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17 outubro 2012

HOMENAGEM - “A ÚLTIMA LIÇÃO DE ANA LOFORTE": POBREZA: UM CONCEITO ANTROPOLOGICAMENTE VARIÁVEL


HOMENAGEM - “A ÚLTIMA LIÇÃO DE ANA LOFORTE": POBREZA: UM CONCEITO ANTROPOLOGICAMENTE VARIÁVEL

Ana Maria Loforte

OS estudos sobre género e pobreza foram um dos momentos mais marcantes do percurso da antropóloga moçambicana Ana Loforte.

Esta declaração foi feita na “Última Lição – Notas de um percurso” recentemente dada pela antropóloga na Faculdade de Letras Ciências Sociais (FLCS) da Universidade  Eduardo Mondlane (UEM), na cidade de Maputo.
Foi um estudo efectuado com o objectivo de permitir que as pessoas descrevessem e analisassem a sua própria situação, avaliassem os constrangimentos e oportunidades no meio em que vivem.
No estudo valorizou-se a inclusão da experiência das mulheres para revelar outras dimensões do real das quis normalmente elas são excluídas.
Procurou-se assim desenvolver uma abordagem que buscasse entender como os homens e mulheres produzem e se apropriam de modelos explicativos para as categorias de pobreza em função da sua experiencia social concreta.
Na investigação havia uma intenção deliberada de tomar as mulheres não como vítimas passivas, senão como agentes das suas próprias vidas com capacidades para criar propostas alternativas a fim de compensar as situações de desvantagens que se encontram.
As respostas em relação ao conceito de pobreza mostraram-se díspares e apontavam para uma distinção entre a pobreza que afecta a comunidade onde se inserem e a que afecta a família ou o indivíduo. Para a primeira, são realçados diversos factores, dos quais, prioritariamente, a falta de serviços e infra-estruturas básicas, que são externos e estruturais mas que atingem os indivíduos nela inseridos. Para a segunda, são salientados factores internos que têm a ver com a percepção de pobreza de cada família.
Das constatações feitas, há ainda a registar o facto de “estas mesmas percepções apresentarem muitas facetas e têm uma dimensão local e regional, o que torna complexa a ideia de que existe uma concepção colectiva de pobreza na qual nos poderíamos basear”.
No tocante aos indivíduos, a associação ao facto de ser pobre é visto como resultado de pelo menos, quatro situações: falta de dinheiro, falta de capital social, saúde precária e fraca oportunidade na educação, e por fim, a falta de bens de consumo e deficiente acesso aos recursos produtivos.               
A pesquisa revelou que o conceito de pobreza é diverso, variando de acordo com os informadores, com a posição socioeconómica e à influência do sistema social onde estão inseridos. Tudo isso resultou na impossibilidade de avançar com uma única definição de pobreza. Todavia, certos traços comuns podem ser identificados, pois a as definições ligam-se à falta de bens essenciais, de dinheiro, à ausência de bem-estar, à falta de recursos produtivos, à falta de roupas, mas igualmente a elementos não tradicionais a exclusão social, o infortúnio, o isolamento e solidão.
Estas constatações levaram a antropóloga e sua equipa a inferir que o conceito de pobreza está associado não apenas à posse de bens matérias e rendimentos, mas igualmente, a relações sociais mais estáveis e a uma maior intervenção do Estado na provisão de condições económicas e sociais conducentes ao seu desenvolvimento.       
A antropóloga considera que é “necessária uma abordagem que ao leitor reconhecer problemas comuns nas práticas quotidianas. Abordagens que contribuam para definir com mais clareza factores muitas vezes esquecidos, no entanto decisivos para o resultado final das políticas, dos programas e projectos de desenvolvimento”.
Ana Loforte concluiu afirmando que todos os trabalhos desvendaram nela os limites entre a investigação e o objecto de estudo, e o investigador que sistematiza o conhecimento num confronto entre percepções, vivências, emoção e elaboração. Loforte disse também que muitas das pesquisas em participou remetiam a situações que implicavam o seu posicionamento frente ao narrado e não permanecer neutra. 

In: Noticias, 17 de Outubro de 2012

ANA LOFORTE E A ANTROPOLOGIA EM MOÇAMBIQUE
A prestigiada antropóloga Ana Loforte reformou-se há alguns meses, deixando de leccionar na Universidade Eduardo Mondlane, onde foi docente durante mais de três décadas. A palavra “reforma” é sempre dolorosa nos meios académicos. Confesso que nestas situações dos colegas mais-velhos prefiro o habitual termo “jubilou-se”, em desuso em Moçambique, que indicia um cume de felicidade intelectual (e até existencial), que acompanha o final das preocupações administrativas ligadas à vida académica e o continuar da biografia intelectual, assim aligeirada. Como é agora o caso de Ana Loforte, que segue como investigadora na organização WLSA e presente, assim o espero, no mundo da docência.
A semana passada ocorreu a sua “última lição” na Faculdade de Letras e Ciências Sociais, um costume para estes momentos biográficos no seio de outros meios académicos, tornado até verdadeiro “ritual de transição”, mas que percebi ser em Moçambique algo relativamente excêntrico. Certo que o nome dado ao quase-rito é até chocante, como se obrigando a um final ao que se espera que não o seja.
Ocorre-me abordar aqui esta, afinal, “Mais Uma Lição” de Ana Loforte, um momento que foi de verdadeiro júbilo, nele se extrovertendo o respeito e o carinho que a professora e investigadora plantou e colheu no seio da comunidade antropológica nacional. E não só. Como naquele momento disse Emídio Gune, em nome do Departamento de Arqueologia e Antropologia da UEM, “queremos que o mundo saiba que a professora é uma excelente profissional”.
Mas para além do eco dessa calorosa homenagem este momento torna-se indicado para reflectir sobre o trajecto da antropologia no Moçambique independente, o qual pode ser acompanhado pela prática de Ana Loforte (ainda que, como é óbvio, e não poderia ser de outro modo, nela não se esgote). Nesse sentido permito-me recomendar aqui algumas leituras. Não só o seu “Género e Poder entre os Tsonga de Moçambique”, livro que reflecte a sua tese de doutoramento e que se tornou referência na abordagem às questões sociais no sul de Moçambique e, ainda mais, nas questões relativas à política de “género” no país. E, neste âmbito, convirá lembrar o quão central tem sido esta questão no processo nacional.
Mas convido também para uma leitura de uma sua entrevista (para quem acede à internet está aqui: http://www.flcs.uem.mz/images/pdf_files/revista_gazeta.pdf) concedida à “Gazeta de Arqueologia e Antropologia da UEM” em 2008. Nela podemos acompanhar o processo de “reabilitação” da antropologia no país. Com efeito, e tal como em tantos outros países africanos, esta ciência sofreu uma desvalorização após as independências. Pois vista como uma ciência colonial, como um mero saber instrumental destinado à dominação exploratória estrangeira. Acusações reducionistas, frutos de uma leitura empobrecida, e que em Moçambique se foram arrastando, inclusivamente em publicações universitárias, até há poucos anos. Nessa entrevista Ana Loforte recupera o lento processo de sedimentação da (necessária) pesquisa antropológica no país. Alimentada pelo trabalho de alguns especialistas estrangeiros nos anos 1980s, e de alguns, poucos, moçambicanos. Contexto no qual ela foi pioneira e no qual se foi tornando incontornável referência. Um processo que permitiu um olhar refrescado sobre a multiplicidade interna do país, já não vista como defeito a alisar, e a um aceitar e valorizar das suas múltiplas características, estas já não apenas a modificar.
Foi sobre essa necessidade de pesquisa, e sobre seus frutos e possibilidades, que Loforte falou na passada semana. Transformando o que poderia ter sido apenas uma festa de despedida – e bem merecida teria sido – numa desassombrada sessão de trabalho, num anúncio de continuidade de reflexão. Percorrendo algumas investigações cruciais realizadas ao longo dos anos, Loforte lembou aos mais novos, e relembrou aos colegas ali presentes, da necessidade de uma pesquisa qualitativa, atenta às características que efectivamente constituem a sociedade (as relações de parentesco, as questões e estruturas de poder, as práticas e hierarquias económicas, as dimensões simbólicas, essas que adquirem materialidade no dia-a-dia). Sublinhando que são essas dimensões da vida, dos processos sociais, quantas vezes “disfarçadas” de pequeno quotidiano, que nos permitem compreender o real. E que são também elas que enfrentam as (apressadas) tentativas de o transformar, essas pretensas engenharias do social, sempre desiludidas face a um mundo que não é, afinal, tão simples como o desejam e pintam.
O que Loforte referiu, ao longo da carreira, e na passada quarta-feira sumarizou, foi um projecto de investigação que busca compreender as dinâmicas internas à sociedade moçambicana. Entendendo que a apreensão destas dinâmicas exige múltiplas abordagens, várias disciplinas científicas em articulação, e que isso não se obtém apenas com a medição ou a mera descrição, subordinadas ao feitiço das estatísticas ou ao encanto da boa retórica, esta agitando os termos da moda. Que é um trabalho certamente lento e analítico, a exigir conceitos, intenções explicativas. E que tem que ser calibrado, comedido, apesar das urgências, desconfiando das urgências. Ou seja, que a compreensão incide sobre parcelas do real, seus fragmentos. E que esta é a única forma competente de olhar e de concluir. No fundo, a única forma de pensar, de analisar.
É nesse caminho, frutuoso mas nada publicitário / propagandístico, que se poderá refutar a visão da sociedade como mero palco de desenvolvimento, como apenas objecto de um projecto de desenvolvimento, como se matéria-prima fosse. Encarando-a, encarando o país, pelo conhecimento da sua complexa riqueza. E às suas múltiplas parcelas, aos seus múltiplos agentes, com as suas características, saberes e aspirações localizados. Assim, só assim, elegendo a sociedade como a verdadeira autora, a verdadeira sujeita de desenvolvimento.
Num mundo apressado, e como tal distraído, convém muito, é até urgente, ouvir e ler Ana Loforte.
jpt

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