Bem vindos,

Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

24 outubro 2013

ANALISTA ALEMÃO DUVIDA QUE RENAMO POSSA TER A MESMA FORÇA QUE TINHA NA GUERRA CIVIL

Ao anunciar o fim do Acordo Geral de Paz de 1992, a RENAMO mostra estar pronta para um confronto armado contra o Governo da FRELIMO. O analista alemão Rainer Tump explica o crescente clima de tensão entre os partidos.
Durante a guerra civil em Moçambique, o chamado "Tete-Run", o Corredor de Tete, entre o Malawi e o porto da Beira tornou-se lendário. Esta estrada era tida como extremamente perigosa, pois os rebeldes da Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) atacavam com frequência os automóveis e camiões que por lá passavam.
Agora, após 21 anos de paz, o perigo pode voltar às estradas. Isto porque a RENAMO pôs fim ao Acordo Geral de Paz que assinou com o Governo da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) em 1992.
Ouça aqui

Agudizaram-se as tensões entre Governo da FRELIMO e RENAMO
Nos últimos meses, agudizaram-se as tensões entre o maior partido da oposição moçambicana e o executivo da FRELIMO. Segundo o conselheiro alemão em assuntos de desenvolvimento, Rainer Tump, "nos últimos anos, a RENAMO tem vindo a pôr-se cada vez mais na defensiva, porque não conseguiu ser bem sucedida nem em eleições nacionais, nem em eleições autárquicas. Foi sobretudo por isso que o líder da RENAMO, Afonso Dhlakama, se retirou", reitera o analista.
Em sinal de protesto, Dhlakama ocupou a antiga base da RENAMO em Santunjira, Gorongosa, no centro do país. Foi a partir daí que criticou a preponderância da FRELIMO no aparelho de Estado e pediu para participar mais nas decisões políticas.
Rainer Tump acompanha há décadas a situação em Moçambique, foi durante algum tempo director da organização não-governamental Comité Coordenador Moçambique-Alemanha, o KKM, e este ano já esteve várias vezes no país. Nas suas viagens, ficou surpreendido com a maneira como a população civil olhava para as acções da RENAMO, por vezes bastante violentas.
Populares compreendem acções da RENAMO, diz Tump
Conta que "as pessoas começavam sempre por dizer: 'sim, o que a RENAMO está a fazer não é nada bom, mas entendemos por que o fazem. A RENAMO está a ser encostada à parede pelo Governo. A RENAMO não tem qualquer hipótese, pois é muitas vezes vítima de fraudes eleitorais'. Ou seja, há uma grande compreensão. E penso que o Presidente moçambicano tem grandes culpas nesta situação", afirma Tump.
Segundo o analista alemão, o domínio da FRELIMO no aparelho de Estado aumentou significativamente desde que o Presidente Armando Guebuza foi empossado em 2005.
Rainer Tump acredita que, no passado, a RENAMO saiu várias vezes prejudicada das eleições. Para ele, a comunidade internacional devia ter actuado, pelo menos, na segunda volta das presidenciais de 1998. Conta que nesse período, "houve uma manipulação maciça dos resultados eleitorais". Consideraram-se inválidos centenas de milhares de votos em bastiões da RENAMO e face a isto, "a comunidade internacional devia ter pedido uma verificação", diz o analista.
"Alguns países escandinavos ainda o chegaram a fazer, mas outros, como a Alemanha, não apoiaram suficientemente a iniciativa. Assim, a FRELIMO ficou a saber que podia fazer isso porque estava num país economicamente emergente. 'A comunidade internacional quer estabilidade, por isso podemos continuar a manipular os votos'", explica Tump.
Rainer Tump duvida que, a nível militar, a RENAMO possa voltar a ter a força que tinha durante a guerra civil. No conflito, em que morreram cerca de 900 mil pessoas, os rebeldes da RENAMO foram apoiados pelos regimes de 'apartheid' da Rodésia (hoje Zimbabué) e da África do Sul.

Economia crescente
Actualmente, Moçambique é uma das economias que mais cresce no mundo – tem uma taxa de crescimento anual de cerca de 7%. O conflito com a RENAMO poderia trazer consequências nefastas para os negócios. Sobretudo no que diz respeito à indústria do carvão.
Na província de Tete, empresas como a brasileira Vale ou a britânica Rio Tinto, investiram vários mil milhões de dólares na exploração de recursos naturais.
Para exportar carvão, estão dependentes da Linha ferroviária de Sena e das estradas que passam pelos bastiões da RENAMO, na província de Sofala. Por isso, Rainer Tump prevê dois cenários: "Ou a RENAMO ficou tão enfraquecida e divida com a tomada da sua base que não vai conseguir reagrupar-se a nível militar. Ou então, atacará fortemente as ligações na província de Sofala, o que fará com que as grandes empresas mineradoras comecem a ter problemas".
Tendo em conta a queda dos preços do carvão a nível mundial, transportar carvão na estrada de "Tete-Run" e nas linhas ferroviárias ameaçadas pelos rebeldes poderia tornar-se demasiado perigoso e demasiado caro. E devido ao maior risco do país, os bancos poderiam começar a exigir mais seguranças e juros mais altos para os seus empréstimos ao sector mineiro em Moçambique, alerta Rainer Tump.
DW – 23.10.2013

21 outubro 2013

“A FRELIMO DE HOJE NÃO ACEITA A CRÍTICA  E MUITO MENOS FAZER AUTO-CRÍTICA” - Jorge Rebelo

Jorge Rebelo tido como uma das reservas morais do Partido Frelimo concedeu uma longa entrevista ao Semanário Savana, onde apresenta a sua opinião relativamente a figura de Samora, aproveitando a ocasião para  mostrar a sua preocupação em relação a situação actual da Frelimo que na sua opinião os dirigentes não aceitam crítica e nem fazem auto-crítica. Também mostrou a sua preocupação pelo facto de existirem muitos lambebotas, ou seja, pessoas que vivem bajulando os dirigentes considerando as suas acções como sendo sempre boas. Lamentou ainda o facto de até ao presente momento não ter-se indicando a figura que irá suceder  ao Guebuza nas próximas eleições de 2014.Leia a entrevista na íntegra bastando clicar em :

16 outubro 2013

OBRA FALA SOBRE A HISTÓRIA DE GUNGUNHANA
Capa do livro


“O Rei do Monte Brasil” ganha prémio
O romance “O Rei do Monte Brasil”, da autoria Ana Cristina Silva, venceu o Prémio Literário de Novela e Romance Urbano Tavares Rodrigues, destinado a obras literárias que tenham sido escritas por docentes.
Editado em Agosto de 2012 pela Oficina do Livro, o romance aborda acontecimentos históricos no finais do século XIX, altura em que o oficial de cavalaria Joaquim Mouzinho de Albuquerque fez uma campanha, ao serviço do Rei D. Carlos, no coração de África com o objectivo de subjugar as tribos locais à administração colonial portuguesa.
Tendo em vista alcançar esse objectivo, Mouzinho de Albuquerque queima aldeias, mata os insubmissos e, desobedecendo a ordens superiores, captura o detentor de um império vasto, Gungunhana, levando-o para Portugal como troféu e que acaba exilado no Monte Brasil até ao fim dos seus dias.
Com uma alternância de vozes narrativas que apresentam duas versões muito distintas do mesmo conflito, “O Rei do Monte Brasil” explora as memórias dos seus protagonistas até à véspera da morte.
A cerimónia de entrega do prémio, com um valor pecuniário de 7500 euros (cerca de 304.500 meticais), decorreu no passado sábado.
Sinopse na obra
Em finais do século XIX, o oficial de cavalaria Joaquim Mouzinho de Albuquerque interna-se, ao serviço do rei D. Carlos, no coração de África com o objectivo de subjugar as tribos à administração colonial portuguesa; para isso, porém, queima aldeias inteiras, mata os insubmissos e, desobedecendo a ordens superiores, captura com espectacularidade o detentor de um império vastíssimo, Gungunhana, que traz para Portugal como troféu e acaba exilado nos Açores até ao fim dos seus dias.
Apesar de recebido pelo povo e aclamado pela imprensa como um herói da pátria, a crítica ao comportamento pouco ético de Mouzinho nos corredores do Paço, a indiferença do governo em relação aos seus planos para África e a paixão nunca abertamente confessadas por D. Amélia acabam por levá-lo ao suicídio.
Mas, se a notícia escandaliza o país (Portugal), a verdade é que é lida com entusiasmo e sentimento de justiça por um Gungunhana já velho e destroçado, que passa os dias escondido na floresta do Monte Brasil, o local que encontrou na ilha Terceira...  que mais se assemelha à terra dos seus antepassados.
Com uma alternância de vozes narrativas que nos oferecem duas versões muito disintas do mesmo conflito, O Rei do Monte Brasil explora as memórias  dos  seus  protagonistas às vésperas da morte, ilustrando-nos  sobre  a  sua infância, as suas paixões marcantes, as atrocidades para as quais encontram sempre justificação e, de certa forma, a reflexão sombria sobre a decadência e a glória perdida.
CORREIO DA MANHÃ – 15.10.2013
                                                                         

Nota do blog: Quem é Ana Cristina: ANA CRISTINA SILVA nasceu em Vila Franca de Xira, a 11 de Novembro de 1964. Professora no ISPA [Instituto Superior de Psicologia Aplicada] desde 1992, concluiu o doutoramento em Psicologia, na Especialidade de Psicologia da Educação pela Universidade do Minho em 2001, desenvolvendo investigação neste domínio. Tem artigos científicos publicados em revistas e obras colectivas portuguesas e estrangeiras. A sua estreia literária ocorreu em 2002 com a publicação do romance Mariana, Todas as Cartas. Em 2012, o seu romance Cartas Vermelhas foi seleccionado para o Prémio Fernando Namora, facto que se repetiu em 2013, com a obra O Rei do Monte Brasil.

13 outubro 2013

ISABEL DOS SANTOS, A MULHER MAIS RICA DE ÁFRICA

Isabel dos Santos

Isabel dos Santos é a mulher mais rica da África, a mais jovem bilionária do continente - e filha do presidente de Angola. A maneira pela qual ela acumulou sua fortuna de US$ 3 bilhões diz muito sobre a cleptocracia que cresce no mundo em desenvolvimento e envolve altas cifras.
Leia aqui na edição brasileira da Revista Forbes de Setembro passado   

08 outubro 2013

LINHA POLÍTICA DO REGIME DA FRELIMO ENDURECE AS SUAS POSIÇÕES FACE AO CONTROLE DOS ORGÃOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Jorge Fernando Jairoce

É preocupante a notícia veiculada que dá conta de que Edson Macuácua, Porta-Voz do Presidente da República, promoveu recentemente, uma reunião com quadros jornalistas e comentadores, vulgo painelistas, dos principais Órgãos de Comunicação Social (OCS) públicos e privados de onde produziu-se uma lista de 40 comentadores autorizados pelo regime para emitir opinião pública nos principais Órgãos de Comunicação Social (OCS) do País face ao desempenho do Governo.
Recorde-se que no ano passado (2012), o Edson Macuácua na qualidade do Secretário de Mobilização e Propaganda do Partido Frelimo, promovera um encontro similar na sede do Comité Central do Partido que segundo a Africa Monitor Intelligence Edson Macuácua como principal orador do encontro referiu o seguinte:

“- Proliferam nos OCS críticas à Frelimo; é preciso moderar ou alterar essa evidência, através de medidas dos responsáveis editoriais.
- Há eleições autárquicas em 2013 e gerais em 2014; para assegurar uma vitória da Frelimo é necessário promover um clima de aproximação do partido com o eleitorado e a população; e as críticas à Frelimo desfavorecem esse desiderato.
- Os responsáveis que não procederem em conformidade com a criação de um clima mais benigno para a Frelimo poderiam estar a pôr em causa os seus lugares, “porque a Frelimo tem esse poder” (sic)”.

Este método maquiavélico demostrado pela Frelimo representado pelo Edson Macuácua e coadjuvado pelo Renato Matusse, Gabriel Muthisse e Alberto Nkutumula (membros presentes no encontro) revela uma cultura antidemocrática, anticonstitucional, de desespero, de intolerância e da ausência de limites partido e o Estado (da qual todos nos participamos e pagamos impostos e como tal ela não é propriedade de nenhum partido político). Fala-se actualmente da liberdade de expressão em vários sectores da sociedade, aliás é um direito humano universal, que deve funcionar na família, igreja, escola, enfim, em todos outros espaços públicos, então não se justifica que em pleno século XXI haja cidadãos em Moçambique que querem destruir o pouco que já conseguimos em Moçambique em termos de liberdade de expressão. Hoje a preocupação é silenciar os OCS, o meu receio é que esta cultura evolua e amanhã comecem a silenciar os intelectuais nas universidades, os religiosos nas igrejas e outros espaços que trabalham com a opinião pública, aliás é um fenómeno que já tem estado a ocorrer porque o regime julga-se proprietária dos órgãos dos públicos e estatais. O período de totalitarismo, fascismo, nazismo, stalinismo e corporativismo estatal já passou na história do mundo. Parece ainda existirem saudosistas destes tempos. É necessário que estes cidadãos não se que esqueçam que a cultura corporativista estatal sempre trouxe consequências negativas para o mundo com a morte de milhares de pessoas. Podem silenciar as pessoas de falar, mas jamais poderão silenciar a capacidade de pensar e exprimir seus pensamentos em outros fóruns. Os indivíduos que pretendem regredir o País quanto a liberdade de expressão candidatam-se a entrar como vilões na História do País, aliás, há um ditado popular que diz: “a justiça dos homens prescreve, mas a justiça da história ela é permanente”, isto para referir que estes cidadãos demagogos têm o seu espaço na História. O mundo está repleto de relatos de consequências nefastas do silenciamento da imprensa. É só observar o caso da Síria, Tunísia, Líbia, China, só para citar alguns exemplos. Deixemos que os jornalistas e os comentadores façam o seu trabalho. Ter receio de críticas é sinónimo de insegurança, de desespero e fraqueza espiritual, pelo contrário deveríamos estimular e aproveitar a crítica para melhorar o nosso desempenho profissional. O desenvolvimento do país depende destas análises e críticas (entendido como debates de ideias) porque só assim é que podemos enxergar as nossas deficiências e lacunas e através de diálogo e tolerância promovermos acções mais eficazes para o almejado desenvolvimento. Será que Edson Macuácua e a cúpula tem consciência do que erro que estão a cometer?
Gostaria por fim de recordar a famosa frase que deu título ao livro de Marcelo Mosse e Paul Fauvet “É proibido pôr as algemas nas palavras”. Esta frase esta bem patente na memória dos cidadãos moçambicanos.
Consulte a lista dos principais comentadores autorizados:
http://macua.blogs.com/files/savana-1020.pdf

02 outubro 2013

THE BATTLE FOR MOZAMBIQUE, por Stephen Emerson

The Frelimo–Renamo Struggle, 1977–1992

The sixteen-year-long war in Mozambique between the Frelimo government and Renamo rebels remains one of the most overlooked and misunderstood of the conflicts that raged across Africa during the height of the Cold War. While usually viewed as mere sideshow to more high-profile wars in Angola, Rhodesia and within apartheid South Africa itself, it nonetheless is noteworthy in its complexity, duration and destructiveness. Before it was all over in 1992 at least one million Mozambicans would be dead, millions more homeless and the country lying in ruins. Ultimately Frelimo would get its victory not on the battlefield but rather at the polling booth in 1994.

 Based on more than a decade of meticulous research, a review of thousands of pages of military records and documents, and dozens of in-depth interviews with political leaders, diplomats, generals, and soldiers and sailors, this book tells the story of the war from the perspective of those who fought it and lived it. It follows Renamo’s growth from its Rhodesian roots in 1977 as a weapon against Robert Mugabe’s Zimbabwean nationalist guerrillas operating from Mozambique through South African patronage in the early 1980s to Renamo’s evolution as a self-sufficient nationalist insurgency. In tracing the ebb and flow of the conflict from the rugged mountains and savannah forests of central Mozambique across the hot, humid Zambezi River valley and down to the very outskirts of the Mozambican capital in the far south, it examines the operational strategy of Frelimo and Renamo commanders in the field, the battles they fought and the lives of their troops. In doing so it highlights personal struggles, each side’s successes and failures, and the missed opportunities to decisively turn the tide of war. Accordingly, this book provides the first real comprehensive military history of a war too long neglected and underappreciated in the chronicles of modern African history


NOÊMIA DE SOUSA: POESIA DE COMBATE EM MOÇAMBIQUE

Noemia de Sousa, a poetisa mocambicana


O OBJECTIVO de nosso estudo é analisar os poemas “Se me quiseres conhecer”, “Poema”, “Mulher que ri à vida e à morte” da escritora moçambicana Noêmia de Sousa. Para isso, vamos organizar a nossa reflexão em três partes: tradição e contradição em Moçambique (momento em que se expõe aspectos culturais, geográficos e religiosos deste país); Noêmia de Sousa, uma militante em Moçambique (trazendo informações sobre o perfil da escritora e sua condição social em seu país); e, por último, a análise dos três poemas acima citados para percebermos os sinais da poesia combate moçambicana nos versos de então precursora da escrita em autoria feminina. 
Podemos dizer sem medo que a literatura nos leva a grandes aventuras e, acatando esta condição, vamos viajar para o território africano através da voz da escritora moçambicana Noêmia de Sousa, aterrizando em sua coletânea de versos “Sangue Negro” (1990), obra da primeira mulher que se aventura na literatura no momento em que o seu país se encontrava em estado de guerra por conta de lutas em prol da independência.
Tal facto contextualiza a literatura de Noêmia de Sousa como poesia combate, pois seus versos traziam uma linguagem engajada com os ideais militantes da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique).
Adentrar na poesia de Noêmia de Sousa é descobrir um outro povo, uma outra cultura, cheia de credos, de mitos, de ritos, enfim de aspectos múltiplos que compõem um imaginário excêntrico em relação ao que já está escrito nas páginas de tantas literaturas.

Tradição e contradição em Moçambique
A nossa proposta em trazer um pouco de informações sobre Moçambique é mais uma forma de entender a literatura que é escrita nesse país, pois entendemos que a literatura é um texto, que no plano de suas múltiplas tessituras, necessita de algumas linhas precisas dos vários contextos (históricos, sociais, religiosos, entre outros..) para construir um idéia literária que permita ao leitor se deslocar do plano real e aceitar o plano ficcional.  Ler a cultura africana, através da escrita de Noêmia de Sousa, é um caminho para se perceber uma tradição cultural que ainda permanece na modernidade, enfim, é possuir a permissão para viajar por um território cultural multifacetado de uma nação que, colônia de Portugal até 1974, acumulou valores sociais díspares, como: a monogamia e a poligamia, o politeísmo e o monoteísmo; a escravidão e a liberdade; o cultivo e a indústria; ou seja, situações políticas, religiosas e econômicas que beiram a guerra e a miséria.
O vocábulo português moçambique data do século XVI. Do século XI a XV, este país foi explorado pelos árabes, persas e suailis (africanos bantos arabizados ou islamizados, que prolongaram as feitorias muçulmanas da costa da Somália: Melinde, Mombaça, Zanzibar, Quíloa, Moçambique, Sofala). Essa região da África Oriental fazia parte do complexo mercantil do Oceano Índico, com relações a longa distância com o Oriente Médio, a Índia e a China. As relações atingiam também os povos bantos do interior. Moçambique foi colônia de Portugal por muito tempo. O domínio português se dá quando Vasco da Gama atinge o solo moçambicano em 1498 e faz aliança como rei Melinde. Em 1506, os portugueses apoderam-se de Sofala e em 1507 da ilha de Moçambique que se constituiu desde então em um porto de escala de para os portugueses no comércio e na conquista da Índia. Em 1697, após frustradas tentativas de exploração do ouro e marfim, o comércio de escravos tornou-se a principal atividade dos portugueses em Moçambique. Uma grande quantidade de negros foram levados do solo moçambicano e vendidos, como escravos, na América do Norte e, principalmente, no Brasil. Assim, por exemplo, até 1800, o número de escravos era em média de 10.000 por ano, cifra que passa, a partir de 1800 para 15 e 25 mil escravos por ano, decaindo a partir de 1850. A posição dos colonizadores portugueses em relação ao povo moçambicano passa a ser ameaçada quando os poderes europeus decidem a partilha da África. Uma nação pretendente foi a Inglaterra, que, em 1823, alegando encontrar o território abandonado, reivindicou sua soberania. Mas, com a Conferência de Berlim, em 1885, a soberania lusitana é legitimada. Como toda colônia portuguesa, Moçambique tenta se libertar das garras deste ambicioso e sangrento colonizador. Surgem os movimentos nacionalistas. A Liga Africana, fundada em Lisboa no ano de 1920, é a primeira organização favorável aos nativos africanos. Depois desta, surgiram o Instituo Negrófilo, a Associação dos Naturais de Moçambique, a União Democrática Nacional de Moçambique, a União Nacional Africana de Moçambique, além de outras. Essas organizações se uniram e, em 1962, formaram a Frente Liberal de Moçambique (FRELIMO), presidida pelo Dr. Eduardo de Mondlane, o qual morreu assassinado por uma bomba postal, em 1969. A FRELIMO começou a atacar as forças militares portuguesas, em 1964. O governo socialista português derruba, em 25 de Abril de 1974, a ditadura de Salazar, e concede a independência a Moçambique, em 1975.
Todo este traçado histórico é oportuno por conta da ligação dos intelectuais moçambicanos com seu contexto histórico, social, cultural e religioso. Em Moçambique, a primeira literatura é a do colonizador, com todas as características, na temática e na forma, da pior que se produzia em Portugal. A medida em que aumenta a fixação dos portugueses em Moçambique, aparece uma literatura em que eles, os colonos, assumem os seus problemas específicos, criando a ilusão de uma interação cultural pacífica entre colonizadores e colonizados. Começam a surgir, de forma isolada, as primeiras vozes, ainda confusamente, que darão conta, através da literatura, dos conflitos e tensões, injustiças e momentos de revolta que, realmente, categorizam a relação colonial. Por outro lado, acompanhando o desenvolvimento do sentimento nacionalista, o escritor moçambicano afirma a terra ocupada como Pátria cuja identidade é algo a construir.  
Somos um país de ambiguidade, de interrogação, de construção identitária. Somos um país que fermenta na busca de um nós simbólico comum, virusidado, porém por um nós real-social imponentemente assimetrizado. (SERRA: 1998, p.11)  
Assim, toda a luta anti-colonial passa a ter um forte reflexo na produção literária que nasce do discurso dos combatentes da FRELIMO, expressando o próprio cotidiano da luta em todas as suas frentes. A arte literária, nesse sentido, não é utilizada como aparência por diferença na realidade, pois as vozes africanas que ecoam nas narrativas transcritas da oralidade tomam a realidade como um objeto que legitima a sua literatura, o que Aristóteles chama de verossimilhança.  Noêmia de Sousa é muito pontual em relação a este perfil de escrita que traz um discurso marcado pela tradição oral.  
“Nossa voz ergueu-se consciente e bárbara  sobre o branco egoísmo dos homens  sobre a indiferença assina de todos.  Nossa voz molhada das cacimbadas do sertão  nossa voz ardente como o sol das malangas  nossa voz atabaque chamando  nossa voz lança de Maguiguana  nossa voz, irmão,  nossa voz trespassou a atmosfera conformista da cidade  e revolucionou-a  arrastou-a como um ciclone de conhecimento.” (SOUSA: 1988, p.33)  
Este é um fragmento do poema Nossa Voz , encontrado na coletânea Sangue Negro(1988) desta escritora. Como afirmávamos anteriormente, o discurso é construído sobre bases que marcam a tradição oral, ou seja, uma escrita para um leitor que tem a sensibilidade de ouvir os ecos de um eu-poético que muito se assemelha aos contadores de estórias em volta da fogueira, encostados em uma grande árvore como o Imbondeiro. O próprio título do poema já nos dimensiona para o plano da oralidade. Vários verbos deste fragmento nos remetem à idéia de militância, de conscientização de valores em relação à condição do negro frente ao seu estado de escravidão: Nossa voz consciente e bárbara ergueu-se/ sobre o branco egoísmo dos homens/ sobre a indiferença assassina de todos. Estes três primeiros versos dizem muito da condição do escritor moçambicano frente ao seu trabalho de chamar a atenção de seus leitores, até porque este poema é assinado por mulher em 1949 que tem plena consciência de quem quer atingir. O branco é utilizado para colorir a atitude animalesca tanto do colonizador como dos negros que se rendem aos ideias colonialistas matando seu próprio povo, e, concomitantemente, toda a sua história, cultura, identidade, etc.  Há também muitas alegorias que compõem uma metáfora de ataque: nossa voz ardente.../ nossa voz atabaque.../ nossa voz lança.... Pode-se dizer que a opção da autora por este tipo de linguagem é uma forma de a mesma driblar um meio social e colonialista. A autora se insere no mesmo contexto cultural de sua literatura, então reavivar as formas tradicionais apagadas pelo discurso do colonizador e esquecidas pelos homens colonizados é uma estratégia de manutenção de uma cultura autóctene e de tentativa de legitimar a identidade cultural em processo. 
Noêmia de Sousa é a autora que escolhemos nesse estudo para entender a literatura africana feita em Moçambique. Poderíamos escolher outros intelectuais como Mia Couto, Paulina Chiziane e Lília Momplé, e, com certeza, encontraríamos na escrita destes, linhas de semelhança no que diz respeito ao processo identitário, pois sejam de expressão portuguesa, inglesa ou francesa, ou intelectuais africanos se escrevem e se descobrem a partir da literatura que fazem. A literatura destes escritores é marcada pelo autoreflexo de suas sensibilidades.  No caso de Moçambique, a língua portuguesa é algo que ficou da colonização, um elemento que serviu de arma para o africano divulgar sua cultura, pois já foi dito que os negros africanos 2 foram resistentes em relação à imposição cultural de seus colonizadores.  Na antiga Lourenço Marques, há, ainda hoje, várias línguas indígenas de família banto correlacionadas com o português já adaptado ao meio moçambicano, o que se chama de língua crioula ou português crioulizado. Em época de sua independência, ano de 1975, poucos habitantes falavam a língua portuguesa. Agora, a flor do Lácio é popular nos jardins da diversidade africana.  Moçambique é um país que nos permite entender um pouco das riquezas múltiplas da África, principalmente no que concerne ao entendimento das ações humanas em um cenário montado no palco da vida. Mitos, ritos, costumes, tradições, ancestralidade, deuses, homens e mulheres são elementos que migram do contexto cultural moçambicano como objetos mimetizados no espaço textual da literatura que é escrita neste país. Por isso, é inevitável ler esta literatura e não perceber a imagem do sofrimento, da luta, de fome, de miséria, de analfabetismo. Fatos que se tornam presentes ainda hoje no país por conta de sua situação econômica.
  
Noêmia de Sousa: uma militante em Moçambique
As Literaturas Africanas de Língua Portuguesa já ocupam um vasto território de leitura, tanto no Brasil quanto em Portugal e na própria África Lusófona. Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau são países onde vivem intelectuais preocupados com uma escrita literária que mantêm um fecundo diálogo com questões temáticas que se voltam para o colonialismo, pós-colonialismo, identidade cultural, exílio, e principalmente, a inscrição dos modos literários africanos de fazer literatura.  
Os estudos das literaturas produzidas em África impõem-se como um verdadeiro canto de sirena que desperta as nossas ancestrais raízes, convocando-nos à comunhão com um mundo antigo que se apresenta, para nós, com uma epifania em que se celebra o encontro tantas vezes adiado, mas nem por isso menos desejado. (DUARTE: 2004, p.7)  
A escrita literária africana de expressão portuguesa se coloca em uma situação sui generis pelo fato de nos fazer refletir sobre assuntos que se voltam para uma questão místico-cultural que migra do plano da realidade para o plano da ficcionalidade por conta de uma percepção ideológica pagã de se ver o mundo africano. Uma prática de escrita que revela um re-escritura do que foi aprendido por meio da prática da oralidade. A presença dos mitos e ritos, como temáticas recorrentes nas narrativas africanas, legitimam as lições deixadas pelos povos mais velhos que voltam ao contexto atual, assumindo a condição de ancestrais ou de defuntos protetores. Vamos observar melhor a relação com a ancestralidade quando analisarmos o poema “Mulher que ri à vida e à morte”.
Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares nasceu a 20 de Setembro de 1926, em Lourenço Marques (hoje Maputo), Moçambique. Apesar da publicação da coletânea “Sangue Negro” em 1998 pela Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), seus versos circulam em vários meios: jornais, revistas especializadas e sites da internet.
Poetisa que, numa espécie de postura predestinada, desembaraçando-se das normas tradicionais europeias, de 1949 a 1952 escreve dezenas de poemas, estando muitos deles dispersos pela imprensa moçambicana e estrangeira.
Com apenas 22 anos de idade, surgiu na senda literária moçambicana num impulso encantador, gritando o seu verbo impetuoso, objetivo e generoso, vincado (bem fundo) na alma do seu povo, da sua cultura, da sua consciência social, revelando um talento invulgar e uma coragem impressionante.
Como afirma Craveirinha (2000, p.100), podemos sentir o hálito ardente da fogueira, quando lemos os versos desta escritora, o que mostra em sua literatura a evidência da moçambicanidade, ou seja, a valorização da sua nação em seus poemas.
Ler Noêmia de Sousa é ler Moçambique. Como mestiça, pois seu pai era originário de uma família luso-afro-goesa e sua mãe afro-germânica, revela ser marcada por uma profunda experiência, em grande parte por via dessa mesma circunstância de ser mestiça.
A sua poesia, desde logo, se mostrou “cheia” da “certeza radiosa” de uma esperança, a esperança dos humilhados, que é sempre a da sua libertação. Toda a sua produção é marcada pela presença constante das raízes profundamente africanas, abrindo os caminhos da exaltação da “Mãe-África”, da glorificação dos valores africanos, do protesto e da denúncia.
“Eu quero conhecer-te melhor, Minha África profunda e imortal...  Quero descobrir-te para além Do mero estafado azul  Do teu céu transparente e tropical,  para além dos lugares comuns...”  (SOUSA, 1988 , p.145)
Poesia de forte impacto social, acusatória, a sua linguagem recorre estilisticamente à ressonância verbal, ao encadeamento de significantes sonoros ásperos, à utilização de palavras que transportam o "grito inchado" de esperança.
Noémia de Sousa, como autêntica pioneira da Literatura Moçambicana (como assim sempre foi considerada) preconiza - no seu percurso literário - a revolução como único meio de modificar as estruturas sociais que assolam a terra moçambicana. Sempre, e desde muito cedo, pretendeu que o seu povo avançasse uno, em coletivo, em direção a um futuro que alterasse os eixos em que se fundamentava a atitude do homem, mas sem nunca fazer a apologia da desumanização. Afirma-se, acima de tudo, africana e aposta fortemente na divulgação dos valores culturais moçambicanos.  
NOÉMIA de Sousa, como autêntica pioneira da Literatura Moçambicana (como assim sempre foi considerada) preconiza - no seu percurso literário - a revolução como único meio de modificar as estruturas sociais que assolam a terra moçambicana.  Sempre, e desde muito cedo, pretendeu que o seu povo avançasse uno, em coletivo, em direção a um futuro que alterasse os eixos em que se fundamentava a atitude do homem, mas sem nunca fazer a apologia da desumanização. Afirma-se, acima de tudo, africana e aposta fortemente na divulgação dos valores culturais moçambicanos.
“Billie Halliday, minha irmã americana, Continua cantando sempre, no teu jeito magoado, os “blues” eternos do nosso povo desgraçado.... Continua cantando, cantando, sempre cantando, Até que a humanidade egoísta ouça em ti a nossa voz...”  (SOUSA, 1988, p.135) 
As propostas essenciais da sua expressão literária vão do desencanto cotidiano, de uma certa amargura, de uma certa raiva, até ao grito dolorido, até ao orgulho racial, até ao protesto altivo que contém a pulsão danada contra cinco séculos de humilhação. A grande base do texto de Noémia de Sousa está centrada na eterna dicotomia "nós/outros" - "nós", os perfeitamente africanos; os "outros", as gentes estranhas, os que chegaram em África, os colonizadores. Assim, estes são, sem dúvida, os dois grandes temas da poesia de Noémia de Sousa: se por um lado temos a contínua denúncia da total incompreensão por parte do colonizador, que apenas capta a superficialidade dos rituais, não compreendendo o âmago de África, demonstrando, desta forma, uma visão plenamente distorcida, por outro lado lança-nos em poemas de elogio aberto à raça negra, gritando bem alto e de forma plenamente perceptível que a presença do colonizador em África é sinônimo de força que apenas veio denegrir a imagem daquela terra. Noémia de Sousa fala do orgulho de pertencer à África por parte dos africanos. E por esse mesmo motivo vem afirmar que terão obrigatoriamente de ser os filhos a cantar essa sua mãe-terra (que tanto amam e sentem) - e cantar África tinha forçosamente que ser entendido por oposição à maneira de cantar do colonizador.  Nos seus poemas, o "eu" de Noémia de Sousa é entendido como um "coletivo", um povo inteiro que quer ter palavra - o povo moçambicano. Desta forma, a escritora assume-se como porta-voz daquele povo que é o seu e, dirigindo-se à terra-mãe que os acolhe e protege, ora canta a sua vida, ora lhe pede perdão pela alienação demonstrada ao longo de tanto tempo, ora (mesmo) lhe promete a rápida e definitiva devolução do seu direito a uma vida própria, autêntica. Apesar de breve, porém prolífera, a passagem de Noémia de Sousa pelo panorama da literatura moçambicana, a qualidade dos seus textos não deixou, jamais, de ser reconhecida e admirada. Percebemos que os autores africanos de colonização portuguesa escrevem como se estivessem diante de seus receptores pelo fato de também o serem, quando se permitem ouvir a voz dos seus ancestrais. A arte literária não é utilizada como aparência por diferença com a realidade, e sim, como transparência por semelhança com a realidade, pois as vozes africanas que ecoam nas narrativas transcritas da oralidade tomam a realidade como instrumento para a construção de uma verdade aparente.  O imaginário do autor aparece em sua literatura como se o eu-poético não fosse um elemento fictício, pois a voz que se enuncia na tessitura dos versos da escritora moçambicana desmistifica a figura do mesmo, transformando-o em um contador de experiências vividas no ventre de sua da terra africana.  A voz feminina em Moçambique possui um status de grande relevância. De acordo com Lilia Momplé (1999, p.31), também escritora moçambicana e autora do livro de contos Os olhos da cobra verde , falar da mulher escritora e de sua relação com o cânone não é fácil, pois é inadequado eximi-la da condição de mulher moçambicana, por ser mística, sedutora e guerreira. Ainda segundo Momplé (1999, p.31),  
a mulher moçambicana é a principal difusora e transmissora de valores culturais, tradições e ritos como, por exemplo, o espírito da solidariedade e entreajuda, a hospitalidade, a veneração pelos mais velhos, os ritos de nascimento, iniciação, reconciliação e morte.  
Difusão que era passada das mais velhas para as mais novas por via da oratura, fazendo com que a tradição permanecesse desde a época colonial até os dias atuais. Com a Independência de Moçambique, a mulher continua a exercer um papel importante no domínio da cultura. A partir de então, ainda conforme Momplé (1999), grupos culturais foram formados pelas mesmas e, nos grandes festivais nacionais de música, canto e dança tradicionais da década de setenta, a participação feminina era ímpar. Após a década de setenta, a guerra civil aterroriza o solo moçambicano por dezessete anos, destruindo o corpo físico e cultural do país. Nessa guerra, houve um milhão de mortos e cinco milhões de deslocados e refugiados; entre eles a escritora Noêmia de Sousa, grande poetisa moçambicana e precursora da autoria feminina. Na zona urbana, área mais reservada do embate direto da guerra, houve uma explosão de mulheres artistas. Para representar a literatura, entre Lina Magaia, Clotilde Silva e Lília Momplé, estava Paulina Chiziane, primeira escritora moçambicana a escrever um romance: Balada de Amor ao Vento _ rebento de 1990. Podemos então, de forma provisória, afirmar que, no plano da literatura de Moçambique, Noêmia de Sousa ocupa um lugar privilegiado, pois, embora a obra literária da escritora seja curta, possui grande valia para uma leitura crítica. O discurso da autora já anuncia uma tendência politizada, o que nos permite afirmar a escritora como uma feminista, pois uma das grandes preocupações da mesma é refletir sobre o lugar de onde fala a mulher na sociedade patriarcal e como esta mulher reflete sobre os valores da tradição do norte e do sul de seu país.
  
OS SINAIS DA MOÇAMBICANIDADE NOS VERSOS DE NOÊMIA DE SOUSA 
Noêmia de Sousa é lida em seu país e fora dele por conta de sua postura séria e militante frente aos seus ideais liberais que dizem respeito aos movimentos políticos de seu país em prol da independência, tanto do corpo geográfico quanto do físico e espiritual desta nação que começa a germinar. Levantar a bandeira da nacionalidade é um país bombardeado e massacrado pela ganância portuguesa não é fácil, pois é preciso entender não só a língua que o povo fala, mas também o ritmo que move o sentimento de esperança dos moçambicanos.  Defendendo a idéia da interioridade da poesia de Noêmia, Francisco Noa (1988, p.153) confirma os recursos estilísticos presentes na coletânea de versos da escritora: a prevalência da adjetivação, da anáfora, da aliteração, da parataxe, da exclamação, da enumeração, da hipérbole, entre outros recursos. No que se refere à temática, há uma recorrência à revolta, à valorização racial e cultural, à infância, à esperança, à angústia e à injustiça.  Também não se pode esquecer o forte lado religioso dos moçambicanos e sua reverência aos ensinamentos da tradição dos ancestrais, pois nos cenários primitivos, o homem sempre foi o ator que atuou no palco da natureza para viver dramas contracenados com animais, plantas, vento, água, fogo e todos os elementos que formam a riqueza do Universo. Como afirma Beniste (2006, p.15), ―o mundo dos mitos é pleno destas forças e ações, mesmo sendo elas conflitantes. Consideramos os conflitos como o tempero da movência das ações que levam o homem a se humanizar através dos tempos. Os artistas que transformam estas ações em arte literária, de certa forma, assinam um acordo com Aristóteles no que diz respeito ao quesito verossimilhança. A condição da mulher em Moçambique também é algo que merece a nossa atenção. Em entrevista à Manuela de Sousa (2006) 3, Paulina Chiziane, escritora contemporânea em Moçambique, é arguida sobre a questão da repressão das mulheres e um fato interessante é observado na resposta da escritora.
“...não podemos olhar o país como um todo nesta matéria. Temos as regiões do sul e do centro, que são regiões patriarcais por excelência. O norte já tem características bem diferentes. É uma região matriarcal, onde as mulheres têm outras liberdades. Acho que Gaza, província de onde sou oriunda, e região mais machista de Moçambique. Uma mulher além de cozinhar e lavar, para servir uma refeição ao marido tem que fazer de joelhos. Quando o marido a chama, ela não pode responder de pé. Tem que largar tudo que está a fazer, chegar diante do marido e dizer ―estou aqui. H á pouco tempo um jornalista denunciou um professor de Gaza. Nas aulas, quando fazia perguntas, os rapazes respondiam de pé, mas obrigava as meninas a responderem de joelhos. Quando as alunos iam ao quadro, tinham que caminhar de joelhos e só quando lá chegavam é que se punham de pé. O professor foi criticado e prometeu mudar, mas para a comunidade, ele estava a agir corretamente”.
O mapeamento que Paulina Chiziane faz de Moçambique de acordo com os sistemas sociais vigentes no norte, centro e sul do país, faz-nos entender que como Noêmia de Sousa foi privilegiada pelo fato de nascer na capital de Moçambique, pois ao mesmo tempo que ela mostra os tabus de uma tradição na qual as mulheres são menos privilegiadas, também critica a público feminino que ainda alimenta o sistema patriarcal, levando-as a entender que mesmo a sociedade punindo-as por conta de suas lutas por mudança, elas são seres humanos que trazem seqüelas de uma longa história de sofrimento, e nem por isso, estas mulheres deixam de cumprir certos rituais de uma tradição que se ensinava em suas tribos, principalmente no que diz respeito ao aspecto religioso.  
Cerca de 50% da população 4 seguem crenças tradicionais, 31% são católicos e 13% são muçulmanos. As populações tribais mantêm sua tradição animista, mas há também inúmeros adeptos do islamismo, talvez a primeira religião exógena a penetrar o território. Entre os cristãos, a maioria é formada por católicos, seguidos por anglicanos e metodistas. (RAMALHO: 2006, p. 3)  
A questão da crença é algo bem explorada na literatura africana de expressão portuguesa. Os dados fornecidos por Christina Ramalho no fragmento acima, deixa claro que metade da população moçambicana segue as crenças tradicionais que trazem deuses africanos como heróis de um plano divino que ajudam os mortais a se livrar dos conflitos vividos em sua existência terrena. 

“Mulher que ri à vida e à morte”:
“Para lá daquela curva os espíritos ancestrais me esperam.  Breve, muito breve tomarei o meu lugar entre os antepassados. Á terra deixarei os despojos do meu corpo inútil  as unhas córneas de todos os labores  este invólucro sulcado pela aranha dos dias Enquanto não falo com a voz do nyanga  cada aurora é uma vitória  saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo Oyo , oyo, vida!  Para lá daquela curva  Os espíritos ancestrais me espera”.  (SOUSA: 1988, p.149) (Grifos nossos)  

Não se pode deixar de mencionar a importância que Noêmia de Sousa dá para a cultura moçambicana, por vários aspectos. Sempre rodeada de intelectuais do sexo oposto como Ruy Guerra, Ricardo Rangel, João Mendes, Craveirinha, entre outros, Noêrmia sempre soube o lugar de onde e para quem falava: para aqueles que queriam começar a pensar a idéia de nação em Moçambique, na tentativa de negar os valores impostos pelos portugueses por viés anti-colonialista.  
Noêmia de Sousa é caso único de explosão identitária, a sua voz surpreende justamente por esta razão. A sua poesia é logo invadida por vozes, ela é a voz dos que não a têm, ela incarna as personagens submersas no quotidiano que lhes recusa a existência, para não falar de identidade. (SERRA: 1998, p. 90)  
O livro Sangue Negro traz uma coletânea de poemas que enfatizam a idéia de que os negros africanos estão conscientes de seus valores e precisam enfatiza-los através de vários meios. A literatura, nesse sentido, se torna a melhor estratégia.  O poema Mulher que ria à vida e à morte traz esta preocupação de Noêmia em explorar através da literatura algo que seja tipicamente comum ao universo moçambicano. O título do poema é bem sugestivo: a mulher ri tanto da vida como da morte, não é mais aquela mulher que tem que se mascarar ou se envergonhar por não ser branca, mas que sabe se impor, não teme nem a vida, nem a morte. A primeira estrofe traz a imagem da curva, que remete a idéia de retorno, um retorno a si mesmo, já que os ancestrais esperam, como também fortalece a idéia de que os ancestrais são invisíveis. A primeira pessoa está marcada em todas as estrofes: me, tomarei meu lugar, deixarei o despojo de meu corpo inútil, não falo com a voz do nyanga, saúdo ; e dá um caráter intimista ao poema.  A inutilidade do corpo é algo que merece nossa atenção. A idéia de que a terra tudo absorve, quem do barro é feito para o barro volta, reforça tanto ideologias bíblicas, como mitologias africanas. A presença dos ancestrais também marca o paganismo de algumas comunidades de linhagem bantu. Essa linhagem também é evidenciada pelo nyanga, uma espécie de sacerdote ou curandeiro que possui o dom de medicar com ervas e se comunicar com os ancestrais e outras divindades. O fato de o eu-poético não ouvir a voz do nyanga quer dizer que o mesmo sempre estará vivo na poesia, pois só os mortos se comunicam com tal sacerdote. Na quinta estrofe, aparece o termo Oyo, que é o reino do deus africano da criação: Oranyan. A ideia da curva é reforçada como ênfase na ideia de que é preciso muito mais do que um retorno a si mesmo.  
“Se me quiseres conhecer”
Para Antero  
“Se me quiseres conhecer  estuda com os olhos bem de ver esse pedaço de pau preto que um desconhecido irmão maconde  de mãos inspiradas talhou e trabalhou  em terras distantes lá do Norte:   Ah, essa sou eu:  Órbitas vazias no desespero de possuir vida,  Boca rasgada em feridas de angústia,  Mãos enormes, espalmadas,  Erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,  Corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis  Pelos chicotes da escravatura...  Torturada e magnífica  Altiva e mística,  África da cabeça aos pés,  _ ah, essa sou eu:  
Se quiseres compreender-me  Vem debruçar-te sobre minha alma de África,  Nos gemidos dos negros no cais  Nos batuques frenéticos dos muchopes  Na rebeldia dos machanganas  Na estranha melancolia se evolando  Duma canção nativa, noite dentro... E nada mais me perguntes,  Se é que me queres conhecer...  Que não sou mais um búzio de carne,  Onde a revolta de África congelou  Seu grito inchado de esperança”.  (SOUSA: 1998, p.49-50)  

Um dado que não mostramos neste estudo, quando fazemos as citações dos poemas da Noêmia é a data em que eles foram escritos. No caso do poema acima, é relevante dizer que foi escrito no dia 25/12/1949: data que celebra o nascimento de Jesus Cristo, personagem bíblico que personifica a ideia de humanidade. Voltando ao poema, percebemos logo a partir do título que o eu-poético utiliza o verbo na segunda pessoa para dirigir explicitamente ao seu leitor. Em se tratando de uma escritora militante como Noêmia, sabemos que o alvo são os colonizadores. Na primeira estrofe, o eu-poético usa a metáfora do pau preto, que pode ser uma referência ao ébano, madeira africana, para subjetivar a ideia da criação de um povo. O maconde aparece para mimetizar a perfeição da arte, pois segundo alguns dicionaristas a arte destes artesãos é reconhecida internacionalmente. Na segunda estrofe, o eu-poética aparece em primeira pessoa e se relaciona com vários adjetivos, o que marca um bom exemplo da adjetivação (sou - órbitas vazias..., sou - boca rasgada..., sou - mãos enormes..., sou - corpo tatuado..., sou- África da cabeça aos pés). Também nesta estrofe, percebemos as sequelas deixadas pela impiedosa escravatura (feridas visíveis e invisíveis da escravatura ), o que comprova que o eu-poético se dirige aos colonizadores. A quarta estrofe tem uma implicatura de desabafo, de insatisfação (E nada mais me perguntes, / se é que queres me conhecer...) em relação ao descaso dos invasores e destruidores de almas, sonhos, objetivos e realizações do povo moçambicano.  
Poema
“Bates-me e ameaças-me, Agora que levantei minha cabeça esclarecida  E gritei: “Basta!”  
Armas-me grades e queres crucificar-me  Agora que rasguei a venda cor-de-rosa  E gritei: “Basta!”  
Condenas-me à escuridão eterna Agora que minha alma de África se iluminou  E descobriu o ludíbrio..  E gritei, mil vezes gritei: ―Basta! 
Ò carrasco de olhos tortos,  De dentes afiados de antropófago  E brutas mãos de orango:  Vem com o teu cassetete e tuas ameaças,  Fecha-me em tuas grades e crucifixa-me,  Traz teus instrumentos de tortura  E amputa-me os membros, um a um...  Esvazia-me os olhos e condena-me à escuridão eterna...  - que eu, mais do que nunca, Dos limos da alma,  Me erguerei lúcida, bramindo contra tudo:  Basta! Basta! Basta!”
Sávio Roberto Fonseca de Freitas