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27 dezembro 2016

SAMORA MACHEL COMO ESTADISTA

Fidel Castro e Samora Machel

Jorge Fernando Jairoce[1]

             INTRODUÇÃO
Celebrar ou comemorar Samora parece que virou moda e tem suscitado inúmeros debates em torno da sua figura, uns a deusificá-los, outros indimoniá-los e outros ainda a não reconhecer seus efeitos. É só acompanhar os debates nos orgãos de comunicação social e nas redes sociais poderão perceber estas diferentes representações de Samora Machel.
A figura e a contribuição de Samora Machel  já foram analisadas com competência por historiadores e biógrafos, de forma que não me cabe fazer uma outra análise histórica de seu governo com factos e citações. Não me parece relevante discutir a polêmica sobre a governação de Samora, porque esta já foi amplamente tratada por outros autores. Não é, também, meu objetivo fazer um perfil com a enumeração de suas qualidades e defeitos, de seus muitos acertos e muitos erros. Parece-me, todavia, que há uma abordagem que poderia ser útil: a do ensaio de teoria política.
 Importa saber como a acção política de Samora se relacionou com a construção da Nação e do Estado moçambicano, resultante da transição de um Estado Colonial para um Estado Moderno de experiência socialista. Nesta perspectiva algumas questões pessoalmente me inquientam: Por que sua figura é tão importante para os moçambicanos apesar de haver governado o País de forma autoritária, como alguns sugerem? Por que considerá-lo um estadista? Ou como alguns propõem, um líder populista cujo discurso emocionava o povo? Na verdade acho  muito difícil elaborar uma biografia completa sobre Samora, ou mesmo, tentando, só poderemos representar uma parte daquilo que as nossas fontes permitirão enxergar.
Ora, tenho o desafio de falar de  Samora como estadista, diferente de um político que simplesmente governa. Por isso, discutirei nesta minha humilde apresentação o conceito de estadista baseando em dois autores clássicos como Aristóteles e Maquiavel. Mais adiante apresentarei algumas pistas que indiciam Samora Machel como um estadista e por fim apresentarei algumas reflexões sobre a  historicidade de Samora.


I.                   CONCEITO DE ESTADISTA E A HISTÓRIA

·         Para Aristóteles em “A Política”, o que o estadista mais quer produzir é um certo caráter ético-moral nos seus concidadãos, particularmente uma disposição para  a virtude ou  prática de acções virtuosas.

·         Já em Maquiavel em “ O Princípe”, a condução do Estado é considerada uma arte e o estadista, um autêntico artista. Para Maquiavel, o estadista é adaptável às circunstâncias, harmonizando o próprio comportamento à exigência dos tempos. Sua virtude é a flexibilidade moral, a disposição de fazer o que for necessário para alcançar e perenizar a glória cívica e a grandeza - quer haja boas ou más acções envolvidas - contagiando os cidadãos com essa mesma disposição.
Em jeito de síntese da visão dois autores, pode-se afirmar, primeiro, que o estadista é o dirigente político que, não  obstante suas próprias fraquezas e hesitações, tem a visão antecipada do momento histórico que seu país ou sua nação está vivendo e tem a coragem de enfrentar o velho em nome do novo; segundo, que um momento decisivo na história de um povo – o da Revolução Nacional  – é aquele no qual esse povo se transforma em uma Nação não apenas formal mas real, e, terceiro, a preocupação pela construção de um Estado-nação. Sob estas três perspectivas, concluo que Samora Machel foi o grande estadista que Moçambique teve na década 70 e 80.
Um estadista é sempre um político com qualidades extraordinárias de inteligência e capacidade de liderança, mas nem todos os líderes políticos com essas qualidades se transformam em estadistas, porque, é preciso também que chegue ao poder em um momento da história de seu país em que sua sociedade e sua economia estejam enfrentando uma crise e se tornando madura para a mudança. Nesses momentos, abre-se a oportunidade para o surgimento de um dirigente político capaz de compreender a oportunidade e se antecipar ao movimento da sociedade. Samora Machel surgiu na vida política moçambicana em um desses momentos. Portanto compreender Samora torna  necessário situar todos os acontecimentos e o contexto econômico e social mais amplo em que ele cresceu, trabalhou, lutou e governou.
Ora, considerando os diferentes contextos de governação, podemos distinguir três tipos de líderes políticos: aquele que se antecipa à sua sociedade, aquele que a acompanha e aquele que a faz voltar para trás. A grande maioria está na segunda categoria. Da mesma forma que, em um plano mais amplo, o Estado é uma expressão da sociedade, de suas  forças e de suas fraquezas, seus governantes também são em geral meros produtos médios dessa sociedade. Possuem qualidades pessoais, ambição e sorte para chegar à chefia do governo, mas não logram se sobrepor à sociedade que os produziu. Outros, seja por uma questão de incompetência, ou de arrogância, ou de falta mínima de espírito republicano, ou ainda por uma combinação desses defeitos, tomam decisões equivocadas e causam males profundos a seu povo; são o inverso dos estadistas, porque só olham para trás, ainda que acreditem fazer o oposto.
Os estadistas são o primeiro tipo de líder político (aqueles que se antecipa à sua sociedade), e o mais raro. Um estadista tem capacidade de se antecipar aos factos, de compreender em que sentido estão caminhando os acontecimentos, porque sabe ou intui quais as alianças internas e internacionais é preciso fazer, quais decisões tomar, e quais postergar. Ele é estadista porque é um solitário que ouve a muitos, mas toma suas decisões só, e assume a plena responsabilidade pelas mesmas. Porque tem amigos, mas não hesita em abandoná-los. Porque seu critério para tomar as decisões não é apenas o poder pessoal, mas é também o poder nacional, a realização de sua visão de futuro. Ora, face a esta constatação, será Samora Machel um estadista ou político.


II.     VIRTUDES DE SAMORA MACHEL COMO ESTADISTA NO CONTEXTO DA SUA GOVERNAÇÃO
Para  distinguir Samora como estadista tomamos como  referências os vários discursos por ele proferidos e nos depoimentos de algumas figuras que conviveram abertamente como Samora, assim como  a consulta de fontes biográficas elaboradas sobre Samora Machel. Deste modo, elegi para esta apresentação algumas das acções e projectos políticos que revelam as caracteríticas de Samora como estadista, que tem a ver com o processo de construção do Estado – nação e a luta pelo desenvolvimento económico e social.

 ·         Unidade, trabalho e vigilância
Samora tem sido uma figura de consenso quando se fala de unidade, trabalho e vigilância. A segurança do povo,  a unidade e o interesse pelo trabalho constituía uma das grandes preocupações de Samora Machel.  Em seus numerosos discursos ele fala de produzir para desenvolver o país, pois só assim poderíamos sair da pobreza, aliás elegeu a década 80 de luta contra o subdesenvolvimento. O PPI elaborado em 1977, mostra, o nível de preocupação de Samora em promover a agricultura comercial e a industrialização do País, pese, embora não tenha surtido os efeitos desejados, por falta de financiamento adequado e os malefícios da guerra. Em 1976, numa reunião com os operários das empresas industriais de Maputo  Samora chamava atenção aos operários que produzir é um acto de militância e que a luta pela independência económica implicava aumento de produção. Apontou ainda a grave insuficiência na organização da classe trabalhadora. Apelou ainda nesta reunião a necessidade de uma ofensiva política e organizacional generalizada na frente de produção.
Quem não se recorda dos discursos de Samora sobre combate aos ditos Xiconhocas, ou seja, aqueles que viviam do suor do povo, os corruptos e marginais, preguiçosos e sanguessugas. Samora considerava este grupo de pessoas como verdadeiros inimigos da revolução e era abertamente intolerante a corrupção, mesmo que fosse praticado pelos seus correligionários e as leis desta época atestam o que digo, refiro –me por exemplo as Lei contra a Segurança do Estado e do Povo e das Vesgatadas (Chicotadas).  Os Xiconhocas (imagem de representação dos bandidos, malandros, preguiçosos e sabotadores da economia do povo) tinham medo dele, por isso, que os níveis de criminalidade no seu tempo era reduzidos. Para Samora a corrupção era vista como perda da  virtude pelo conjunto dos cidadãos, por isso poucos eram aqueles que tinham coragem de surripiar a coisa pública e mesmo alheia.
Aqui vale apenas também perceber a intuição, a habilidade de Samora em unir interesses contrários. Antes da sua morte Samora preocupou-se bastante pela busca pela Paz, não sendo por acaso que assinou o humilhante Acordo de Incomáti (de não agressão) com o regime do Apartheid. Ainda antes da sua morte vendo o nível de deterioração da economia como foi reconhecido no IV Congresso abriu-se para o Ocidente. A entrada na economia de Mercado também faz parte da sua visão em desenvolver a economia nacional.
É importante a analisar a perspectiva política central de Samora que era fazer do Estado um instrumento a serviço da nação. Já na época da sua governação lutava pelo excesso do burocratismo e espírito de deixar andar nas instituições públicas. A ofensiva política e organizacional constitui um exemplo claro das suas acções. Uns dos aspectos  a realçar nesta ofensiva era sua exigência pela disciplina, rigor, pontualidade e entrega ao trabalho.

·         Construção do Estado-nação
Em outras palavras, Samora entendeu que seu desafio era o de construir uma Nação e um Estado, era o de formar um verdadeiro Estado-nação independente, ao invés de aceitar a permanente subordinação modelos colonialistas. É verdade que não chegou a essa política no primeiro dia do seu governo, mas foi construindo-a aos poucos, através de acordos e compromissos, de avanços e recuos. Os resultados, entretanto, foram inegáveis.
O nacionalismo  advogado por ele é essencialmente a ideologia da formação do Estado-nação; é a ideologia que um povo, sentindo-se capaz de se transformar em uma nação, usa para poder se dotar de um Estado com soberania sobre seu território. Samora acreditava que o povo só se torna Nação quando, no quadro da Revolução Popular, conta com um Estado ou tem condições objectivas de obtê-lo e, assim, forma um Estado-nação e Samora tal como Renan via a construção da Nação como um plesbicíto diário, por isso que no seu discursivo, dizia sempre abaixo o tribalismo e viva unidade nacional. Essa Nação irá, depois, buscar suas origens em um passado mais longínquo, de forma a poder fundar sua unidade em mitos e heróis comuns e se possível antigos, daí a sua preocupação em valorizar a experiência dos heróis das resistências anti coloniais e da luta de libertação nacional.

· Diálogo com o povo
Só participar num comício dele era uma honra, por isso ninguém queria perder. Também porque o que ele falava era tão forte emocionalmente que tocava cada um dos que estava lá presente. Samora Machel era um Presidente muito mobilizador, daí que mesmo em meio a muitas dificuldades as pessoas sentiam-se motivadas a ir trabalhar.  Por isso ele era considerado muito amigo do povo. Algumas das decisões anunciadas no comício eram sábias e positivas, sempre procurando estar na dianteira dos interesses do povo, por isso, alguns autores o consideram presidente populista e era na verdade.
No diálogo como o Povo, encontramos as características do Estadista referido pelo Maquiavel., visto que Samora estava sempre disposto a fazer o que fosse necessário para alcançar e perenizar a glória cívica e a grandeza - quer haja boas ou más acções envolvidas - contagiando os cidadãos com essa mesma disposição. Ele conseguia nos seus discursos simular e manipular da opinião pública. Sobre a manipulação da opinião pública, quem não se recorda da sua expressão em pleno comício "é ou não é?". Obviamente que o público respondia positivamente.

III.USOS E ABUSOS DA HISTÓRIA NA EXALTAÇÃO DE SAMORA MACHEL
Alguns discursos expressos por diferentes personalidades não parecem representar aquilo que Samora era de facto, mas as nossas pretensões individuais em expressar algo, que na minha, opinião, se pretende transmitir uma certa moralidade à sociedade ou mesmo usar Samora Machel como uma referência  moralizadora para a sociedade moçambicana. O problema que estas pretensões não possuem nenhuma base de historicidade, o que acaba de certa escamoteando determinadas circunstâncias temporais da nossa História. Por exemplo, tenho ouvido recorrentemente discursos como: se Samora estivesse vivo teria tomado essa ou aquela atitude. Ora, estes posicionamentos, revelam os nossos posicionamentos e não dele. De tal forma, que sou opinião que apontemos as virtudes e as limitações da governação Samoriana nas circunstâncias temporais da sua actuação política. Samora se estivesse vivo teria a mesma virtude no cenário político internacional? Aliás, ele demonstrou em vários momentos as mudanças políticas e económicas em função da conjuntura política e económica nacional e internacional. Existe exemplos de alguns líderes africanos que foram mudando com o tempo. Passaram de líderes queridos para inimigos do Povo. Teria aceite alternância do poder? São algumas incertezas e difíceis de prever historicamente. Por isso, que me refiro que em alguns momentos os discursos não me parecem estarem a analisar feitos de Samora, mas sim a deusificá-lo . É verdade que o passado pode ser aproveitado para tudo que se queira fazer do presente. Nós menosprezamos quando mentimos sobre ele (o passado) ou quando escrevemos a História que mostra um dos seus lados. Podemos por em prática o que aprendemos de Samora tanto de um modo cuidadoso quanto desastroso. Isso não siginifica que não somos capazes de ver a história como fonte de conhecimento, apoio e ajuda, mas que devemos ter cautela com o emprego que dela fazemos. É isso que chamo de uso e abuso da História, talvez porque em Moçambique, valoriza-se bastante a História Política, razão pela qual a nossa História esteja muita virada para análises do processo de resistência anticolonial, governação colonial, a luta pela libertação nacional e o processo de construção do Estado-Nação e a guerra dos 16 anos. Pouco aborda-se outras componentes da História Social, Cultural e Económica, refiro-me concretamente a história dos grupos rurais, mulheres, operários, comerciantes informais, prostituição, economia informal, políticas culturais e económicas e muito mais, que é outra vertente de análises de processos históricos, porque na verdade César não construi Roma sozinho, Faraó não construi as pirâmides sozinho e nem Samora tentou construir um  Estado-nação sozinho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As circunstâncias políticas da governação samoriana permitiram actuar como actuou, num período da construção do Estado- nação, mudanças de mentalidade em relação a governação anterior – colonial e a tentativa de seguir a experiência socialista. Samora preocupou-se imenso pelo interesse colectivo. E neste processo encontramos em Samora virtudes convencionais como honradez, veracidade, escrúpulos que não são típicas do político, que costuma ser propenso a certos vícios - desfaçatez, hipocrisia, venalidade, mas apesar de ter sido um bom estadista, possuía também suas invirtudes assim como qualquer homem.
Samora como estadista tomou decisões de alguma forma incompreendidas pois preocupou-se com o longo prazo e tomou decisões impopulares a curto prazo, enquanto a maioria dos políticos preocupa-se com resultados imediatos de suas acções.
Devemos continuar a celebrar Samora valorizando, seus feitos carismáticos, mas apontado também suas invirtudes e limitações, se é, que precisamos transmitir um legado histórico às diferentes gerações. Samora pelos seus feitos, a sua representação simbólica, configura-se a de um herói  real e não imaginário, criado e inventado.
Aliás, a invenção de heróis, símbolos e mitos em Moçambique no processo da construção na Estado-nação em Moçambique é um outro debate que  deve ser aprofundado nas pesquisas históricas. Para terminar vou socorrer da frase de Ortega & Gasset que afirma: “o estadista se preocupa com a próxima geração e o político com a próxima  eleição.

BIBLIOGRAFIA
ARPAC- Instituto de Investigação Sócio-Cultural. Samora Machel, História de uma vida dedicada ao povo moçambicano. Maputo: ARPAC, 2011
MACMILLAN, Margareth. Usos e abusos da História. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2010
MATOLA, Arlete, ZONJO, Johane, PADEIRO, Sérgio (Orgs.). Comunicações apresentadas nos seminários do Gabinete da Presidência da República. Maputo: Gabinete de Estudos da Presidência da República,  2011
MONTEIRO, Ana Piedade et all. Samora Machel na Ilha de Inhaca (1955-1959). Maputo: Centro de Estudos Africanos/ ImprensaUniversitária, 2012
MUIUANE, Armamndo Pedro. Datas e documentos da História da FRELIMO. 3ª Edição, Revista, melhorada e ampliada. Maputo: S.E, 2013
KOSELLECK, Reinhart  et all. O conceito de História. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013
MACHEL, Samora. Establishing People`s to Serve the Masses. Dar es Salaam: Tanzania, 1977
SILVEIRA, Hélder Gordim da, DE ABREU, Luciano, MANSAN, Jaime Valim (Orgs.). História e Ideologia: Perspectivas e debates. Passo Fundo: Editora da Universidade Passo Fundo, 2009

Discursos
MACHEL, Samora.  Colher no 25 de Setembro, força renovada para o combate. Maputo: Edição do Partido Frelimo, 1979
MACHEL, Samora.  Assembleias são escola do poder popular. Maputo: Edição do Partido Frelimo, 1986
MACHEL, Samora. Produzir é um acto de militância. Maputo: Edição do Partido Frelimo, 1979
MACHEL, Samora.  Estabelecer o poder popular para servir as massas. Maputo: Edição do Partido Frelimo, 1984







[1] Doutor em História pela Universidade  Federal do Rio Grande do Sul e Director da Biblioteca Nacional de Moçambique

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