GUNGUNHANA "ERA FILHO DO REI
DE PORTUGAL!"
Assim
foi apresentado o dono do vasto império vátua - que no século XIX englobava grande parte do território de
Moçambique - na cerimónia que assinalou os 110 anos da batalha de Chaimite, decorrida
no passado dia 28 de Dezembro, no Museu Militar, em Lisboa.
O
que aconteceu então para que este "filho do rei de Portugal", admirado
e respeitado tanto pelas tribos nativas como pelas potências estrangeiras da
altura, tenha sido capturado e enviado para Lisboa
onde
foi humilhado e vergonhosamente exposto à população após a sua chegada?
Texto de Sílvia Fernandes
Fotos de Gil Garcia e Arquivo
Pessoal
A
resposta surgiria no decorrer da própria cerimónia no Museu Militar, através do
orador, coronel Américo José Henriques.
Entre a assistência, sentados lado a lado, os descendentes de Gungunhana e de
Mouzinho de Albuquerque, o imperador africano detido e o oficial português que o deteve. Um cenário que muitos defendem
ser possível apenas entre os portugueses, cujos laços amigáveis criados com os
povos em tempos colonizados prescindem de teorias, estudos e discursos
políticos, podendo ser facilmente testemunhados em momentos como este.
Maria
Júlia e Maria Manuela são filhas de Eugenia, neta de Gungunhana e de uma das
mulheres que com ele terão desembarcado em Lisboa em Março de 1896. Do lado de
Mouzinho de Albuquerque, está Miguel
Sanches de Baêna, descendente indirecto, uma vez que o oficial português não
chegou a ter filhos. A cerimónia prossegue. "Gungunhana era como um filho
do rei de Portugal, assim como já haviam sido o seu avô, Manukuse e o seu pai,
Muzila", continua Américo Henriques.
Manukuse,
membro de um dos ramos da tribo zulu, foi o fundador do Império dos vátuas,
povo altivo, guerreiro. Através de
massacres das tribos rivais, ou de alianças estratégicas, entre as quais com o
rei de Portugal, Manukuse consegue estender o seu império desde o Zambeze até à
região de Lourenço Marques (actual Maputo), abrangendo parte do território de
Moçambique, África do Sul e Rodésia (actual Zimbabué). Quando morre, em 1858, o
seu filho Muzila envolve-se numa guerra sangrenta com o irmão pelo poder e é
graças ao apoio dos portugueses, nomeadamente ao arsenal oferecido, que
consegue subir ao trono. Após a sua morte, é a vez de o filho, Gungunhana, disputar
o trono com os irmãos, tornando-se imperador depois de mandar assassinar
Mafe-mane, herdeiro legítimo. Dono de um vasto império, Gungunhana desperta o
interesse dos ingleses e dos colonos sul--africanos, particularmente de Cecil
Rhodes e da South African Company, que vêem nos portos moçambicanos de Lourenço
Marques e Beira dois pontos estratégicos para o escoamento das matérias-primas
do Transval. E Gungunhana estava a meio caminho, podendo ser um aliado poderoso
para se chegar ao litoral moçambicano, então sob administração portuguesa.
"É
a intriga internacional que faz com que Gungunhana atraiçoe os acordos que
mantinha com a coroa portuguesa".
Através de constantes "embaixadas", nomeadamente inglesas e alemãs, enviadas para junto do imperador africano, a
relação com os portugueses é "envenenada". "Foram os interesses internacionais que viraram os
africanos contra os portugueses", afirma Américo Henriques, acrescentando
de seguida que infelizmente, a história repetiu-se" décadas mais tarde. E como
diz um velho ditado africano numa cheia de duplicidade, conforme escreveu
Georges Liengme, missionário que
conviveu de perto durante três anos com o imperador vátua.
A
gota de água em relação à coroa portuguesa acontece em finais de 1894, quando,
mais uma vez instigados por forças
estrangeiras, os guerreiros vátuas atacam a linha dos caminhos-de-ferro às portas de Lourenço Marques. A notícia surge na
imprensa europeia da época com grande impacto, tentando mostrar Portugal como
uma potência fragilizada, incapaz de garantir, não só a segurança das populações não negras da região, como
também incapaz de garantir a segurança do transporte de mercadorias, sector vital para a presença
europeia em África. O rei decide contra-atacar e envia António Enes como
comissário régio para tentar resolver a situação no local. "António Enes
não era um militar, mas era um profundo
conhecedor da realidade africana, com uma grande visão estratégica, que soube escolher uma elite
militar para o acompanhar na sua missão", explica Américo Henriques. António Enes tinha duas
hipóteses: ou ia directamente a Manjacaze, "capital" do império vátua
- opção arriscada dado o elevado número de régulos tribais aliados ao imperador
que iria encontrar pelo caminho - ou
criava uma série de pontos fortificados, apertando aos poucos o cerco a Gungunhana, levando-o assim a uma
submissão pacífica. Optando por esta segunda solução, as forças portuguesas
dividiram-se em três colunas que avançariam para o interior do continente ao
longo das margens de três rios, criando uma cintura a Manjacaze: a sul, o
Incomati; no centro, o Limpopo; e um
pouco mais a norte, o Inharrime. Mouzinho de Albuquerque integrava esta última força, que partiu de Inhambane.
EXPEDIÇÃO PUNITIVA
Dia
2 de Fevereiro 1895. A algumas dezenas de quilómetros de Lourenço Marques, a
coluna que subia pelo Incomati trava a
batalha de Marracuene. "Neste combate batemo-nos em quadrado e suportámos um assalto violentíssimo - numa
proporção de 30 para um - chefiado por dois dos régulos mais importantes da região: Mazulo e
Matibejana", conta Américo Henriques. Apesar da vitória das forças portuguesas chefiadas por
Caldas Xavier, cujo impacto se fez sentir na imprensa europeia, os dois régulos conseguem fugir. No
entanto, perante as potências estrangeiras, a imagem de Portugal sai reforçada
e a campanha prossegue. A Gungunhana é dada a oportunidade de entregar os dois
régulos, que, entretanto, se refugiam em Manjacaze. Seria como uma prova de boa vontade do imperador africano para com a
coroa portuguesa. Até porque os dois homens haviam também estado envolvidos no
ataque ocorrido em 1894 contra à linha-férrea.
"No
entanto, ele recusou entregá-los. Se o fizesse perdia a confiança dos outros
régulos seus subordinados. E assim ficou
em posição frontal connosco", explica Américo Henriques, acrescentando que
"foi então que nós decidimos preparar uma expedição punitiva a Manjacaze para
o Outono de 95, para capturá-lo." Esta expedição, que deveria seguir pelo
rio Inharrime, foi atrasada por diversas vezes por dificuldades logísticas.
Entretanto, a coluna que subia pelo Incomati
chega a Magul, onde trava nova batalha. Mais uma vez, as forças portuguesas,
agora comandadas por Aires de Orneias, saem vitoriosas e a notícia volta a
espalhar-se. Encorajada com este resultado, a coluna de Inharrime decide avançar
no terreno, apesar do fraco apoio logístico.
Ao
seu encontro, Gungunhana, envia um grupo de guerreiros chefiados pelo seu filho
Godide, e as duas forças acabam por se confrontar em Coolela, tendo os
portugueses alcançado nova vitória.
Gungunhana,
ao tomar conhecimento do resultado da batalha, decide fugir e quando o coronel Rodrigues
Galhardo, que chefiava a coluna de Inharrime, entra com as suas tropas em
Manjacaze, este está deserto.
Por
esta altura, António Enes regressa a Portugal para apresentar o seu relatório
ao rei. Mas antes cria um novo distrito,
o de Gaza (até então só existiam o de Lourenço Marques e Inhambane), nomeando como governador Mouzinho de
Albuquerque, a quem deixou ordens expressas para capturar Gungunhana. Também
data desta altura a transferência da sede do Governo de Moçambique, da ilha
para Lourenço Marques. "O governador, antes da chegada do comissário régio,
era o coronel Fernando de Magalhães, que, tal como os seus antecessores, vivia
na ilha de Moçambique. Aí é que era a
sede do governo de Moçambique. O António Enes tirou o Governo da ilha e levou-o para Lourenço Marques, para
o sul, para o campo da batalha", explica Américo Henriques.
CAPTURA EM CHAIMITE
Entretanto,
vendo o avançar das tropas portuguesas, o imperador vátua manda entregar um dos
régulos, Matibejana, oferece marfim e
outro tipo de riquezas e até envia o seu filho Godide como sinal de boa vontade, mas já de nada lhe vão
servir estas atitudes. "O objectivo agora era, única e exclusivamente, a sua captura", afirma
Américo Henriques. Só que Gungunhana estava desaparecido desde a batalha de
Magul, enquanto que, do lado português, a campanha para tentar apanhar o "Leão
de Gaza" continuava. Até que um dia, num dos pontos fortificados ao longo
da linha do Limpopo , surge um indígena de nome Hassane, com uma informação
valiosa: Gungunhana está escondido em
Chaimite, panteão vátua, onde se encontram enterrados o seu avô, Manukuse e o
seu pai, Muzila. Mouzinho de Albuquerque toma conhecimento da notícia, sabe que
tem de agir rapi-damente, mas não tem tropas suficientes para empreender um
ataque massivo ao último reduto vátua. Mesmo assim, decide pegar em 46 homens e
avançar, entrando em Chaimite no dia 28 de Dezembro de 1895. Ninguém sabe muito
bem por que é que os cerca de 300 guerreiros vátuas não dispararam sobre os homens de Mouzinho de
Albuquerque. "Terá sido do factor surpresa ou tão pura e simplesmente da ousadia do oficial
branco?" A verdade é que, "muito superiores em número, poderia ter sido um verdadeiro banho
de sangue, mas em Chaimite apenas morreram dois homens, conselheiros de Gungunhana, fuzilados
pelas tropas portuguesas", explica Américo Henriques. Quando Gungunhana sai da sua
palhota, Mouzinho ordena que lhe amarrem as mãos.
Depois
exige que Gungunhana se sente no chão, algo impensável para um imperador.
Perante a recusa deste, afirmando que o
chão estava sujo, Mouzinho obriga--o a sentar-se à força como sinal de
submissão. Assim foi capturado o temido «Leão de Gaza».
"A
captura de Gungunhana foi trágica, mas teve de ser. Sobretudo porque a situação
do ponto de vista internacional era tão precária para Portugal que nós tínhamos
que mostrar aos estrangeiros, com
determinação e até com uma certa crueldade, a nossa posição ou eles não nos
aceitavam", sublinha Américo
Henriques, acrescentando que "a nossa filosofia de colonização foi sempre branda e a ideia deles era violenta. E nós
tivemos também que ser violentos para eles nos respeitarem. Os estrangeiros, não os nativos,
que esses sempre nos conheceram da mesma maneira.
Esta
é a verdade de 1895", conclui. Terminada a apresentação, ao sabor de um
Porto, Maria Júlia e Maria Manuela,
bisnetas de Gungunhana, Miguel Sanches Baêna, descendente de Mouzinho de Albuquerque, e ainda os descendentes do régulo
Matibejana, vindos propositadamente dos Açores para esta cerimónia,
brindam aos seus antepassados e trocam, entre sorrisos e abraços, as suas
próprias versões dos acontecimentos.
Passaram-se 110 anos. Estamos no Museu Militar, em Lisboa.
REVELAÇÕES
Maria
Manuela e Maria Júlia nasceram e cresceram em Portugal. Sempre souberam da sua ascendência através das histórias que a
mãe, Eugenia, lhes contava na infância, histórias essas marcadas pela imposição
do silêncio. "Não deveríamos falar do assunto", conta Maria Júlia.
Porquê? "Talvez por vergonha, não sabemos muito bem, a verdade é que desde
pequenas a nossa mãe dizia que não devíamos falar do assunto." Talvez por
isso, também, só muito recentemente tenha surgido algum interesse pela figura do bisavô. Aconteceu por
uma ironia do destino, no Verão de 2005. O filho de Maria Manuela estudava na
base do Alfeite e o seu superior era o comandante Luís Sanches de Baêna.
"Por um acaso, descobriram que estavam frente a frente como descendentes
de dois grandes rivais: Gungunhana e Mouzinho de Albuquerque. "Depois
disso surgiu o convite para participarmos nas comemorações dos 110 anos da
batalha de Chaimite, no Museu Militar", explica Maria Júlia. E a pergunta
impõe-se: Qual a sensação ao sentar ao lado do descendente do homem que
capturou o vosso bisavô? Depois de alguns segundos, a resposta surge acompanhada de uma lágrima.
"Uma grande emoção. Ficámos sentadas à frente, no lugar dos generais, e
não estávamos a contar com aquela honra. Foi uma mistura muito grande de
sensações. Não há revolta, não há ressentimentos,
o que existe é uma grande curiosidade para nos conhecermos melhor."
UMA IMPERATRIZ PARA MOÇAMBIQUE?
Maria
Manuela e Maria Júlia terão sangue régio a correr-lhe nas veias. Maria Manuela ainda conheceu a terra do seu bisavô,
quando, entre 1972 e 1976, acompanhou o marido destacado em serviço para
Moçambique. Os seus dois filhos nasceram em Nampula e "o amor por aquela
terra era tão grande que se não fosse a independência teria ficado por
lá", conforme nos confessa. Maria Júlia, pelo contrário não conhece Moçambique. Mas
recorda-se bem da cerimónia solene da trasladação dos restos mortais do seu
bisavô, dos Açores para Maputo, em 1985.
"Nessa
altura, ainda se pensou falar com as autoridades moçambicanas, para nos darmos
a conhecer, mas acabámos por não fazer nada", conta. O silêncio manteve-se. Algum tempo mais tarde, uma equipa
de cientistas açorianos revelava que as ossadas enviadas para Moçambique não pertenciam
a Gungunhana.
Mesmo
assim, Maria Júlia não esquece a forma como o Governo moçambicano, após a
independência, enalteceu a figura do bisavô, como símbolo da luta anti colonialista.
Então e por que não solicitar o reconhecimento como uma das herdeiras do
império vátua? "Não pensei nisso, mas de qualquer maneira gostava muito de
poder ir até lá e conhecer aquela terra", desabafa Maria Júlia. Aqui fica
o recado.
Entretanto,
se as ossadas que foram trasladadas para Moçambique eram falsas... podemos concluir
que os restos mortais do último grande imperador vátua continuam a descansar nos Açores, em solo
português!...
TROFÉU DE GUERRA
Apesar
de apelar ao silêncio, Eugenia, neta de Gungunhana e mãe de Maria Manuela e Maria Júlia deixou
algumas histórias do seu régio
antepassado. "O que nos foi contado foi que de facto ele foi maltratado à sua chegada a Portugal. Terá
sido exposto numa carruagem transformada
em jaula, que percorreu algumas ruas da Baixa
de Lisboa, onde foi vaiado e humilhado", diz Maria Manuela.
Os
relatos da época também confirmam esta versão. O vapor "África", depois duma viagem de dois
meses desde Lourenço Marques, entra no
Tejo em Março de 1896. A população lisboeta enche as ruas para ver o "trofeu de
guerra", a "fera cruel", como é chamado por alguns jornais da
época. Com ele terão desembarcado outros
prisioneiros, entre os quais o filho Godide, o régulo Matibejana e sete
mulheres que a imprensa descreve com "ar altivo, feições finas e bonitas".
Depois
do cortejo, seguem para o forte de Monsanto, onde ficam detidos durante três meses
antes de serem desterrados para a ilha Terceira, nos Açores. As mulheres terão
permanecido em Monsanto, depois enviadas para S. Tomé e Angola. Nos Açores, Gungunhana viverá ainda dez anos, onde
aprende a ler e a escrever, e é baptizado
com o nome de Reynaldo Frederico. Nos seus últimos anos de vida, tornase numa
atracção turística, gozando duma liberdade limitada. O objectivo terá sido mostrar
à Europa que o grande "Leão de Gaza" tinha sido dominado, estava circunscrito,
sem ser maltratado. "Nos Açores, não há registo de que tenha sido maltratado",
conta Maria Júlia. "Sabe-se que se passeava pela ilha Terceira. As potências
estrangeiras não podiam dizer que estava a ser maltratado, mas ao mesmo tempo
não podiam contar mais com este aliado para as suas campanhas em África", concluem
as bisnetas do grande "Leão de Gaza". No dia 23 de Dezembro de 1906, Gungunhana,
ou Reynaldo Frederico, falece no hospital militar de Angra do Heroísmo, vítima
duma hemorragia cerebral.
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