30 junho 2013

ELIMINAM-SE OS MITOS SOBRE A ORIGEM DA MARRABENTA

ELIMINAM-SE OS MITOS SOBRE A ORIGEM DA MARRABENTA

O segundo “workshop” sobre a origem e a evolução da Marrabenta, entre 1930 e 2012, que no dia 21 de Junho juntou estudiosos sobre o assunto, na cidade de Maputo, afasta, por completo, a possibilidade de esse género de música ter sido criado por Dilon Djindje como ele, reiteradas vezes, reivindicou. As pesquisas não revelam fundadores, mas dão conta de que houve precursores e promotores.
Uma mostra documental do director do Instituto de Investigação Sociocultural, o pesquisador João Vilanculo, explica que na segunda metade do século 19, a cidade de Lourenço Marques, actual Maputo, regista um desenvolvimento económico, ao mesmo tempo que se configura um importante centro político-administrativo.
Nessa época, entre 1950 e 1960, criam-se os primeiros dois planos de fomento económico que promoveram a migração de cidadãos portugueses para a colónia de Moçambique, incluindo a realização de investimentos para a pequena indústria alimentar, as fábricas têxteis, de utensílios domésticos e no campo dos Portos e Caminhos-de-ferro.
Mas antes, ao longo da década de 1930, o franco investimento na urbanização, além de estimular o êxodo rural, a deslocação de populações do campo para a cidade, estimulou o surgimento dos bairros suburbanos de Maxaquene, Munhuana, Mafalala, Chamanculo e Chinhambanine.
O assentamento das populações na cidade, como resultado do sistema colonial, fez-se em função da cor e da raça da pessoa. Assim, os bairros da Polana e Ponta Vermelha são, predominantemente, ocupados por cidadãos europeus, enquanto o Central (que fazia a transição entre a zona da elite, urbanizada e o subúrbio pobre em que habitavam os negros) era ocupada por asiáticos.
Da convivência no mesmo espaço entre os negros moçambicanos, asiáticos e europeus resultou uma mestiçagem que, de acordo com os pesquisadores, contribuiu para o desenvolvimento e divulgação da Marrabenta. Na altura, os fazedores desta música que utilizavam o Xigogogwani/ Xibavane, um instrumento artesanal que nos recorda a viola, começaram a ter ferramentas musicais modernas e sofisticadas, ao mesmo tempo que frequentavam os bailes e as casas de pasto na cidade.
Sobre a mesma discussão, outro aporte é feito pelo jornalista e escritor moçambicano, Samuel Matusse, citado por Vilanculo, que refere que o nome do género provém do vigor (rebentar) que a dança insere. Em conversa com o instrumentista Moisés Manjate, do Conjunto Djambo, o académico Rui Laranjeira, mais uma vez, apurou que o nome Marrabenta tem a ver com a maneira de dançar e de tocar a guitarra até arrebentar as cordas. Por exemplo, Moisés Manjate afirma que enquanto decorriam os concertos, a dado momento, podia-se ouvir dizer frases como “rebenta o fio”.
Comungam do mesmo argumento personalidades e artísticas como o músico João Domingos que relaciona a origem do termo Marrabenta ao rebentar das cordas da viola, em virtude da forma vigorosa com que se toca o instrumento, bem como o escritor e professor de literatura Calane da Silva que fala da mestiçagem cultural entre as línguas portuguesa e bantu para a formação da palavra.
É importante notar que no “wokshop”, João Vilanculo explicou que o músico Dilon Djindje assegura que o termo Marrabenta surgiu entre o distrito de Marracuene e Bobole. Por outro lado, no seu estudo, o director do Instituto de Investigação Sociocultural, João Vilanculo, propõe uma estrutura hierárquica constituída por dois grupos de actores na história da origem e evolução da Marrabenta.
Entre os precursores do género encontram-se Fani Mpfumo que fez a primeira gravação musical entre 1947 e 1955 na África do Sul; Mahecuane que registou o disco “Yi Xibalo Muni Makhandene”, na Gallo Recording, no mesmo país, em 1945; Alexandre Langa, o autor das composições “Hoyo Hoyo Masseve” e “Hosi ya Kandonga vai Khomile”; Dilon Djindje que criou a canção “Ni Djula Maria va ni Khomba Tereza” e, por fim, os Conjuntos Djambo e João Domingos que, a partir de 1950, interpretaram a composição “Elisa Gomara Saia”.
No segundo grupo, o dos promotores, mencionam-se o Grupo RM, os músicos Wazimbo, Stewart Sukuma, Neyma Alfredo, entre outros.

Influências estrangeiras
Em relação às influências que o dito género sofreu ao longo dos anos, o escritor e músico Hortêncio Langa considera que a Marrabenta é um fenómeno de migração sonora das zonas rurais para as cidades. Diz que o Xigogogwane foi um instrumento com base no qual muitos tocadores dessa criação musical iniciaram as suas carreiras em Gaza.
De acordo com Langa, a adopção de novos elementos musicais por parte das comunidades rurais resulta do processo da aculturação, em que os músicos mesclavam o seu canto, as suas melodias e ritmos tradicionais, com os sons dos instrumentos assimilados. Por exemplo, a assimilação da guitarra no campo proporcionou aos cantores novas formas de expressão artística na criação da Majikha e a sua dança.
O compositor e intérprete da música “Lirhandzo”, Hortêncio Langa, afirma que “com a migração das populações das zonas rurais do sul de Moçambique para as grandes cidades em busca de oportunidades de trabalho ou para cumprir o “Xibalo”, nas décadas de 1940/50, as canções, os ritmos e formas de tocar dos músicos oriundos daquelas regiões fundiram-se às práticas musicais urbanas”.
Nessa época a gravação de algumas composições do género Majikha, sobretudo por parte dos moçambicanos que migraram para a África do Sul, foi o factor que contribuiu para a sua difusão. De uma ou de outra forma, a Marrabenta é um género musical que sofreu e sofre a influência da música estrangeira.
Agnelo Navais, que se refere a músicos como Young Issufo, Jazz Band, João Domingos, Orquestra Djambo, Conjunto Harmonia, cuja produção musical tem tonalidades de blues, jazz, swing, rumba, samba, afirma que a outra característica das músicas dessas bandas é o uso de instrumentos de sopro que era muito típico na época, “o que nos dava a impressão de estar diante de uma música de marcha, uma banda militar, onde se sente muito o rufar dos tambores e a secção de sopro que era dominante”.
Além do mais o facto de o próprio Fani Mpfumo ter vivido na África do Sul fez com que a sua música carregasse rastos dos géneros Kwella, Simandjemandje e Jive entre outras músicas daquele país.
Nos dias actuais, a Marrabenta produzida pelo Projecto Mabulo e por artistas como Stewart Sukuma, Mingas, Neyma Alfredo, Anita Macuácua, Lorena Nhate e muitos outros inclui marcas da música Rap, Jazz e do Ragga.
De uma ou de outra forma, Agnelo Navais afirma que apesar destas influências é importante notar aqui que “essas músicas não perderam a sua base rítmica, principalmente, no que diz respeito ao toque ou ao compasso dos instrumentos como a bateria e a viola-baixo, onde o ritmo do bombo é contínuo, e a “caixa da ré” acentua em cima do quarto tempo”.
In: Jornal @VERDADE – 27.06.201


13 junho 2013

O ORAL E O ESCRITO EM UALALAPI

O ORAL E O ESCRITO EM UALALAPI 



O presente estudo procura analisar a presença do oral e do escrito no romance de estreia de Ungulani Ba Ka Khosa, Ualalapi, observando as recorrências intertextuais nele verificadas. 
Escritor moçambicano: Ungulani Ba Ka Khosa

A relação dialógica entre os textos orais da tradição africana e textos escritos que relevam de formas ocidentais ocupa, neste contexto, especial destaque, sendo que tradição e modernidade não se excluem, antes se fecundam mutuamente. Assim, do cruzamento dos intertextos, emerge a afirmação da pluridiscursividade como uma força presente na narrativa africana moderna e particularmente neste romance moçambicano.
Nenhum texto pode ser concebido separado de um diálogo com o meio social e cultural e com o conjunto de produções linguísticas – literárias e não literárias – que o precederam. Assim, existe sempre uma ligação profunda entre o mundo fora do texto e o mundo no texto, sem que tal signifique o estabelecimento de uma relação mimética entre ambos, uma vez que o representado é sempre já uma modelização do real e não a sua imagem especular. Do mesmo modo, os textos que gravitam em torno de uma dada obra literária estabelecem múltiplas trocas de sentido com esta última, sendo necessário atender, no processo de recepção, à complexa teia de interrelações que cada um dos enunciados ativa.
Na compreensão destas questões, assumem grande importância os estudos bakhtinianos sobre o dialogismo, os quais remetem genericamente para a ideia de que qualquer discurso, de forma particular o discurso romanesco, estabelece necessariamente relações com os discursos alheios presentes nos meios social, cultural e ideológico. Esta condição de diálogo com o “outro”, considera Bakhtine, é imanente a todo o ato discursivo, uma vez que apenas um ser humano em estado adâmico poderia estar imune à influência de vozes e consciências exteriores a si:
Un enoncé vivant , significativement surgi a um moment historique et dans un milieu social détérminés, ne peut manquer de toucher á des miliers de fils dialogiques vivants, tissés par la conscience socio-idéologique autour de l’objet de tel enoncé et de participer activement au dialogue social. (BAKHTINE, 1978, p.100)
A noção bakhtiniana de “orientação dialógica do discurso” conheceu uma grande divulgação e foi amplamente estudada em diversos contextos, adotando-se geralmente o conceito de intertextualidade, introduzido por Julia Kristeva na apresentação do teórico russo, para designar as relações que um enunciado estabelece com outros enunciados – os intertextos. Estes tanto podem ser constituídos por textos verbais, literários e não literários, como, em teorias mais abrangentes, por outros objetos semióticos. Deste modo, como acentua Kristeva, deverá estar presente no horizonte quer do receptor quer do produtor do discurso a consciência de que este é sempre múltiplo:tout texte se construit comme mosaïque de citations, tout texte est absorption et transformation d’un autre texte. À la place de la notion d’intersubjectivité s’installe celle d’intertextualité, et le langage poétique se lit, au moins, comme double. (KRISTEVA, 1969, p.85)
Ao considerarmos as literaturas africanas modernas do ponto de vista do diálogo de culturas e tradições nelas estabelecidos, a pertinência dos conceitos de intertextualidade e dialogismo torna-se ainda mais acentuada. Na verdade, não poderá ser ignorado o facto de que a experiência da colonização implica o desenvolvimento de situações de transculturação, geradoras de penetrações entre a cultura do colonizador e a cultura do colonizado. Ainda que seja forçoso reconhecer a diferença de valoração de uma e de outra nas sociedades coloniais, não seria legítimo reduzir o contato entre ambas a uma relação de mera submissão/imposição hegemônica.
Assim, sendo crucial salientar as complexas relações de poder ativadas por situações coloniais e pós-coloniais, impõe-se o reconhecimento da “impureza” transmitida pela síntese de culturas, tradições, modelos e formas, particularmente nos contextos em que nos propomos situar.
Neste enquadramento, tradição e modernidade deixam de funcionar como pares dicotômicos, com os correspondentes binômios África e Ocidente, rural e urbano, oralidade e escrita, línguas africanas e línguas europeias. Como afirma Patrick Chabal, “toda a cultura é uma constante fusão transformativa do tradicional e do moderno. Deste modo, modernidade não é o inverso da tradição, mas antes tradição tal como se mudou e modernizou” (CHABAL, 1994, p. 23). As culturas encontram-se em permanente transformação e são essas mudanças, complexas e, por vezes contraditórias, que deverão ser questionadas, não sendo viável a recuperação de uma “pureza pré-colonial”, na qual se radicaria a autenticidade dos povos africanos.
A consideração das relações dialógicas estabelecidas nas literaturas africanas contemporâneas implica que se preste especial atenção à mudanças que se verificaram nestas sociedades, na passagem de culturas orais a culturas escritas ou “mistas”. Com efeito, o conceito de intertextualidade apresenta-se numa e noutra situação de forma substancialmente diferente.
Sobre esta questão, Walter J. Ong propõe a ideia de que apenas com o surgimento da imprensa emerge a consciência do fenômeno da intertextualidade, pois o conceito em si se encontra ausente nas culturas orais e manuscritas:
Manuscript culture had taken intertextuality for granted. Still tied to the commonplace tradition of the old oral world, it deliberately created texts out of other texts, borrowing, adapting, sharing the common, originally oral, formulas and themes, even though it worked them up into fresh literary forms impossible without writing. Print culture gave birth to the romantic notions of ‘originality’ and ‘creativity’, which set apart an individual work from other works even more, seeing its origins and meaning as independent of outside influence, at least ideally. When in the past few decades doctrines of intertextuality arose to counteract the isolationist aesthetics of romantic print culture, they come as a kind of shock. They were all the more disquieting because modern writers, agonizingly aware of literary history and the de facto intertextuality of their own works, are concerned that may be totally under the ‘influence’ of other texts. (…) Manuscript cultures had few if any anxieties about influence, and oral culture had virtually none.3 (ONG, 1982, p.133-134)
Embora longa, a citação de Ong tem o mérito de chamar a atenção para a diferença entre culturas orais e culturas escritas (com as manuscritas a constituírem um estádio intermédio) no que diz respeito à atitude do produtor relativamente ao corpus de textos implicado na situação comunicativa. Na verdade, não é a existência da intertextualidade que está em causa – qualquer texto, oral ou escrito, em qualquer época e em qualquer cultura, entra em contacto com discursos alheios – , mas sim o conceito de autoria, entendido como direito de propriedade sobre o texto (inexistente na tradição oral) e exigência de originalidade, ou seja, não imitação de discursos de outros (“angústia” ainda desconhecida na Idade Média).
Pela especificidade da situação cultural em que as literaturas africanas modernas se encontram, uma “categoria” intertextual de fundamental importância consiste, pois, no legado da oralidade – a chamada literatura oral ou oratura –, a qual se inscreve, por diversos modos, nas práticas de escrita literária contemporâneas. Importa, deste modo, problematizar a relação dialógica entre os textos orais da tradição africana e textos escritos que relevam de formas ocidentais. Na verdade, como afirmamos anteriormente, recusamos a dicotomização entre tradição e modernidade para entendermos os intertextos implicados nas obras literárias como manifestações de tradições diversas, relacionadas quer com as vivências das culturas tradicionais africanas quer com a multiplicidade de modelos de origem europeia.
A relação do escritor com as vozes do passado da sua comunidade surge frequentemente como um fundamento ético inerente à produção literária, observando-se, como refere Alberto de Carvalho, “a existência, com valor de necessidade, de uma qualquer forma de diálogo com as suas respectivas tradições” (CARVALHO, 1995b, p.397).
Se é verdade que, de acordo com os princípios bakhtinianos de orientação dialógica do discurso, esta relação seria em qualquer caso imanente ao discurso, trata-se, nesta circunstância, de solicitar ao escritor que intencionalize esse diálogo, aliando à criatividade pessoal uma ligação profunda às raízes étnicas e deixando que o texto se impregne das marcas da arte verbal oral.
É necessário ter em atenção que o nascimento das literaturas escritas terá implicado, num primeiro momento, a ruptura com as tradições artísticas da África Negra, pela sua ligação intrínseca às referências culturais do colonizador. A escrita, literária e não literária,
a pu reléguer l’expression orale traditionnelle dans um monde à part, volontiers rattaché au passé. Le contraste entre les deux pratiques recoupe grossièrement une opposition entre ville et campagne, population scolarisée et population analphabète, jeunes et vieux, hommes et femmes, praticiens d’une langue maternelle et praticiens d’une langue seconde.4 (CHEMAIN, 1985, p.56). A necessidade cedo sentida de impor a diferença da escrita africana relativamente aos modelos europeus conduziu à tomada de consciência do escritor, urbanizado e formado de acordo com os cânones ocidentais, de que era fundamental o diálogo da literatura escrita com a literatura oral. Daí a “prescrição” desse regresso às raízes, motivada mais por razões éticas do que propriamente estéticas, e que acabou por gerar os equívocos inerentes a qualquer tentativa de “programar”, externamente, a criação artística.
A história e o desenvolvimento das literaturas escritas mostra que são muitos e diversificados os caminhos assumidos por cada um dos escritores face ao seu passado cultural e artístico, desde a total independência – e escritores há que assumem, sem complexos, essa recusa – até a produção de estruturas textuais decalcadas das tradicionais. Ainda que sejam, pois, impossíveis as generalizações, Laura Padilha, a propósito de um texto de Manuel Rui, chama a atenção para uma atitude que nos parece nortear uma parte significativa da produção literária contemporânea no espaço africano de língua portuguesa:
Há, pois, o lugar do letrado e do não letrado, mas o poeta não os percebe como excludentes. Dito de outro modo: o eixo da tradição ancestral e o da transformação se entrecruzam. Como em jogo de espelhos, um traz em si a imagem do outro, multiplicada. Desse modo, não obstante toda a força mística das raízes, fincadas no solo de “antes de”, não se quer perder a consciência do presente, percebido como pulsão transformadora. (PADILHA, 1995, p.91)
É tendo como ponto de partida esta relação complexa e multívoca do autor com as suas tradições (as internas e as externas) que, de seguida, procuraremos apresentar algumas das formas desse diálogo, recorrendo para tal à obra de estreia do escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa – Ualalapi, publicada em 1987.
Neste romance, procura-se recuperar uma parcela da história de Moçambique: o reinado de Ngungunhane e concretamente o declínio e queda do Império de Gaza, materializado na captura e partida do imperador para Portugal, cenas com as quais encerra a narrativa.
A valorização da tradição e a fundamentação do tratamento historiográfico da figura de Ngungunhane, a partir dos dados da oralidade, interliga-se estruturalmente com a presença, explícita nuns casos e implícita noutros, de modelos literários ocidentais. A relação existente na obra entre oralidade e escrita não está, contudo, isenta de ambiguidades, pelo que importa analisar com alguma atenção as condições desse diálogo.
Logo à partida, um aspeto que interessa considerar diz respeito à caracterização da voz narrativa. Apenas no final do romance se pode perceber a complexidade da situação enunciativa: um velho conta histórias a uma outra personagem (um jovem, supõe-se, pelo tratamento por “tu” usado pelo velho), que as regista por escrito. Existe, assim, uma “oralidade primária” em Ualalapi – as histórias são, na sua fonte, orais, resultando da memória transmitida do avô Somapunga ao neto e deste ao jovem ouvinte.

Este último, por sua vez, instaura-se como narrador propriamente dito, ao recriar ficcionalmente os elementos da tradição e ao assumir diretamente a responsabilidade pela enunciação narrativa.
Deste modo, em Ualalapi, a encenação de uma dupla discursividade – diretamente escrita e indiretamente oral – contribui para acentuar a ligação da história ao modo da oralidade e aos elementos historiográficos preservados pela tradição, simultaneamente remetendo para a necessária modelização imposta pela cultura escrita.
Será, contudo, no plano da própria estruturação interna da narrativa que poderemos encontrar os índices mais significativos da relação entre tradições presentes nesta narrativa de Ba Ka Khosa. Depois da “Nota do autor” inicial, a obra intercala seis capítulos (seis histórias) identificados por títulos diferentes e antecedidos de uma ou mais citações, com uma série de seis textos denominados “Fragmentos do fim”. Se, no primeiro caso, estamos perante o discurso ficcional do narrador-autor, no segundo, encontramo-nos frente a transcrições de diversa proveniência que representam, com uma única exceção, o discurso oficial dos agentes coloniais.
Assim sendo, a obra constitui-se por intermédio de “um expediente de colagens que, alternativamente, intertextualizam fragmentos de documentação histórica (impressos em itálico) e enunciados narrativos actuais (em impressão comum) unidos todos por uma relação dialógica de matriz lógica oral.” (CARVALHO, 1995a, p.94).
Apresentando-se de forma explícita, a intertextualidade possibilita o estabelecimento de um paralelo entre discursos portadores de uma carga ideológica de sentido oposto: os documentos históricos veiculam a perspectiva colonialista; as histórias ficcionais procuram fundamentar-se na tradição oral, ou seja, na visão inscrita pelos valores tradicionais africanos. Não se trata, neste caso, tanto de um diálogo a estabelecer entre as duas perspectivas, no sentido de uma conciliação possível ou de um consenso a ser procurado, mas sobretudo de um confronto, em que a leitura dos fatos por parte do colonizado e por parte do colonizador divergem profundamente.
Multiplicadas as vozes, desaparece a ilusão de uma verdade a ser alcançada, e a relação dialógica estabelecida rompe com a possibilidade de um discurso histórico de sentido único.
Constituindo, tal como a série “Fragmentos do fim”, intromissões de discursos alheios no discurso do narrador-autor, as epígrafes existentes na obra acentuam ainda mais a pluridiscursividade presente em Ualalapi. Ainda que não as analisemos uma a uma, será importante observar a diversa proveniência cronológica, geográfica e cultural dos intertextos escolhidos: extratos da época de Ngungunhane (da autoria de um historiador colonial português e de um missionário suíço), uma afirmação de Agustina Bessa Luís, uma frase anônima numa língua africana e três versículos bíblicos.
A heterogeneidade das citações retira o caráter dualista que, de certo modo, poderia estar presente no confronto entre os capítulos ficcionais e os textos historiográficos, e abre um importante espaço intertextual, no qual podem ser desenvolvidos os sentidos provocados pela leitura “tabular”.
Perante a observação da estrutura compósita deste romance, poder-se-á sustentar que existe uma intenção deliberada, por parte do autor implicado, de cruzar na superfície textual os modos da oralidade com os modos da escrita em várias das suas tradições. Observe-se, neste contexto, que não existe um único modelo ocidental que possa representar em África a modernidade, mas sim modelos e tradições diferentes que, de modo diverso, entram (ou não) em relação com as tradições (também elas múltiplas) dos espaços culturais africanos.
O diário de Manua, filho de Ngungunhane, que o narrador apresenta como tendo sido encontrado nas ruínas da capital do império de Gaza, metido numa caveira, representa de forma paradigmática a adoção da cultura do estrangeiro.
A bordo do paquete que o traz de regresso a Moçambique após os estudos em Portugal, Manua abre os papéis e escreve, lamentando os hábitos do seu povo, que considera bárbaros, e formulando o propósito de impor, quando chegar ao poder, “os costumes nobres dos brancos” (KHOSA, 1987, p.100).
Porém, enlouquecido pela bebida e pelo desprezo da sua cultura de origem, Manua acaba por definhar e morrer perante a indiferença do pai, que não lhe pode perdoar a traição ao povo tsonga. A substituição da oralidade pela escrita liga-se, deste modo, à ideia de decadência do Império: por um lado, sendo filho do rei, é a própria descendência de Ngungunhane que entra em degenerescência, eliminando a possibilidade de renovação; por outro lado, o falecimento de Manua dá-se pouco antes da prisão de Ngungunhane, prevista e desejada pelo filho no dia da própria morte.
Igualmente na profecia final do imperador, a violência futura da colonização passa pela imposição da escrita:
Estes homens cor de cabrito esfolado que hoje aplaudis entrarão nas vossas aldeias com o barulho das suas armas e o chicote do comprimento da jibóia. Chamarão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que enlouqueceram Manua e que vos aprisionarão. (…) Exigirão papéis até na retrete, como se não bastasse a palavra, a palavra que vem dos nossos antepassados, a palavra que tirou crianças dos ventres das vossas mães e mulheres.
O papel com rabiscos norteará a vossa vida e a vossa morte, filhos das trevas. (KHOSA, 1987, p.118).
Comentando o capítulo “O diário de Manua” e concretamente a invenção de fontes escritas, como o próprio diário e o testemunho do árabe, Ana Mafalda Leite interpreta-o como uma reflexão irônica “sobre o abandono da oralidade, e a cultura que ela representa, enquanto uma das causas de degradação cultural” (LEITE, 1995, pp.61-62).
Não recusando este papel crítico, pensamos que a incorporação de discursos alheios, de origem ocidental, não se limita a cumprir uma função paródica, de discursos a destruir devido à ideologia colonialista que representam. Tal parece-nos mais evidente no caso das epígrafes, as quais, ao cumprirem uma função temática relativamente aos textos que introduzem, implicam a aceitação de, pelo menos, parte da herança civilizacional ocidental, e, do mesmo modo, a própria utilização do código escrito por parte do narrador contraria esta ideia do escrito como ameaça à cultura da oralidade.
Assim, a narrativa parece sugerir vias de criatividade e revitalização cultural pela fecundação recíproca do oral e do escrito, das tradições africanas e das tradições ocidentais. Instaura-se, pois, um espaço intertextual, em que os modos da escrita ocidental se revelam estruturantes, em interação com a tradição oral, recuperada para, a partir dela, se construir uma leitura dos fatos históricos que se distancie da historiografia colonialista.
Importa ainda referir que a oralidade, para além da função que acabamos de enunciar (e que é primordial), surge valorizada em si mesma como parte da cultura moçambicana.
O poder da palavra falada é acentuado através da introdução de longos discursos das personagens, o que simultaneamente reforça a já significativa pluridiscursividade textual.
Por outro lado, o efeito de animização da palavra falada superlativiza a força da oralidade, o que se observa em duas situações – na história de Damboia, que sofre a violência dos rumores do povo:
[As palavras] cresciam de minuto a minuto e entravam em todas as casas, escancarando portas e paredes, e mudavam de tom consoante a pessoa que encontravam.
A violência que Ngungunhane utilizou para sustá-las [sic] não surtiu efeito. Elas percorriam distâncias à velocidade do vento. (KHOSA, 1987, p.65)  – assim como na permanência das palavras para além dos limites humanos de Somapunga, o contador de histórias de Ngungunhane à personagem que virá a ser o interlocutor do narrador:
[Meu avô] Morreu deitado a dormir, sonhando alto.
De manhã, ao entrar na sua cubata, vi-o deitado ao comprido, olhando o tecto. Falava. A voz tocavame profundamente.
Durante horas seguidas ouvi-o falar. Quis acordá-lo, pois já era tarde. Ao tocá-lo notei que o corpo estava frio. Há muito que tinha morrido. Tiveram que o enterrar imediatamente para que os vizinhos não nos chamassem feiticeiros. E o nosso espanto foi ouvir a voz saindo da cova, uma voz como que vinda de escarpas abissais (KHOSA, 1987, pp.115-116).
Em conclusão, podemos considerar que em Ualalapi estão presentes dois modos fundamentais da relação entre as culturas ocidentais da escrita e as culturas tradicionais africanas.
Em primeiro lugar, uma dimensão de “distância”, a transmissão de uma diferença profunda entre ambas as culturas e a necessidade de proteger a identidade das tradições africanas, ainda que sem a visão redutora dos dualismos.

Neste sentido convergiriam a caracterização de Manua e as alusões no discurso de Ngungunhane, em ambos os casos manifestações excessivas e apocalípticas face à iminência da aculturação colonial.
Afastei-me da cabana que me estava reservada e virei o rosto em direcção à fogueira. Entre duas mangueiras enormes, o velho, com a cabeça entre as mãos, não via o fogo e a noite. Chorava. E eu afastava-meda cubata, do meu quarto, e atirava-me à noite de luar. Algo me intrigava no discurso do velho e de Ngungunhane. (KHOSA, 1987, p.125)
Aculturado como Manua e como ele isolado, em grande medida, dos valores dos antepassados, o narrador não esconde as tensões provocadas pela relação entre a cultura oral, em desaparecimento, e a cultura escrita cada vez mais predominante. Contudo, desta relação resultam igualmente vínculos, penetrações, influências recíprocas que potencialmente poderão gerar novos valores criativos e um enriquecimento civilizacional. A consciência deste contacto efetivo e proveitoso, a que chamaríamos a dimensão da “proximidade”, remete precisamente para a existência de um importante espaço dialógico nas sociedades e culturas africanas, traduzindo-se este diálogo, em termos literários, por uma pluridiscursividade que mantém e aprofunda, como afirma Bakhtine, a própria diversidade existente no meio social:
Le prosateur-romancier n’extirpe pas les intentions d’autrui du langage polyphonique de ses oeuvres, ne détruit pas les perspectives, mondes et micromondes socio-idéologiques que se découvrent au-delà de cette polyphonie: il les introduit dans son oeuvre. (…) Le développement du roman consiste en un approfondissement du dialogue, dans son déploiment et son affinement. 5 (BAKHTINE, 1978, p.120)
Em Ualalapi, como observamos, o dialogismo textual realiza-se por duas vias fundamentais: a presença do oral (discurso histórico da tradição e enunciação “primária” do velho) no escrito e a introdução da escrita do Outro (intertextos de origem ocidental) na escrita própria. Importa ainda observar que a relação entre a escrita e o oral manifesta-se também na forma como o texto literário postula a parcialidade e a subjetividade da História, por um lado, e o contraste entre as versões da historiografia quer colonialista quer revolucionária, por outro lado.
De acordo com Alberto de Carvalho, trata-se de reordenar os vectores da cultura escrita por aplicação da sua força produtiva à documentação existente sobre a história de Ngungunhane a fim de recriar outra, de cunhar a sua versão da história ambiguamente literária. Ora, como todo o processo conflitual se define por antagonismos, a sua completude exige a versão do outro lado, leitura legitimada pela moldura cultural autóctone, neste caso à luz de uma estratégia que focaliza as personagens africanas e procede à escuta das suas vozes populares, tradicionais, portadoras de sentidos que contestam as versões postas em circulação pelas escritas anteriores (de antes e de depois da independência nacional). (CARVALHO, 1995a, p.94)
A relação entre memória oral e testemunhos escritos a respeito da figura de Ngungunhane põe, pois, em confronto versões diferentes entre si, como seria expectável, mas é necessário considerar igualmente a diversidade existente na própria documentação disponível, que emerge aqui como um intertexto de inegável importância. Logo no início da obra, uma sequência de quatro citações sobre a personalidade de Ngungunhane adverte o leitor para a parcialidade do juízo histórico, devido à valoração de sentido oposto que os dois autores referenciados fazem daquela personagem.
Com efeito, se duas das citações, atribuídas a Ayres de Ornellas, apresentam positivamente o imperador, realçando o “ar de grandeza e superioridade” e a “capacidade de argumentação lúcida e lógica”, nas outras duas, da autoria de um missionário suíço, Dr. Liengme, a mesma personagem é descrita como sendo “ébrio”, irascível, condutor de uma “política falsa, absurda, cheia de duplicidades” (KHOSA, 1987, p.13). Assim lançado o relativismo sobre a figura histórica de Ngungunhane, pode o narrador-autor reivindicar a construção de uma versão possível, apenas mais uma, que se inscreve num espaço intertextual configurado, como se defendeu anteriormente, quer pelas escritas anteriores quer pelas vozes da tradição, por sua vez divergentes das versões construídas pela escrita historiográfica.
Igualmente significativa é a epígrafe de Agustina Bessa Luís que se segue na obra àquelas que acabamos de analisar, precedendo o texto ficcional: “A História é uma ficção controlada”. A autoridade da escritora portuguesa funciona como forma de legitimação do tratamento a que o autor sujeita a matéria histórica, aproximando simultaneamente a narrativa do modelo romance historiográfico pós-moderno. Assim, reflete-se a concepção de que toda a História é uma narrativa não substancialmente diferente da escrita ficcional, dependente, portanto, de atos de seleção e interpretação condicionados por pressupostos individuais e intersubjetivos.
As estruturas e conteúdos da oralidade, ao se entrecruzarem no espaço dialógico da ficção com os documentos escritos da historiografia colonial (de forma explícita, pela citação) e revolucionária (presente de modo implícito), questionam as ideologias subjacentes à lógica do devir histórico num e noutro caso, introduzindo um fator de perturbação e revisão de verdades instituídas num passado mais remoto ou mais recente.
Por outro lado, a atribuição causal da derrota de Ngungunhane desviasse da racionalidade ocidental que enforma a historiografia oficial, uma vez que se enfatiza a violação das leis tradicionais, ou seja, submete-se o curso da História a uma ordem transcendente, punitiva ou sancionadora. De resto, a ilegitimidade do poder de Ngungunhane fica logo sugerida na “Nota do autor” com que se inicia a obra, ao declarar que, no fim da vida, Ngungunhane se apercebeu de que “as línguas do seu império não criaram […] a palavra imperador” (KHOSA, 1987, p.11). Numa cultura em que a Palavra tem um valor fundador do real e é geradora de simbolismos cosmogônicos, a inexistência do termo desautoriza a pretensão sobre o Império, marcando a precariedade do poder de Ngungunhane.
Concluímos, reafirmando que a imbricação do oral e do escrito apresenta, na narrativa de Ba Ka Khosa e, de uma forma geral, na narrativa africana moderna um valor de questionação das culturas, que não mais se podem entender como isoladas umas das outras. Neste sentido, se pronuncia Mia Couto, ao referir que a literatura está do lado da modernidade e, logo, por essa razão, perde fundamento a busca de uma originalidade conotada com o passado pré-colonial ou com a ruralidade oral. Por isso, continua o escritor:
Os intelectuais africanos não têm que se envergonhar da sua apetência para a mestiçagem. Eles não necessitam de corresponder à imagem que os mitos europeus fizeram deles. […] Eles são africanos assim mesmo como são, urbanos de alma mista e mesclada, porque África tem direito pleno à modernidade, tem direito a assumir as mestiçagens que ela própria iniciou e que a tornam mais diversa e, por isso, mais rica. (COUTO, 2005, p.61)
A mestiçagem aqui proposta traduz-se, pois, numa atitude de criatividade que situa a escrita literária na confluência de culturas diversas, todas elas importantes para o posicionamento ético e estético do autor africano. A condição fronteiriça do escritor faz dele um interlocutor privilegiado de um mundo em mudança, no qual os limites entre o que é ocidental e o que é africano já não podem ser traçados com o rigor pretendido tanto pela ideologia colonialista, no esforço de auto-legitimação, como por facções do pensamento anticolonial, desejoso de expurgar uma presença ocidental, que, ao longo dos séculos, se foi inscrevendo na identidade coletiva dos povos colonizados. É este também o testemunho deixado em Ualalapi, através da modelização literária de um período da história moçambicana que tem sido representado de modos muitos distintos, de acordo com o posicionamento ideológico de quem o interpreta. As inquietações trazidas para o presente colocam o acento num mundo de líquidas fronteiras, em que tradição e modernidade mutuamente se fecundam, para a construção de identidades dinâmicas, em permanente estado de reconstrução.
NOTAS
Tradução livre das citações:
1- Um enunciado vivo, surgido significativamente num meio histórico e num meio social determinados, não pode deixar de tocar em milhares de fios dialógicos vivos, tecidos pela consciência sócio-ideológica em volta do objeto enunciado e de participar ativamente no diálogo social.
2- (...) todo texto se constitui como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro. No lugar da noção de intersubjetividade se instala a de intertextualidade, e a linguagem poética se lê, ao menos, como dupla.
3- A cultura manuscrita tomou a intertextualidade como garantida.  Ainda ligada ao lugar comum da tradição do antigo mundo oral, ela deliberadamente criou textos a partir de outros textos, pedindo emprestado, adaptando, partilhando as fórmulas e temas comuns, originalmente orais, apesar de as ter convertido em fórmulas literárias renovadas, impossíveis sem a escrita. A cultura impressa fez nascer as noções românticas de originalidade e criatividade, as quais separaram, ainda mais, uma obra individual de outras obras, concebendo as suas origens e significados como independentes de influências externas, pelo menos idealmente. Quando, nas últimas décadas, surgiram doutrinas da intertextualidade para se contrapor à estética isolacionista da cultura romântica impressa, elas provocaram uma espécie de choque. As mesmas eram tanto mais inquietantes quanto os escritores modernos que, cientes da história literária e da intertextualidade de fato de suas próprias obras, estão preocupados que possam estar totalmente influenciados por outros textos (...) As culturas manuscritas tinham poucas, caso tivessem alguma, ansiedades sobre a influência, e culturas orais não tinham virtualmente nenhuma.
4- (...) pôde relegar a expressão oral tradicional para um mundo à parte, voluntariamente preso ao passado. O contraste entre as duas práticas configura, grosseiramente, uma oposição entre cidade e campo, população escolarizada e população analfabeta, jovens e velhos, praticantes de uma língua materna e praticantes de uma segunda língua.
5- O prosador-romancista não extirpa as intenções do outro da linguagem polifônica de suas obras, não destrói as perspectivas, mundos e micromundos sócio-ideológicos que se descobrem além dessa polifonia: ele os introduz na sua obra (...) O desenvolvimento do romance consiste num aprofundamento do diálogo, no seu desdobramento e no seu afinamento.
REFERÊNCIAS
BAKHTINE, Mikhail. Esthétique et théorie du roman. Paris: Gallimard, 1978.
CARVALHO, Alberto de. “Magia e tradições literárias na escrita da história”. Dedalus, nº5, 1995a.
_______. “Culturas e literaturas africanas, entre o insular e o continental”. In: Actas dos primeiros cursos internacionais de Cascais. Cascais: Câmara Municipal, 1995b.
CHABAL, Patrick. Vozes moçambicanas. Literatura e nacionalidade. Lisboa: Vega, 1994.
CHEMAIN, Arlette. “De l’oralité à l’écriture, continuité ou rupture: l’example des littératures d’Afrique”.In: RUNTE, Hans R. et Roseann (eds). Oralité et littérature.
Actas do IX Congresso da AILC. Bern.:Peter Lang, 1985.
COUTO, Mia. Pensatempos. Lisboa: Editorial Caminho, 2005.
FONSECA, Ana Margarida. Projectos de encostar mundos. Miraflores: Difel, 2002.
KHOSA, Ungulani Ba Ka. Ualalapi. Lisboa: Caminho, 1987.
KRISTEVA, Julia. Sèméiotikè. Recherches pour une sémanalyse. Paris: Seuil, 1969.
LEITE, Ana Mafalda. “A dimensão anti-épica da moderna ficção moçambicana:
Ualalapi de U.B.K. Khosa”. Discursos, 9, fevereiro, 1995.
ONG, Walter J. Orality and literacy. The technologizing of the world, London; New York: Routledge, 1982.
PADILHA, Laura Calvacante. “Ficção angolana pós-75: processos e caminhos”.
Discursos 9, fevereiro, 1995.


  • Margarida Fonseca - Instituto Politécnico da Guarda/Faculdade de Letras de Lisboa
In: Maputo, Quarta-Feira, 12 de Junho de 2013:: Notícias


05 junho 2013

ENTREVISTA  COM MIA COUTO



LIVRO NÃO PODE SER REFÉM DA VONTADE DO MERCADO - MIA COUTO, VENCEDOR DO PRÉMIO CAMÕES, GOSTARIA QUE O ESTADO “SE PREOCUPASSE MAIS” COM O ACESSO À LITERATURA

O ESCRITOR moçambicano que mais livros publicou, Mia Couto, acaba de ganhar o Prémio Camões, o mais prestigiado galardão literário da língua portuguesa (em valor pecuniário, 100 mil euros, é idêntico ao Prémio Leya). Tornou-se, semana passada, no segundo laureado moçambicano, depois de José Craveirinha o ter recebido em 1991.
                                                                                                                                                           
As reacções à distinção ao autor que se evidenciou da poesia ao romance, passando pela crónica e pelo conto, foram várias, surgidas do interior de Moçambique e do exterior, sobretudo nas porções do mundo onde o português é falado. Também foram várias as reacções de Mia Couto, evidenciadas pela satisfação e pela preocupação nesta entrevista ao “Notícias”, que teve que ser breve dado o assédio que desde a manhã de terça-feira estava a ser alvo o autor pela imprensa nacional e estrangeira baseada na capital do país. Deixamos, nesta edição, algumas das linhas desse diálogo com um escritor singular no nosso panorama e que leva uma carreira de 30 anos.
- Acaba de vencer o maior prémio literário em língua portuguesa. Para além do óbvio sentimento de satisfação, que reacção tem ao facto de estar a ganhar o Prémio Camões, isso tendo em conta que é alguém já habituado aos prémios?
- Devo dizer que seria grave que alguém se habituasse a prémios, porque isso significaria que a pessoa estaria a viver fora do território reservado ao artista, ao criador, que, penso, tem ou deve ter como grande prémio o que faz. Os prémios que tenho recebido trazem-me tudo menos hábito. No caso do escritor, quem deve ser premiado é o livro e não necessariamente o escritor. Essa é a minha filosofia. Mas é também preciso dizer, no que toca a mim e neste caso específico, este prémio é muito particular. É um prémio muito particular na constelação que é o conjunto dos países de língua portuguesa. Fiquei bastante comovido e satisfeito sobretudo porque me recordei bastante do meu próprio pai. Recordei-me o quanto ele está vivo dentro de mim. Sei que ele está satisfeito, porque vivo dentro de mim, pelo facto de aquilo que foi o empenho da vida dele, que foi criar os filhos num ambiente de poesia e de literatura, tem estado a surtir efeito.
- Muitas vezes disse ser um homem de poesia. No entanto, é na prosa que mais se evidencia. Se formos a prestar atenção a muitas actas dos júris que o premiaram muitas vezes há a referência do conjunto da obra ou pela capacidade inventiva ou inovadora na língua, o que, quanto a mim, se evidencia muito na sua prosa. Acha que o poeta que mora em si é ostracizado em favor do prosador?
- Isso é verdade. Bem mesmo! Mas o poeta no sentido geral, não apenas eu. O que eu faço por exemplo na invenção de palavras é uma parte da minha abordagem poética do mundo. Quando se isola isso e se dá um nome específico a isso que para mim faz parte do meu trabalho poético sinto que se não está a dar o nome verdadeiro às coisas. Eu como pessoa acho que há uma certa invisibilidade da poesia, na maneira como se olha para a poesia. Falo isso não só para o meu caso. Por exemplo, os grandes prémios da literatura normalmente são atribuídos a escritores de prosa, aos romancistas e aos demais que trabalham na ficção em prosa, embora possa dizer também, e como tu sabes, há uma tentativa de corrigir isso.
Portanto, há alguma coisa que caminha contra a corrente e faz tornar visível a poesia. Um exemplo disso é este prémio, que premiou o cabo-verdiano (Arménio Vieira, em 2009), que é um poeta. Mas são casos raros. Mas tenho a esperança de ver a poesia reconhecida por toda a sua capacidade criativa no plano linguístico e não só.
- Muitas vezes que falamos de livros levanta-se várias questões. Moçambique tem agora o segundo prémio Camões e vários outros laureados em vários outros prémios; tem havido uma significativa produção literária mas se atentarmos a questões como mercado, políticas para a produção e circulação do livro, etc., veremos que há uma espécie de dar muito e receber pouco panorama…
- Eu penso que alguma coisa tem que ser feita, falando disso, que ultrapassa a vontade das editoras. Não se pode deixar que o assunto livro à vontade do mercado. Não podem ser as leis do mercado a decidirem o destino ou o tratamento do assunto livro. Tem que haver uma aposta política e uma vontade do governo para subsidiar. Gostaria que o Estado se preocupasse muito mais com esta questão. No nosso país a situação do livro é humilhante para o autor, é humilhante para a editora e é humilhante em alguma instância também para o próprio leitor. Acaba-se por mendigar para que a edição do livro possa ficar mais barata ou aceitável e que confesso que não fica aceitável para os moçambicanos. Estive recentemente numa conferência em Nova Iorque e um escritor uruguaio dizia com muita graça que nem é preciso que haja uma repressão política sobre os livros porque só o preço já proíbe que os livros tenham circulação. Esta afirmação encaixa-se à nossa realidade. Isso não é uma coisa que o escritor possa resolver, nem na sua relação contratual com a editora. Tem que haver alguma coisa acima disso, que estabeleça que os livros sejam vistos não como uma mercadoria mas muito acima disso. O governo neste aspecto não se pode demitir de tomar acção, ele é a peça fundamental para que algo mude.
- Acha que Moçambique tem nas condições actuais condições para materializar esse desejo de ver o livro tão barato quanto se pretende e evitar deste modo que as regras do mercado tornem mais dolorida a trajectória que vai da escrita à leitura?
- Eu acho que há coisas que se pode fazer. Na minha opinião primeiro tinha que haver essa declaração aberta ou manifestação de vontade de que queremos chegar lá. Nem esse primeiro passo existe e aceita-se que é assim e que estamos condenados a ficar nesse esquema mercantilista. Mais do que isso vemos uma profunda demissão dos governos que nem sequer tentam dar passos mais ousados na questão do livro. Portanto, há uma desistência à partida para uma luta que mesmo que tenha que ser dura tem que ser travada em prol da nossa sociedade. Já que agora estamos nesta onda de negociarmos coisas porque é que escritores, editores e governo não se sentam e tratem deste assunto tão útil quanto muitas outras utilidades no nosso país. Usando aqui a metáfora (do escritor uruguaio que advoga haver uma repreensão política sobre os livros), há aqui uma guerra que está sendo feita; há aqui uma espécie de impossibilidade de acesso da população ao livro em razão do preço e devemos todos tentar resolver isso.
- É um escritor único no nosso país, pelo número de livros publicados e pela projecção que tem fora de portas. Julgo saber que é de facto o mais bem projectado dos escritores moçambicanos. Como é que encara esse facto, num país que lhe tem como referência mas com muitos outros bons escritores?
- Eu vejo isso com preocupação porque eu não quero, nunca, e tenho feito todo o possível e que esteja ao meu alcance para que as coisas não sejam assim. É verdade que cada escritor quer ser único, do ponto de vista de ser incomparável e não no sentido de querer eliminar os outros. Cada escritor quer ser o único no sentido de que ele cria o seu universo. Escolher o melhor para mim é uma questão estúpida entre os escritores, pois cada um só pode ser julgado por aquilo que é. Há essa parte em todo o lado no mundo e o escritor, o artista gostaria mesmo de ser único. Mas por outro lado sinto que este é um país que tem vários escritores e todos eles são bons, ou não seriam, escritores se não o fossem. Os que já somos ainda somos poucos. Então eu acho que esta preocupação eu tenho e temos que fazer algo para nos afirmarmos cada vez mais no panorama literário nacional e internacional. Há uma coisa que eu sou muito contra, que são os workshops de escrita criativa, mas eu acho que em Moçambique temos que ir esse caminho. Tenho mobilizado colegas meus de escrita para ver se a gente consegue ter essa relação directa com os jovens sem nenhuma instituição que premeie os escritores; juntam-se e criam grupos de trabalho e trabalham com jovens de escolas de maneira que possa ser estimulada essa inventividade criativa.
Mia Couto gostaria de usar o valor do Prémio Camões para desenvolver um projecto que dê “espaço aos jovens escritores moçambicanos”, algo que – considera –, Moçambique não dispõe nesta altura.
“Gostaríamos (ele e os irmãos) muito de poder intervir (...) em áreas junto do livro, dos jovens escritores que não têm espaço”, afirmou o autor durante uma conferência de imprensa em Maputo a propósito do Prémio Camões.
Segundo Mia Couto, "todas as semanas", algum jovem escritor lhe bate à porta com um "manuscrito para mostrar", o que lhe causa "muita impressão", pois revela "uma grande solidão", uma vez que "essas pessoas" não têm com quem partilhar a "preocupação" do valor da obra.
"Não existe instituição em Moçambique que possa receber esta gente, que possa organizar um momento que é essencial, que é alguém escutar, olhar aquele texto preparado pelo jovem e poder ver se ali há uma potencialidade de alguém que pode ser amanhã um escritor", disse.
Sobre a importância do Prémio Camões que recebeu para a literatura moçambicana, Mia Couto afirmou ter dúvidas quanto ao seu significado, argumentando que ela "é muito maior que a contribuição de um escritor", apontando ainda críticas à situação que o país vive neste aspecto.
"Literatura não é produzir livros, é esta dinâmica que anda à volta da escrita literária, que envolve as escolas, as famílias, as bibliotecas, a circulação dos livros. Tudo isso faz uma literatura. Não pensemos que há literatura moçambicana porque há meia dúzia de escritores que têm alguma projecção", sublinhou.
"Se a política oficial e prática do Governo não a tomar como prioridade, estamos a colocar em risco isso que se chama de literatura moçambicana", acrescentou.
Sobre o espaço da lusofonia e do seu potencial literário no mundo, Mia Couto entende que é necessário "acertar, dentro da família" de países de expressão portuguesa, "determinadas coisas", antes de se começar a "pensar num território tão grande, que é o mundo".
"Se não nos impomos, se não somos capazes de mostrar alguma coisa que tem um valor único, alguma espécie de contribuição inovadora, o mundo não quer saber de nós", considerou.
"Mesmo nós temos uma posição de grande ambiguidade: às vezes a língua portuguesa é nossa, outras vezes, não é nossa; às vezes, é tida como língua nacional, outras vezes, não", lamentou.
Entre a ficção e a poesia, Mia Couto soma perto de 30 livros, sendo os títulos "O Último Pé da Sereia", "O Último Voo do Flamingo", "Terra Sonâmbula" e "Raiz de Orvalho", alguns dos mais conhecidos.
O júri da 25.ª edição do Prémio Camões decidiu, semana passada, distinguir Mia Couto pela “vasta obra ficcional, caracterizada pela inovação estilística e pela profunda humanidade”

PRÉMIO PARA DAR ESPAÇO A JOVENS

Mia Couto gostaria de usar o valor do Prémio Camões para desenvolver um projecto que dê “espaço aos jovens escritores moçambicanos”, algo que – considera –, Moçambique não dispõe nesta altura.
“Gostaríamos (ele e os irmãos) muito de poder intervir (...) em áreas junto do livro, dos jovens escritores que não têm espaço”, afirmou o autor durante uma conferência de imprensa em Maputo a propósito do Prémio Camões.
Segundo Mia Couto, "todas as semanas", algum jovem escritor lhe bate à porta com um "manuscrito para mostrar", o que lhe causa "muita impressão", pois revela "uma grande solidão", uma vez que "essas pessoas" não têm com quem partilhar a "preocupação" do valor da obra.
"Não existe instituição em Moçambique que possa receber esta gente, que possa organizar um momento que é essencial, que é alguém escutar, olhar aquele texto preparado pelo jovem e poder ver se ali há uma potencialidade de alguém que pode ser amanhã um escritor", disse.
Sobre a importância do Prémio Camões que recebeu para a literatura moçambicana, Mia Couto afirmou ter dúvidas quanto ao seu significado, argumentando que ela "é muito maior que a contribuição de um escritor", apontando ainda críticas à situação que o país vive neste aspecto.
"Literatura não é produzir livros, é esta dinâmica que anda à volta da escrita literária, que envolve as escolas, as famílias, as bibliotecas, a circulação dos livros. Tudo isso faz uma literatura. Não pensemos que há literatura moçambicana porque há meia dúzia de escritores que têm alguma projecção", sublinhou.
"Se a política oficial e prática do Governo não a tomar como prioridade, estamos a colocar em risco isso que se chama de literatura moçambicana", acrescentou.
Sobre o espaço da lusofonia e do seu potencial literário no mundo, Mia Couto entende que é necessário "acertar, dentro da família" de países de expressão portuguesa, "determinadas coisas", antes de se começar a "pensar num território tão grande, que é o mundo".
"Se não nos impomos, se não somos capazes de mostrar alguma coisa que tem um valor único, alguma espécie de contribuição inovadora, o mundo não quer saber de nós", considerou.
"Mesmo nós temos uma posição de grande ambiguidade: às vezes a língua portuguesa é nossa, outras vezes, não é nossa; às vezes, é tida como língua nacional, outras vezes, não", lamentou.
Entre a ficção e a poesia, Mia Couto soma perto de 30 livros, sendo os títulos "O Último Pé da Sereia", "O Último Voo do Flamingo", "Terra Sonâmbula" e "Raiz de Orvalho", alguns dos mais conhecidos.
O júri da 25.ª edição do Prémio Camões decidiu, semana passada, distinguir Mia Couto pela “vasta obra ficcional, caracterizada pela inovação estilística e pela profunda humanidade”
PALMARÉS DO “CAMÕES”

O PRÉMIO Camões foi criado em 1989 pelos governos de Portugal e Brasil para premiar o mérito literário no contexto dos países de língua portuguesa. Ao longo destes 25 anos Moçambique já foi distinguido por duas vezes, primeiro através do falecido poeta José Craveirinha, em 1991, e agora por Mia Couto. Portugal e Brasil são os que mais coleccionam premiados, com dez distinções.
Angola, embora contabilize dois, contar com apenas um, já que o escritor José Luandino Vieira, em 2006, recusou o prémio. Cabo Verde também conbtabiliza um através de Arménio Vieira, em 2009, enquanto a Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe nao viram qualquer dos seus escritores distinguidos.
Eis a lista dos vencedores do Prémio Camões:
1989 – Miguel Torga, Portugal
1990 – João Cabral de Melo Neto, Brasil
1991 – José Craveirinha, Moçambique
1992 – Vergílio Ferreira, Portugal
1993 – Rachel Queiroz, Brasil
1994 – Jorge Amado, Brasil
1995 – José Saramago, Portugal
1996 – Eduardo Lourenço, Portugal
1997 – Pepetela, Angola
1998 – António Cândido de Mello e Sousa, Brasil
1999 – Sophia de Mello Breyner Andresen, Portugal
2000 – Autran Dourado, Brasil
2001 – Eugénio de Andrade, Portugal
2002 - Maria Velho da Costa, Portugal
2003 – Rubem Fonseca, Brasil
2004 – Agustina Bessa-Luís, Portugal
2005 – Lygia Fagundes Telles, Brasil
2006 – José Luandino Vieira, Portugal/Angola
2007 – António Lobo Antunes, Portugal
2008 – João Ubaldo Ribeiro, Brasil
2009 – Arménio Vieira, Cabo Verde
2010 – Ferreira Gullar, Brasil
2011 – Manuel António Pina, Portugal
2012 – Dalton Trevisan, Brasil
2013 - Mia Couto, Moçambique
  • Lusa
In: Maputo, Quarta-Feira, 5 de Junho de 2013:: Notícias