GRANDE ENTREVISTA COM O PROFESSOR DOUTOR
JOÃO MOSCA
ESTABILIDADE ECONÓMICA DE MOÇAMBIQUE É
FALSA
“A nossa economia vive acima das suas
capacidades”
“Doadores querem fazer propaganda com o
falso sucesso de Moçambique”
“Os corruptos não investem esse
dinheiro no sector produtivo.”
“O Estado não pode ser da Frelimo. A
Frelimo não é o povo, o povo não é a Frelimo.”
“A produção em Moçambique era melhor
nos anos da guerra.”
“11 ministros da agricultura em 32 anos
revela instabilidade.”
“Só se lembram do povo quando há
eleições”
“Não há nada que nos possa garantir que
não haverá mais revoltas populares.”
“A elite não está interessada em sair
da dependência, porque beneficia com isso”
“Recursos naturais beneficiam a
minorias”
Governantes viajam na classe executiva,
doadores viajam na classe económica.
Entrevista conduzida por Borges
Nhamirre
Maputo (Canalmoz) - É dos mais activos académicos
moçambicanos, em termos de produção científica. Economista de grande gabarito
nacional, docente universitário, Professor Doutor em Ciências Agrárias, João
Mosca. Foi com este reputado académico moçambicano que o Canal de Moçambique
dialogou sobre diversos assuntos da vida do país, mas com principal enfoque na
economia.
Mosca responde a todas as questões que lhes são
colocadas. Aliás, não escassas vezes, tivemos que interrompê-lo durante a
explanação para colocarmos outras questões.
De mais de duas horas de conversa, transcrevemos aqui o
essencial da entrevista.
“Estabilidade económica de Moçambique é
fictícia”
Canalmoz/Canal de Moçambique (Canal):
Li numa entrevista sua à Lusa, onde diz que “a situação económica em Moçambique
é crítica. O Governo está assente sobre uma suposta estabilidade económica”.
Pode explicar melhor?
Professor Dr. João Mosca (Mosca) - Eu digo que
a situação em que o país vive é uma estabilidade fictícia, não diria nos
últimos três anos, mas há bastantes anos, talvez há 10 anos. A fundamentação
disto não é muito difícil, na medida em que temos vários indicadores de
economia.
O nosso Orçamento do Estado é subsidiado em 50% por
recursos externos doados ou da ajuda externa. E se formos a entrar no
orçamento, veremos que em alguns casos dentro do orçamento público e sobretudo
na área do investimento público, há onde mais de 80% do investimento é de
recursos externos. Isso significa que grande parte da intervenção pública do
Estado, no investimento, e também no suporte de funcionamento do Estado, vem de
recursos que não são criados dentro do país, em Moçambique. Isso significa que
o Estado está direccionado à capacidade de gerir os recursos e não de gerar
estes recursos.
Outro aspecto importante é que a nossa economia tem um
nível de riqueza muito baixo, e, portanto, tem a capacidade de poupança também
muito baixa. Isto significa que a capacidade de investimento interno é muito
limitada. Quer dizer que grande parte do investimento na economia, possivelmente
cerca de 80%, em alguns sectores mais, é Investimento Directo Estrangeiro. E
dos 20% que se consideram investimento moçambicano, eventualmente algum dele
não está realizado. As pessoas só estão lá como sócios, não realizando capitais
correspondentes aos 20% que o país dispõe como investimento nacional.
Isso significa que o país, os agentes económicos, o
sector privado, em Moçambique, é extremamente débil e sem capacidade de
recursos para fazer investimentos avultados na economia.
Por outro lado, sabemos que uma parte importante do
défice na nossa balança de pagamentos é financiada por recursos externos,
inclusivamente muito recentemente o mercado interno de capital de divisas foi
financiado por recursos externos.
“A nossa economia vive acima das suas
capacidades”
Então, o que isso quer dizer? Quer dizer que a nossa
economia vive acima das suas capacidades. O nível de consumo que tem a nossa
economia, apesar de baixo, o nível das actividades do nosso Estado, apesar de
baixo, está muito além da riqueza criada em Moçambique. Logo, tudo aquilo que
pensamos que existe, os tais equilíbrios da balança de pagamentos, o equilíbrio
do Orçamento do Estado, alguns investimentos existentes, algum controlo de
inflação, tudo isso é possível, não pela riqueza, nem pelo funcionamento e
equilíbrios internos, do mercado interno, não são resultantes da produção
nacional, são resultados de recursos externos.
Então pode-se admitir que os tais equilíbrios que se
referem estatisticamente são equilíbrios fictícios, na medida em que não
reflectem a verdade económica e social de Moçambique, mas sim reflectem
recursos externos que estão a ser injectados.
Por isso, eu disse isso e reafirmo. E não sou só eu que
digo, vários economistas o dizem. A nossa economia é uma economia cujos
chamados equilíbrios macroeconómicos são financiados por recursos externos. Mas
também o nosso crescimento económico é muito financiado por estes recursos
estrangeiros dos grandes projectos.
Mais: a produtividade da economia não tem aumentando, o
que significa que os aumentos da produção, o aumento da riqueza, o crescimento
do PIB não são fundamentalmente uma consequência do aumento da produtividade ou
de eficiência económica, mas, sim, é resultado de aumento de novas capacidade
produtivas, portanto faz sentido essa afirmação.
Canal: Toda essa conjuntura de fraca
produtividade, baixo investimento nacional e consequentemente todo este
complexo de dependência externa, tem encontrado explicação na guerra que
destruiu todo o tecido económico e social do país… portanto, não faz sentido
que Moçambique esteja nessa situação em que se encontra actualmente?
Mosca: A guerra é,
com certeza, um grande factor. A guerra desestabilizou, desestruturou a
economia, destruiu as infra-estruturas, teve efeitos humanos muito sérios,
criou efeitos psicológicos de longo prazo, tudo isso é verdade. No entanto, há
também problemas de política económica nacional, concretamente, desajustados.
A nossa política económica é assente no pressuposto de
que vai haver ajuda externa. A nossa política económica não é feita com base no
aproveitamento das nossas capacidades, no sentido de que vai haver um
desenvolvimento económico mais endógeno, contando com recursos disponíveis, e,
portanto, mais sustentável a longo prazo, menos dependente do exterior.
Naturalmente que isso teria provocado um crescimento
económico mais lento, mas isso não era negativo. Assegurar menor
desenvolvimento económico, desde que isso implica uma melhor distribuição de
recursos; desde que o desenvolvimento seja mais endógeno, desde que as questões
sócias sejam mais atendidas, desde que os desequilíbrios de desenvolvimento do
território não sejam tão violentos como são neste momento.
Era preferível que o desenvolvimento mais endógeno
significasse menos crescimento económico, mas mais equidade, mais
sustentabilidade, mais endogeneização da economia, pois penso que há um custo
que deve valer a pena ter.
Mas, por outro lado, as próprias instituições
internacionais que mais financiam Moçambique, como o Fundo Monetário
Internacional, Banco Mundial e alguns países, têm interesses em demonstrar ao
mundo que existem casos de sucesso no âmbito das políticas económicas que eles
sugerem, na verdade que eles impõem.
“Doadores querem fazer propaganda com o
falso sucesso de Moçambique”
Canal: Está a dizer implicitamente que
os doadores querem tomar Moçambique como exemplo de sucesso das suas políticas?
Mosca: Pois. Eles
querem tomar como exemplo. Eles têm a necessidade de demonstrar como um caso de
sucesso, da legitimação das suas políticas externas. Necessitam de um caso que
eles possam fazer a propaganda política, o marketing político das suas
políticas como exemplo de sucesso. E para quem não conhece Moçambique real,
vive o país de fora, revisando alguns indicadores macroeconómicos, pode ser
considerado como um caso de sucesso. É isso que as instituições internacionais
fazem. Eles financiam Moçambique com o objectivo de legitimar as suas
políticas, para demonstrar que as suas políticas são correctas, e até existe
caso de sucesso como Moçambique.
“Os corruptos não investem esse dinheiro no
sector produtivo”
Um outro factor ainda é que depois da guerra houve muitos
aspectos que pioraram. Eu considero que a corrupção é uma forte dificuldade de
desenvolvimento ao país, sobretudo aquela corrupção que implica promiscuidade
entre política e negócios.
Aquela corrupção que envolve milhões de dólares de
recursos, que não são canalizados para Moçambique, não são aproveitados no
sector produtivo da economia moçambicana.
Alguém dizia-me que poderíamos tolerar a corrupção, desde
que os corruptos investissem esse dinheiro. O problema é que os corruptos não
investem esse dinheiro no sector produtivo. Não investem na agricultura, não
investem na indústria, quando muito, algumas das pessoas que se dizem que têm
dinheiro em Moçambique, investem nos transportes, nas telecomunicações, no
sector financeiro, mas não investem nos sectores produtivos.
E são essas mesmas pessoas que fazem discursos no sentido
de que vamos aumentar a produtividade na agricultura, vamos produzir alimentos,
mas não fazem esses investimentos. Fazem investimentos em sectores de serviços,
onde sabem que devido à maior integração na SADC, sabem que têm maiores
vantagens ao nível da região.
Portanto, não existe investimento no sector produtivo e
daí a situação em que se encontra a nossa economia. Sem resolver o problema de
corrupção, vamos ter sérios problemas para o desenvolvimento da nossa economia.
“O Estado não pode ser da Frelimo. A
Frelimo não é o povo, o povo não é a Frelimo”
“A quantidade de ministérios é bastante inacreditável”
Canal: Com uma economia fraca, temos
três dezenas de ministros. Como explicar isto?
Mosca: Nosso aparelho do Estado é grande, é
muito pesado, é ineficiente, é pouco eficaz e tem poucas relações com a
população, está pouco próximo do cidadão, logo significa que é necessário fazer
reformas profundas na nossa administração pública. Este é outro dos aspectos
que faz com que, apesar de a guerra ter terminado já há 16 anos, os resultados
da nossa economia, excepto em alguns aspectos, sejam muito fracos e a situação
da economia do país seja muito, muito crítica.
Canal: Quais as reformas que sugeria,
Dr., para o nosso aparelho do Estado, se já está a decorrer a Reforma Geral do
Sector Público?!
Mosca: Na administração pública, o objectivo é
sempre aumentar a eficiência, aumentar a eficácia, pôr o Estado mais junto do
cidadão, e fazer com que o Estado crie melhores ambientes de negócios, que o
Estado deixe funcionar melhor os mercados e desenvolva algumas actividades
fundamentais que o sector privado não tem capacidade de realizar.
É preciso rever-se a actual estrutura do aparelho do
Estado, com 28 ministérios! Eu venho de dois, três países da Europa onde há 16
ministérios, e são economias que produzem 100 vezes mais que a economia
moçambicana; eu venho de países que tem 16 ministérios e tem duas a três vezes
mais população que Moçambique!
Portanto, o volume, a quantidade de ministérios é
bastante inacreditável.
Segundo ponto, é pôr o Estado mais junto do Distrito,
mais junto dos locais. Neste momento, cerca de 80% do Orçamento do Estado é
consumido em Maputo. Ora, isso tem que inverter. Tem que ser afectados mais
recursos financeiros, mais recurso humanos, mais capacidade executiva e de
definição de aplicação criativa das políticas centrais a nível de cada
distrito, na medida em que o país é muito diferente de um lado para o outro.
Por outro lado, é necessário qualificar o aparelho do
Estado. O Estado está muito fraco de recursos humanos. Por exemplo, na
Agricultura, um caso que conheço bastante bem, os melhores quadros com mais
experiência e com mais qualificação profissional e com mais formação académica,
neste momento estão fora do Ministério da Agricultura. Ora, essa capacidade
intelectual não está a ser aproveitada para os fins que são necessários.
Finalmente, eu penso que é fundamental, despartidarizar o
aparelho do Estado. O Estado é um aparelho que é de todo o povo. O estado não
pode ser da Frelimo. A Frelimo não é o povo, o povo não é a Frelimo. O Estado é
o órgão que presta um conjunto de serviços de interesse de uma nação,
independentemente das exaltações políticas de cada cidadão. Portanto, a
despartidarização é uma forma clara de legitimar o próprio Estado perante o
Povo, é uma forma clara de recuperar a moral política.
Finalmente, eu penso que seria necessário dar a
credibilidade e moralidade ao Estado, no sentido de que os seus dirigentes
devem viver tão modestamente quanto possível, os seus dirigentes devem ser
fiéis cumpridores da causa pública, os seus dirigentes devem viver com
austeridade, desempenhar as suas funções com austeridade e reduzir os custos
públicos das suas instituições.
Como vê, estas são as reformas que neste momento não
estão a ser implementadas.
“A produção em Moçambique era melhor nos
anos da guerra”
Canal: Dr., dizia numa entrevista que a
produção em Moçambique estava melhor há 40 anos que agora. Pode apresentar dados
concretos?
Mosca: Eu tenho dados
concretos em relação à Agricultura. Na agro-indústria, produzia-se melhor nos
anos 80. Por exemplo, chá, copra, algodão, sisal, arroz, carnes, leite, todos
esses produtos hoje produz-se menos do que nos anos 80, em tempos da guerra.
Então, isso significa que alguma coisa está mal!
Mas também há algumas culturas que temos hoje melhor
produção: o milho, a mandioca, gergelim, tabaco, açúcar, tiveram respostas
positivas, embora nem todos atingiram os níveis dos meados dos anos 70.
Canal: A que se deve esta realidade, na
sua interpretação?
Mosca: A que se deve?
Principalmente a políticas agrárias inconsistentes. E aquela frase de que a
“agricultura é a base de desenvolvimento”, é uma não verdade que se vai
verificando há 30 anos! Como é que eu digo isso? Digo porque, neste momento, a
agricultura, cuja dita é a base desenvolvimento, tem apenas um investimento de
apenas 4% do Orçamento do Estado.
Do investimento total da economia, apenas cerca de 10% é
que é para a Agricultura. E se nós retirarmos dessa percentagem, o algodão, o
açúcar, o tabaco, a madeira, o resto que fica nas chamadas culturas alimentares
é quase imperceptível.
Outro aspecto importante é a questão dos preços. Os
preços são permanentemente desfavoráveis aos produtores agrícolas. Os salários
no meio rural são, em média, 30% inferior ao salário praticado nos outros
sectores da economia.
Portanto, há um conjunto grande de gestão dos
instrumentos macroeconómicos que revela que a agricultura parou. Para as
diferentes governações que houve aqui, nunca foi a base do nosso
desenvolvimento económico, por isso a agricultura vem decaindo ao longo do
tempo.
Por exemplo, existe cerca de 140 mil hectares de regadio,
mas, neste momento, só cerca de 40 mil hectares estão em funcionamento, e estes
não significa que estão em pleno funcionamento. Temos cerca de 70% da nossa
capacidade em infra-estrutura de regadio não aproveitada. Paralelamente, ao
invés de estarmos a conservar os regadios existentes, estamos a construir
outros pequenos regadios por aí, pelo país, sem qualquer estratégia de
implantação de regadios.
Outro aspecto é que, por exemplo, as implantações: neste
momento, há menos plantações de citrinos, menos plantações de caju, menos
plantações de copra, menos plantas de chá, do que havia há 40 anos atrás!
Porquê? Porque houve incêndios, porque as pessoas simplesmente arrancaram
citrinos e puseram outras culturas.
Portanto, a nossa capacidade produtiva, em termos de
capital produtivo reduziu drasticamente.
Para não falar agora das nossas florestas que estão a ser
dizimadas, para não falar dos serviços de mecanização, de comercialização, que
reduziram bastante.
“11 ministros da agricultura em 32 anos
revela instabilidade”
Por outro lado, devo recordar que desde 1975 até agora
houve 11 ministros da Agricultura. Isso significa que, em média, cada um está
três anos no poder. O que é que isso revela? Revela uma grande instabilidade
institucional.
Não só os ministros, os directores nacionais, a estrutura
do próprio ministério. Temos, como por exemplo, a hidráulica que já foi
secretaria do Estado directamente dependente do presidente; já foi secretaria
do Estado dependente do próprio ministério, depois passou para direcção
nacional e assim sucessivamente. E depois acontece que quando vem uma nova
pessoa pensa que tudo o que tinha antes estava errado.
As políticas agrárias são inconsistentes, são
descontínuas e também são desajustadas, por isso tudo isso faz com que a
agricultura esteja na situação em que está.
“Só se lembram do povo quando há eleições”
Canal: Com esta situação, a médio e
longo prazo para onde é que caminhamos como Estado, que é um ente permanente?
Diz-se que passam os regimes, mas o Estado permanece.
Mosca: Uma vez em
conversava com um amigo, dizia-me: “Mosca é preciso ter uma paciência
histórica”. Eu lhe disse que “teria paciência histórica se soubesse que estamos
no bom caminho”.
Portanto, eu penso que é preciso reflectir profundamente
na política económica do país, é preciso reflectir profundamente nas políticas
sectoriais do país. Já está absolutamente claro que, ao fim de 20, 30 anos, as
coisas não funcionaram.
É preciso ter coragem para aceitar ruptura de pensamento,
de estratégia, é preciso ter coragem para dizer que vamos pensar profundamente
e aquilo que for necessário alterar, vamos alterar.
Enquanto não houver esta percepção à esta consciência e à
vontade de alterar profundamente as coisas, nós vamos caminhar num “caminho”
que é impossível ter a paciência histórica.
Canal: Olhando para as pessoas que
estão a dirigir o país, pensa que é possível essa ruptura?
Mosca: Não sei se é
possível essa ruptura, porque quem deve fazer esta ruptura está metido no
negócio, está a ganhar dinheiro. Não são produtores, são ganhadores. E para
eles, este tipo de situações, individualmente para a sua estratégia pessoal e
do grupo, são favoráveis.
E o povo? Só se lembram do povo ou quando existe eleições
ou quando há manifestações com pneus a arder. Aí já nos recordámos do povo.
Os ricos estão cada vez mais ricos e os
pobres cada vez mais pobres
Canal: Uma situação que parece
paradoxal é que o país é “pobre”. As diversas avaliações internacionais, como o
IDH das Nações Unidas, mostram que Moçambique está entre os dez países mais
subdesenvolvidos do mundo, mas estando em Maputo é possível ver carros de
elevados custos a circular: limusinas, Hummers, e temos palácios de luxo aqui…
a que se deve essa disparidade? Que pressupostos da Economia Política podem
explicar esta realidade?
Mosca: Isso deve-se ao
facto de termos um padrão de acumulação e de distribuição super concentrado.
Isto é, quem se beneficia dos recursos externos, quem se beneficia do pouco
crescimento económico que existe, quem se beneficia das poucas iniciativas
empresariais, é cada vez mais um grupo restrito de pessoas. Não existe um
processo de crescimento económico inclusivo. Isto porquê? Porque os sectores
que estão a promover o tal crescimento económico são poucos. E sob estes
sectores, o grupo das pessoas que se beneficia é pouco, não só do lado do
capitalista, do investidor, mas também da geração do emprego.
Vai ver a Mozal, vai ver a Sasol, vai ver os projectos de
exploração de carvão, são sectores pouco geradores de emprego comparativamente
com o volume de investimento realizado. Isto indica que este modelo de
crescimento económico produz uma grande acumulação de recursos, seja na sua
produção, assim como na distribuição, logo uma grande parte da população não é
abrangida por este processo de crescimento económico. O quê isso significa? Que
há cada vez mais uma grande desigualdade de rendimento entre a população: os
mais ricos são cada vez mais ricos e os mais pobres são cada vez mais pobres.
Devo adiantar que já existem evidências claras e
documentos mais sérios e conhecidos, em como a pobreza em Moçambique nos
últimos anos não diminuiu e até tende a aumentar. Principalmente nas zonas
rurais e não só, assim como nas zonas urbanas. Já existem estudos que confirmam
absolutamente isso.
Isso significa que a política de combate à pobreza ao fim
de 4 a 5 anos não resultou! Mas porquê? Crescimento e riqueza concentrados, não
existe distribuição de recursos, não existe processo de crescimento económico
de recursos, logo as desigualdades sociais estão a aumentar, está a aumentar a
pobreza.
“Não há nada que nos possa garantir que não
haverá mais revoltas populares”
Canal: O economista David Lands escreve
na sua obra “A Riqueza e a Pobreza das Nações” que, para garantir a segurança
dos ricos, é preciso garantir o mínimo de bem-estar aos pobres”. Com esta
situação que Dr. descreve aqui, aonde iremos chegar no tocante à estabilidade
social do país?
Mosca: Há pessoas que
já foram do Governo e que trabalham actualmente muito perto do poder que dizem
que se entre o 5 de Fevereiro (de 2008) e 1 de Setembro (de 2010) foram dois
anos e alguns meses, agora se calhar a previsibilidade de convulsões pode ir
reduzindo. O que quer dizer com isso? Quer dizer que enquanto as desigualdades
sociais, a situação da pobreza vão aumentando, as pessoas vão tendo cada vez
mais conhecimento, vão tendo cada vez mais acesso à informação, vão tendo a
certeza de que a riqueza está concentrada nas mãos de algumas pessoas. Então,
juntando todos estes factores as pessoas ficam indignadas e quando há
indignidade a revolta é normal. Portanto, não há nada que nos possa garantir
que não haverá mais “1 de Setembro” e se calhar, como alguém já disse, num
curto período de tempo do que aquilo que nos separou de 5 de Fevereiro.
Mas há uma coisa importante. As pessoas têm cada vez
menos capacidade de aguentar a pobreza. As pessoas sabem que são pobres e
resignam-se por isso, mas cada vez menos aceitam essa resignação. E muito menos
nas cidades, porque as pessoas vêem a riqueza, vêem os recursos, vêem as
pessoas a exibir o luxo. Vêem a possibilidade de melhorarem as suas condições
de vida, mas não lhes é dada essas oportunidades. Pelo contrário, são
reprimidas, não há uma comunicação para lhes informar da situação, não existe
uma relação Estado, governantes e governados.
Portanto, as pessoas sentem-se indignadas. Têm a noção de
que podem não ser pobres, querem não ser pobres, mas não podem. Então, as
pessoas aderem (às revoltas). É diferente do homem aqui de Polana-Caniço que
está em contacto permanente com a riqueza, tem uma capacidade de sustentar a
sua pobreza muito diferente da pessoa que está em Gorongosa, que não sabe o que
se passa em Maputo, não tem a noção do que se passa em Maputo. A sua capacidade
de sustentar a riqueza é muito maior, para ele a pobreza é como se fosse uma
“maldição de Deus”.
“A elite não está interessada em sair da
dependência, porque beneficia com isso”
Canal: As instituições internacionais
continuam a drenar recursos em nome do povo, mas estes parece que só beneficiam
a alguns… será importante manter a ajuda externa nos moldes em que vem?
Mosca: Primeiro, é
importante dizer que nós não podemos, num espaço médio de tempo, e se calhar de
bastantes anos, prescindirmos da ajuda externa. Seria uma catástrofe. Portanto,
nós devemos aceitar que a ajuda externa é absolutamente necessária ao país.
O que nós criticamos é como são canalizados os recursos
externos. É correcto que os recursos externos sejam canalizados via Estado ou é
correcto que a comunidade internacional financie directamente os projectos sem
passar pelo Estado? Porque, mesmo que exista corrupção nesses projectos será
uma corrupção mais distribuída. E a corrupção é mais concentrada se for
realizada pelo Estado.
Portanto, o financiamento directo aos beneficiários,
comunidades e aos empresários, é uma das melhores formas. Outra forma é haver
pressões no sentido de se assegurar que a governação deve ser transparente e
tem que haver medidas violentíssimas para acções de corrupção. E deve ser
aprofundada a lei sobre o conflito de interesses. Existe esta lei, a que obriga
os titulares dos altos órgãos do Estado a declarar o seu património, mas estas
leis não são cumpridas, e quem cumpre individualmente, num caso foi criticado.
Portanto, estas são partes muito importantes para que os
recursos externos, que são importantes, sejam utilizados para o desenvolvimento
da nação.
Por outro lado, é importante que os recursos externos
sejam canalizados para sectores que gerem emprego e que produzam riqueza de uma
forma socialmente mais ampliada possível.
Eu estou de acordo com que se deve fazer uma diplomacia
inteligente, no sentido de assegurar a continuação dos recursos, mas também
estaria de acordo que os recursos fossem destinados cada vez mais aos
beneficiários, mas também estaria de acordo que houvesse uma lei de conflitos
de interesse, lei de obrigação de declaração do património.
De qualquer maneira é muito importante ter uma estratégia
de saída da ajuda externa. E esta estratégia permitiria que daqui a 15 anos a
nossa dependência seja reduzida ao mínimo sustentável, e não ter um mecanismo,
uma forma de governação assente na ajuda externa, que é aquilo que acontece
neste momento.
Estamos numa lógica de crescimento com base em recursos
que são doados, aumento da dependência externa, porque há pessoas que ganham
com isso.
A elite africana, e também moçambicana, não está
interessada com a endogeneização da economia interna, não está interessada em
sair da dependência, precisamente porque há uma elite política que se beneficia
com isso.
“Recursos naturais beneficiam a minorias”
Canal: Temos recursos naturais: carvão,
gás. Agora foi anunciada a descoberta de petróleo, ouro, prata. Com este modelo
de governação que temos, será que o Povo pode comemorar a descoberta destes
recursos? Estes recursos são mais-valia para o desenvolvimento do país?
Mosca: As
experiências que nós temos são de que em África, também nos países árabes,
embora nestes cada vez menos, países com grandes quantidades de recursos
naturais, são países com sérios problemas políticos, sociais e de
instabilidade.
Isso porque os recursos são retirados à nação, beneficiam
grupos minoritários no país, as populações não se beneficiam disso, e portanto
os países têm cada vez menos esses recursos porque são recursos não renováveis
e gera-se problemas. Temos problema de Cabinda, temos problema de Biafra, temos
problema de Sudão, assim temos situações em muitos outros países.
Os recursos não são maus, mau é a forma como nós vamos
utilizá-los. Por exemplo, a nossa energia é mais cara do que a energia da
África do Sul, mas a energia é feita em Cahora Bassa. O que isso significa?
Significa que as nossas próprias empresas que produzem esses recursos, também
são pouco eficientes. A água não vem de fora, é local. Então há problema de
eficiência em toda a cadeia de produção de energia para poder fazer a energia
chegar barata para todos os consumidores.
Então, é tudo uma questão de gestão macroeconómica. Por
exemplo, porquê é que as grandes empresas não pagam imposto em nosso país? E se
pagassem imposto? Existem estudos que indicam que se estas grandes empresas
pagassem imposto, não precisaríamos da ajuda externa para o Orçamento do
Estado. Precisaríamos de ajuda para outros objectivos, mas não para o Orçamento
do Estado. Mas elas não pagam imposto.
Canal: A tese do Governo é que “se
fosse para pagar impostos, estas empresas não estariam cá”. Estão cá
precisamente devido a esse incentivo de isenções fiscais, neste momento, mas
depois de algum tempo terão que pagar impostos...
Mosca: Não. A Mozal
pode ser uma caso particular porque importa a matéria-prima. Mas o caso de carvão,
eles vêm buscar o carvão cá; o caso de gás, eles vêm buscar o gás cá, o caso
das areias pesadas, idem, algodão, idem. Portanto, eles vem buscar recursos,
porque é necessidade deles. Se eles não vêm cá buscar os recursos, podem ir
buscar noutros sítios, mas nalgum momento eles terão que vir buscar porque
Moçambique tem algumas reservas interessantes de gás, de carvão e tem um
potencial produtivo de energia para a África do Sul que tem um défice violento
de energia que nós devemos aproveitar.
Portanto, nós temos recursos. Se eles querem recursos
estão cá. O caso da Mozal é um pouco diferente, porque a Mozal importa a
matéria-prima, não aproveita recursos locais, portanto o caso da isenção dos
impostos pode fazer algum sentido para a empresa permanecer cá. Mas também há
estudos que provam o contrário.
Por exemplo, Castel-Branco diz que isso não é verdade.
Portanto, é preciso ver até que ponto a taxação provocaria a saída das empresas
do país.
Os recursos naturais de um país devem beneficiar a sua
população. Por exemplo, a Sasol exporta gás, mas ao longo do viaduto, de
Inhambane até a fronteira, quantas comunidades se beneficiam com o gás? Com
bocas de saída de gás para iluminar as comunidades de uma forma sustentável, de
uma forma não poluente, e se calhar mais barata, quantas populações se
beneficiam? Zero!
“É preciso formar técnicos para gerir
nossos recursos”
Canal: Ainda sobre a forma como são
explorados os nossos recursos naturais, nós importamos a matéria-prima.
Exportamos o gás em viadutos, exportamos a madeira em troncos, não seria mais
viável importar produtos acabados? Será que temos uma engenharia qualificada
para controlar quanto gás sai do país por pipelines?
Mosca: Tudo isso são
coisas que é preciso equacionar. Primeiro, é preciso ter pessoal formado e
qualificado que trabalhe no sector. E não sei se nós estamos a formar pessoal
com alta qualificação para isso. Os angolanos têm alta qualificação nos
petróleos, eles não estão a brincar com o petróleo.
Nós não temos domínio tecnológico de petróleo, do gás, do
carvão, nós não temos pessoal moçambicano qualificado para isso.
Também estou de acordo que poderíamos aproveitar os
nossos recursos de uma forma sustentável, que poderíamos ter níveis de
extracção dos nossos recursos a longo prazo para que as futuras gerações também
se possam beneficiar.
É o caso das florestas. Têm o seu ciclo de reprodução,
mas tiramos lá os produtos indiscriminadamente. As pescas idem.
O que se está a passar com os garimpeiros das pedras
preciosas e de ouro em Manica são coisas absolutamente violentas para a
natureza, para as pessoas e não sustentáveis. Mas as licenças das minas estão
localizadas em certo grupo de pessoas.
O que acontece nas pescas, nas florestas, é que você tem
a licença, mas você não é pescador. Então vem um empresário, deve comprar
licença a si. Você vende a licença e fica em casa a ver televisão porque você
conhece alguém no aparelho do Estado que lhe deu a licença de pesca e portanto,
assim vivemos! Desta forma não é possível desenvolver o país!
“Antes exportávamos madeira, agora
exportamos troncos”
Nós estamos a exportar agora depois de uma lei que saiu
há dois, três anos, madeira com pequena transformação, mas nossas fábricas de
serração estão fechadas. Nós tínhamos indústrias de contraplacados que
exportavam em Moçambique, a partir da Beira, que hoje estão completamente em
ruínas. Se viaja na estrada que sai da Beira para Manica, vê do lado esquerdo a
fábrica em perfeita ruína! Nós estamos a exportar a matéria-prima!
Portanto, nós não estamos a beneficiar o país, mas com
certeza que há quem está a beneficiar.
O chinês não vem cá e entra na floresta, sozinho! Ele
começa na pessoa que vai lhe passar a licença, passa pela empresa que vai fazer
corte e até nas pessoas que vão na floresta buscar a madeira, portanto isso é
uma cadeia de interesses que beneficia um grupo muito restrito de pessoas.
Governantes viajam na classe executiva,
doadores viajam na classe económica
“O povo vive naquela coisa de que o
chefe é chefe, o patrão é patrão.”
Canal: As manifestações de Setembro de
2010 obrigaram o Governo a adoptar uma séria de medidas de austeridade, dentre
a redução de viagens aéreas de dirigentes em classe executiva. Pensa que era
preciso que a população queimasse pneus para o Governo tomar este tipo de
medidas?
Mosca: Era
absolutamente desnecessário! É aquela coisa de que “dinheiro dado não custa
gastar”. Dinheiro que você não produziu, consome e gasta rapidamente. Nos temos
o sentido de consumo. As pessoas que têm dinheiro, o que fazem? Compram carro, casa,
quinta na Matola. Quando vão de férias na quinta na Matola passam de
supermercado e compram tomate. Mas tem lá a quinta com capim e não produzem
tomate. Compram tomate para fazer festa na quinta. Galinha, ovo, cebola e etc.
Portanto, nós temos espírito de consumo.
A viagem na classe executiva é um espectáculo de poder, é
um espectáculo de influência, é um espectáculo de pessoa importante. Nós
gostamos muito de demonstrar aquilo que nós não somos, ou o que nós não temos.
Acontece muitas vezes que o homem da organização internacional ou da embaixada
vai no mesmo avião na classe económica e o nosso director vai na classe
executiva, quando é o homem da classe económica que está a dar dinheiro ao
director para ir na classe executiva!
Portanto, significa que há um sentido de consumo muito
forte, não o sentido da vida austera, da vida discreta. Há um consumismo, e
muito mais quando é financiado por recursos não gerados pelas mesmas pessoas,
quando é financiado por um dinheiro falso. Portanto, tudo isso deslegitima
completamente a política e os políticos. Os políticos estão deslegitimados, não
há credibilidade. Ninguém confia neles, por este tipo de atitudes.
O problema é que o povo também, de certa maneira, é muito
permissivo com isso. O povo vive naquela coisa de que o chefe é chefe, o patrão
é patrão, ele está lá porque conseguiu, deixa o homem “desarascar”, a vida é
dele. Então, fica numa situação passiva e não existe a consciência e a
capacidade reivindicativa e de exercício da cidadania de uma forma consciente,
informada e correcta.
Portanto, enquanto nós não conseguirmos que os nossos
cidadãos tenham esta consciência de cidadania, reivindicativa, de manifestação,
de uma forma correcta, é mais fácil que tudo isto aconteça.
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