ENTREVISTA COM MIA COUTO
LIVRO NÃO PODE
SER REFÉM DA VONTADE DO MERCADO - MIA COUTO, VENCEDOR DO PRÉMIO CAMÕES,
GOSTARIA QUE O ESTADO “SE PREOCUPASSE MAIS” COM O ACESSO À LITERATURA
O ESCRITOR moçambicano que mais livros publicou, Mia Couto,
acaba de ganhar o Prémio Camões, o mais prestigiado galardão literário da
língua portuguesa (em valor pecuniário, 100 mil euros, é idêntico ao Prémio
Leya). Tornou-se, semana passada, no segundo laureado moçambicano, depois de
José Craveirinha o ter recebido em 1991.
As
reacções à distinção ao autor que se evidenciou da poesia ao romance, passando
pela crónica e pelo conto, foram várias, surgidas do interior de Moçambique e
do exterior, sobretudo nas porções do mundo onde o português é falado. Também
foram várias as reacções de Mia Couto, evidenciadas pela satisfação e pela
preocupação nesta entrevista ao “Notícias”, que teve que ser breve dado o
assédio que desde a manhã de terça-feira estava a ser alvo o autor pela
imprensa nacional e estrangeira baseada na capital do país. Deixamos, nesta
edição, algumas das linhas desse diálogo com um escritor singular no nosso
panorama e que leva uma carreira de 30 anos.
-
Acaba de vencer o maior prémio literário em língua portuguesa. Para além do
óbvio sentimento de satisfação, que reacção tem ao facto de estar a ganhar o
Prémio Camões, isso tendo em conta que é alguém já habituado aos prémios?
-
Devo dizer que seria grave que alguém se habituasse a prémios, porque isso
significaria que a pessoa estaria a viver fora do território reservado ao
artista, ao criador, que, penso, tem ou deve ter como grande prémio o que faz.
Os prémios que tenho recebido trazem-me tudo menos hábito. No caso do escritor,
quem deve ser premiado é o livro e não necessariamente o escritor. Essa é a
minha filosofia. Mas é também preciso dizer, no que toca a mim e neste caso
específico, este prémio é muito particular. É um prémio muito particular na
constelação que é o conjunto dos países de língua portuguesa. Fiquei bastante
comovido e satisfeito sobretudo porque me recordei bastante do meu próprio pai.
Recordei-me o quanto ele está vivo dentro de mim. Sei que ele está satisfeito,
porque vivo dentro de mim, pelo facto de aquilo que foi o empenho da vida dele,
que foi criar os filhos num ambiente de poesia e de literatura, tem estado a
surtir efeito.
- Muitas vezes disse ser
um homem de poesia. No entanto, é na prosa que mais se evidencia. Se formos a
prestar atenção a muitas actas dos júris que o premiaram muitas vezes há a
referência do conjunto da obra ou pela capacidade inventiva ou inovadora na
língua, o que, quanto a mim, se evidencia muito na sua prosa. Acha que o poeta
que mora em si é ostracizado em favor do prosador?
-
Isso é verdade. Bem mesmo! Mas o poeta no sentido geral, não apenas eu. O que
eu faço por exemplo na invenção de palavras é uma parte da minha abordagem
poética do mundo. Quando se isola isso e se dá um nome específico a isso que
para mim faz parte do meu trabalho poético sinto que se não está a dar o nome
verdadeiro às coisas. Eu como pessoa acho que há uma certa invisibilidade da
poesia, na maneira como se olha para a poesia. Falo isso não só para o meu
caso. Por exemplo, os grandes prémios da literatura normalmente são atribuídos
a escritores de prosa, aos romancistas e aos demais que trabalham na ficção em
prosa, embora possa dizer também, e como tu sabes, há uma tentativa de corrigir
isso.
Portanto,
há alguma coisa que caminha contra a corrente e faz tornar visível a poesia. Um
exemplo disso é este prémio, que premiou o cabo-verdiano (Arménio Vieira, em
2009), que é um poeta. Mas são casos raros. Mas tenho a esperança de ver a
poesia reconhecida por toda a sua capacidade criativa no plano linguístico e
não só.
- Muitas vezes que
falamos de livros levanta-se várias questões. Moçambique tem agora o segundo
prémio Camões e vários outros laureados em vários outros prémios; tem havido
uma significativa produção literária mas se atentarmos a questões como mercado,
políticas para a produção e circulação do livro, etc., veremos que há uma
espécie de dar muito e receber pouco panorama…
-
Eu penso que alguma coisa tem que ser feita, falando disso, que ultrapassa a
vontade das editoras. Não se pode deixar que o assunto livro à vontade do
mercado. Não podem ser as leis do mercado a decidirem o destino ou o tratamento
do assunto livro. Tem que haver uma aposta política e uma vontade do governo
para subsidiar. Gostaria que o Estado se preocupasse muito mais com esta
questão. No nosso país a situação do livro é humilhante para o autor, é
humilhante para a editora e é humilhante em alguma instância também para o
próprio leitor. Acaba-se por mendigar para que a edição do livro possa ficar
mais barata ou aceitável e que confesso que não fica aceitável para os
moçambicanos. Estive recentemente numa conferência em Nova Iorque e um escritor
uruguaio dizia com muita graça que nem é preciso que haja uma repressão
política sobre os livros porque só o preço já proíbe que os livros tenham
circulação. Esta afirmação encaixa-se à nossa realidade. Isso não é uma coisa
que o escritor possa resolver, nem na sua relação contratual com a editora. Tem
que haver alguma coisa acima disso, que estabeleça que os livros sejam vistos
não como uma mercadoria mas muito acima disso. O governo neste aspecto não se
pode demitir de tomar acção, ele é a peça fundamental para que algo mude.
-
Acha que Moçambique tem nas condições actuais condições para materializar esse
desejo de ver o livro tão barato quanto se pretende e evitar deste modo que as
regras do mercado tornem mais dolorida a trajectória que vai da escrita à
leitura?
-
Eu acho que há coisas que se pode fazer. Na minha opinião primeiro tinha que
haver essa declaração aberta ou manifestação de vontade de que queremos chegar
lá. Nem esse primeiro passo existe e aceita-se que é assim e que estamos
condenados a ficar nesse esquema mercantilista. Mais do que isso vemos uma
profunda demissão dos governos que nem sequer tentam dar passos mais ousados na
questão do livro. Portanto, há uma desistência à partida para uma luta que
mesmo que tenha que ser dura tem que ser travada em prol da nossa sociedade. Já
que agora estamos nesta onda de negociarmos coisas porque é que escritores,
editores e governo não se sentam e tratem deste assunto tão útil quanto muitas
outras utilidades no nosso país. Usando aqui a metáfora (do escritor uruguaio
que advoga haver uma repreensão política sobre os livros), há aqui uma guerra
que está sendo feita; há aqui uma espécie de impossibilidade de acesso da
população ao livro em razão do preço e devemos todos tentar resolver isso.
-
É um escritor único no nosso país, pelo número de livros publicados e pela
projecção que tem fora de portas. Julgo saber que é de facto o mais bem
projectado dos escritores moçambicanos. Como é que encara esse facto, num país
que lhe tem como referência mas com muitos outros bons escritores?
-
Eu vejo isso com preocupação porque eu não quero, nunca, e tenho feito todo o
possível e que esteja ao meu alcance para que as coisas não sejam assim. É
verdade que cada escritor quer ser único, do ponto de vista de ser incomparável
e não no sentido de querer eliminar os outros. Cada escritor quer ser o único
no sentido de que ele cria o seu universo. Escolher o melhor para mim é uma
questão estúpida entre os escritores, pois cada um só pode ser julgado por
aquilo que é. Há essa parte em todo o lado no mundo e o escritor, o artista
gostaria mesmo de ser único. Mas por outro lado sinto que este é um país que
tem vários escritores e todos eles são bons, ou não seriam, escritores se não o
fossem. Os que já somos ainda somos poucos. Então eu acho que esta preocupação
eu tenho e temos que fazer algo para nos afirmarmos cada vez mais no panorama
literário nacional e internacional. Há uma coisa que eu sou muito contra, que
são os workshops de escrita criativa, mas eu acho que em Moçambique temos que
ir esse caminho. Tenho mobilizado colegas meus de escrita para ver se a gente
consegue ter essa relação directa com os jovens sem nenhuma instituição que
premeie os escritores; juntam-se e criam grupos de trabalho e trabalham com
jovens de escolas de maneira que possa ser estimulada essa inventividade
criativa.
Mia Couto gostaria de usar o valor do Prémio Camões para
desenvolver um projecto que dê “espaço aos jovens escritores moçambicanos”,
algo que – considera –, Moçambique não dispõe nesta altura.
“Gostaríamos
(ele e os irmãos) muito de poder intervir (...) em áreas junto do livro, dos
jovens escritores que não têm espaço”, afirmou o autor durante uma conferência
de imprensa em Maputo a propósito do Prémio Camões.
Segundo
Mia Couto, "todas as semanas", algum jovem escritor lhe bate à porta
com um "manuscrito para mostrar", o que lhe causa "muita
impressão", pois revela "uma grande solidão", uma vez que
"essas pessoas" não têm com quem partilhar a "preocupação"
do valor da obra.
"Não
existe instituição em Moçambique que possa receber esta gente, que possa
organizar um momento que é essencial, que é alguém escutar, olhar aquele texto
preparado pelo jovem e poder ver se ali há uma potencialidade de alguém que
pode ser amanhã um escritor", disse.
Sobre
a importância do Prémio Camões que recebeu para a literatura moçambicana, Mia
Couto afirmou ter dúvidas quanto ao seu significado, argumentando que ela
"é muito maior que a contribuição de um escritor", apontando ainda
críticas à situação que o país vive neste aspecto.
"Literatura
não é produzir livros, é esta dinâmica que anda à volta da escrita literária,
que envolve as escolas, as famílias, as bibliotecas, a circulação dos livros.
Tudo isso faz uma literatura. Não pensemos que há literatura moçambicana porque
há meia dúzia de escritores que têm alguma projecção", sublinhou.
"Se
a política oficial e prática do Governo não a tomar como prioridade, estamos a
colocar em risco isso que se chama de literatura moçambicana",
acrescentou.
Sobre
o espaço da lusofonia e do seu potencial literário no mundo, Mia Couto entende
que é necessário "acertar, dentro da família" de países de expressão
portuguesa, "determinadas coisas", antes de se começar a "pensar
num território tão grande, que é o mundo".
"Se
não nos impomos, se não somos capazes de mostrar alguma coisa que tem um valor
único, alguma espécie de contribuição inovadora, o mundo não quer saber de
nós", considerou.
"Mesmo
nós temos uma posição de grande ambiguidade: às vezes a língua portuguesa é
nossa, outras vezes, não é nossa; às vezes, é tida como língua nacional, outras
vezes, não", lamentou.
Entre
a ficção e a poesia, Mia Couto soma perto de 30 livros, sendo os títulos
"O Último Pé da Sereia", "O Último Voo do Flamingo",
"Terra Sonâmbula" e "Raiz de Orvalho", alguns dos mais
conhecidos.
O
júri da 25.ª edição do Prémio Camões decidiu, semana passada, distinguir Mia
Couto pela “vasta obra ficcional, caracterizada pela inovação estilística e
pela profunda humanidade”
PRÉMIO PARA DAR
ESPAÇO A JOVENS
Mia
Couto gostaria de usar o valor do Prémio Camões para desenvolver um projecto
que dê “espaço aos jovens escritores moçambicanos”, algo que – considera –,
Moçambique não dispõe nesta altura.
“Gostaríamos
(ele e os irmãos) muito de poder intervir (...) em áreas junto do livro, dos
jovens escritores que não têm espaço”, afirmou o autor durante uma conferência
de imprensa em Maputo a propósito do Prémio Camões.
Segundo
Mia Couto, "todas as semanas", algum jovem escritor lhe bate à porta
com um "manuscrito para mostrar", o que lhe causa "muita
impressão", pois revela "uma grande solidão", uma vez que
"essas pessoas" não têm com quem partilhar a "preocupação"
do valor da obra.
"Não
existe instituição em Moçambique que possa receber esta gente, que possa
organizar um momento que é essencial, que é alguém escutar, olhar aquele texto
preparado pelo jovem e poder ver se ali há uma potencialidade de alguém que
pode ser amanhã um escritor", disse.
Sobre
a importância do Prémio Camões que recebeu para a literatura moçambicana, Mia
Couto afirmou ter dúvidas quanto ao seu significado, argumentando que ela
"é muito maior que a contribuição de um escritor", apontando ainda
críticas à situação que o país vive neste aspecto.
"Literatura
não é produzir livros, é esta dinâmica que anda à volta da escrita literária,
que envolve as escolas, as famílias, as bibliotecas, a circulação dos livros.
Tudo isso faz uma literatura. Não pensemos que há literatura moçambicana porque
há meia dúzia de escritores que têm alguma projecção", sublinhou.
"Se
a política oficial e prática do Governo não a tomar como prioridade, estamos a
colocar em risco isso que se chama de literatura moçambicana",
acrescentou.
Sobre
o espaço da lusofonia e do seu potencial literário no mundo, Mia Couto entende
que é necessário "acertar, dentro da família" de países de expressão
portuguesa, "determinadas coisas", antes de se começar a "pensar
num território tão grande, que é o mundo".
"Se
não nos impomos, se não somos capazes de mostrar alguma coisa que tem um valor
único, alguma espécie de contribuição inovadora, o mundo não quer saber de
nós", considerou.
"Mesmo
nós temos uma posição de grande ambiguidade: às vezes a língua portuguesa é
nossa, outras vezes, não é nossa; às vezes, é tida como língua nacional, outras
vezes, não", lamentou.
Entre
a ficção e a poesia, Mia Couto soma perto de 30 livros, sendo os títulos
"O Último Pé da Sereia", "O Último Voo do Flamingo",
"Terra Sonâmbula" e "Raiz de Orvalho", alguns dos mais
conhecidos.
O
júri da 25.ª edição do Prémio Camões decidiu, semana passada, distinguir Mia
Couto pela “vasta obra ficcional, caracterizada pela inovação estilística e
pela profunda humanidade”
PALMARÉS DO “CAMÕES”
O
PRÉMIO Camões foi criado em 1989 pelos governos de Portugal e Brasil para
premiar o mérito literário no contexto dos países de língua portuguesa. Ao
longo destes 25 anos Moçambique já foi distinguido por duas vezes, primeiro
através do falecido poeta José Craveirinha, em 1991, e agora por Mia Couto.
Portugal e Brasil são os que mais coleccionam premiados, com dez distinções.
Angola,
embora contabilize dois, contar com apenas um, já que o escritor José Luandino
Vieira, em 2006, recusou o prémio. Cabo Verde também conbtabiliza um através de
Arménio Vieira, em 2009, enquanto a Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe nao viram
qualquer dos seus escritores distinguidos.
Eis
a lista dos vencedores do Prémio Camões:
1989
– Miguel Torga, Portugal
1990
– João Cabral de Melo Neto, Brasil
1991
– José Craveirinha, Moçambique
1992
– Vergílio Ferreira, Portugal
1993
– Rachel Queiroz, Brasil
1994
– Jorge Amado, Brasil
1995
– José Saramago, Portugal
1996
– Eduardo Lourenço, Portugal
1997
– Pepetela, Angola
1998
– António Cândido de Mello e Sousa, Brasil
1999
– Sophia de Mello Breyner Andresen, Portugal
2000
– Autran Dourado, Brasil
2001
– Eugénio de Andrade, Portugal
2002
- Maria Velho da Costa, Portugal
2003
– Rubem Fonseca, Brasil
2004
– Agustina Bessa-Luís, Portugal
2005
– Lygia Fagundes Telles, Brasil
2006
– José Luandino Vieira, Portugal/Angola
2007
– António Lobo Antunes, Portugal
2008
– João Ubaldo Ribeiro, Brasil
2009
– Arménio Vieira, Cabo Verde
2010
– Ferreira Gullar, Brasil
2011
– Manuel António Pina, Portugal
2012
– Dalton Trevisan, Brasil
2013
- Mia Couto, Moçambique
- Lusa
In: Maputo, Quarta-Feira,
5 de Junho de 2013:: Notícias
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