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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

17 outubro 2012

O LUGAR DO MARXISMO EM MOÇAMBIQUE: 1975-1994


O LUGAR DO MARXISMO EM MOÇAMBIQUE: 1975-1994



Por Joaquim Miranda Maloa

Resumo
O presente ensaio objetiva discutir o lugar do marxismo em Moçambique  entre 1975- 1994, descrevendo o seu aparecimento e desenvolvimento pela ação das forças sociais: sua natureza económica, seus interesses, sua ideologia e as personalidades que articularam suas aspirações.
Palavras-chave: Marxismo; Moçambique; FRELIMO. 


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A FRONTEIRA DA CULTURA


A FRONTEIRA DA CULTURA
Escritor moçambicano, Mia Couto

Por Mia Couto

Durante anos, dei aulas em diferentes faculdades da Universidade Eduardo Mondlane. Os meus colegas professores queixavam-se da progressiva falta de preparação dos estudantes. Eu notava algo que, para mim, era ainda mais grave: uma cada vez maior distanciação desses jovens em relação ao seu próprio país. Quando eles saíam de Maputo em trabalhos de campo, esses jovens comportavam-se como se estivessem emigrando para um universo estranho e adverso. Eles não sabiam as línguas, desconheciam os códigos culturais, sentiam-se deslocados e com saudades de Maputo. Alguns sofriam dos mesmos fantasmas dos exploradores coloniais: as feras, as cobras, os monstros invisíveis.

Aquelas zonas rurais eram, afinal, o espaço onde viveram os seus avós, e todos os seus antepassados. Mas eles não se reconheciam como herdeiros desse património. O país deles era outro. Pior ainda: eles não gostavam desta outra nação. E ainda mais grave: sentiam vergonha de a ela estarem ligados. A verdade é simples: esses jovens estão mais à vontade dentro de um video-clip de Michael Jackson do que no quintal de um camponês moçambicano.

O que se passa, e isso parece inevitável, é que estamos criando cidadanias diversas dentro de Moçambique. E existem várias categorias: há os urbanos, moradores da cidade alta, esses que foram mais vezes a Nelspruit que aos arredores da sua própria cidade. Depois, há uns que moram na periferia, os da chamada cidade baixa. E há ainda os rurais, os que são uma espécie de imagem desfocada do retrato nacional. Essa gente parece condenada a não ter rosto e falar pela voz de outros.

A criação de cidadanias diferentes (ou o que é mais grave de diferentes graus de uma mesma cidadania) pode ou não ser problemática. Tudo isso depende da capacidade de manter em diálogo esses diferentes segmentos da nossa sociedade. A pergunta é: será que esses diferentes Moçambiques falam uns com os outros?

A nossa riqueza provém da nossa disponibilidade em efectuarmos trocas culturais com os outros. O Presidente Chissano perguntava num texto muito recente sobre o que é Moçambique tem de especial que atrai a paixão de tantos visitantes. Esse não sei quê especial existe, de facto. Essa magia está ainda viva. Mas ninguém pensa, razoavelmente, que esse poder de sedução provém de sermos naturalmente melhores que os outros. Essa magia nasce da habilidade em trocarmos cultura e produzirmos mestiçagens. Essa magia nasce da capacidade de sermos nós, sendo outros.

Eu venho falar aqui de um diálogo muito particular de que poucas vezes se faz alusão. Refiro-me à nossa conversa com os nossos próprios fantasmas. O tempo trabalhou a nossa alma colectiva por via de três materiais: o passado, o presente e o futuro. Nenhum desses materiais parece estar feito para uso imediato. O passado foi mal embalado e chega-nos deformado, carregado de mitos e preconceitos. O presente vem vestido de roupa emprestada. E o futuro foi encomendado por interesses que nos são alheios.

Não digo nada de novo: o nosso país não é pobre mas foi empobrecido. A minha tese é que o empobrecimento de Moçambique não começa nas razões económicas. O maior empobrecimento provém da falta de ideias, da erosão da criatividade e da ausente interna de debate. Mais do que pobres tornamo-nos inférteis.

Eu vou questionar essas três dimensões do tempo apenas para sacudir alguma poeira. Comecemos pelo passado. Para constatarmos que esse passado, afinal, ainda não passou.

O QUE FOMOS – UM RETRATO FEITO POR EMPRÉSTIMO 

O colonialismo não morreu com as independências. Mudou de turno e de executores. O actual colonialismo dispensa colonos e tornou-se indígena nos nossos territórios. Não só se naturalizou como passou a ser co-gerido numa parceira entre ex-colonizadores e ex-colonizados.

Uma grande parte da visão que temos do passado do nosso país e do nosso continente é ditada pelos mesmos pressupostos que ergueram a história colonial. Ou melhor, a história colonizada. O que se fez foi colocar um sinal positivo onde o sinal era negativo. Persiste a ideia que África pré-colonial era um universo intemporal, sem conflitos nem disputas, um paraíso feito só de harmonias.

Essa imagem romântica do passado alimenta a ideia redutora e simplista de uma condição presente em que tudo seria bom e decorreria às mil maravilhas se não fosse a interferência exterior. Os únicos culpados dos nossos problemas devem ser procurados fora. E nunca dentro. Os poucos de dentro que são maus é porque são agentes dos de fora.

Esta visão já estava presente no discurso da luta armada quando se retratava os inimigos como "infiltrados". Isto acontecia, apesar do aviso do poeta que dizia que "não basta que seja pura e justa a nossa causa é preciso que a justiça e a pureza existam dentro de nós". As nossas fileiras, nesse tempo, eram vistas como sendo compostas apenas de gente pura. Se havia mancha ela vinha de fora, que era o lugar onde morava o inimigo.

O modo maniqueísta e simplificador com que se redigiu o chamado "tempo que passou" teve, porém, outra consequência: fez persistir a ideia de que a responsabilidade única e exclusiva da criação da escravatura e do colonialismo cabe aos europeus.

Quando os navegadores europeus começaram a encher de escravos os seus navios, eles não estavam estreando o comércio de criaturas humanas. A escravatura já tinha sido inventada em todos os continentes. Praticavam a escravatura os americanos, os europeus, os asiáticos e os próprios africanos. A escravatura foi uma invenção da espécie humana. O que sucedeu foi que o tráfico de escravos se converteu num sistema global e esse sistema passou a ser desenvolvido de forma a enriquecer o seu centro: a Europa e a América.

Vou contar-vos um episódio curioso que envolve uma senhora africana chamada Honória Bailor Caulker num momento em que ela visitava os Estados Unidos da América.

Dona Honória Bailor-Caulker é presidente da câmara da vila costeira de Shenge, em Serra Leoa. A vila é pequena mas carregada de História. Dali partiam escravos, aos milhares, que atravessavam o Atlântico e trabalhavam nas plantações americanas de cana-de-açúcar.

Dona Honória foi convidada para discursar nos Estados Unidos da América. Perante uma distinta assembleia a senhora subiu ao pódium e fez questão em exibir os seus dotes vocais. Cantou, para espanto dos presentes, o hino religioso "Amazing Grace". No final, Honória Bailor-Caulker deixou pesar um silêncio. Aos olhos dos americanos parecia que a senhora tinha perdido o fio à meada. Mas ela retomou o discurso e disse: quem compôs este hino foi um filho de escravos, um descendente de uma família que saiu da minha pequena vila de Shenge.

Foi como que um golpe mágico e o auditório se repartiu entre lágrimas e aplausos. De pé, talvez movidos por uma mistura de sentimento solidário e alguma má-consciência, os presentes ergueram-se para aclamar Honória.

- Aplaudem-me como descendente de escravos?, perguntou ela aos que a escutavam.

A resposta foi um eloquente "sim". Aquela mulher negra representava, afinal, o sofrimento de milhões de escravos a quem a América devia tanto.

- Pois eu, disse Honoria, não sou uma descendente de escravos. Sou, sim, descendente de vendedores de escravos. Meus bisavós enriquecerem vendendo escravos.

Honória Bailor Caulker teve a coragem de assumir-se com verdade com a antítese do lugar comum. Mas o seu caso é tão raro que arrisca ficar perdido e apagado.

O colonialismo foi outro desastre cuja dimensão humana não pode ser aligeirada. Mas tal como a escravatura, também na dominação colonial houve mão de dentro. Diversas elites africanas foram coniventes e beneficiárias desse fenómeno histórico.

Porque é que estou a falar disto? Porque eu creio que a História oficial do nosso continente foi sujeita a várias falsificações. A primeira e mais grosseira destinou-se a justificar a exploração que fez enriquecer a Europa. Mas outras falsificações se seguiram e parte delas destinaram-se a ocultar responsabilidades internas, a lavar a má consciência de grupos sociais africanos que participaram desde sempre na opressão dos povos e nações de África. Esta leitura deturpada do passado não é apenas um desvio teórico. Ela acaba por fomentar uma atitude de eterna vitima, sugere falsos inimigos e alianças sem princípios.

É importante fazermos nova luz sobre o passado porque o que se passa hoje nos nossos países não é mais do que a actualização de conivências antigas entre a mão de dentro e a mão de fora. Estamos revivendo um passado que nos chega tão distorcido que não somos capazes de o reconhecer. Não estamos muito longe dos estudantes universitários que ao saírem de Maputo já não se reconhecem como sucessores dos mais velhos.

O QUE SOMOS – UM ESPELHO À PROCURA DA SUA IMAGEM 

Se o passado nos chega deformado, o presente desagua em nossas vidas de forma incompleta. Alguns vivem isso como um drama. E partem em corrida nervosa à procura daquilo que chamam a nossa identidade. Grande parte das vezes essa identidade é uma casa mobilada por nós mas a mobília e a própria casa foram construídas por outros. Outros acreditam que a afirmação da sua identidade nasce da negação da identidade dos outros. O certo é que a afirmação do que somos está baseada em inúmeros equívocos.

Temos que afirmar o que é nosso, dizem uns. E têm razão. Num momento em que o convite é sermos todos americanos esse apelo tem toda a razão de ser.

Faz todo o sentido, portanto, afirmarmos aquilo que é nosso. Mas a pergunta é: o que é verdadeiramente nosso? Há aqui alguns mal-entendidos. Por exemplo: uns acreditam que a capulana é um vestuário originário, tipicamente moçambicano. Fiz por diversas vezes esta pergunta a estudantes universitários: que frutos são os nossos por oposição ao morango, ao pêssego, à maçã? As respostas, uma outra vez, são curiosas. As pessoas acreditam que são originariamente africanos: o caju, a manga, a goiaba, a papaia. E por aí fora. Ora nenhum desses frutos é nosso, no sentido de ser natural do continente. Outras vezes, sugere-se que a nossa afirmação se faça na base de vegetais usados na nossa culinária. O emblema do tipicamente nacional passa agora para o coco, a mandioca, a batata-doce, o amendoim. Tudo produtos que foram introduzidos em Moçambique e em África. Mas aqui se coloca a questão: essas coisas acabam sendo nossas porque, para além da sua origem, lhes demos a volta e as refabricamos à nossa maneira. A capulana pode ter origem exterior mas é moçambicana pelo modo como a amarramos. E pelo modo como esse pano passou a falar connosco. O coco é indonésio, a mandioca é mais latino-americana que a Jennifer Lopez mas o prato que preparamos é nosso porque o fomos caldeando à nossa maneira.

Os conceitos devem ser ferramentas vitais na procura desse nosso retrato. Contudo, muito do quadro conceptual com que olhamos Moçambique assenta em chavões que, à força de serem repetidos, acabaram não produzir sentido. Dou exemplos. Falamos muito de:

- Poder tradicional

- Sociedade civil

- Comunidades rurais, como se diz camponês

- Agricultura de subsistência

Perdoem-me a minha incursão abusiva nestes domínios. Mas eu tenho sinceras dúvidas sobre a operacionalidade de qualquer destes conceitos. Tenho dúvidas sobre o modo como essas categorias cabem na nossa mão e produzem mudanças reais.

UMA LÍNGUA CHAMADA "DESENVOLVIMENTÊS" 

E é isso que me preocupa – é que mais do que incentivar um pensamento inovador e criativo estamos a trabalhar ao nível do que é superficial. Técnicos e especialistas moçambicanos estão reproduzindo a linguagem dos outros, preocupado com o poder agradar e fazer boa figura nos workshops. Trata-se de um logro, um jogo de aparências, alguns de nós parecemos bem preparados porque sabemos falar essa língua, o desenvolvimentês. Postos perante a procura de soluções profundas para as questões nacionais estamos estão tão perdidos como qualquer outro cidadão comum. Palavras chaves "boa-governação", accountability, parcerias, desenvolvimento sustentável, capacitação institucional, auditoria e monitoramento, equidade, advocacia, todas estas palavras da moda acrescentam uma grande mais-valia (eis outra palavra da moda) às chamadas "comunicações" (deve-se, de preferência, dizer "papers"). Mas deve-se evitar traduções feitas à letra se não acontece-nos como o palestrante – já ouvi chamarem de painelista, o que além de pouco simpática é uma palavra perigosa – pois esse palestrante, para evitar dizer que ia fazer uma apresentação em power-point, acabou dizendo que ia fazer uma apresentação em "ponta-poderosa". O que pode sugerir maliciosas interpretações.

O problema do desenvolvimentês é que só convida a pensar o que já está pensado por outros. Somos consumidores e não produtores de pensamento. Mas não foi apenas uma língua que inventamos: criou-se um exército de especialistas alguns com nomes curiosos, tenho-os visto em reuniões diversas: já vi especialistas em resolução de conflitos, facilitadores de conferências, workshopistas, experts em advocacia, engenheiros políticos. Estamos empenhando o nosso melhor manancial humano em algo cuja utilidade deve ser interrogada.

A grande tentação de hoje é reduzirmos os assuntos à sua dimensão linguística. Falamos, e tendo falado, pensamos ter agido. Muitas vezes a mesma palavra já dançou com variadíssimos parceiros. Tantos que já não há festa sem que certas expressões abram o baile. Uma dessas palavras é a "pobreza". A pobreza já dançou com um par que se chamava "a década contra o subdesenvolvimento". Outro dançarino tinha por nome "luta absoluta contra a pobreza". Agora, dança com alguém que se intitula "luta contra a pobreza absoluta". Outro caso é o do povo. O povo especializou-se sobretudo em danças de máscaras. E ele já se mascarou de "massas populares". Já foi "massas trabalhadores". Depois, foi "população". Agora, dança com o rosto de "comunidade s locais".

A verdade é que ainda mantemos um grande desconhecimento das dinâmicas actuais, dos mecanismos vivos e funcionais que esse tal povo inventa para sobreviver. Sabemos pouco sobre assuntos de urgente e primordial importância. Listo apenas alguns que agora me ocorrem:

- a vitalidade do comércio informal (mais do que comercial é toda uma economia informal)

- os mecanismos de troca entre a família rural e a sua sucursal urbana

- o papel das mulheres nessa rede de trocas invisíveis, do transito transfronteiriço de mercadorias (o chamado mukero).

Como podemos ver, não são apenas os jovens estudantes que olham para o universo rural como se fosse um abismo. Também para nós há um Moçambique que permanece invisível.

Mais grave que estas omissões é a imagem que se foi criando para substituir a realidade. Tornou-se comum a ideia que o desenvolvimento é o resultado acumulado de conferências, workshops e projectos. Eu não conheço país nenhum que se tivesse desenvolvido à custa de projectos. Vocês, melhor que ninguém, sabem disto. Mas quem lê os jornais verifica como está enraizada esta crença. Isto apenas ilustra a atitude apelativa que prevalece entre nós de que os outros (na nossa linguagem moderna, os stakeholders) é que tem a obrigação histórica de nos retirar da miséria.

É aqui que a questão se coloca – qual a cultura da nossa economia? Qual é a economia da nossa cultura? Ou dito de modo mais rigoroso: como é que as nossas culturas dialogam com as nossas economias?

O SERMOS MUNDO – À PROCURA DE UMA FAMÍLIA 

Numa Conferencia em que este ano participei na Europa, alguém me perguntou: o que é, para si, ser africano?

E eu lhe perguntei, de volta: E para si, o que é ser europeu?

Ele não sabia responder. Também ninguém sabe exactamente o que é africanidade. Neste domínio há pouco muita bugiganga, muito folclore. Há alguns que dizem que o "tipicamente africano" é aquele ou aquilo que tem um peso espiritual maior. Ouvi alguém dizer que nós, africanos, somos diferentes dos outros porque damos muito valor à nossa cultura. Um africanista numa conferência em Praga disse que o que media a africanidade era um conceito chamado 
"ubuntu" . E que esse conceito diz que "eu sou os outros".

Ora todos estes pressupostos me parecem vagos e difusos, tudo isto surge porque se toma como substância aquilo que é histórico. As definições apressadas da africanidade assentam numa base exótica, como se os africanos fossem particularmente diferentes dos outros, ou como se as suas diferenças fossem o resultado de um dado de essência.

África não pode reduzida a uma entidade simples, fácil de entender. O nosso continente é feito de pro funda diversidade e de complexas mestiçagens. Longas e irreversíveis misturas de culturas moldaram um mosaico de diferenças que são um dos mais valiosos patrimónios do nosso continente. Quando mencionamos essas mestiçagens falamos com algum receio como se o produto híbrido fosse qualquer coisa menos pura. Mas não existe pureza quando se fala da espécie humana. Os senhores dizem que não há economia actual que não se alicerce em trocas. Pois não há cultura humana que não se fundamente em profundas trocas de alma.

O QUE QUEREMOS E PODEMOS SER 

Vou falar-vos de um episódio real, decorrido aqui perto, na África do Sul, em 1856. Um célebre sangoma de nome Mhalakaza reclamou que espíritos dos antepassados lhe tinham transmitido uma profecia. E que uma grande ressurreição haveria de acontecer e que os britânicos iriam ser expulsos. Para isso o povo Xhosa deveria destruir todo o seu gado e todas as suas machambas. Esse ser ia o sinal de fé para que, das profundezas do chão, brotassem riqueza e abundância para todos. Mhalakaza convenceu os soberanos do reino da veracidade desta visão. O chefe Sarili, da casa real do Tshawe, proclamou a profecia como doutrina oficial. Para além da visão do adivinho, Sarili tinha uma estranha convicção: era de que os russos seriam os antepassados dos Xhosas e seriam eles, os russos, que iriam brotar do chão de acordo com a prometida ressurreição. Esta ideia surgia porque os monarcas Xhosa tinham ouvido falar da guerra da Criméia e do facto dos russos estarem a bater-se contra os ingleses. Espalhou-se rapidamente a ideia de que os russos, depois de vencerem os britânicos na Europa, viriam expulsá-los da África do Sul. E o que é ainda mais curioso: estava assente que os russos seriam pretos, no pressuposto de que todos os que se opunham ao domínio britânico seriam de raça negra.

Não me demoro no episódio histórico. A realidade é que depois de desaparecerem o gado e a agricultura, a fome dizimou mais de dois terços do povo Xhosa. Estava consumada uma das maiores tragédias da toda a história de África. Este drama foi aproveitado pela ideologia colonial como prova da dimensão da crendice entre os africanos. Mas a realidade é que esta história é bem mais complexa que uma simples crença. Por detrás deste cenário, ocultavam-se graves disputas políticas. Dentro a monarquia Xhosa criou-se uma forte dissidência contra este suicídio colectivo. Mas este grupo foi rapidamente intitulado de "infiéis" e uma força de milícias denominada de "os crentes" foi criada para reprimir os que estavam em desacordo.

É evidente que esta história, infelizmente real, não pode ser repetida hoje com este mesmo formato. Mas eu deixo à vossa consideração o encontrarem paralelos com ocorrências actuais na nossa região austral, em África, no Mundo. Aprendizes de feiticeiros, seguem construindo profecias messiânicas e arrastam, de forma triste, povos inteiros para o sofrimento e o desespero.

Aflige-me a facilidade com que vamos a reboque de ideias e conceitos que desconhecemos. Em lugar de as interrogarmos cientificamente e de ajuizarmos a sua adequação cultural transformamo-nos em funcionários de serviço, caixas de ressonância de batuques produzidos nas instâncias dos poderes políticos. Na nossa história já se acumularam lemas e bandeiras. Já tivemos:

- A década contra o sub-desenvolvimento

- O Plano Prospectivo Indicativo (o famoso PPI)

- O PRE ( com o seu "ajustamento estrutural"

- Parceria inteligente e outras

Estas bandeiras tiveram as suas vantagens e desvantagens. Mas raramente foram sujeitas ao necessário questionamento por parte dos nossos economistas, dos nossos intelectuais. As novas bandeiras e lemas estão sendo hasteadas nos mastros sem que esse espírito crítico assegure da sua viabilidade histórica.

Há por vezes um certo cinismo. Poucos são os que realmente acreditam naquilo que propalam. Mas estas novas teologias tem os seus missionários fervorosos. Assim que essas teses desabam, esses sacerdotes são os primeiros a despir as batinas. Foi o que sucedeu com o fim da nossa chamada Primeira Republica. Samora morreu e ninguém mais foi co-responsável da primeira governação. Samora existiu sozinho, é essa a conclusão a que somos obrigados a chegar.

A CULTURA E A ECONOMIA – O QUE PODEMOS FAZER? 

O que podemos fazer é interrogar sem medo e dialogar com espírito crítico. Infelizmente, o nosso ambiente de debate se revela pobre. Mais grave ainda, ele tornou-se perverso: em lugar de confrontar ideias, agridem-se pessoas. O que podemos fazer com os conceitos sócio-económicos é reproduzir aquilo que fizemos com a capulana e com a mandioca. E já agora com a língua portuguesa. Tornámo-los nossos, porque os experimentamos e vivemos à nossa maneira.

Como um parêntesis queria fazer aqui referência a algo que assume o estatuto de pouca-vergonha. Eu já vi pessoas credenciadas a defender a tese da acumulação primitiva do capital justificando o comportamento criminoso de alguns dos nossos novos-ricos. Isto já não é apenas ignorância: é má-fé, ausência completa de escrúpulos morais e intelectuais.

Estamos hoje construir a nossa própria modernidade. E quero congratular esta ocasião em que um homem das letras (que se confessa ignorante em matérias de economia) tenha a possibilidade de partilhar algumas reflexões. A economia necessita de falar, de namorar com as outras esferas da vida nacional. O discurso económico não pode ser a religião dessa nossa modernidade nem a economia pode ser um altar ante o qual nos ajoelhamos. Não podemos entregar a especialistas o direito de conduzir as nossas vidas pessoais e os nossos destinos nacionais.

O que mais nos falta em Moçambique não é formação técnica, não é a acumulação de saber académico. O que mais falta em Moçambique é capacidade de gerar um pensamento original, um pensamento soberano que não ande a reboque daquilo que outros já pensaram. Libertarmo-nos daquilo que uns já chamaram a ditadura do desenvolvimento. Nós queremos ter um uma força patriótica que nos avise dos perigos de uma nova evangelização, e de uma entrega cega a essa nova mensagem messiânica: o desenvolvimento. (Que no quadro desse idioma, o desenvolvimentês, se deve chamar sempre de desenvolvimento sustentável).

O economista não é apenas aquele que sabe de economia. É aquele que pode sair do pensamento económico, aquele que se liberta da sua própria formação para a ela melhor regressar. Esta possibilidade de emigração da sua própria condição é fundamental para que tenhamos economistas nossos que se distanciem da economia o suficiente para a poder interrogar.

A situação do nosso país e do nosso continente é tão séria que já podemos continuar fazendo de conta que fazemos. Temos que fazer. Temos que criar, construir alternativas e desenhar caminhos verdadeiros e credíveis.

Precisamos de exercer os direitos humanos como o direito à tolerância (eis outra palavra do vocabulário workshopista) mas temos que manter acesso a um direito fundamental que é o direito à indignação. Quando nos deixarmos de nos indignar, então estaremos a aceitar que os poderes políticos nos tratem como seres que não pensam. Eu falo do direito à indignação perante o mega-cabritismo, perante crimes como os que mataram Siba-Siba e Carlos Cardoso. Perante a ideia de que a desorganização, o roubo e o caos são parte integrante da nossa natureza "tropical".

O nosso continente corre o risco de ser um território esquecido, secundarizado pelas estratégias de integração global. Quando digo "esquecido" pensarão que me refiro à atitude das grandes potências. Mas eu refiro-me às nossas próprias elites que viraram costas às responsabilidades para os seus povos, à forma como o seu comportamento predador ajuda a denegrir a nossa imagem e fere a dignidade de todos os africanos. O discurso de grande parte dos políticos é feito de lugares-comuns, incapazes de entender a complexidade da condição dos nossos países e dos nossos povos. A demagogia fácil continua a substituir a procura de soluções. A facilidade com que ditadores se apropriam dos destinos de nações inteiras é algo que nos deve assustar. A facilidade com que se continua a explicar erros do presente através da culpabilização do passado deve ser uma preocupação nossa. É verdade que a corrupção e o abuso do poder não são, como pretendem alguns, exclusivas do nosso continente. Mas a margem de manobra que concedemos a tiranos é espantosa. É urgente reduzir o s territórios de vaidade, arrogância e impunidade dos que enriquecem à custa do roubo. É urgente redefinir as premissas da construção de modelos de gestão que excluem aqueles que vivem na oralidade e na periferia da lógica e da racionalidade europeias.

Nós todos, escritores e economistas, estamos vivendo com perplexidade um momento muito particular da nossa História. Até aqui Moçambique acreditou dispensar uma reflexão radical sobre os seus próprios fundamentos. A nação moçambicana conquistou um sentido épico na luta contra monstros exteriores. O inferno era sempre fora, o inimigo estava para além das fronteiras. Era Ian Smith, o apartheid, o imperialismo. O nosso país fazia, afinal, o que fazemos na nossa vida quotidiana: inventamos monstros para nos desassossegar. Mas os monstros também servem para nos tranquilizar. Dá-nos sossego saber que eles moram fora de nós. De repente, o mundo mudou e somos forçados a procurar os nossos demónios dentro de casa. O inimigo, o pior dos inimigos, sempre esteve dentro de nós. Descobrimos essa verdade tão simples e ficamos a sós com os nossos próprios fantasmas. E isso nunca nos aconteceu antes. Este é um momento de abismo e desesperanças. Mas pode ser, ao mesmo tempo, um momento de crescimento. Confrontados com as nossas mais fundas fragilidades, cabe-nos criar um novo olhar, inventar outras falas, ensaiar outras escritas. Vamos ficando, cada vez mais, a sós com a nossa própria responsabilidade histórica de criar uma outra História. Nós não podemos mendigar ao mundo uma outra imagem. Não podemos insistir numa atitude apelativa. A nossa única saída é continuar o difícil e longo caminho de conquistar um lugar digno para nós e para a nossa pátria. E esse lugar só pode resultar da nossa própria criação.
30/Setembro/2003

[*] Escrito moçambicano. Texto apresentado na Associação Moçambicana de Economistas ( AMECON ) 


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/.

HOMENAGEM - “A ÚLTIMA LIÇÃO DE ANA LOFORTE": POBREZA: UM CONCEITO ANTROPOLOGICAMENTE VARIÁVEL


HOMENAGEM - “A ÚLTIMA LIÇÃO DE ANA LOFORTE": POBREZA: UM CONCEITO ANTROPOLOGICAMENTE VARIÁVEL

Ana Maria Loforte

OS estudos sobre género e pobreza foram um dos momentos mais marcantes do percurso da antropóloga moçambicana Ana Loforte.

Esta declaração foi feita na “Última Lição – Notas de um percurso” recentemente dada pela antropóloga na Faculdade de Letras Ciências Sociais (FLCS) da Universidade  Eduardo Mondlane (UEM), na cidade de Maputo.
Foi um estudo efectuado com o objectivo de permitir que as pessoas descrevessem e analisassem a sua própria situação, avaliassem os constrangimentos e oportunidades no meio em que vivem.
No estudo valorizou-se a inclusão da experiência das mulheres para revelar outras dimensões do real das quis normalmente elas são excluídas.
Procurou-se assim desenvolver uma abordagem que buscasse entender como os homens e mulheres produzem e se apropriam de modelos explicativos para as categorias de pobreza em função da sua experiencia social concreta.
Na investigação havia uma intenção deliberada de tomar as mulheres não como vítimas passivas, senão como agentes das suas próprias vidas com capacidades para criar propostas alternativas a fim de compensar as situações de desvantagens que se encontram.
As respostas em relação ao conceito de pobreza mostraram-se díspares e apontavam para uma distinção entre a pobreza que afecta a comunidade onde se inserem e a que afecta a família ou o indivíduo. Para a primeira, são realçados diversos factores, dos quais, prioritariamente, a falta de serviços e infra-estruturas básicas, que são externos e estruturais mas que atingem os indivíduos nela inseridos. Para a segunda, são salientados factores internos que têm a ver com a percepção de pobreza de cada família.
Das constatações feitas, há ainda a registar o facto de “estas mesmas percepções apresentarem muitas facetas e têm uma dimensão local e regional, o que torna complexa a ideia de que existe uma concepção colectiva de pobreza na qual nos poderíamos basear”.
No tocante aos indivíduos, a associação ao facto de ser pobre é visto como resultado de pelo menos, quatro situações: falta de dinheiro, falta de capital social, saúde precária e fraca oportunidade na educação, e por fim, a falta de bens de consumo e deficiente acesso aos recursos produtivos.               
A pesquisa revelou que o conceito de pobreza é diverso, variando de acordo com os informadores, com a posição socioeconómica e à influência do sistema social onde estão inseridos. Tudo isso resultou na impossibilidade de avançar com uma única definição de pobreza. Todavia, certos traços comuns podem ser identificados, pois a as definições ligam-se à falta de bens essenciais, de dinheiro, à ausência de bem-estar, à falta de recursos produtivos, à falta de roupas, mas igualmente a elementos não tradicionais a exclusão social, o infortúnio, o isolamento e solidão.
Estas constatações levaram a antropóloga e sua equipa a inferir que o conceito de pobreza está associado não apenas à posse de bens matérias e rendimentos, mas igualmente, a relações sociais mais estáveis e a uma maior intervenção do Estado na provisão de condições económicas e sociais conducentes ao seu desenvolvimento.       
A antropóloga considera que é “necessária uma abordagem que ao leitor reconhecer problemas comuns nas práticas quotidianas. Abordagens que contribuam para definir com mais clareza factores muitas vezes esquecidos, no entanto decisivos para o resultado final das políticas, dos programas e projectos de desenvolvimento”.
Ana Loforte concluiu afirmando que todos os trabalhos desvendaram nela os limites entre a investigação e o objecto de estudo, e o investigador que sistematiza o conhecimento num confronto entre percepções, vivências, emoção e elaboração. Loforte disse também que muitas das pesquisas em participou remetiam a situações que implicavam o seu posicionamento frente ao narrado e não permanecer neutra. 

In: Noticias, 17 de Outubro de 2012

ANA LOFORTE E A ANTROPOLOGIA EM MOÇAMBIQUE
A prestigiada antropóloga Ana Loforte reformou-se há alguns meses, deixando de leccionar na Universidade Eduardo Mondlane, onde foi docente durante mais de três décadas. A palavra “reforma” é sempre dolorosa nos meios académicos. Confesso que nestas situações dos colegas mais-velhos prefiro o habitual termo “jubilou-se”, em desuso em Moçambique, que indicia um cume de felicidade intelectual (e até existencial), que acompanha o final das preocupações administrativas ligadas à vida académica e o continuar da biografia intelectual, assim aligeirada. Como é agora o caso de Ana Loforte, que segue como investigadora na organização WLSA e presente, assim o espero, no mundo da docência.
A semana passada ocorreu a sua “última lição” na Faculdade de Letras e Ciências Sociais, um costume para estes momentos biográficos no seio de outros meios académicos, tornado até verdadeiro “ritual de transição”, mas que percebi ser em Moçambique algo relativamente excêntrico. Certo que o nome dado ao quase-rito é até chocante, como se obrigando a um final ao que se espera que não o seja.
Ocorre-me abordar aqui esta, afinal, “Mais Uma Lição” de Ana Loforte, um momento que foi de verdadeiro júbilo, nele se extrovertendo o respeito e o carinho que a professora e investigadora plantou e colheu no seio da comunidade antropológica nacional. E não só. Como naquele momento disse Emídio Gune, em nome do Departamento de Arqueologia e Antropologia da UEM, “queremos que o mundo saiba que a professora é uma excelente profissional”.
Mas para além do eco dessa calorosa homenagem este momento torna-se indicado para reflectir sobre o trajecto da antropologia no Moçambique independente, o qual pode ser acompanhado pela prática de Ana Loforte (ainda que, como é óbvio, e não poderia ser de outro modo, nela não se esgote). Nesse sentido permito-me recomendar aqui algumas leituras. Não só o seu “Género e Poder entre os Tsonga de Moçambique”, livro que reflecte a sua tese de doutoramento e que se tornou referência na abordagem às questões sociais no sul de Moçambique e, ainda mais, nas questões relativas à política de “género” no país. E, neste âmbito, convirá lembrar o quão central tem sido esta questão no processo nacional.
Mas convido também para uma leitura de uma sua entrevista (para quem acede à internet está aqui: http://www.flcs.uem.mz/images/pdf_files/revista_gazeta.pdf) concedida à “Gazeta de Arqueologia e Antropologia da UEM” em 2008. Nela podemos acompanhar o processo de “reabilitação” da antropologia no país. Com efeito, e tal como em tantos outros países africanos, esta ciência sofreu uma desvalorização após as independências. Pois vista como uma ciência colonial, como um mero saber instrumental destinado à dominação exploratória estrangeira. Acusações reducionistas, frutos de uma leitura empobrecida, e que em Moçambique se foram arrastando, inclusivamente em publicações universitárias, até há poucos anos. Nessa entrevista Ana Loforte recupera o lento processo de sedimentação da (necessária) pesquisa antropológica no país. Alimentada pelo trabalho de alguns especialistas estrangeiros nos anos 1980s, e de alguns, poucos, moçambicanos. Contexto no qual ela foi pioneira e no qual se foi tornando incontornável referência. Um processo que permitiu um olhar refrescado sobre a multiplicidade interna do país, já não vista como defeito a alisar, e a um aceitar e valorizar das suas múltiplas características, estas já não apenas a modificar.
Foi sobre essa necessidade de pesquisa, e sobre seus frutos e possibilidades, que Loforte falou na passada semana. Transformando o que poderia ter sido apenas uma festa de despedida – e bem merecida teria sido – numa desassombrada sessão de trabalho, num anúncio de continuidade de reflexão. Percorrendo algumas investigações cruciais realizadas ao longo dos anos, Loforte lembou aos mais novos, e relembrou aos colegas ali presentes, da necessidade de uma pesquisa qualitativa, atenta às características que efectivamente constituem a sociedade (as relações de parentesco, as questões e estruturas de poder, as práticas e hierarquias económicas, as dimensões simbólicas, essas que adquirem materialidade no dia-a-dia). Sublinhando que são essas dimensões da vida, dos processos sociais, quantas vezes “disfarçadas” de pequeno quotidiano, que nos permitem compreender o real. E que são também elas que enfrentam as (apressadas) tentativas de o transformar, essas pretensas engenharias do social, sempre desiludidas face a um mundo que não é, afinal, tão simples como o desejam e pintam.
O que Loforte referiu, ao longo da carreira, e na passada quarta-feira sumarizou, foi um projecto de investigação que busca compreender as dinâmicas internas à sociedade moçambicana. Entendendo que a apreensão destas dinâmicas exige múltiplas abordagens, várias disciplinas científicas em articulação, e que isso não se obtém apenas com a medição ou a mera descrição, subordinadas ao feitiço das estatísticas ou ao encanto da boa retórica, esta agitando os termos da moda. Que é um trabalho certamente lento e analítico, a exigir conceitos, intenções explicativas. E que tem que ser calibrado, comedido, apesar das urgências, desconfiando das urgências. Ou seja, que a compreensão incide sobre parcelas do real, seus fragmentos. E que esta é a única forma competente de olhar e de concluir. No fundo, a única forma de pensar, de analisar.
É nesse caminho, frutuoso mas nada publicitário / propagandístico, que se poderá refutar a visão da sociedade como mero palco de desenvolvimento, como apenas objecto de um projecto de desenvolvimento, como se matéria-prima fosse. Encarando-a, encarando o país, pelo conhecimento da sua complexa riqueza. E às suas múltiplas parcelas, aos seus múltiplos agentes, com as suas características, saberes e aspirações localizados. Assim, só assim, elegendo a sociedade como a verdadeira autora, a verdadeira sujeita de desenvolvimento.
Num mundo apressado, e como tal distraído, convém muito, é até urgente, ouvir e ler Ana Loforte.
jpt

16 outubro 2012

RENÉ PÉLISSIER : "FALAR DE CINCO SÉCULOS DE COLONIZAÇÃO PORTUGUESA É UMA BURLA!"


RENÉ PÉLISSIER : "FALAR DE CINCO SÉCULOS DE COLONIZAÇÃO PORTUGUESA É UMA BURLA!"
René Pelissier, autor de 5 volumes da Historia de Portugal

Por José Pedro Castanheira (texto) e Tiago Miranda (fotos)

É um dos mais importantes historiadores estrangeiros da moderna colonização portuguesa. Estudou a conquista militar de AngolaMoçambiqueGuiné e Timor. A viver perto de Paris, tem uma biblioteca de 12 mil volumes e gostaria de escrever uma bibliografia crítica de tudo quanto foi publicado.
Convidado a participar num colóquio no ISCTE, em Lisboa, o historiador francês René Pélissier deu uma longa entrevista ao Expresso.
O seu último livro 'a solo' chama-se 'Timor em Guerra. A Conquista Portuguesa?
Os portugueses têm uma história romanceada da colonização portuguesa em Timor. Teriam sido, no essencial, a igreja e os missionários os únicos a contribuir para a implantação da colonização portuguesa.
O que não é verdade!
Pois não. Foi uma conquista brutal, efetuada pela maior parte dos governadores e sobretudo pelo célebre José Celestino da Silva, que foi um homem excecional na história colonial portuguesa.
Foi uma exceção em todo o império?
Creio que sim. Não tenho a nomenclatura de todos os governadores de todas as colónias, mas foi o homem que esteve no poder em Díli durante mais tempo (14 anos). Tinha a proteção do rei D. Carlos (até ao seu assassínio), mas quando foi da sucessão foi afastado do poder por D. Manuel. Tinha demasiados inimigos. Era um homem ativo, que tinha como principal objetivo na vida entrar na História como o primeiro governador de Timor a ser dono de todo o território. Conseguiu-o por meios extraordinariamente brutais.
'Cortar as cabeças contra os maus espíritos'

Sanguinários?
Sim. Tinha poucos soldados moçambicanos mas reuniu em 24 campanhas 60 mil timorenses e mandou cortar muitas...
... cabeças?
Exato. Não foi mais sanguinário que outros governadores, mas para conseguir a adesão dos "arraiais" - as tropas supletivas timorenses -, tinha de lhes dar qualquer coisa. Como não tinha dinheiro, havia que dar uma compensação material - o direito de se apoderar dos cavalos, porcos, vacas, etc. -, mas também mística, digamos. Isto é: cabeças cortadas, que para os guerrilheiros constituíam uma espécie de defesa sobrenatural da sua própria aldeia. Cortavam as cabeças e encastravam-nas nas tranqueiras - uma defesa mágica contra os maus espíritos e contra os inimigos que, por sua vez, também queriam cortar as cabeças dos habitantes da aldeia. Era uma espécie de salvaguarda. José Celestino da Silva era um que também ambicionava enriquecer.
Conseguiu-o?
Sim. Quando havia uma vitória num reino com muito terreno para o café, ele requisitava os ditos terrenos para lançar uma ou várias companhias agrícolas, de que era sócio. Com os vencidos não decapitados, utilizava o trabalho forçado. Transformava-os praticamente em escravos, que cultivavam café para si, a troco de uma pequena 'gorjeta'.
Onde descobriu essas histórias?
Não foi uma verdadeira descoberta. Os raros especialistas de Timor já a conheciam. Encontrei isso nos testemunhos publicados pelos próprios governadores. Em 1896, o primeiro relatório sobre uma campanha em Timor, conta como mataram cerca de 700 pessoas em 1895 - cortando as cabeças. É um livro trágico, que não esconde a verdade, publicado para contrabalançar o prestígio mediático de Mouzinho de Albuquerque, que era o grande herói de Moçambique. Julgo que aceitaram publicar os relatórios dos oficiais de José Celestino da Silva, que era o novo e longínquo herói de Timor, para mostrar que nos confins do Império também havia um homem que tinha a situação militar bem controlada. A conquista continuou ainda em 1900, contra o maior regulado que era o Manufai, onde estava a alma ou o coração da resistência à colonização. Foi uma conquista muito dura, primeiro contra o liurai D. Duarte, e depois contra o seu filho D. Boaventura, que se tornou o pior inimigo dos portugueses durante a I República. Foi uma guerra atroz. Oficialmente houve 3424 mortos. Não é verdade - calculo que tenham sido 15 a 25 mil timorenses mortos, seja em combate, seja à sede, seja sobretudo pela cólera. A conquista acabou em 1913 pelo esmagamento de todas as chefias. A colonização de Timor não tem nada a ver com a mitologia do Estado Novo, nem com a de agora. É preciso olhar a história colonial com os olhos bem abertos.
O primeiro a estudar a moderna colonização portuguesa

Timor foi a última colónia que estudou?
Foi. Quando comecei, fui o primeiro investigador francês a estudar a colonização portuguesa moderna, posterior aos Descobrimentos, à Índia e ao Brasil...
Porque escolheu Portugal?
Porque gosto das descobertas pessoais. Tenho uma alma de descobridor, de explorador. Cheguei um pouco tarde: tudo já fora descoberto geograficamente. Mas descobri um mundo que estava completamente fechado aos não-lusófonos pela propaganda, que exaltava os cinco séculos de colonização portuguesa.
O que está longe de ser verdade.
Justamente. Mas era preciso prová-lo e demonstrar. Tinha que encontrar uma chave para destruir o mito. E a única chave que estava em meu poder era fazer a história militar da conquista. Avancei num terreno completamente ignorado pelos não-lusófonos.
Creio que começou por Angola.
Em 1965. Angola era difícil para mim.
Veio a Lisboa?
Sim. O Arquivo Histórico-Ultramarino não estava aberto para os que queriam estudar a época mais recente. Mas não mo disseram frontalmente. Como eram muito hábeis, o diretor disse-me que podia vir ao Arquivo consultar unicamente os livros! Só que, para isso, podia ir a Sociedade de Geografia... Não pude fazer nada e expliquei na minha tese que não tivera acesso ao Arquivo Histórico Ultramarino. Mas os militares deram-me acesso aos arquivos militares na medida em que iam sendo desclassificados. Aproveitei e encontrei coisas que ninguém tinha encontrado antes de mim, como o fim da conquista dos Dembos.
Os relatórios de Paiva Couceiro e João de Almeida 

Teve que aprender português?
Sim, em Portugal. Nunca aprendi propriamente. Comecei por ler e conversar. E conversando apanhei um pouco da língua. Os militares da época da conquista do Terceiro Império escreviam e publicavam muito. Foi a minha salvação.
Literatura de memórias e das campanhas.
Exatamente. Não apenas Mouzinho de Albuquerque, mas António Enes e muitos outros. A conquista não foi propriamente um caminho que levasse à santidade: não havia apenas rosas nessa história. Em 1904, mesmo em 1907, a Angola realmente portuguesa representava no máximo 1/10 do território atual. E isso não era confidencial. Estava escrito em "Angola Dois anos de Governo", do governador Paiva Couceiro, um documento notável. João de Almeida, que foi o seu braço direito, contou as suas próprias campanhas. Fez o seu trabalho de conquistador, normal na época. Se empreendeu, a partir de 1845, 180 operações militares, isso significava que a colónia não estava pacificada. Esta foi a chave que demonstrou a falsidade do slogan "Cinco séculos de colonização portuguesa em Angola". Antes de meados do sec XIX não havia propriamente dito uma colonização portuguesa, salvo em Luanda, no corredor do Cuanza até Malange, em Benguela, Moçâmedes, Novo Redondo e pouco mais. Todo o resto tinha de ser conquistado.
Visitou Angola?
Não sou um historiador militante ou partidário de uma causa - nenhuma. Nada disso. Obtive licença para visitar Angola em 1966. Já tinha escrito pequenas coisas e viram que não era um adversário da colonização. Realmente não sou. Sou, isso sim, um adversário do mito da colonização, o que é diferente. Visitei praticamente 13 distritos (em 15 que havia na época), vi a situação, que era favorável a Portugal do ponto de vista económico. É incontestável: Angola nunca foi tão próspera e rica como na véspera da morte da colonização portuguesa.
'Não partilho do entusiasmo por Mouzinho de Albuquerque'

Creio que é uma verdade indiscutível
.
Indiscutível. Na minha opinião (que não é a opinião de um propagandista e que expus no livro "História de Angola", com Douglas Wheeler), a situação era instável mas provisoriamente favorável aos portugueses. Fiz a minha tese de doutoramento em dois volumes sobre Angola. O primeiro é sobre a conquista, que foi traduzida para português pela Estampa, "História das Campanhas de Angola". O segundo volume, com 700 páginas, ainda não foi traduzido; chama-se "La colonie du Minotaure". E o Minotauro é a colonização portuguesa que devora as suas vítimas africanas. Como sou um homem que ama a descoberta, com alma de explorador, e não queria ficar a vida toda a estudar Angola, passei a Moçambique. Comecei em 1977. A conquista de Moçambique são essencialmente as 150 campanhas ou operações mais importantes nos séculos XIX ou XX - o que significa que não se pode falar de "cinco séculos de colonização". Seria uma burla!
A mesma tese de Angola...
É preciso ser verdadeiramente cego, ou não querer olhar a verdade de frente. Terminei Moçambique em 1983 e continuei pela Guiné. Mais pequena, mas um país relativamente mais difícil de conquistar, em razão da geografia, do clima e da resistência dos guineenses, gente que não estava disposta a submeter-se sem ser vencida.
O grande herói da colonização de Angola foi Paiva Couceiro?
Não há verdadeiramente um herói. O melhor organizador da conquista durante a Monarquia foi Paiva Couceiro e o seu braço-direito, João de Almeida. A conquista do Sul foi "épica" entre 1885 e 1915.
E em Moçambique?
Não partilho do entusiasmo por Mouzinho de Albuquerque. Em Angola, não havia a premência de Moçambique, a braços com as ambições de Cecil Rhodes, dos britânicos e até dos alemãos, que olhavam, a partir do norte, o que podiam apanhar dos portugueses.
A pressão de Cecil Rhodes sobre Moçambique

Em Angola não havia esse tipo de problemas.
Havia o problema dos alemães e o seu domínio do Sudoeste africano. Mas a pressão alemã era inferior à de Cecil Rhodes, que queria conquistar a Rodésia e aceder ao mar através da Beira. Quem teve a visão mais clara foi António Enes. Enes era um civil: era um autor dramático, foi diretor da Biblioteca Nacional em Lisboa e ministro, e tinha uma conceção relativamente eficaz sobre a organização da conquista. Não tinha poder militar, mas encontrou entre os seus oficiais intermédios gente corajosa e soube ampliar exageradamente a ameaça do Gungunhana. O Gungunhana era um imperialista africano - não há que ter vergonha em dizê-lo. Agora é um herói em Moçambique - cada país encontra os heróis onde pode. Mouzinho de Albuquerque conseguiu o feito apreciável de se apoderar da pessoa de Gungunhana sem resistência, em Manjacaze. Isso deu confiança aos oficiais portugueses, que se batiam com poucos meios e homens e com pouco espírito de organização. Perceberam que, uma vez vencido o Gungunhana, podiam apoderar-se de todo Moçambique - e fizeram-no, lentamente. No início da I Guerra Mundial, o essencial de Moçambique estava conquistado, exceto a parte Norte, os atuais Cabo Delgado e Niassa, que pertenciam a uma sociedade privada comercial, uma pura sociedade de predadores. Os acionistas eram sul-africanos, alemães, franceses, etc. e apenas o presidente era português.
Seguiu-se o estudo da Guiné...
Cheguei à Guiné com muita dificuldade. Porque é muito complicada, ao lado de Angola...
Mais difícil que Angola?
Sim. Quando estudei Angola, tinha uma vantagem: salvo no Sul e no Noroeste, não havia muitas relações (em termos de pesquisa) com os territórios vizinhos. Enquanto a Guiné está completamente rodeada por territórios franceses, pelo que era necessário absorver a história dos povos que também habitam o Senegal e a Guiné Conakry. Fiz, assim, o conjunto das três colónias continentais que nunca tiveram cinco séculos de colonização, que existiu unicamente em Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, e Goa e territórios adjacentes. E mesmo Goa estava dividida, até à véspera da conquista indiana, em duas partes: as velhas conquistas (um território muito pequeno) e as novas conquistas, feitas no fim do Sec. XVIII. Só me faltava a última colónia onde houve grandes combates: Timor, que acabei em 1996. Depois tive problemas de saúde e pessoais, que me obrigaram a trabalhar mais lentamente. Estabeleci, depois, em termos cronológicos, uma síntese das quatro histórias separadas. Associando as várias conquistas, demonstrei que no principio do sec. XX Portugal esteve em guerra permanente e simultânea em vários territórios. O que impressiona, uma vez que o país era pobre - o Portugal do fim da monarquia não se podia comparar à Bélgica do rei Leopoldo. Portugal é, indiscutivelmente, o país que mais se bateu, e mais tardiamente, para obter o seu terceiro Império. O que foi trágico para Portugal é que, à conquista, não se seguiu uma administração estável. Faltou dinheiro, homens e espírito de continuidade. E isso custou muito caro: era preciso reconstruir perpetuamente. Norton de Matos escreveu, num dos seus relatórios, que "não sabemos colonizar..." Exagerava um pouco, mas havia grande parte de verdade nisso. Fez falta uma continuidade do esforço colonial.
'A República liquidou as elites africanas'

E a República?
Coitada! Continuou a mesma política, não tendo sido nem mais gentil nem mais reformadora... Liquidou as elites africanas - não no sentido de as ter morto, mas abafou os primeiros movimentos nacionalistas.
Visitou todas as colónias?
Visitei Angola três vezes - a última, em 1973. Não fiquei apenas em Luanda; fui a Teixeira de Sousa, Cazombo, Gago Coutinho, Cuito Cuanavale, Mavinga, Serpa Pinto...
Vejo que tem uma memória fantástica...
Um pouco... Visitei todos os distritos, menos dois: o Zaire e o Kuanza-Sul.
Quem financiou?
Em 1966, a Junta de Investigações do Ultramar, dirigida por um homem notável: Carlos Cruz Abecassis. Foi honesto comigo e eu com ele. Escrevi um livro que se chama "Explorar. Voyages en Angola et autres lieux incertains", em que descrevo a visita à prisão de S. Paulo, em Luanda, com São José Lopes, o diretor da PIDE em Angola.
Conheceu-o?
Fui até lá. Fez-me visitar de noite a sua prisão que estava vazia.
Vazia?
Não sou ingénuo. Se há historiador ingénuo, não sou eu. Estava quase vazia. Fui depois ao campo de concentração de Missongo; vi os prisioneiros, falei com eles, fiz um pequeno inquérito sobre as origens religiosas e políticas; os portugueses tinham sido astutos e hábeis, tinham misturado os FNLA com os MPLA para ter 'bufos' dos dois lados... Não se deve desprezar a astúcia dos portugueses. Há autores estrangeiros que o fazem. Eu não. É preciso reconhecer qualidades aos portugueses. Ninguém consegue aguentar três guerras durante 14 anos, em dois milhões de quilómetros quadrados insalubres, sem ter uma resistência fora do comum. Os seus adversários, salvo o PAIGC, não estavam tão bem organizados nem eram tão numerosos como a FLN argelina contra a França - mas, apesar disso, é preciso tirar-lhes o chapéu. E eu tiro-o. Mas eles estavam militarmente num beco sem saída.
Reportagem mal-tratada pelo 'Le Monde'

Visitou Moçambique?
Duas vezes. Paguei uma vez, mas não vi muita coisa, fui apenas à Beira, Lourenço Marques e Gaza. A segunda foi em 1973; paguei a viagem até África e na Beira fiquei a cargo das autoridades militares e da administração. Visitei Tete (pouco depois do escândalo do massacre de Wiriamu), Metangula, Vila Cabral, Nangade (no Rovuma). Escrevi um artigo para o "Le Monde" sobre Nangade, que aliás foi mal-tratado por um jornalista da redação, que cortou o que eu dizia de bem dos portugueses, acusando-me de ser um propagandista da causa colonialista...
Visitou a Guiné?
Nunca. O que era normal. Gosto dos jornalistas, porque põem perguntas embaraçosas. E na Guiné sabiam que eu poria questões muito embaraçosas, a que não poderiam responder sem violar completamente a verdade.
Visitou algum destes países depois da independência?
Nunca. Nunca fui à África lusófona depois da independência. Fui a Goa por minha conta em 1979 e verifiquei que estava marginalmente mais desenvolvida que no tempo dos portugueses.
Todos os seus livros estão traduzidos para português?
Não e isso é uma pena. Tenho cinco livros e meio traduzidos para português (ao todo, cerca de 3500 páginas). Sou provavelmente o único historiador estrangeiro a ter cinco livros traduzidos em português: "História das campanhas de Angola", "História de Moçambique", "História da Guiné", "Timor em Guerra" e "As campanhas coloniais de Portugal" (que é a síntese dos quatro). E escrevi, juntamente com Douglas Wheeler, "História de Angola".
Que foi o último a ser traduzido.
Sim. O "Minotauro" nunca foi. Procuro um editor, mas são mais de 700 páginas. Não é apenas a guerra em 1961, é também a administração portuguesa nas véspera das revoltas.
Recensões sobre livros publicados em 52 países

Você é conhecido por ser um máquina de ler...
Sou um explorador do passado.
Quantos livros leu sobre as colónias portuguesas?
Sobre Moçambique, mais ou menos mil livros e artigos; 1100 sobre Angola, pelo menos 400 sobre a Guiné e mais de 300 sobre Timor.
Fez recensões sobre todos esses livros?
Não. Li e utilizei-os para compor os meus próprios livros. Além disso, publico recensões de livros recentes sobre a colonização portuguesa moderna (os cinco PALOP e Timor) e um pouco sobre Goa e Macau. Publiquei mais de três mil recensões desde 1964. É um serviço de informação para o público.
Publicou muitas recensões na "Análise Social". Porque acabou?
Não fui eu que interrompi a minha colaboração. Gostaria bem de a manter. A revista mudou de programa, depois de ter publicado 27 crónicas bibliográficas minhas. E a tradução custava dinheiro!
Em que línguas lê?
Francês, português, espanhol, catalão, italiano, inglês, alemão, holandês (aprendi por causa de Timor) e um pouco de dinamarquês. Quando não leio uma língua, peço ao autor que me envie um resumo, o que já aconteceu com livros escritos, por exemplo, em finlandês, checo e polaco. O mais exótico que recensei foi o primeiro livro em hebraico sobre Angola, da primeira embaixadora de Israel em Luanda.
Escrito em hebraico?
Eu não leio e pedi à autora que me desse um apanhado. Tenho recensões sobre livros publicados em 52 países - na Índia, Nicarágua, Colômbia. Rússia, Roménia, no país basco (sobre missionários em Angola), etc.. É uma cobertura internacional... Publiquei parte dessas recensões num livro enorme (748 páginas) chamado "Angola, Guinées, Mozambique, etc. Una bibliographie internationale critique (1990-2005)". Às vezes muito crítica.
Uma biblioteca com 12 mil títulos 

Está a escrever para revistas portugueses?
Tento, mas é muito difícil. Enquanto crítico, preciso que os meus trabalhos sejam publicados rapidamente. É a mesma atitude que um jornalista: é preciso que saia rápido, atendendo às motivações do editor.
Ouvi-o falar sobre Angola. O que contou foi uma autêntica reportagem jornalística...
Sim. Vocês fazem o mesmo trabalho que eu, mas com uma faca na garganta: o tempo e, por vezes, o chefe-de-redação. Eu tenho bastante mais tempo e menos constrangimentos.
O historiador também é um jornalista?
Não. Eu estou na fronteira. Sou um homem curioso e sistemático. Em França, um grande jornalista é o que trabalha num grande jornal. Eu não trabalho em nenhum jornal e só o faço para pequenas revistas confidenciais, que geralmente não interessam aos editores comerciais. Pelo que sou eu que todos os anos compro uma centena de livros para a minha biblioteca. Além dos livros enviados para a comunicação social, que analiso sempre.
Quantos volumes tem?
Doze mil. Incluindo livros sobre a Índia e Macau e sobre os territórios espanhóis de África, área de que também sou especialista. Unicamente para o período 1840-2010.
'Um bom livro é o que me traz coisas novas'

Tem esses livros todos em sua casa?
Sim, mas não há mais espaço! Gostaria de fazer uma coisa útil para as gerações futuras: uma bibliografia crítica de tudo quanto foi publicado em livro sobre Angola, Moçambique, etc. a partir de 1840. Mas isso custa uma fortuna.
Qual foi o melhor livro que leu sobre as colónias portuguesas?
É uma escolha difícil. Talvez o do americano John Marcum, sobre Angola, em dois volumes e alguns do grande Charles Boxer até 1825.
E de autores portugueses?
Há muitos, visto que também leio romances, na condição que falem da situação e do drama colonial. Enquanto historiador, destaco o livro de António Monteiro Cardoso, "Timor na Segunda Guerra Mundial: O Diário do Tenente Pires". Gosto também de um precursor que escreveu a primeira história séria de Angola, chamado Ralph Delgado; era um autor colonialista, mas com visão de historiador e fez um trabalho de pioneiro. E eu respeito os pioneiros.
O que é, para si, um bom livro?
Se um livro me traz coisas novas, considero-o bom; se me traz muitas coisas novas, é excelente, qualquer que seja a tendência política do autor. Como não tenho nenhuma opção política, se fizer bem o seu trabalho, não tem nenhuma importância que seja de esquerda ou de direita. Desde que faça bem o seu trabalho...
Versão integral da entrevista publicada no Expresso de 31 de Julho de 2010, Caderno Atual, páginas 38 a 40