02 julho 2013

LIVRO DE AURÉLIO FURDELA: A OUTRA FACE D’AS HIENAS TAMBÉM SORRIEM

Por José dos Remédios

Ao David Bamo e ao Sangare Okapi


Se cometem um erro grosseiro os que admitem, ou postulam, uma relação de estrita fidelidade especular, de imediata dependência analógica entre o texto literário e um concreto contexto empírico, atribuindo portanto ao discurso literário o funcionamento referencial que se verifica noutros tipos de discurso, homólogo erro, embora inverso, praticam os que concebem o texto literário como uma entidade puramente automórfica e autotélica, como se a pseudo-referencialidade implicasse necessariamente uma ruptura semântica total com o mundo empírico (…). 

Vítor Manuel de Aguiar e Silva


Incomoda-nos o título do quarto livro de Aurélio Furdela, como se sabe, publicado depois de O Golo que Meteu o Árbitro (2006), Gatsi Lucere (2005) e De Medo Morreu o Susto (2003). O incómodo a que nos referimos não deve ser confundido com o vedete (1) convencionado nos dicionários de língua portuguesa, no seu sentido literal, mas no seu sentido literário, caso exista algum. Na verdade, o que pretendemos nesses dois sinuosos períodos é justificar a razão de, entre várias obras pertencentes à literatura moçambicana, termos escolhido esta, e, entre vários títulos que se poderiam forjar, termos escolhido aquele, aparentemente subjectivo, sobretudo aos que se dignam deixar embalar pela letargia – passemos então para o próximo parágrafo, pois neste parecem esgotadas todas as possibilidades de clarificarmos as nossas escolhas: da obra e do título desta intervenção.
Tivemos o primeiro contacto com esta obra já havia sido lançada há uma semana. Nessa altura, uma irritação causada pelo nojo e aversão que temos das hienas, que num ápice se transformou em incómodo, envolveu-nos num interesse (dez)necessário(2) de obtermos os sentidos subjacentes no título – longo como o primeiro e o terceiro livro do autor –, na capa do livro e nos enredos dos oito (8) contos da obra.  Portanto, tivemos de ler o livro às pressas a fim de que assim compreendêssemos os devaneios da(s) entidade(s) encarregue(s) pelo título e pelas histórias da colectânea. Mesmo assim, a irritação, já transformada em incómodo, não se esvaiu antes que déssemos um full stop, quiçá intermitente, a estas linhas que se esgotam numa árdua tentativa introdutória.
A Outra Face d’As Hienas Também Sorriem, de Aurélio Furdela, emerge no mesmo instante em que depois de lido o livro brotam alguns raciocínios: não é de hienas que se está a falar, as hienas não sorriem coisíssima nenhuma. Se é verdade que não se está a falar de hienas e as hienas não sorriem, resta-nos o advérbio “também”, quer dizer, mesmo que as hienas sorrissem, não nos escapava uma questão óbvia: que outro ser sorri, para que se legitime o uso do advérbio “também” no título da obra? A resposta a esta pergunta é escusável, por isso iremos nos centrar nos raciocínios – os tais incómodos impulsionadores desta reflexão – há pouco referidos.
A hiena "Tiger wolf (Inglês) ou Hyène (Francês)" é um mamífero carnívoro, da família Hyaenidae. Quando adulta, uma hiena mede cerca de 1,5m de comprimento, 80cm de altura e chega a pesar 70kg. Sua pelagem tem cor castanha escura. Diferente dos outros predadores, não é um animal tão rápido (a sua velocidade não ultrapassa os 60 km/h). A hiena é capaz de emitir um grito áspero, parecido com uma gargalhada (será por isso que Aurélio Furdela “assume” que As Hienas Também Sorriem?), que os antigos acreditavam ser de um homem mau, que colocava armadilhas para capturar os viajantes. Seus hábitos são nocturnos, embora possa desenvolver actividades durante o dia. Geralmente ataca em grupo (por não possuir uma sagacidade necessária para agir individualmente) e é famosa por se alimentar dos restos dos animais que os outros predadores deixam (3). Para além de possuir uma boa capacidade de adaptação, quer nas savanas quer nas florestas, a hiena, em muitas culturas, é tida como um animal que transporta espíritos maus.
Com efeito, em nenhum momento deste excerto apropriado de Pacievitch (s/d), nos é dito que as hienas sorriem ou que também sorriem. Emitem um grito – preferimos assumir que se trata de um som – parecido a uma gargalhada, mas é apenas isso, parecido, gargalhada/sorriso são coisas diferentes. Bem analisada a lógica natural dos seres vivos, o sorriso é exclusivo do Homem. A existir um outro ser que sorri, ou melhor, que parece sorrir, não se deve acreditar que o faça consciente e em momentos apropriados, ou não, como o homem. Aliás, não é pelo facto de o papagaio imitar algumas falas humanas que se deve assumir que o papagaio (também) fala. Do mesmo jeito, assumir que As Hienas Também Sorriem é qualquer coisa de inquietante ou, se quisermos, incómoda.
Melhor dizendo, sendo o sorriso um traço tipicamente humano, realmente não é de hienas comuns, as que caracterizamos a dois parágrafos, que se está a falar, mas sim do Homem, não o comum também, e sim aquele que age de um certo modo – começamos a revelar o que só depois de mergulharmos na obra se tornará mais evidente. Logo, recorrendo aos processos de transferência de significados peculiares à metáfora, Furdela transfere os atributos do Homem para as hienas, porém pretendendo o contrário. Como diz Mário Benedetti, citado por Mbate Pedro, autor do prefácio do livro, “Há sempre um modo de ocultar a porcaria e enterrar a denúncia e o denunciante”. Claro está. Mas ocultar porcarias não é intenção do escritor, e ao ocultar alguma coisa pretende salvaguardar o que Mbate Pedro chama de “(…) cómica imagem, a metáfora cruel, do mundo amorfo em que vivemos, em que, quando a justiça não consegue condenar os seus ladrões e corruptos, defende-os e eleva-os à categoria de Doutores deputados” (p. 13).
Ao se ler a obra, em primeira instância fica-se com a ideia de que os Doutores deputados é que são as hienas. Essa impressão até é verosímil, sobretudo se se tomar em conta que hiena, (do grego hýaina do latim hyaena) para além de ser um “mamífero carnívoro, da família dos Hienídeos, feroz e devorador de carne putrefacta, que vive na África e na Ásia”, é, no sentido figurado, “pessoa cruel e traiçoeira” (Costa e Melo, 1999: 871). Todavia, há na obra outras entidades que sem serem Doutores deputados tornam-se hienas pelo facto de possuir atitudes a elas semelhantes: desprezíveis. É o caso dos políticos, no consciente do narrador autodiegético de “O Homem com 33 Andares na Cabeça”, primeiro conto da colectânea, evidenciada na seguinte passagem: “Tio João, homem de palavra, não igual a salamandra, ou os políticos com duas línguas, cada a falar a sua própria coisa sobre o mesmo assunto (4), nas férias de fim-de-ano seguintes, mandou uma carta e dinheiro para a minha passagem de avião (p. 19) ou, em “O Homem Espinha de Peixe”, “Devias saber, os que nos fazem gritar essas coisas nos comícios (abaixo o obscurantismo!), são os primeiros a sacrificar cabritos nos gabinetes” (p. 82).
Há ali uma intenção de ao se desenrolar os eventos diegéticos o narrador aproveitar-se das circunstâncias para denunciar um facto que lhe parece inquestionável e sem meios-termos: inferiorizar as hienas humanas através da ridicularização. Tal situação não só sucede no primeiro conto, no terceiro, “Pescando o Meu Filho”, num episódio, no mínimo prosaico, a voz do narrador enuncia: “A rádio transmitia nesse mesmo instante, uma notícia de louvores a um grupo de deputados, que apoiavam, algures, nos subúrbios da cidade, outras vítimas das enxurradas, distribuindo pacotes de bolachas e rebuçados às crianças” (p. 35).
Havendo enxurradas, oferecer bolachas e rebuçados às vítimas parece uma troça quando as pessoas (inclusive as crianças) precisam de abrigo, assistência médica, produtos alimentares e higiénicos indispensáveis ao ser humano.
Numa outra perspectiva, esses políticos/Doutores deputados tornam-se hienas na medida em que, à semelhança do animal, aproveitam-se até dos restos das suas presas. No segundo caso os restos são as peles, os ossos, as patas ou cabeças de outros animais e no primeiro caso os restos são, por exemplo, uma porção de terreno que o deputado Costa – personagem de “As Visitas do Barbudo” – arranca veemente do seu vizinho por pretender alargar a entrada da casa de sua mãe a fim de que o seu Nissan Navara 2.5 tivesse acesso ao átrio maternal; o salário miserável que um patrão não paga ao seu segurança, José, restando-lhe ter de roubar uma pele de Zebra pendurada algures na sala de visitas do patrão na expectativa de que ao deixar de molho durante algum tempo permitir-lhe-ia preparar um tocossado para a amada grávida; os restos é a honra que o secretário do bairro de Phatarata – espaço imaginário comum a quase todos os contos, quanto a nós inventado para que assim se ocultassem os sentidos que descortinamos – , outra hiena, retira de dona Joana, mãe do Deputado Costa, quando lhe obriga a deitar-se consigo ao ameaçar fazer os (im)possíveis para enviar o marido a Niassa, na então afamada Operação e Produção, caso não cedesse às suas pretensões. Esses são os restos porque aquelas personagens nada têm além do que lhes é arrancado pelos políticos/Doutores deputados: as hienas da obra.
Do mesmo jeito que poetas como José Craveirinha usaram nos seus poemas (“Lustro”, por exemplo) o substantivo hiena/quizumba (“Velha quizumba/ de olhos raiados de sangue”(5) ou “tem o paladar da baba das hienas uivando”) para se referirem a um regime, o colonial português, por ser tão nojento, carnívoro, covarde e áspero como o animal, ao dar tal título a esta sua quarta aparição em livro, Furdela também parece pretender atingir um regime: o político vigente. Assim, se é verdade que a escrita de Aurélio Furdela não pauta, volvendo ao excerto de Aguiar e Silva, por uma relação de estrita fidelidade especular, de imediata dependência analógica entre o texto literário e um concreto contexto empírico, os universos instaurados nos seus contos através da ficcionalidade muito se relacionam com o mundo empírico a que o escritor faz parte como um ser também empírico. Por isso nota-se uma crítica clara – disfarçada pela ficção – às mediocridades quotidianas protagonizadas por individualidades moçambicanas de há trinta (30) e da actualidade.
As Hienas Também Sorriem, portanto, deixam de ser apenas uma obra literária pertencente aos contos para passar a ser – numa classificação ou tanto ou quanto ondulante dada a subversão dos cânones que tipificam uma colectânea de contos – uma criação oscilante entre o conto, a crónica e a fábula, pois ao mesmo tempo que “Doutor Seringas e a Burra que Sabia” é sem dúvida alguma um conto com características do “modelo tradicional moçambicano”, o já citado “As Visitas do Barbudo” parece oscilar entre o conto e a crónica já que ao se narrar a trama revela-se uma tendência de se informar o receptor sobre as manhas protagonizadas pelos Doutores deputados/políticos/hienas do seu contexto social. Em terceiro plano, a ideia desta obra tender também a fábula ganha relevo quando através da personificação as personagens antropomórficas, ao nível do raciocínio, de “A Fábula do Búfalo Africano” (os búfalos, os carrapatos e as aves), portando-se como seres racionais com capacidades astutas e opondo-se às ordens de seres hierarquicamente superiores (as feras/os carrapatos em relação às aves e ao búfalos), não deixam de ser isso mesmo: búfalos, carrapatos e aves.
Teixeira (2013) parece atento ao facto de a escrita de Aurélio Furdela ser produto, por exemplo, de suas experiências cronistas. Talvez, por isso, o autor assume que a já citada obra O Golo que Meteu o Árbitro é “(…) constituída por cruzamentos de episódios, onde (Furdela) transpirava a sua actividade como cronista do mundo do desporto, avisadamente tomando este como um palco da vida quotidiana, seus desenlaces e desmandos” (Teixeira, 2013: 6). Pode ser esta uma razão válida para que “As Visitas do Barbudo” e mesmo “A Fábula do Búfalo Africano” apresentarem o carácter informativo da crónica sem deixarem de ser contos. Esta diversidade resultante da complexidade semântica dos enredos cuidadosamente projectados faz com que a obra de Furdela atinja o que Roberto Pontes, ao tratar do fenómeno literário atinente ao circuito afrobrasiluso (6), do qual na época em que o artigo é publicado a escrita de Aurélio Furdela ainda não fazia parte, designa esplendor poético, por estar (…) a fazer-se numa dimensão mais rica, significante e bela, do que pode ter sonhado Luiz Vaz de Camões” (Pontes, 1999: 164).
Já identificados alguns tipos de hienas na obra, colocamo-nos as seguintes perguntas: do que é que As Hienas Também Sorriem? O que Aurélio Furdela pretende com este As Hienas Também Sorriem (se é que realmente há alguma pretensão)? Respondidas estas questões, talvez esfume-se o incómodo ocasionalmente referido.
Na capa deste quarto livro de Furdela, as doze (12) hienas existentes rodeiam, como se a caçar ou a vigiar um homem que sentado numa cadeira de uma praça pública, de um jardim ou algo parecido, cose, aparentemente, um dos seus sapatos. A imagem em causa, pela sua relação, faz-nos citar a seguinte passagem de O Arquipélago de Sangue (7): “O Homem nasce livre e em toda a parte está a ferros.”. Se nos deixarmos levar pela sua indumentária e pelos estereótipos sócias podemos chegar à conclusão (talvez errónea) de que se trata ou de funcionário público/privado ou de um cidadão com um estatuto social considerável. Esta última ideia cai em terra porque o facto de estar a coser o sapato, pessoalmente, revela que não tem condições financeiras para comprar uns tantos pares de sapato ou para pagar um sapateiro de modo que o cosa por si. É uma imagem curiosa, que nos faz pensar em que miséria esse homem, modelo da sociedade a que pertence, está mergulhado. A imagem representa duas situações: miséria e uma espécie de “prisão domiciliária”. As hienas também sorriem disto: do facto de o Homem estar a ferros e ser incapaz de se desembaraçar da miséria que lhe envolve.
Em “As Visitas do Barbudo”, como já dissemos, as hienas sorriem da aflição do José ao roubar a pele de zebra para preparar um tocossado para a esposa grávida e da dona Joana quando o secretário do bairro arranca-lhe a sua honra. No conto seguinte, “Ratos Milionários”, mais uma vez as hienas também sorriem da miséria das personagens pelo facto delas fazerem de uma caixa vazia de cerveja mesa ou cadeira, devido à falta dos dois tipos de mobiliários e sorriem ainda dos que depois de muitos anos de trabalho árduo e expectativas construídas, como Guidione, vêem os seus sonhos desvanecerem-se num repente horroroso.
No conto “Doutor Seringa e a Burra que Sabia” as hienas sorriem da “cómica imagem” em que o Doutor Seringa, aflito em envolver-se sexualmente com uma mulher numa região em que, por causa da guerra, as mulheres ficavam escondidas na outra margem do rio, precipitando-se a obedecer um raciocínio falsamente lógico, possui a burra que os homens usavam para atravessar o rio rumo ao encontro das mulheres.
Em a “Fábula do Búfalo Africano” as hienas sorriem quando os carrapatos, outras hienas, mas numa escala inferior, conseguem calar as aves, seres que no conto/fábula representam gente lúcida, embora sem a intrepidez necessária para a preservação da sua emancipação.
No conto “Pescando Meu Filho”, título que pretende inferiorizar Zidrito, o filho em causa, por estar mergulhado numa calamidade natural, as cheias, e o pai, por ser incapaz de zelar pelo bem-estar do filho como se espera de quem ostenta esse substantivo masculino, as hienas humanas sorriem do episódio em que a mãe de Zidrito vai dormir numa linha férrea, pois lá a água da chuva e os dejectos a escaparem das latrinas nunca atingiam os carris e sorriem ainda da passagem em que o pai, usando uma rede mosquiteira que se colocada sobre cama, pesca o filho depois deste ter sido engolido pelas águas da chuva.
No “Vagão Fornalha” as hienas também sorriem do instinto de sobrevivência que leva um pai a traçar um plano de maneira que a sua família, no tempo da guerra dos 16 anos, pudesse colher vantagens dos diferentes lados. Neste contexto, um dos filhos do homem (João) alinharia para o exército da Frelimo, o outro (Acácio) alinharia para o exército dos matsangas, o terceiro (Jorge) iria se tornar padre no seminário e o pai, distribuidor de tarefas, cuidaria do gado bovino e enterraria os cadáveres da guerra. Além disso, as hienas também sorriem de Matate quando se suicida por não suportar a ideia de vir a trabalhar sob as ordens de um comandante cruel, Morteiro, o qual, por teimosia, levara à morte 141 rapazes na emboscada implantada pelos matsangas numa ferrovia.
Em “O Homem Espinha de Peixe de Peixe” a “cómica imagem” que também faz sorrir as hienas torna-se mais uma vez evidente: primeiro quando não compreendendo como uma espinha de peixe se encravara nas costas de Carlos Samananga, o protagonista da estória, Bawuti e Marta, Doutores do Hospital Central, mandam chamar um curandeiro para lhes ajudar a resolver o problema e segundo quando Punhetchev, no meio da cavaqueira que tinha com Samananga, afirma: “Vim aqui parar por ser acusado de masturba-me a pensar na mulher de um grande chefe… (…) Os gajos deram-me esse nome durante uma reunião no círculo. Apresentaram-me à população como um estuprador psicológico! (p. 84). 
Estes são apenas alguns exemplos flagrantes que fazem com que as hienas também sorriem. Com isto, a escrita de Aurélio Furdela esmera-se em denunciar e criticar a “passividade animal (8)” de todos aqueles que ocupando cargos políticos importantes ao nível de um Governo mostram-se insensíveis aos melodramas sociais. Por isso, a ridicularização dos Doutores deputados ou dos políticos em geral é um fenómeno permanente em (quase) todos os contos, pois eles, os políticos, à semelhança das hienas, operam em grupo por não possuírem a destreza e coragem necessárias para individualmente arrancarem dos miseráveis o que a eles pertence. 
Ao usar a hiena (no título e nos enredos) para substituir os dirigentes políticos, Furdela Fá-lo pelo facto de ambos os seres, neste contexto, possuírem características comuns: ambos têm uma pelagem de cor castanha escura (com isto não pretendemos excluir as excepções, pois existem hienas, sobretudo humanas, com um outro tipo de pelagem); ambos têm um grito áspero, no caso dos políticos são os discursos irritantes, redundantes, hipócritas, vazios e reveladores de pouca criatividade; ambos têm hábitos nocturnos, embora hajam durante a luz do dia (no caso das hienas humanas, tem a ver com as acções desenvolvidas nas sombras, as quais, algumas/muitas delas, resultam em “segredos de Estado”); ambas têm a capacidade de adaptação, o que, por exemplo, faz com que uma hiena concebida para operar como “servo da Agricultura” “opere sem quaisquer constrangimentos” numa “selva do Interior” e ambas são hienas vis, não possuem remorsos e não se importam com mais nada para além de satisfazer as suas ambições.
Teixeira (2013) parece atento ao facto de a escrita de Aurélio Furdela ser produto, por exemplo, de suas experiências cronistas. Talvez, por isso, o autor assume que a já citada obra O Golo que Meteu o Árbitro é “(…) constituída por cruzamentos de episódios, onde [Furdela] transpirava a sua actividade como cronista do mundo do desporto, avisadamente tomando este como um palco da vida quotidiana, seus desenlaces e desmandos” (Teixeira, 2013: 6). Pode ser esta uma razão válida para que “As Visitas do Barbudo” e mesmo “A Fábula do Búfalo Africano” apresentarem o carácter informativo da crónica sem deixarem de ser contos. Esta diversidade resultante da complexidade semântica dos enredos cuidadosamente projectados faz com que a obra de Furdela atinja o que Roberto Pontes, ao tratar do fenómeno literário atinente ao circuito afrobrasiluso[1], do qual na época em que o artigo é publicado a escrita de Aurélio Furdela ainda não fazia parte, designa esplendor poético, por estar (…) a fazer-se numa dimensão mais rica, significante e bela, do que pode ter sonhado Luiz Vaz de Camões” (Pontes, 1999: 164).
Já identificados alguns tipos de hienas na obra, colocamo-nos as seguintes perguntas: do que é que As Hienas Também Sorriem? O que Aurélio Furdela pretende com este As Hienas Também Sorriem (se é que realmente há alguma pretensão)? Respondidas estas questões, talvez esfume-se o incómodo ocasionalmente referido.
Na capa deste quarto livro de Furdela, as doze (12) hienas existentes rodeiam, como se a caçar ou a vigiar um homem que sentado numa cadeira de uma praça pública, de um jardim ou algo parecido, cose, aparentemente, um dos seus sapatos. A imagem em causa, pela sua relação, faz-nos citar a seguinte passagem de O Arquipélago de Sangue[2]: “O Homem nasce livre e em toda a parte está a ferros.”. Se nos deixarmos levar pela sua indumentária e pelos estereótipos sócias podemos chegar à conclusão (talvez errónea) de que se trata ou de funcionário público/privado ou de um cidadão com um estatuto social considerável. Esta última ideia cai em terra porque o facto de estar a coser o sapato, pessoalmente, revela que não tem condições financeiras para comprar uns tantos pares de sapato ou para pagar um sapateiro de modo que o cosa por si. É uma imagem curiosa, que nos faz pensar em que miséria esse homem, modelo da sociedade a que pertence, está mergulhado. A imagem representa duas situações: miséria e uma espécie de “prisão domiciliária”. As hienas também sorriem disto: do facto de o Homem estar a ferros e ser incapaz de se desembaraçar da miséria que lhe envolve.
Em “As Visitas do Barbudo”, como já dissemos, as hienas sorriem da aflição do José ao roubar a pele de zebra para preparar um tocossado para a esposa grávida e da dona Joana quando o secretário do bairro arranca-lhe a sua honra. No conto seguinte, “Ratos Milionários”, mais uma vez as hienas também sorriem da miséria das personagens pelo facto delas fazerem de uma caixa vazia de cerveja mesa ou cadeira, devido à falta dos dois tipos de mobiliários e sorriem ainda dos que depois de muitos anos de trabalho árduo e expectativas construídas, como Guidione, vêem os seus sonhos desvanecerem-se num repente horroroso.
No conto “Doutor Seringa e a Burra que Sabia” as hienas sorriem da “cómica imagem” em que o Doutor Seringa, aflito em envolver-se sexualmente com uma mulher numa região em que, por causa da guerra, as mulheres ficavam escondidas na outra margem do rio, precipitando-se a obedecer um raciocínio falsamente lógico, possui a burra que os homens usavam para atravessar o rio rumo ao encontro das mulheres.
Em a “Fábula do Búfalo Africano” as hienas sorriem quando os carrapatos, outras hienas, mas numa escala inferior, conseguem calar as aves, seres que no conto/fábula representam gente lúcida, embora sem a intrepidez necessária para a preservação da sua emancipação.
No conto “Pescando Meu Filho”, título que pretende inferiorizar Zidrito, o filho em causa, por estar mergulhado numa calamidade natural, as cheias, e o pai, por ser incapaz de zelar pelo bem-estar do filho como se espera de quem ostenta esse substantivo masculino, as hienas humanas sorriem do episódio em que a mãe de Zidrito vai dormir numa linha férrea, pois lá a água da chuva e os dejectos a escaparem das latrinas nunca atingiam os carris e sorriem ainda da passagem em que o pai, usando uma rede mosquiteira que se colocada sobre cama, pesca o filho depois deste ter sido engolido pelas águas da chuva.
No “Vagão Fornalha” as hienas também sorriem do instinto de sobrevivência que leva um pai a traçar um plano de maneira que a sua família, no tempo da guerra dos 16 anos, pudesse colher vantagens dos diferentes lados. Neste contexto, um dos filhos do homem (João) alinharia para o exército da Frelimo, o outro (Acácio) alinharia para o exército dos matsangas, o terceiro (Jorge) iria se tornar padre no seminário e o pai, distribuidor de tarefas, cuidaria do gado bovino e enterraria os cadáveres da guerra. Além disso, as hienas também sorriem de Matate quando se suicida por não suportar a ideia de vir a trabalhar sob as ordens de um comandante cruel, Morteiro, o qual, por teimosia, levara à morte 141 rapazes na emboscada implantada pelos matsangas numa ferrovia.
Em “O Homem Espinha de Peixe de Peixe” a “cómica imagem” que também faz sorrir as hienas torna-se mais uma vez evidente: primeiro quando não compreendendo como uma espinha de peixe se encravara nas costas de Carlos Samananga, o protagonista da estória, Bawuti e Marta, Doutores do Hospital Central, mandam chamar um curandeiro para lhes ajudar a resolver o problema e segundo quando Punhetchev, no meio da cavaqueira que tinha com Samananga, afirma: “Vim aqui parar por ser acusado de masturba-me a pensar na mulher de um grande chefe… (…) Os gajos deram-me esse nome durante uma reunião no círculo. Apresentaram-me à população como um estuprador psicológico! (p. 84). 
Estes são apenas alguns exemplos flagrantes que fazem com que as hienas também sorriem. Com isto, a escrita de Aurélio Furdela esmera-se em denunciar e criticar a “passividade animal[3]” de todos aqueles que ocupando cargos políticos importantes ao nível de um Governo mostram-se insensíveis aos melodramas sociais. Por isso, a ridicularização dos Doutores deputados ou dos políticos em geral é um fenómeno permanente em (quase) todos os contos, pois eles, os políticos, à semelhança das hienas, operam em grupo por não possuírem a destreza e coragem necessárias para individualmente arrancarem dos miseráveis o que a eles pertence. 
Ao usar a hiena (no título e nos enredos) para substituir os dirigentes políticos, Furdela Fá-lo pelo facto de ambos os seres, neste contexto, possuírem características comuns: ambos têm uma pelagem de cor castanha escura (com isto não pretendemos excluir as excepções, pois existem hienas, sobretudo humanas, com um outro tipo de pelagem); ambos têm um grito áspero, no caso dos políticos são os discursos irritantes, redundantes, hipócritas, vazios e reveladores de pouca criatividade; ambos têm hábitos nocturnos, embora hajam durante a luz do dia (no caso das hienas humanas, tem a ver com as acções desenvolvidas nas sombras, as quais, algumas/muitas delas, resultam em “segredos de Estado”); ambas têm a capacidade de adaptação, o que, por exemplo, faz com que uma hiena concebida para operar como “servo da Agricultura” “opere sem quaisquer constrangimentos” numa “selva do Interior” e ambas são hienas vis, não possuem remorsos e não se importam com mais nada para além de satisfazer as suas ambições. Teixeira (2013) parece atento ao facto de a escrita de Aurélio Furdela ser produto, por exemplo, de suas experiências cronistas. Talvez, por isso, o autor assume que a já citada obra O Golo que Meteu o Árbitro é “(…) constituída por cruzamentos de episódios, onde [Furdela] transpirava a sua actividade como cronista do mundo do desporto, avisadamente tomando este como um palco da vida quotidiana, seus desenlaces e desmandos” (Teixeira, 2013: 6). Pode ser esta uma razão válida para que “As Visitas do Barbudo” e mesmo “A Fábula do Búfalo Africano” apresentarem o carácter informativo da crónica sem deixarem de ser contos. Esta diversidade resultante da complexidade semântica dos enredos cuidadosamente projectados faz com que a obra de Furdela atinja o que Roberto Pontes, ao tratar do fenómeno literário atinente ao circuito afrobrasiluso[1], do qual na época em que o artigo é publicado a escrita de Aurélio Furdela ainda não fazia parte, designa esplendor poético, por estar (…) a fazer-se numa dimensão mais rica, significante e bela, do que pode ter sonhado Luiz Vaz de Camões” (Pontes, 1999: 164).
Já identificados alguns tipos de hienas na obra, colocamo-nos as seguintes perguntas: do que é que As Hienas Também Sorriem? O que Aurélio Furdela pretende com este As Hienas Também Sorriem (se é que realmente há alguma pretensão)? Respondidas estas questões, talvez esfume-se o incómodo ocasionalmente referido.
Na capa deste quarto livro de Furdela, as doze (12) hienas existentes rodeiam, como se a caçar ou a vigiar um homem que sentado numa cadeira de uma praça pública, de um jardim ou algo parecido, cose, aparentemente, um dos seus sapatos. A imagem em causa, pela sua relação, faz-nos citar a seguinte passagem de O Arquipélago de Sangue[2]: “O Homem nasce livre e em toda a parte está a ferros.”. Se nos deixarmos levar pela sua indumentária e pelos estereótipos sócias podemos chegar à conclusão (talvez errónea) de que se trata ou de funcionário público/privado ou de um cidadão com um estatuto social considerável. Esta última ideia cai em terra porque o facto de estar a coser o sapato, pessoalmente, revela que não tem condições financeiras para comprar uns tantos pares de sapato ou para pagar um sapateiro de modo que o cosa por si. É uma imagem curiosa, que nos faz pensar em que miséria esse homem, modelo da sociedade a que pertence, está mergulhado. A imagem representa duas situações: miséria e uma espécie de “prisão domiciliária”. As hienas também sorriem disto: do facto de o Homem estar a ferros e ser incapaz de se desembaraçar da miséria que lhe envolve.
Em “As Visitas do Barbudo”, como já dissemos, as hienas sorriem da aflição do José ao roubar a pele de zebra para preparar um tocossado para a esposa grávida e da dona Joana quando o secretário do bairro arranca-lhe a sua honra. No conto seguinte, “Ratos Milionários”, mais uma vez as hienas também sorriem da miséria das personagens pelo facto delas fazerem de uma caixa vazia de cerveja mesa ou cadeira, devido à falta dos dois tipos de mobiliários e sorriem ainda dos que depois de muitos anos de trabalho árduo e expectativas construídas, como Guidione, vêem os seus sonhos desvanecerem-se num repente horroroso.
No conto “Doutor Seringa e a Burra que Sabia” as hienas sorriem da “cómica imagem” em que o Doutor Seringa, aflito em envolver-se sexualmente com uma mulher numa região em que, por causa da guerra, as mulheres ficavam escondidas na outra margem do rio, precipitando-se a obedecer um raciocínio falsamente lógico, possui a burra que os homens usavam para atravessar o rio rumo ao encontro das mulheres.
Em a “Fábula do Búfalo Africano” as hienas sorriem quando os carrapatos, outras hienas, mas numa escala inferior, conseguem calar as aves, seres que no conto/fábula representam gente lúcida, embora sem a intrepidez necessária para a preservação da sua emancipação.
No conto “Pescando Meu Filho”, título que pretende inferiorizar Zidrito, o filho em causa, por estar mergulhado numa calamidade natural, as cheias, e o pai, por ser incapaz de zelar pelo bem-estar do filho como se espera de quem ostenta esse substantivo masculino, as hienas humanas sorriem do episódio em que a mãe de Zidrito vai dormir numa linha férrea, pois lá a água da chuva e os dejectos a escaparem das latrinas nunca atingiam os carris e sorriem ainda da passagem em que o pai, usando uma rede mosquiteira que se colocada sobre cama, pesca o filho depois deste ter sido engolido pelas águas da chuva.
No “Vagão Fornalha” as hienas também sorriem do instinto de sobrevivência que leva um pai a traçar um plano de maneira que a sua família, no tempo da guerra dos 16 anos, pudesse colher vantagens dos diferentes lados. Neste contexto, um dos filhos do homem (João) alinharia para o exército da Frelimo, o outro (Acácio) alinharia para o exército dos matsangas, o terceiro (Jorge) iria se tornar padre no seminário e o pai, distribuidor de tarefas, cuidaria do gado bovino e enterraria os cadáveres da guerra. Além disso, as hienas também sorriem de Matate quando se suicida por não suportar a ideia de vir a trabalhar sob as ordens de um comandante cruel, Morteiro, o qual, por teimosia, levara à morte 141 rapazes na emboscada implantada pelos matsangas numa ferrovia.
Em “O Homem Espinha de Peixe de Peixe” a “cómica imagem” que também faz sorrir as hienas torna-se mais uma vez evidente: primeiro quando não compreendendo como uma espinha de peixe se encravara nas costas de Carlos Samananga, o protagonista da estória, Bawuti e Marta, Doutores do Hospital Central, mandam chamar um curandeiro para lhes ajudar a resolver o problema e segundo quando Punhetchev, no meio da cavaqueira que tinha com Samananga, afirma: “Vim aqui parar por ser acusado de masturba-me a pensar na mulher de um grande chefe… (…) Os gajos deram-me esse nome durante uma reunião no círculo. Apresentaram-me à população como um estuprador psicológico! (p. 84). 
Estes são apenas alguns exemplos flagrantes que fazem com que as hienas também sorriem. Com isto, a escrita de Aurélio Furdela esmera-se em denunciar e criticar a “passividade animal[3]” de todos aqueles que ocupando cargos políticos importantes ao nível de um Governo mostram-se insensíveis aos melodramas sociais. Por isso, a ridicularização dos Doutores deputados ou dos políticos em geral é um fenómeno permanente em (quase) todos os contos, pois eles, os políticos, à semelhança das hienas, operam em grupo por não possuírem a destreza e coragem necessárias para individualmente arrancarem dos miseráveis o que a eles pertence. 

Ao usar a hiena (no título e nos enredos) para substituir os dirigentes políticos, Furdela Fá-lo pelo facto de ambos os seres, neste contexto, possuírem características comuns: ambos têm uma pelagem de cor castanha escura (com isto não pretendemos excluir as excepções, pois existem hienas, sobretudo humanas, com um outro tipo de pelagem); ambos têm um grito áspero, no caso dos políticos são os discursos irritantes, redundantes, hipócritas, vazios e reveladores de pouca criatividade; ambos têm hábitos nocturnos, embora hajam durante a luz do dia (no caso das hienas humanas, tem a ver com as acções desenvolvidas nas sombras, as quais, algumas/muitas delas, resultam em “segredos de Estado”); ambas têm a capacidade de adaptação, o que, por exemplo, faz com que uma hiena concebida para operar como “servo da Agricultura” “opere sem quaisquer constrangimentos” numa “selva do Interior” e ambas são hienas vis, não possuem remorsos e não se importam com mais nada para além de satisfazer as suas ambições.
Parece-nos ser esta A Outra Face d’As Hienas Também Sorriem, de Aurélio Furdela.  

Referência bibliográfica
Aguiar e Silva, V. (1984) Teoria da Literatura, 6ª Edição. Coimbra: Livraria Almedina.
Chomscky, N. e Herman, E. (1976) O Arquipélago de Sangue. S.L: Círculo de Leitores.
Costa, J. e Melo, A. (1999) Dicionário de Língua portuguesa, 8ª Edição. Porto: Porto Editora. 
Craveirinha, J. (1980) Cela 1. Maputo: Instituto Nacional do Livro e do Disco.
Craveirinha, J. (2008) Xigubo. Maputo: Alcance Editores.
Furdela, A. (2012) As Hienas Também Sorriem. Maputo: AEMO.
Teixeira, J. (2013) A Sambrowera em Aurélio Furdela. Suplemento Cultural do Jornal Notícias, 5 de Junho de 2013, p. 6.
Pontes, R. (1999) Poesia Insubmissa Afrobrasileira. Rio de Janeiro/Fortaleza: Oficina do Autor.
Outra fonte: Pacievitch, T. (s/d)  www.InfoEscola.com [acessed 6 de Junho de 2013].
(1) É a palavra que serve de entrada a um artigo de dicionário (Dubois et al, 1973: 610).
(2) Entenda-se, dez vezes necessário.
(3]) Por Thais Pacievitch, extraído de infoesccola.
(4) Os sublinhados são nossos.
(5) Versos do poema “Lustro”, de José Craveirinha, in Cela 1.
(6) Palavra formada por aglutinação. Deriva de África, Brasil e Luso.
(7) Chomscky, N. e Herman, E. (1976: 7).
(8) Alusão a um dos versos do poema de José Craveirinha, “Subida”, in Xigubo (p. 25), no qual o sujeito de enunciação manifesta o seu descontentamento pelo facto de as condições sociais no que respeita aos produtos de primeira necessidade, por exemplo, agravarem-se e os membros dessa sociedade [a nossa, logo se vê], manterem-se numa “passividade animal”. Tal é a passividade das hienas humanas, em Furdela, mas também dos que delas são vítimas.

In: Notícias, Maputo, Quarta-Feira, 3 de Julho de 2013:: 


Nenhum comentário:

Postar um comentário