DE ALFABETO A MIDO MACIA
XENOFOBIA E VIOLÊNCIA POLICIAL: DUAS FACES DA
MESMA MOEDA
Por: Juliano
Neto de Bastos[1]
Emídio Macia morreu nas mãos da polícia
sul-africana. É quase do domínio público que os homens e as mulheres vestidos
de azul (men and women in blue), como
são tratados os polícias, em alusão à
cor do seu fardamento, estão a fazer uso da violência de uma maneira nem sempre
justificável. Isto faz reacender o debate acerca da forma como a polícia é
preparada e que instruções recebe (ou não recebe) das chefias para enfrentar o
crime que, diga-se em abono da verdade, grassa a África do Sul. Este país possui
uma tradição de violência construída desde os primórdios da industrialização,
através da mineração do ouro e de diamantes, com a adopção de políticas de
segregação que desembocaram na constituição do Apartheid, um dos mais bárbaros
regimes que a Humanidade viu emergir nos finais da primeira metade do século XX
e que se prolongou até as eleições de 1994, que ditaram a transferência do
poder político para a maioria, representada pelas novas elites políticas de
várias orientações ideológicas, que constituem a aliança tripartida (ANC,
COSATU, SACP) que tem estado a governar o país.
Apesar das medidas introduzidas visando,
paulatinamente, fazer emergir uma elite não branca na esfera económica
comprometida com o desenvolvimento endógeno, criação de emprego e uma nova
visão no que diz respeito à distribuição da riqueza, questões candentes como
desemprego, pobreza e desigualdades sociais tardam a ter uma solução consensual
e abrangente, num contexto em que as expectativas foram/são muito elevadas,
pois, de facto, o país é extremamente rico.
Questões como a reforma
agrária, o papel do Estado no que diz respeito à exploração dos recursos
minerais (nacionalizar ou não nacionalizar?) e, de um modo geral, como acelerar
o processo de transformação social e económica que,
para alguns, com ou sem argumentos, está a ser demasiado lento, não estando, assim, dispostos a esperar uma "eternidade"
para desfrutar da riqueza que ainda está nas mãos de algumas famílias.
Neste contexto, ódios antigos e recentes se misturam de
tal modo que algumas pessoas ficam aparentemente incapazes de discernir,
confundindo causas com consequências, amigos com inimigos. O ambiente que se
vive nas cidades satélite e nos assentamentos informais é extremamente tenso no seio dos estrangeiros, geralmente
apontados como os causadores dos males que apoquentam a sociedade sul-africana
em geral e, em particular, as comunidades onde residem. Sobram poucas dúvidas de
que no seu dia-a-dia enfrentam uma espécie de double bind, que, traduzido,
equivale à célebre expressão se ficar o bicho come, se fugir o bicho pega. Portanto,
não raras vezes, os estrangeiros correm o risco de enfrentar, ou os demandos
policiais, que incluem chantagem, agressão, extorsão ou acções xenófobas
perpetradas por alguns cidadãos, repito alguns cidadãos, que não raras vezes, a
sua última intenção é pilhar as lojas dos cidadãos estrangeiros, como Bengalis,
Somalis, Etíopes, etc.
Emídio (Mido) Macia morreu nas mãos da
polícia. A morte de alguém é sempre lamentável, produz grande consternação
quando as suas causas não são naturais, sentimentos de revolta e apelo à
vingança quando ela resulta de uma acção de violência injustificada, gratuita,
como no caso vertente, perpetrada por indivíduos que deviam ter como primeira
missão garantir a segurança de todos aqueles que residem na RSA,
independentemente de serem cidadãos nacionais ou estrangeiros.
Infelizmente, o caso que conduziu à morte do
jovem moçambicano não é isolado. Dados do IPID (Independent Police Investigate
Directorate) mostram que, só no período 2011-2012, houve 720 mortes como
resultado das acções policiais. Devem estar incluídas aqui as mortes do líder
comunitário Tatane, morto em Abril de 2011, bem como dos mineiros vítimas do
massacre de Marikana. Portanto, a brutalidade da polícia cruza todas as
latitudes.
Existe uma esperança, embora ténue, de que com
a mediatização deste caso, o Governo possa repensar o papel da polícia num país
que possui uma das constituições mais progressistas do mundo e sem paralelo no
continente africano. Porém, mais do que ter uma constituição democrática, é necessário
algum cometimento para o exercício do tão propalado espírito ubuntu.
Infelizmente, violência policial e xenofobia
andam de mãos dadas nesta terra de Tchaka Zulu, Mandela, Brenda Fassie, Dollar
Brand, Jacob Zuma, Julius Malema, etc., etc.,. Não irei deter-me em apresentar
as prováveis causas das acções xenófobas que tiveram por vezes carácter de
fagocitação, pois, isso foi devida e amplamente esmiuçado por sociólogos de
grande calibre, um pouco por todo lado. Só gostaria de recordar esses tristes
episódios de Maio de 2008 apresentando abaixo uma imagem do flaming man que percorreu todo mundo. É
a foto do moçambicano Alfabeto Nhamuave. Quem se lembra dele? Alguns!
É preciso que episódios como estes (Alfabeto
em chamas ou Mido amarrado atrás de uma carrinha da polícia e arrastado por
algumas centenas de metros), ou ainda do caso que remonta ao ano 2000, em que
moçambicanos foram usados como alvos para adestrar uma unidade da polícia
canina (isto foi divulgado pela televisão no programa Special Assignment da
SABC3), não voltem a acontecer e, por isso, não devem ser tão facilmente
esquecidos e, muito menos, devem ficar pela simples lamentação. Que haja
justiça!
Johannesburg, 8 de Março de 2013
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