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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

16 julho 2012

A MODERNIDADE, A QUESTÃO RACIAL E A SUBALTERNIDADE


A MODERNIDADE, A QUESTÃO RACIAL  E A  SUBALTERNIDADE
Por Jorge Fernando Jairoce

Introdução
Neste artigo pretendo trazer uma reflexão sobre a modernidade e os seus efeitos na História da humanidade, relacionando particularmente com a questão da desvalorização da raça negra,  sua subalternidade  e a imposição da violência epistêmica sobre outros povos  e culturas pelo Ocidente.

1.1.Significado da  modernidade na História
A partir do século XVII, os filósofos modernos como René Descartes, Emanuel Kant e Francis Bacon atribuem a razão (os racionalistas) ou os sentidos (os empiristas) como via privilegiada do conhecimento  (dimensão filosófica da modernidade). A modernidade visto nesta perspectiva  expressa  a ideia de que a ciência em geral e não apenas as ciências sociais assentava nas seguintes ideias fundamentais: distinção entre sujeito e objecto e entre natureza e sociedade ou cultura; redução da complexidade do mundo a leis simples susceptíveis de formulação matemática; uma concepção da realidade dominada pelo mecanicismo determinista e da verdade como representação transparente da realidade; uma separação absoluta entre conhecimento científico – considerado o único válido e rigoroso – e outras formas de conhecimentos como o senso comum ou estudos humanísticos; privilegiamento da causalidade funcional, hostil à investigação das “causas últimas”, consideradas metafísicas, e centrada na manipulação e transformação da realidade estudada pela ciência[1].
A questão do conhecimento se impôs no cenário moderno a partir das incertezas presentes no século XVI em consequência do declínio do modo de vida feudal. Para isso contribuíram fatores como a retomada da vida urbana, o incremento do comércio como forma de produção de riqueza, a constituição dos Estados Modernos, as Grandes Navegações e a descoberta de novos povos, a invenção da imprensa, a Reforma (e a contra-reforma) religiosa e, por fim, o surgimento da física matemática.
Costuma-se situar o início da modernidade com o pensamento de Descartes, o fundador do funcionalismo moderno. Ele propôs estabelecer as condições de possibilidade para a obtenção de um conhecimento seguro da verdade. Descartes é tomado como inaugurador da Modernidade no sentido de que ele marca o fim de todo um conjunto de crenças que fundamentavam o conhecimento. O homem moderno não buscava a verdade em um além, em algo transcendente.
O filósofo Francis Bacon, contemporâneo de Descartes, pode ser apresentado como o fundador do moderno empirismo. Para Bacon a razão deixada em total liberdade pode se tornar tão especulativa e delirante que nada do que produza seja digno de crédito. É necessário dar à razão uma base nas experiências dos sentidos e na percepção; desde que essa percepção tenha sido purificada, liberada de erros e enganos a que está submetida no cotidiano.
A sociedade que se formou na Europa durante a Idade Moderna para além de constituir um modelo complexo e especifico de organização social, econômica e política e ela vai criar bases para edificação de uma sociedade baseada na geopolítica do conhecimento que subalterniza saberes, povos e culturas, memórias, línguas e histórias locais. Portanto as histórias locais serão silenciadas e suprimidas pela colonialidade do poder no imaginário moderno/colonial (Mignolo. 2003). A edificação deste modelo de sociedade foi possível através de elaborações científicas baseadas na racionalidade científica europeia que era considerada a mais credível e verdadeira como veremos a seguir.

1.2. Modernidade, filósofos iluministas e o preconceito racial
A ideia de que o mundo explica-se com base na racionalidade científica é atinente a Europa e como tal somente ela tem a capacidade de criar a cultura e a civilização. É recorrente, nos compêndios que apresentam a ideia de uma história da civilização ocidental, o equívoco  no tratamento do referencial que diz respeito ao continente africano e às suas gentes (Hernandez, 2008, p.17). Estas considerações foram feitas no cerne do Iluminismo como foi evidenciado por filósofos e cientistas desta época, David Hume e Immanuel Kant, Montesquieu e mais tarde Hegel,  por exemplo, afirmaram a inferioridade congênita do Negro.
Na leitura do livro Tratado sobre os caracteres nacionais”  Hume diz que a raça negra é inferior a raça branca. Segundo Hume, não existe nenhuma nação desta raça que seja civilizada e nenhum indivíduo ilustre por suas ações ou suas capacidades intelectuais ou morais. Para ele os negros ignoram tudo o que tem a ver com inteligência: a manufatura, a arte, a ciência. O autor vai mais longe: não existe nenhuma comparação entre a barbárie do negro mais evoluído e a barbárie do branco mais vulgar. É que o branco revela um potencial do progresso indefinido enquanto o negro se caracteriza pela estagnação. Isso significa que ao longo do tempo e do espaço, a diferença entre essas raças é permanente e invariável. Hume continua dizendo que é a própria natureza que explica tais diferenças. É que o objetivo da natureza era diferenciar as raças humanas e estabelecer uma hierarquia rigorosa entre elas. Preventivamente, Hume recusa o argumento histórico-social que tenta explicar a imbecilidade do negro pela servidão. Ele fornece um exemplo: os negros livres não mostram nenhum indício de inteligência superior em comparação ao indício dos negros escravizados. Sobre um negro da Jamaica que teria talento, Hume afirma a mediocridade das obras daquela pessoa, semelhante a um papagaio que apenas balbucia algumas palavras aprendidas (Hume, 1999, p. 207, nota 12).
Sobre essas questões, Kant concorda com Hume e parece severo. Kant diz que “Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo”(Kant, 1993, p. 75). Chamando a autoridade de Hume, ele afirma que
Dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros.” (Kant, 1993, p. 76).
A filosofia de Kant era cheia de preconceitos. E nas relações com os negros ele recomenda o uso do chicote: “Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas.”(Kant, 1993, p. 75-76). Este posicionamento pode ter influenciado para violência física impostas aos negros escravos nas plantações das Américas e mesmo no contexto da exploração nas colónias (Gilroy, 2007).
Reconhecidamente, a imagem reservada à África designava um espaço assoberbado pela opressão dos elementos naturais, assolado pela indigência cultural e pela inferioridade diante da civilização européia. Nesse recorte, existiam apenas populações destinadas a serem sujeitadas, jamais compreendidas. O pensamento referente à incapacidade do africano de produzir conhecimento racional ou civilização – conceito bastante utilizado pelos pensadores deste século – foi subjacente a diversas manifestações intelectuais do mundo ocidental e foi compartilhada, por exemplo, por diversos autores modernos iluministas dentre os quais o francês como Voltaire, o escocês Hume e Kant , mesmo enfatizando a universalidade da razão, negaram aos africanos e a sua descendência a posse de capacidade literária e civilizacional como bem dizia Kant: “ O Negro permaneceu trancado do lado de fora do círculo das relações intersubjectivas.” (Gilroy, 2007, p.84).
O filósofo alemão, Emmanuel Kant, importante teórico da “ética” como conceito prático da reflexão sobre a “moral” e defensor da racionalidade como ferramenta essencial à produção do conhecimento, em um livro publicado em 1802, se referia aos africanos ao sul do Saara como “homens que cheiram mal” e têm a pele negra por “maldição divina. Kant rejeitava desta forma a humanidade dos indivíduos africanos visto que para ele somente  o europeu, se supunha ser a essência da humanidade e da civilização. Entendia que os negros eram mais um elemento da natureza africana, semelhante aos bichos e rios. (Foé, 2011).
Sobre esta questão, devemos notar a especificidade do caso de Voltaire na medida em que seu ponto de vista parece contraditório. Inicialmente, Voltaire aceita a fraternidade e a igualdade entre as raças negra e branca, quando ele afirma a identidade de todas as raças do mundo. Em nome deste princípio fundamental, Voltaire condena veementemente a escravidão e a opressão que sofrem os negros. Mas de maneira surpreendente o mesmo. Voltaire tenta justificar a escravidão do negro quando ele diz que a Europa compra os escravos domésticos nos países dos negros porque este povo trafica seus próprios filhos. Voltaire não compreende a razão porque a Europa é censurada quando ela pratica este negócio. Porque, segundo Voltaire, um povo que trafica seus filhos é mais condenável que o comprador. De qualquer maneira, este negócio demonstra a superioridade absoluta da Europa. E Voltaire conclui que aquele que se entrega a um mestre nasceu para ter um. (Voltaire, 1963, p. 807). Esta conclusão merece uma observação. Tentar convencer o povo vencido da África que ele é responsável pela sua própria servidão parece um fenômeno único na história.
Voltaire tenta explicar a inferioridade dos negros. Primeiro, ele enfatiza a inferioridade física  descrevendo-o com um nariz chato, os olhos redondos, os lábios sempre espessos, os cabelos em forma de lã e depois enfatiza ainda  a inferioridade intelectual afirmando que a medida da inteligência mostra enormes diferenças entre o povo branco e o povo negro. Assim, como exemplos, diz que os africanos não são capazes de concentrar a atenção; eles são incapazes de calcular. Enfim, esta raça não parece criada para suportar nem os benefícios nem os abusos da filosofia da Europa. O retrato do negro feito aqui mostra uma ligação forte entre as características físicas e as qualidades morais e intelectuais. O preconceito comum era que a beleza física condiciona a boa qualidade da mente, como o explica o livro  Do Espírito das Leis do Montesquieu . Nele relata os preconceitos da época dele  e escreve que é tão natural considerar que é a cor que constitui a essência da humanidade, que os povos da Ásia, que fazem eunucos, privam sempre os negros da relação que eles têm conosco de uma maneira mais acentuada. Pode-se julgar da cor da pele pela dos cabelos, que, entre os Egípcios, os melhores filósofos do mundo, eram de tão grande importância, que mandavam matar todos os homens ruivos que lhes caíam nas mãos. De um ponto de vista moral, os homens da época de Montesquieu estavam convencidos que Deus, que é um ser muito sábio, não podia introduzir uma alma boa num corpo completamente negro. De um ponto de vista intelectual, Montesquieu aponta a estupidez dos negros que, segundo ele, não são capazes de tirar proveito dos metais preciosos dos seus países. Uma prova de que os negros não têm senso comum é que dão mais importância a um colar de vidro do que ao ouro, fato que, entre as nações policiadas, é de tão grande conseqüência. Durante a época de Montesquieu, a cor preta justificava plenamente a escravidão dos povos da África. Então, porque lamentar estes seres que, além de ser preto, têm um nariz achatado. A verdade é que nesta época não se teve certeza da humanidade dos negros. Mas é interessante ver como o capitalismo recusa a humanidade a um grupo humano ou a uma raça para justificar a escravidão. É que a economia da Europa precisava de novos animais de carga para substituir os Índios da América exterminados. (Foé, 2011).
 É porque Montesquieu diz que: “Se eu tivesse que defender o direito que tivemos de escravizar os negros, eis o que diria: Tendo os povos da Europa exterminados os da América, tiveram que escravizar os da África, a fim de utilizá-los no desbravamento de tantas terras. O açúcar seria muito caro se não se cultivasse a planta que o produz por intermédio de escravos”. (Montesquieu, 1979, livro XV, cap. 1).
O Iluminismo decretou a inferioridade dos negros para legitimar a servidão. As diferenças dos caracteres com os brancos são permanentes e imutáveis porque os negros são condenados a se tornarem escravos dos Europeus.
Como já citado, os europeus haviam iniciado a conquista do continente africano e o domínio de suas populações. Como este domínio carecia destas justificativas morais, além da concepção de que a África não é uma parte histórica do mundo. Os filósofos modernos e iluministas conceberem estas justificativas morais e os seus ideiais influenciaram vários cientistas sociais. A ideia de que a África não tem movimentos, progressos a mostrar, movimentos históricos próprios esta e outras considerações hegelianas foram reforçadas pela aplicação dos princípios de Darwin. (Foe, 2011). Ainda que a influência de Hegel na elaboração da história africana tenha sido fraca, a opinião que ele representava foi aceita pela ortodoxia histórica de seu século. Na concepção do século XIX, a África não tinha e nem poderia ter história. Essa opinião anacrônica e destituída de fundamento ainda hoje não deixa de ter adeptos.
O professor A. P. Newton – grande defensor da atividade histórica como uma análise científica e rigorosa de fontes originais e escritas, em 1923, numa conferência diante da Royal African Society de Londres, sobre “A África e a pesquisa histórica” expôs que este continente não possuía nenhuma história antes da chegada dos europeus. A história começa quando o homem se põe a escrever. Assim, segundo o mesmo, o passado da África antes do inicio do imperialismo europeu só podia ser reconstituído a partir de testemunhos dos restos materiais, da linguagem e dos costumes primitivos, coisas que não diziam respeito aos historiadores, e sim aos arqueólogos, aos lingüistas e aos antropólogos. Fica clara, assim, a concepção muito presente tanto no século XIX quanto no XX, de que a história da África só poderia ter inicio, com a chegada do europeu “civilizado” e da escrita como fonte histórica. Negando, desta forma, as diversas outras possibilidades de fontes históricas e a própria existência de escritas autóctones africanas, além dos hieróglifos egípcios, uma das primeiras escritas criadas pela humanidade. Diversos outros sistemas gráficos ricos em informações histórica tal qual o meroídico, o núbio antigo, o copta, o tifinagh – milenar sistema de escrita milenarutilizado pelos tuaregues, aparentemente derivado do alfabeto púnico de Cartago –, o ge’ez – sistema de escrita etíope com símbolos gráfico utilizados nas líguas ahmárico e o tygrinia – e o bamun também denominado Aka Uku, criado no século XIX pelos administradores do Reino do Bamum na atual República do Camarões. Além de ideogramas estilizados nsidibi, inventados pelos ejagham da Nigéria e do Camarões  (Hernandez, 2008).
A construção historiográfica do continente africano estava barrada pelo preconceito e pelo etnocentrismo. Os europeus acreditavam que sua pretensa superioridade sobre os negros africanos estava confirmada por sua conquista colonial. Em consequência disso, em muitas partes da África, especialmente no cinturão sudanês e na região dos Grandes Lagos, eles estavam convictos de que sua presença no continente tinha como finalidade legar as populações africanas os conhecimentos e a civilização européias (Idem).
No decorrer das primeiras décadas do século XX, mais explicitamente pós década de 1920, um movimento de renovação quanto aos paradigmas, métodos e temáticas históricos Escrevia George Friedrich Hegel (1770-1831), importante filósofo alemão do século XIX, em sua obra “Filosofia da História Universal”, que a a-istoricidade da África, decorre, em particular, de duas razões independentes: “A primeira, pelo fato de a história ser própria de um Velho Mundo que excluía a África subsaariana e a segunda por conceber o africano como sem autonomia para construir a sua própria história” (Hernandez, 2008, p.19). Portanto para o Hegel na África subsaariana “...não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjectivos, que na melhor das hipóteses, podem-se tornar-se objectos ou matéria-prima para inquirição científica.”(Santos, 2009, p. 25).  Contudo, esta África genérica e a-histórica, é divida por Hegel, em sua referida obra, em partes distintas: a setentrional, banhada pelo mar mediterrâneo a qual “pode dizer-ser que esta parte não pertence propriamente à África, senão à Espanha com a qual forma uma concha” e a “África propriamente dita”, que fica ao sul do Saara (Hernandez, 2008, p.19). Sobre esta última região, diz o filósofo:

A África propriamente dita é a parte característica deste continente. Começamos pela consideração deste continente, porque em seguida podemos deixa-lo de lado, por assim dizer.
Não tem interesse histórico próprio, senão o de que os homens vivem ali na barbárie e na selvageria, sem fornecer nenhum elemento à civilização. Por mais que retrocedamos na história,acharemos que a África está sempre fechada no contanto com o resto do mundo, é um Eldorado recolhido em si mesmo, é o país criança, envolvido na escuridão da noite, aquém da luz da história consciente. [...] Nesta parte principal da África, não pode haver história” (Ibid., p. 20).

A partir da leitura deste trecho específico podem se perceber alguns pontos instintos da visão historiografia hegeliana. Primeiro, percebe o continente num perpétuo eterno estado selvagem, “no qual predomina a natureza”, negando a existência de cultura ou de história possível aos povos africanos. Segundo, percebe a África como um bloco fechado em si mesmo – “acharemos que a África está sempre fechada no contato com o resto do mundo, é um Eldorado recolhido em si mesmo” – negando, desta forma, a extensa realização de comércio extra-continentais com a China, Índia ou Península Arábica na África oriental ou a grande quantidade de caravanas  responsáveis por abastecer o centro africano ou mesmo boa parte dos mercados auríferos europeus (Idem).
Contudo o contexto no qual estas idéias foram criadas – o século XIX – os mundos asiáticos e africanos encontravam-se sob o domínio colonial da Europa e outros países Imperialistas. Tais idéias foram criadas como justificativa, para a subordinação e submissão destes povos então considerados inferiores, selvagens ou desprovidos de cultura nas mãos das potências européias. Este pensamento etnocêntrico enraizado no inconsciente dos pensadores e filósofos do norte do globo contribui como justificativa moral e até religiosa, para as ações realizadas por estas nações ditas “civilizadas” no restante do mundo. Como fica claro no trecho citado do mesmo livro de Friedrich Hegel:

Encontramos, [...], aqui o homem em seu estado bruto. Tal é o homem na África. Porquanto ohomem aparece como homem, põe-se em oposição à natureza; assim é como se faz homem.
Mas, porquanto se limita a diferenciar-se da natureza, encontra-se no primeiro estágio, dominado pela paixão, pelo orgulho e a pobreza; é um homem estúpido. No estado de selvageria achamos o africano, enquanto podemos observá-lo e assim tem permanecido. O negro representa o homem natural em toda a sua barbárie e violência; para compreendê-lo devemos esquecer todas as representações européias. Devemos esquecer Deus e a lei moral. Para compreendê-lo exatamente, devemos abstrair de todo respeito e moralidade, de todo o sentimento. Tudo isso está no homem em seu estado bruto, em cujo caráter nada se encontra que pareça humano” (Hernandez, 2008, p.21).

Assim, desde o Iluminismo até a época de Hegel e de Gobineau e com exagero até os dias de hoje pela corrente eurocêntrica o ser negro foi excluído do gênero humano comum e mesmo da História. O ser negro foi submetido para além da violência física (pela prática do trabalho braçal) uma violência epistêmica, cuja tática de neutralização do Outro, seja ele subalterno ou colonizado consiste em inviabilizá-lo, expropriando-o de qualquer possibilidade de representação, silenciando-o fazendo analogia a violência epistêmica sofrido pelo sujeito subalterno (Spivak, 2010).
As ideias  apresentadas pelos filósofos iluministas e outros  contribuiram para criação de formas de representação do homem negro e da história e cultura de África acabando por ser um factor catalisador do capitalismo imobilizando a história dos povos vencidos ou a maneira como este regime obriga as nações exploradas a executar as tarefas repetitivas. A exploração dos vencidos não é possível sem a imobilização da cultura indígena e sem a saída do vencido de sua historia anterior. É o sentido que o negro é desvalorizado como sujeito histórico e perda a iniciativa histórica (Gilroy, 2007). Em jeito de conclusão, Gilroy (2007, p.82) afirma que estas ideias raciológicas misturam o físico e o metafísco num poderoso e elaborado argumento cosmopolitista para justificar a matriz colonial do poder que vai-se desenhando e que implicava também a colonialidade do saber.

1.3. Modernidade, colonialidade do poder e saber e a questão da raça
Walter Mignolo refere que não dá para pensar a modernidade sem pensar na matriz da colonialidade do poder que assenta-se no controle da economia, da autoridade, da natureza e seus recursos naturais, do género e sexualidade e da subjectividade e conhecimento (Mignolo, 2010, p.12). Isto para dizer que, não bastava a colonização do poder como tal, era necessário também uma colonização do saber (Mignolo, 2003) sobretudo para as raças não europeias. Para reforçar este argumento Quijano acrescenta referindo-se ao termo colonialidade do poder para designar a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça. Trata-se de uma "construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo." (Ibid., p.13). A ideia de raça foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo das relações de dominação que a conquista exigia. Assim, foi classificada a população da América, da África e  posteriormente, do mundo, a partir desse novo padrão de poder, ou seja, embora o pensamento da raça tenha existido em periodos anteriores, a modernidade transformou o modo como a raça era compreendida e praticada (Gilroy, 2007, p.80) para responder obviamente aos interesses da matriz colonial do poder. Não foi por acaso que os índios numa  primeira e depois os negros foram desumanizados e reduzidos a máquinas de trabalho escravo. A questão racial foi bem aproveitada para este propósito e como refere Gilroy (2007, p.81) certas raças foram historica e socialmente inventadas pela modernidade catalisando o regime distinto de verdade. Em outras palavras, as ciências humanas modernas  particularmente a antropologia, geografia e filosofia emprenderam um elaborado trabalho de modo  a tornar a ideia da raça epistemológicamente correta (Idem). Sobre este aspecto ficou bem patente no subtítulo anterior quando os filósofos iluministas e outros cientistas sociais apresentaram vários argumentos para justificar a ideia da superioridade/inferioridade racial.
A perspectiva de superioridade/inferioridade além de estar na base do conceito de superioridade étnica, também implica a superioridade epistêmica. O conhecimento produzido pelo homem branco é geralmente qualificado como científico, objetivo e racional, enquanto que aquele produzido por homens de cor (ou mulheres) é mágico, subjetivo, irracional e subalterno (Spivak, 2010). Esta dimensão, da colonialidade epistêmica ou do saber, não apenas estabelece o eurocentrismo como perspectiva única de conhecimento, mas também descarta as outras produções intelectuais. Para Mignolo (2003) a diferença colonial epistêmica parte de uma pressuposição situada sobre um julgamento antecipado de que os legados de línguas e pensamentos não europeus são de algum modo deficientes. A hipótese é que as pessoas que falam e são educadas nessas línguas são de alguma maneira epistemicamente inferiores.
A superioridade atribuída ao conhecimento europeu em muitas áreas da vida foi um aspecto importante da colonialidade do saber. Os conhecimentos subalternos foram excluídos, omitidos, silenciados e ignorados (Spivak, 2010). Desde a Ilustração, no século XVIII, esse silenciamento foi legitimado pela ideia de que tais conhecimentos representavam uma etapa mítica, inferior, pré-moderna e pré-científica do conhecimento humano. Somente o conhecimento gerado pela elite científica e filosófica da Europa era considerado como conhecimento verdadeiro, já que era capaz de fazer abstração de seus condicionamentos espaço-temporais para se localizar em uma plataforma neutra de observação. (Mignolo, 2003).
Mas a modernidade possui outras características, que também são derivadas das relações de produção capitalistas. A dominação e exploração da classe trabalhadora provocam a resistência desta e a luta de classes. A classe capitalista busca manter sua dominação através da repressão, da ideologia, do imaginário, da criação de instituições que buscam integrar o proletariado na sociedade burguesa enfim marginalizando e subalternizando este grupo sem voz como diria Spivak.

Conclusão
Depois de vários argumentos apresentados pelos filósofos iluministas observa-se que eles foram importantes para o avanço do pensamento racional moderno europeu que criou padrões da racionalidade para o  mundo, abrindo espaço para desvalorização (violência epistêmica) de outras formas de conhecimento que não respondesse a esse padrão. Consequentemente essa racionalidade contribui para edificação de preconceitos raciais sobretudo para a raça negra, o que propiciou condições para sua dominação cultural e económica daí que, não dá para pensar a modernidade sem a colonialidade do poder e saber. E como alternativa para esta modernidade Mignolo fala de pensamento liminar “gnose liminar” que aponta uma razão pós-ocidental e uma reflexão crítica sobre a produção do conhecimento pautada na colonização epistêmica e na subalternização de todas as formas de saberes que não estivessem pautadas nos cânones da ciência eurocêntrica- projecto que vai se chamar de estudos pós-coloniais que representa um grande desafio para o sul global.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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HEGEL, G.W.F. Leçons sur la philosophie de l’histoire. Paris: J. Vrin, 1970.
HERNANDEZ, Leila Leite – A África na sala de aula. Visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2008.
HUME, David. Essais moraux, politiques & littéraires. Paris: Editions Alive, 1999.
KANT, Emmanuel. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. São Paulo: Papirus.1993.
MIGNOLO, Walter. Histórias Locais/Projectos Globais: Colonialidade, Saberes Subalternos e Pensamento Liminar. Belo Horizonte. Editora UFMG. 2003.
MIGNOLO, Walter. Desobediéncia epistémica: retórica de la modernidade, lógica da colonialidade y gramática de la descolonialidade. Buenos Aires: Ediciones del Signo. 2010
MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis, Livro XV, cap.1 (Os Pensadores). Tradução Fernando Henrique Cardoso. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
FOÉ, Nkolo. A questão do negro e o mundo moderno. In: Revista da História de África e de Estudos da Diáspora Africana (Sankofa), número 8, 2011.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1ª Ed. Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologia do Sul. São Paulo: Cortez Editora, 2009.
TEMPELS, Placide. La Philosophie bantoue. Paris: Présence Africaine, 1948.
VOLTAIRE. Essai sur les moeurs et l´esprit des nations. Paris: Garnier, 1963.





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[1] Boaventura Sousa Santos na Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra, de 16 a 18 de Setembro de 2004.



14 julho 2012

HISTÓRIA DA PALESTINA

HISTÓRIA DA PALESTINA
O vídeo documenta a história da criação do Estado de Israel e a luta pela criação de um Estado palestino, desde o fim do domínio do Império Otomano até as negociações mais recentes entre árabes e israelenses. A região era chamada de Palastu pelos assírios.

11 julho 2012

A EXPERIÊNCIA DOS AFRICANOS E SEUS DESCENDENTES NO BRASIL

A EXPERIÊNCIA DOS AFRICANOS E SEUS DESCENDENTES NO BRASIL
O grupo de pesquisa do CNPq foi formado em 2002. Tem como objetivo investigar a experiência dos africanos e seus descendentes no Brasil de uma forma abrangente e comparativa. Tendo esta problemática como foco e pretendendo estabelecer um maior diálogo entre as experiências no sul com as demais regiões do Brasil surgiu a iniciativa de organizarmos os Encontros de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional que, após ter se realizado em Castro no Paraná, em 2003, passou a ser bi-anual e rotativo, realizando-se em Porto Alegre, Florianópolis e Curitiba. A formação do grupo desde então mudou um pouco. José Augusto Leandro, Eduardo Spiller Pena e Sandra Molina atuaram de forma entusiasta em Castro e colaboraram para o desenvolvimento do Grupo. Após a experiência do I Encontro, outros colegas foram se unindo a nós constituindo a nossa atual formação. Além destes Encontros, buscamos integrar investigações sobre o tema, intensificando trocas de pesquisa, intercâmbios entre os discentes envolvidos, promovendo colaborações entre nossas universidades. Colaboramos, ainda, na formação de um campo de estudos sólido desenvolvendo projetos de extensão universitária, nos aproximando de bibliotecas, museus e arquivos. Buscamos, por fim, responder à demanda social inscrita na lei 10.639 de janeiro de 2003 sobre o ensino de História da África e de Cultura Afro-Brasileira. Para o aprofundamento consulte o site: HTTP://www.escravidaoeliberdade.com.br. Assista o o filme AMISTAD que retrata o revolta  dos escravos no navio negreiro AMISTAD na Costa de Cuba em 1839.

09 julho 2012

HISTÓRIA DO SÉCULO XX

 HISTÓRIA DO SÉCULO XX
O vídeo apresenta um resumo didático sobre  história do século XX (com ênfase no período entre as duas grandes guerras mundiais).

08 julho 2012

BREVE HISTÓRIA DE ANGOLA


O vídeo apresenta a história de Angola do período pré-colonial até aos dias de hoje. E para os interessados em estudar aspectos da História de Angola no século XIX podem consultar o site diamang digital (www.diamangdigital.net.) que é um projeto de digitalização e disponibilização em linha de materiais documentais, fotográficos e fonográficos da ex-Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, em arquivo na Universidade de Coimbra.



07 julho 2012

O QUE ACONTECEU COM O SONHO DA LIBERDADE NO MUNDO?

 O QUE ACONTECEU COM O SONHO DA LIBERDADE NO MUNDO?
Desde as revoluções burguesas na Europa até hoje, discute-se bastante a ideia liberdade. Basta recordar os filósofos iluministas do século XVIII, como Montesquieu, Rousseau, Voltaire e outros que elaboraram várias teorias em torno da liberdade do Homem no mundo moderno. É verdade que estes ideais também foram debatidos pelos filófosos gregos na antiguidade clássica. Mas o ideal da democracia liberal afigura-se como algo moderno inspirado pelos iluministas. Mas será que passados quatro séculos o homem conseguiu alcançar esta  liberdade de que tanto se fala ou viramos prisioneiros da economia de mercado que comanda as vontades humanas e torna-nos máquinas do tempo? Como  conciliar a democracia política com a democracia de mercado no século XXI? O documentário abaixo ajuda-nos a reflectir sobre estas questões.


06 julho 2012

COMO OS EUA FORAM DERROTADOS NA INDEPENDÊNCIA DE ANGOLA


COMO OS EUA FORAM DERROTADOS NA INDEPENDÊNCIA DE ANGOLA


O historiador português Tiago Moreira de Sá teve acesso aos arquivos diplomáticos e dos serviços secretos de Washington relativos aos anos 1974 e 1975. O livro “Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola” mostra que Kissinger acordou tarde demais.
A “falta de uma estratégia norte-americana para Angola” é claramente evidenciada no recente livro do historiador português Tiago Moreira de Sá. Com o título “Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola”, baseia-se em grande parte nos arquivos norte-americanos que já se encontram desclassificados e disponíveis e que revelam a extensão do atraso, dos erros e da derrota sofrida por Washington na mais importante das colónias portuguesas.
O livro começa com o relato de um almoço, a 19 de Abril de 1975, na Casa Branca, entre o Presidente Gerald Ford, o secretário de Estado Henry Kissinger e o Presidente da Zâmbia Kenneth Kaunda. Foi “o momento de viragem na política dos EUA para Angola e mesmo para o continente africano.”
Kaunda, que falava em nome dos presidentes vizinhos (mencionou Nyerere da Tanzânia, Mobutu do Zaire e Samora Machel de Moçambique), “convenceu Ford de que a URSS estava a intervir em Angola com conselheiros militares e armamento, o que podia ajudar o MPLA a tomar o poder”.
O MPLA, acentuou Kaunda, “não era apenas um grupo marxista como a Frelimo em Moçambique”, mas sim “um instrumento de Moscovo.” O Presidente da Zâmbia propôs que os EUA apostassem em Savimbi como “o líder de compromisso” e assegurou que também o ministro dos Negócios Estrangeiros, Melo Antunes, “estava disposto a passar a apoiar” o líder da UNITA.
O encontro com Kaunda obrigou Washington a abrir os olhos e a passar à ofensiva. Moreira de Sá explica que “os EUA tinham de demonstrar a Moscovo, mas também a Londres, a Bona, a Paris e a Pequim, que a derrota na Indochina não reduzira a capacidade e a vontade de resistir à expansão soviética.”
MPLA o menos tribal
De Luanda, desde 1974 que Washington recebeu relatos diários do seu cônsul Everett Briggs, que assegurava que o MPLA tinha várias ligações com o industrial português Manuel Vinhas, enquanto António Champalimaud seria “o principal apoiante” de um “futuro exército angolano de oficiais brancos”, constituído à base de mercenários. Quanto a Rosa Coutinho, “é definitivamente amigo dos Estados Unidos (…) Ele não nos parece ser um esquerdista.”
Para Robert Hulslander, responsável da CIA em Angola, Holden Roberto, o dirigente supremo do FNLA, era “um homem corrupto e sem princípios” que representava “o pior do racismo radical africano.” Já o MPLA era “o menos tribal dos três movimentos” e o “melhor para governar Angola”. Na altura (1974), estaria mais próximo “do socialismo radical europeu do que do marxismo-leninismo soviético.”
Sabe-se como desde cedo a União Soviética apostou numa “política de fortalecimento do MPLA, sob a liderança de Agostinho Neto”. Mas, na fase inicial, a política de Moscovo foi “dominada pelo seu conflito com Pequim e não com Washington.” A China apostava na FNLA, tendo feito chegar, logo em Maio de 1974, o primeiro contingente de 112 conselheiros militares.
Porém, “a internacionalização da descolonização de Angola não começou por acção de Moscovo, ou de Pequim, ou de Washington, mas sim dos países africanos vizinhos”, como o Zaire (ao lado da FNLA), o Congo Brazzaville (do MPLA) e a África do Sul (da UNITA).
Alvor foi sempre letra morta
Nem os EUA nem a URSS acreditavam no Acordo de Alvor, de Janeiro de 1975, e ambos apostaram em liquidá-lo à nascença. Ainda em Janeiro, o departamento de Estado fazia uma antevisão de possíveis eleições em Angola. A UNITA “provavelmente ganharia por causa do seu apoio forte” entre os ovimbundos; a FNLA, sólida entre os bakongos, “terminaria em segundo”; o MPLA poderia ficar “num distante terceiro lugar”. Mas o principal problema residia “nas ambições pessoais dos três líderes (…), querendo todos ser presidentes”.
A guerra em Luanda iniciou-se a 21 de Março; apesar disso, o cônsul dos EUA sustentava que “não havia o risco iminente de uma guerra civil”. Depois do golpe de 11 de Março em Portugal, Neto enviou a Lisboa Iko Carreira, o seu comandante militar, em busca de “formas concretas de auxílio”, tendo sido acordado o envio a Angola de “civis ligados aos radicais do Movimento das Forças Armadas para falarem com a liderança do MPLA”. A 30 de Abril foram presos no aeroporto de Luanda nove pessoas com passaportes portugueses novos: “dois russos, dois jugoslavos, dois búlgaros, um brasileiro e outros dois de nacionalidade não identificada”.
Segundo o consulado dos EUA, teriam sido “enviados pelo PCP para ajudar o MPLA”. Este foi o primeiro grupo de estrangeiros identificados. Seguiram-se mais dois, um dos quais formado por “portugueses, brancos, membros do PCP, enviados ao grupo de Neto”.
A partir de Lisboa, Melo Antunes e Almeida Santos empenharam- -se “em enfraquecer as ligações do MPLA à União Soviética através da abertura, ou reforço, de outros canais de apoio como a Zâmbia, a Jugoslávia, a Roménia e a Argélia”.
Outro elemento – bem menos conhecido – foi a entrega de armamento à UNITA, concretizada parcialmente pelo general Silva Cardoso, com a concordância de Melo Antunes e do Presidente Costa Gomes. Num almoço com o embaixador americano em Lisboa, Frank Carlucci, Almeida Santos disse que o MPLA era “um perdedor” e que Savimbi era “o líder angolano mais inteligente e que provavelmente chegaria ao topo”.
Melo Antunes pensaria o mesmo. Ao seu homólogo francês afirmou que o Governo de Lisboa “tinha cometido um grande erro ao apoiar o MPLA e que ia tentar reverter essa tendência se não fosse muito tarde”, acrescentando que Savimbi era o líder nacionalista que valia a pena apoiar”.
Cubanos entram em acção
Inserido num projecto de pós-doutoramento no Instituto Português de Relações Internacionais, o livro – editado pela portuguesa “Dom Quixote” – mostra como a descolonização de Angola foi “um produto da Guerra Fria”. A “Operação IAfeature”, nome de código do programa para Angola, representava, segundo o “New York Times”, “a maior operação secreta norte-americana com a excepção do caso do Vietname”.
Constituiu em três medidas associadas: apoio económico à FNLA e UNITA (numa verba que poderá ter atingido 81 milhões de dólares); fornecimento de equipamento militar; e recrutamento de mercenários para conselheiros daqueles movimentos. Dirigida pela CIA, a supervisão foi entregue a John Stockwell, e os mercenários foram recrutados em Portugal, Brasil, França e especialmente Reino Unido.
Os primeiros foram portugueses, “300 elementos por um valor total de 570 mil dólares”, que entraram pelo Zaire, em Agosto, em reforço do grupo de mercenários “liderado pelo coronel Santos e Castro já anteriormente recrutado pela FNLA”. Dos brasileiros tratou Werner Walters, enquanto da França o famoso Bob Denard forneceu 20 mercenários para apoio à UNITA.
A intervenção cubana iniciou-se na segunda metade de Julho de 1975. Chamada “Operação Carlota” e da iniciativa de Fidel Castro, viria a contar com o apoio soviético. Na ponte aérea entre Havana e Angola, vários aparelhos cubanos e soviéticos foram abastecidos nos Açores, no aeroporto de Santa Maria. O livro regista as datas dos voos e o número de passageiros transportados. A decisão cubana provocou em Kissinger “uma surpresa total”, como o próprio admitiu nas suas memórias.
À acção montada pela África do Sul foi dado o nome de “Operação Savannah”. Destinada a apoiar uma frente entre a FNLA e a UNITA, participaram no respectivo comando operacional quadros da extinta PIDE/DGS. Tiago Moreira de Sá sublinha que o envolvimento de Pretória afastou a China e a maioria dos países africanos da UNITA e da FNLA e acabou por legitimar a intervenção soviética e cubana.
Frente anti-FNLA
Uma das revelações mais interessantes do livro respeita ao encontro secreto, em 29 de Agosto, entre o MPLA e a UNITA, em Lisboa, visando a criação de uma frente anti-FNLA. Participaram nas negociações Lopo do Nascimento e Carlos Rocha, pelo MPLA, e José N’Dele e Fernando Wilson, pela UNITA, e decorreram “no Palácio de Belém com a mediação de Costa Gomes e o apoio do Executivo português”.
A fonte é a embaixada em Lisboa. Os EUA tudo fizeram junto de Savimbi para pôr cobro a este acordo. Como escreveu Stockwell, os EUA não queriam aliados “moles” na guerra contra a URSS e o MPLA.
O historiador teve ainda acesso aos diálogos sobre Angola entre Ford e Kissinger, por um lado, e Mao Tsé-Tung e Deng Xiaoping, por outro, em Dezembro de 1975. Para Pequim, “vale a pena gastar dinheiro neste problema. Porque é uma questão de importância estratégica-chave”.
O livro trata com algum pormenor da batalha de Quifandongo, na véspera do dia 11 de Novembro, a 20 quilómetros de Luanda. Espelho da Guerra Fria, de um lado estavam a FNLA, comandos do Zaire, mercenários portugueses, conselheiros da África do Sul e da CIA, do outro forças do MPLA, com apoio cubano e armamento soviético.
Vinda do Sul, a coluna Zulu, composta por tropas da UNITA e da África do Sul, foi impedida de prosseguir a 200 quilómetros da capital pela destruição de uma ponte sobre o rio Queve. A 11 de Novembro, dia da independência, era o MPLA quem controlava Luanda – e, “em África, quem controla a capital detém o poder”.

Publicado pelo Jornal EXPRESSO - 07/07/2011


04 julho 2012

CONSPIRAÇÃO CAPITALISTA

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MUSEUS E ENSINO DE HISTÓRIA


MUSEUS E ENSINO DE HISTÓRIA


Jorge Fernando Jairoce

 Introdução
A relação museu, educação e ensino de História bem como as potencialidades educativas e afectivas da educação patrimonial são aspectos desenvolvidos neste artigo.

1.1. Evolução do conceito museu

O conceito museu evolui com o tempo. Tradicionalmente, os museus eram vistos como locais de preservação do património e da memória “os objectos do passado”, que podiam ser contemplados por uma certa elite já sensibilizada para a sua fruição, ou seja, as massas não eram consideradas públicos-alvo das instituições museológicas.

Mas, a partir de 1940, operaram-se transformações profundas na sociedade, nas concepções da cultura e nas ideologias, nas exigências da comunidade para com as instituições museológicas, ou melhor, os museus passam a considerar-se ao serviço da comunidade, deixando progressivamente a sua tradição elitista e minoritária. Estas mudanças redefinem o seu papel na acção educativa.

Por isso, hoje, de acordo com o Conselho Internacional dos Museus- ICOM, “... museu é considerado como uma instituição permanente sem finalidade lucrativa ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público e que realiza investigações que dizem respeito aos testemunhos materiais do homem e do seu meio ambiente, adquire os mesmos, conserva-os, transmite-os e expõe-nos especialmente com intenções de estudo, de educação e deleite” (Costa e Olofsson, 1997, p.1).

Considerando este conceito, o museu deixa de ser aquele espaço estigmatizado como local de coisas velhas, passando a ser espaço de discussão, difusão de informação e, sobretudo, de reflexão. Seguindo este raciocínio, o museu poderá ser utilizado como recurso pedagógico destinado ao ensino de várias áreas e, principalmente, da história devido a natureza documental dos acervos museológicos. O aluno pode participar através da visita ao museu na elaboração do conhecimento histórico, consolidar o conhecimento teórico, despertar o interesse pela história, despertar o espírito patriótico e sentir a história Pátria.

Mas para que o museu cumpra a sua função pedagógica deve relacionar as suas actividades à acção educativa. E sobre este último aspecto, Barreto (1985a) considera que a função educacional dos museus consiste em “dar ao indivíduo a consciência do património cultural de que é herdeiro e da capacidade de utilizá-lo e criá-lo. Esta consciência é adquirida basicamente pelo envolvimento sujeito/objecto cultural, pela aproximação e apropriação da sua função essencial e simbólica, assim como da sua trajectória”. (p.2)

Para que isso aconteça, o museu precisa de organizar os seus serviços educativos tendo em conta que a actuação do museu como agência cultural e educativa só pode ser alcançada por uma cuidadosa educação patrimonial.


1.2. Educação patrimonial

A educação patrimonial é “o ensino centrado em objectos culturais, na evidência material da cultura, ou, o processo educacional que considera o objecto como fonte primária de conhecimento” (Barreto, 1985b, p.4).

Partindo desta definição, podemos afirmar que a educação patrimonial possibilita situações não só de aprendizagem, através de objectos materiais e simbólicos da cultura sobre processos histórico-culturais passados, como também o de suscitar o gosto, o interesse em produzir e interagir racional e sensivelmente com experiências históricas tanto passadas quanto presentes, valorizando a importância da preservação das mesmas.

A educação patrimonial têm inúmeras potencialidades tais como: afectivas e pedagógicas.

1.2.1. Potencialidades afectivas da educação patrimonial

A educação patrimonial é um poderoso instrumento no processo de reencontro do indivíduo consigo mesmo, resgatando a sua auto-estima através da revalorização e reconquista da sua própria identidade cultural, ao perceber o seu redor e a si mesmo em seu contexto cultural como um todo, transformando-se em principal agente de preservação.

Para o caso moçambicano, a efectivação de uma educação patrimonial seria uma oportunidade para a divulgação dos valores culturais, criar uma identidade nacional e construir uma nação moçambicana com o intuito de promover o espírito de cidadania conforme as recomendações gerais saídas da 1ª Conferência Nacional sobre a Cultura realizada em 1993.

Através de acções voltadas para a preservação e compreensão do património cultural, a educação patrimonial torna-se num veículo de aproximação, de conhecimento, de integração e aprendizagem de crianças, jovens, adultos e idosos, com o objectivo de os mesmos (re) conhecerem, (re) valorizarem e se (re) apropriarem de toda a herança cultural a eles pertencente, proporcionando uma postura mais crítica e actuante na (re) construção da sua identidade e cidadania.

1.2.2. Potencialidades pedagógicas da educação patrimonial

O ensino centrado em bens culturais existentes no museu e na localidade têm múltiplas vantagens que devem ser destacadas para possibilitar ao indivíduo uma experiência concreta da evocação do passado. E, se não for assim, não há menor sentido em se acumular objectos em museus ou preservar os monumentos da sua destruição. O aprendizado através de objecto é diferente do aprendizado através de ideias e palavras. É um processo diverso e específico que apela mais para o sensível, o concreto, o visual, o táctil e o emocional que o intelectual.

Está provado que a visão desempenha um papel muito importante na memorização se for combinada com a explicação oral e a realização de exercícios pelos alunos. Por exemplo, João (1983, p.75) refere que 83% daquilo que aprendemos é através da visão. A observação directa de objectos no museu constitui uma mais valia, uma espécie de palavra oferecida que poderá servir de antídoto a uma educação, por vezes ainda muito livresca e demasiado abstracta.

Para reforçar estes aspectos Barreto (1985b, p. 4), identifica três categorias diferentes do ensino baseado em objectos culturais:

1ª Categoria: Os objectos são ilustrações para uma história desenvolvida de fontes predominantemente literárias (quando a cultura material deve ser a fonte principal). Relativamente a esta categoria, é necessário referir que o ensino meramente verbal sem evidência material cria insegurança nos alunos, é demasiado especulativo e até pode inibir a análise científica.

2ª Categoria: No ensino académico, a evidência material da cultura é utilizada pelo professor para testar interpretações já estabelecidas ou novas hipóteses baseadas em documentos ou dados estatísticos. Esta categoria revela–se como técnica de pesquisa bastante efectiva.

3ª Categoria: O ensino centrado em bens culturais provoca deliberadamente uma experiência que possibilita o indivíduo conhecer ou sentir o passado. Há uma grande preocupação com a criatividade, pois nesta técnica, o interesse usado não é tanto o passado em si, mas o que pode provocar na mente a contemplação do visitante ou do estudante. Trata-se aqui de se considerar os objectos como ideias e não apenas como realidades superficiais.

Estas três categorias tomam os objectos e expressões do património cultural como ponto de partida para actividade pedagógica, observando-os, questionando-os e explorando todos os seus aspectos, que podem ser traduzidos em conceitos e conhecimentos. Estas três categorias também são referenciadas no trabalho de Matola (1996, p.8) que considera que o ensino centrado em bens culturais permite ao aluno entrar em contacto afectivo sensorial, físico, cognitivo com o passado, e que na sua opinião, quando o ensino se faz através do concreto, permite ao aluno iniciar-se na produção do seu conhecimento histórico e simultaneamente chegar ao estágio de maior aceitação e gosto pela disciplina de História.


Conclusão

Nos estudos por mim efectuados desde 2004 á 2010, permitiram-me constatar que os conteúdos de História, leccionados nas nossas escolas, têm privilegiado padrões de cultura importados, aplicados sem a devida redução social, em conteúdos impostos de cima para baixo, dissociados da realidade dos alunos, em escolas burocratizadas e distantes das comunidades na qual estão inseridas. Então, é altura de valorizarmos estudos da nossa realidade cultural e da nossa memória histórica. O ensino de História baseado na utilização dos bens culturais serviria como opção metodológica para mudar a prática do ensino em vigor e torná-lo mais interessante e atractivo para os alunos visto que possibilita  múltiplas vantagens afectivas e pedagógicas. .


 Bibliografia

BARRETO, Maria de Lourdes Parreiras Horta. Educação Patrimonial. In: Boletim nº 5 do Programa Nacional Pró-memória. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura. 1985ª.


__________Educação Patrimonial. In: Jornal de Letras – 1º Caderno. Abril de 1985b. p.4.


COSTA, Alda, OLOFSSON, Elizabeth. Política Nacional de Museus (Proposta). In: Seminário regional de capacitação dos directores distritais da Cultura, Juventude e Desportos da Zona Sul. Maputo: Novembro de 1997.

JAIROCE, Jorge Fernando. As potencialidades educativas e pedagógicas  do Museu Nacional da Moeda no ensino de História em Moçambique. (Trabalho de Diploma para obtenção do grau académico de Licenciatura em ensino de História e Geografia pela Universidade Pedagógica, Faculdade de Ciências Sociais, Departamento de História. 2005.60p.)


JAIROCE, Jorge Fernando. As conexões entre a História Local, Nacional e Global no ensino de História no nível básico em Moçambique. (Dissertação para obtenção do grau académico de Mestrado em Educação/Ensino de História pela Universidade Pedagógica, Faculdade de Ciências Sociais, Departamento de História. 2010.90p.)


JOÃO, Maria Isabel. Didáctica de História. Maputo:UEM, Faculdade de Educação, Departamento de História. 1989.


MATOLA, Laurindo Joaquim Ferreira. A utilização dos bens culturais no ensino de História em Moçambique. (Trabalho de Diploma para obtenção do grau académico de Licenciatura em ensino de História e Geografia pela Universidade Pedagógica, Faculdade de Ciências Sociais, Departamento de História. 1996.68p.)


MOÇAMBIQUE. MINISTÉRIO DA CULTURA. Recomendações gerais da 1ª Conferência Nacional sobre a Cultura. Maputo:  16 de Julho de 1993. (doc.30/CNC/93).