática portuguesa, chefiado por Caldeira Coelho, que tinha ido ao Malawi negociar assuntos na área dos transportes. Outra visitante distinguida por Banda foi a filha do presidente do Quénia, Jomo Kenyata, que era vereadora do município de Nairobi, e que J.J. convidou a visitar Moçambique.
Vasco Futscher Pereira (ministro dos Negócios Estrangeiros em 1982 e 1983, já falecido), embaixador no Malawi, convalescia de um acidente. Mas ofereceu em honra de Maria das Neves Rebelo de Sousa uma recepção concorrida e reveladora que aquele nosso representante diplomático, vai obtendo”. Desenvolvia-se, entretanto, uma outra fonte de entendimento: no início do ano tinham sido presos no Malawi dois membros da Frelimo, Manuel Silika e Aisa Alifa, condenados em tribunal por serem portadores de armas. Estravam a cumprir pena após a qual serial libertados e devolvidos à Tanzânia. J.J. tinha uma alternativa: “Foram-me fornecidos os elementos relativos a estes elementos e sugerido que, caso isso interessasse às nossas autoridades, se poderia promover uma manobra de fuga com vinda para Moçambique. Consultei a PIDE que se mostrou interessada nestes elementos. Nos primeiros dias de Junho vai proceder-se a tal operação.” No ar, na água  no mato, no palácio de Banda, no Dondo, nos casamentos: era o J.J. total e sideral. A articulação com o Malawi passava agora por uma fase dourada. Silva Cunha, lembra que em 1969, quando Banda foi visitar oficialmente os Estados Unidos, pediu a Portugal que montasse junto á fronteira um dispositivo militar para intervir contra eventuais opositores que o quisessem derrubar. O que foi feito. Em ligação a J.J. Augusto dos Santos, ordenou a um coronel em Nampula que pusesse em stand by várias companhias. O Malawi era assim, e por uma panóplia de dependências, uma espécie de protectorado de Portugal.
In: https://sites.google.com/site/pequenashistorietas/personalidades/jorge-jardim

Veja também aqui Download Visao448_jorgejardim