28 novembro 2013


Poeta Armando Artur (actual Ministro da Cultura em Moçambique)

Ei-lo assim mesmo, Corrompido pelo tempo e domado, Pelo devir. - Armando Artur
AO lermos o mais recente livro do poeta Armando Artur, As falas do poeta, deparamo-nos com uma poesia plena de pequenos mundos por onde o poeta transita com uma espécie de reverência, à imagem de uma alma que, com um espanador de memórias, aviva tempos, espaços, gentes ou personagens, ideias e atitudes. Por isso, parece-nos, esta poesia, errática.
Errática no verbo, na palavra, na fala que é o próprio Ser da poesia, principio e fim em si mesma, quiçá contrária às vontades do poeta, mas que assim sendo, irremediavelmente, o define. Quem poderá orgulhar-se de escolher as suas memórias? Não serão, antes, elas que nos escolhem? Como diria Lévi-Strauss, não serão os objectos socioculturais a comunicar através dos poetas e não estes através daqueles?[1]
Podemos identificar, em As falas do poeta, pelo menos três pequenos mundos através dos quais se pode construir uma imagem errática do poeta, nomeadamente, i) o mundo do poeta e da poesia, ii) o mundo do poeta e dos homens, iii) o mundo do poeta e do seu homem.
DO POETA E DA POESIA
Este é o universo da evocação da própria poesia, uma evocação que vai da literatura à música, destacando-se neste exercício a alma poética de Sophia de Mello Breyner Andresen, um nome, uma alma que se materializa, efectivamente, num dos mundos de um eu lírico incapaz, por isso mesmo, de resistir às confidências que com o tempo se impõem:
Teu signo, Sophia
É uma luz no fundo do nada
Que leva à verdade infalível
Das laudas da poesia. (p.15)

Como uma luz no fundo do nada, assim se pode definir a poesia de Armando Artur, ou, pelo menos, um dos veios da sua poesia (veja-se um livro como No coração da noite). Uma poesia que parece obcecada numa espécie de caos que, pela voz (filosófica) da própria poesia, se faz metonímia de um lugar e das suas coisas:
Terá Franz liszt descoberto
Que numa elementar partitura,
Flutuando na dimensão
Do nada,
Reside a essencialidade
Do ser? (p.20)

Do poeta e dos homens
Aqui o compasso é outro, também é outra a fala, menos filosófica, mais utópica, mais engajada, mais programática, atenta aos debates e às urgências dos ‘dias em riste’ ou ‘dos estrangeiros de nós próprios’, como acontece num poema como “Quando a Pátria que é nossa”:
Quando a pátria que é nossa
Quer-se assim esgravatada e repilhada
Até aos limites do seu interior,

Quando a pátria que é nossa
Quer-se assim regateada e leiloada
À taxa diária do sangue, suor e lágrimas
De milhões de braços, e uma só força,

Quando a pátria que é nossa
Quer-se assim assaltada pelos flancos
Da sua beleza e contornos da sua geografia,

Quando a pátria que é nossa
Quer-se assim reassaltada por gente
De outrora e de paragens distantes,

Quando a pátria que é nossa
É assim cobiçada por mercadores
De insónias e arautos do caos
E da precariedade,

Todo silêncio e todo exílio serão
Sempre iguais à pátria que é nossa. (p.33)

Trata-se, como se pode depreender, de um mundo conturbado, um mudo do presente, actual, que, se não espaça à atenção do pacato cidadão, do homem mais comum, parece encontrar na alma do poeta a urgência de denunciar, quando muito não seja, pela razão desse presente trazer-nos à memória as lições do passado.
DO POETA E DO SEU HOMEM
Este é um universo de dor, de silêncio, de ausência; um mundo, enfim, elegíaco, repleto de vida e de morte. Um mundo que nos reenvia, necessariamente, à intersecção, ao liame entre o homem e o poeta desta obra (a julgar pela dedicatória que leva um poema como “Estes dias sem a Milena”) e a uma memória que parece ameaçar “anoitecer” a fala a ambos:
Sob a luz difusa
E dependurada
Na parede dos dias
Procuro nos contornos
Da tua ausência
O sentido de ser
E continuar aqui (p.51)

Estas são As falas do poeta, uma voz da própria poesia, voz da pátria, voz do homem; voz por essas dimensões errática, mas ancorada numa memória umas vezes saudosa, outras vezes de dor e pesadelo:
O novo xiconhoca
É um personagem nosso
Mas da era contemporânea.
Difere em grande do xiconhoca
Original, tanto é que de originalidade
É o que lhe falta em demasia (...)
Possui várias tonalidades de carácter
Ideológico, religioso e fetichista
Que exibe em função das fases da lua
Ou do fluxo e refluxo da preia-mar (...)

O novo xiconhoca é um fingido
De se lhe tirar o guarda-chuva.
Faz de conta que está na mesma trincheira
Com os outros, ou na mesma procissão
De combate à pobreza absoluta.
Descobriu que no meio da maioria é mais
Fácil driblar tanto por dentro como por fora,
Pois goza da aura sagrada de homens e mulheres
Arautos da liberdade colectiva.
É ardiloso na conceptualização do abstracto
E ignora que o problema maior de momento
Esta na ausência total ou presença excessiva
Do odor milenar à terra molhada,
Que convoca a saudade da lua cheia
Ou do verde esperançoso das espigas de milho (p.34-47).

Lucílio Manjate


[1]Em DURANTI, Alessandro, (1997), Linguistic Anthropology, New York: Cambridge University Press.



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