IGREJAS E ESTADO EM MOÇAMBIQUE APÓS A
INDEPENDÊNCIA
Por
Eric Morier-Genoud
Genebra
(Canalmoz) - O Prof. Dr. Luís Benjamin Serapião e João Cabrita debruçaram-se
nas páginas centrais do Canal de Moçambique de 15 de Agosto de 2012 sobre o
assunto das igrejas e do Estado em Moçambique.
Isto
veio porque eles queriam contestar alguns elementos contidos na entrevista que
eu dei ao mesmo jornal no mês anterior.
Agradeço
o contributo destes dois intelectuais e aprecio o debate que emerge assim nas
páginas da vossa publicação. Queria, no entanto, esclarecer, nas linhas a
seguir, algumas minhas posições que me parece terem sido mal representadas
assim como trazer algumas contribuições adicionais.
Para
começar, o Prof. Dr. Serapião avança o argumento de que teria havido na
história de Moçambique duas igrejas católicas, uma colonial e outra nacional/moçambicana.
Concordo com esta análise no geral e acho que é um ponto importante para
bem entender a história da igreja no país e a força que ela teve antes e, ainda
mais, depois da independência. Pois, se tivesse havido só uma igreja colonial,
como teria a igreja conseguido continuar a existir depois de 1975?
Isto
dito, discordo do Professor Serapião em relação a ideia que a ruptura entre a
igreja colonial e a igreja nacional teria sido absoluta e perfeita com o
advento da independência em 1975. Pode ser um bom argumento didáctico e talvez
político, mas a verdade é muito mais subtil e complexa. Houve muitas rupturas
com a independência, em particular nas relações de poder dentro da instituição
católica, mas houve também muitas continuidades, sejam elas de pessoal, na
maneira de operar, ou nas ideias e na teologia.
Por
isso não me parece adequado afirmar que a igreja colonial desapareceu em
Moçambique em 1975 e que só ficou uma igreja nacional que não gozou “de
privilégios de qualquer sistema político no país”. Tal declaração dá a
impressão de que a igreja nacional era uma igreja nova sem ligação nenhuma ao
passado. Ora a igreja nacional desenvolveu-se dentro, e sob impulso, da igreja
colonial; ela guardou elementos desta igreja após a independência (incluindo
algum pessoal colonial e colonialista); e ela quis guardar todas as
propriedades que a igreja colonial tinha recebido do poder português.
No seu
texto, João Cabrita vai mais longe ainda ao argumentar que a igreja católica
não tinha posição dominante antes da independência e ao recusar a ideia de que
havia competição entre instituições religiosas antes de 1975 – ele diz que isto
foi “algo inexistente”. Ignora, assim, a Concordata e o Acordo Missionário,
vigentes até 1975, que faziam com que o Estado colonial pagasse salários a
todos missionários católicos, entregasse terras gratuitamente às missões
católicas, e pagasse viagens à Metrópole ao pessoal católico, entre outros
benefícios. Ignora também a política concomitante e inversa, de oposição a todas
outras instituições religiosas no país – protestantes, muçulmana, ziones, etc.
– a quem o governo recusava personalidade jurídica e fazia tudo para impedir o
seu progresso.
Para
argumentar que não havia monopólio católico nem competição entre religiões, Cabrita
dá o exemplo da comunidade muçulmana que o Estado português tentou atrair para
a sua esfera de influência antes da independência, e o exemplo das Testemunhas
de Jeová do Malawi que foram acolhidas pelo governo português no fins dos anos
1960, quando perseguidas pelo Presidente Banda.
Estes
dois exemplos são bastante selectivos e apresentados de maneira muito parcial.
Pois, se alguns muçulmanos foram efectivamente cooptados pelo poder colonial
nos fins dos anos 1960 (após anos de discriminação), a verdade é que outros
foram ao mesmo tempo presos, e alguns assassinados pela polícia política
colonial, inclusive alguns Sheiks.[1] No que toca às Testemunhas de Jeová, o
refúgio dado pelo poder colonial não pode ser usado como argumento de igualdade
das religiões em Moçambique. Primeiro porque o refúgio dado a eles foi nas
zonas fronteiriças a fim de criar uma zona tampão contra à entrada da Frelimo
na Zambézia, uma vez que as Testemunhas de Jeová recusam-se (como sempre) a
entrar em política. Segundo, este desenvolvimento aconteceu ao mesmo tempo que
o poder colonial continuava a reprimir as Testemunhas de Jeová moçambicanas que
eram vistas como subversivas por recusarem a dar apoio aos portugueses, fazer o
serviço militar, e saudar a bandeira nacional, pois não queria entrar em
política nenhuma.[2]
Se o
período colonial não foi todo bonito, sem desigualdade e competição entre
religiões, o período pós-independência também não foi todo feio. Não foi como o
afirma Cabrita, anos onde a Frelimo tinha somente um “projecto de índole
totalitária”. Quer se queira, quer não, a Frelimo só desencadeou uma luta
aberta e total contra as igrejas a partir de 1978. É verdade que houve alguma
luta contra instituições religiosas antes disso, mas não foi total e foi muita
especifica e limitada – a Igreja Nazareno por causa de ligações à PIDE e ao
imperialismo, às Testemunhas de Jeová por terem sido utilizadas pelos militares
portugueses, etc. Não houve proibição de usar roupa religiosa em lugar público,
não houve igrejas fechadas em massa, e não houve campanhas em prol do ateísmo
como foi o caso entre 1978 e 1982. A viragem de 1978 tem a ver com o III
Congresso onde o Partido e o Estado fundiram-se e com o afastamento dos
elementos religiosos praticantes dentro da liderança da Frelimo, afastamento
sem o qual a viragem não teria sido possível. [3]
Finalmente,
João Cabrita afirma-se escandalizado pelo facto de eu ter afirmado que a
situação religiosa no país é positiva hoje. Aliás, ele entende que dizendo
isso, eu teria afirmado que o combate às religiões teria sido positivo. Há aí
uma má interpretação, pois o que foi dito e escrito, e que confirmo uma vez
mais, é que a situação religiosa actual no país é positiva e que as
nacionalizações contribuíram para isto (não a repressão!). Temos que ver pois
que, se não houvesse nacionalizações, a igreja católica teria continuado a
controlar 90% das escolas no país como no tempo colonial (controlava 89.3% das
escolas no país em 1964), e isto teria criado problemas num país independente
onde aproximadamente 20% da população é católica, 20% é muçulmana, 30% é
cristão não-católica, e a maioria adepta, parcial ou total, da religião
tradicional. (Eric Morier-Genoud, Queen’s
University Belfast)
[1] Edward Alpers, “Islam in the
Service of Colonialism? Portuguese Strategy During the Armed Liberation Struggle in Mozambique”,
Lusotopie 1999(Paris, Karthala, 1999), pp. 165–184; Michel Cahen, ‘Le
colonialisme tardif et la diversication religieuse au Mozambique (1959–1974)’,
Lusotopie 1998(Paris, Karthala, 1998), pp. 377–395; e Fernando A. Monteiro, O
Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964–1974), Porto, Universidade
Portucalense, 1993.
[2] Pedro Pinto, “Jehovah’s
Witnesses in colonial Mozambique”, Le Fait Missionnaire. Social Sciences &
Missions, No. 17, Dezembro de 2005, pp.61-123
[3] Eric Morier-Genoud, “Of God and
Caesar. The Relation between Christian Churches & the State in
post-colonial Mozambique, 1974-81”, Le Fait Missionnaire. Social Sciences & Missions, No. 3,
1996, Setembro de 1996; Eric Morier-Genoud, “L’Islam au Mozambique après
l’indépendance. Histoire d’une montée en
puissance”, L’Afrique Politique (Paris: Karthala, 2002), pp.123-146.
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