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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

17 junho 2014

É o seu décimo primeiro livro. Primeiro foram os contos em “Xitala-Mati”, obra publicada em 1987. Seguiram-se depois "Magustana" (novela-1992), “A Noiva de Kebera” (contos 1994), “A Rosa Xintimana” (romance 2001), “O Domador de Burros” (contos 2003), “Meledina ou a Estória duma Prostituta” (romance 2004), “A Metamorfose” (contos 2005), “Contos Rústicos” (contos 2007), “Contravenção, uma História de Amor em Tempo de Guerra” (romance 2008), Caderno de Memórias, Vol I” (contos 2010) e o recém lançado livro de prosa “Mitos – histórias de espiritualidades” a que debruçamos neste artigo.
Estamos a falar de Aldino Muianga, nascido a 1 de Maio de 1950, considerado um autor impossível de se prever o que vai lançar e quando o vai fazer. Mas há quem o tenta decifrar.
Felipe Matusse e Nataniel Ngomane escalam a vasta obra deste autor, este último que vai mais longe, ao colocar Aldino Muianga ao lado de outras duas ilustres figuras da Literatura Moçambicana – Aníbal Aleluia e Paulina Chiziane.
Estas comparações surgem mesmo a propósito do novo lançamento de Aldino Muianga, da obra “Mitos – histórias de espiritualidade” – uma consagração deste escritor como um autor do além. Servindo-se do ser médico, que o é há longos anos, para espreitar outras medicinas capazes de tratar outras doenças, que ascendem ao meio físico humano – o espírito. E assim navega Muianga, desta vez em estórias curiosíssimas que se podem considerar da tradição moçambicana, mas que em algum momento, se associam ao obscurantismo, mesmo que uma considerável maioria a valorize.
Aliás, mesmo sem querer esquivar do assunto em tratamento neste artigo, vale a pena recordar que há dias, quando se celebrava o dia da medicina tradicional, foram divulgados dados que indicam claramente a associação dos moçambicanos a esta medicina de que se serve cerca de 70 por cento de concidadãos nossos.
Voltando ao assunto, Aldino Muianga, segundo estas duas figuras ligadas à nossa literatura e não só, demonstram que é de facto um perito na matéria, de acordo com o meio em que nasceu e cresceu (bairro Indígena, actualmente chamado Munhuana) e do trabalho que faz.
ESCRITA QUE REVELA A NOSSA IDENTIDADE
Para Filipe Matusse, a quem coube a apresentação do livro, Aldino Muianga é um autor no qual se revela a moçambicanidade e em “Mitos – histórias de espiritualidade” encontramos “uma nova proposta que aborda a nossa essência como seres humanos, porque nós somos seres biológicos, sociais, espirituais e psíquicos. Então, Aldino Muanga neste livro foi captar a dimensão espiritual e escorrer a volta dela”.
Matusse vai mais longe ao considerar a obra um “manual” em que se pode achar respostas daquilo que sempre quisemos saber como “por que é que existo, vale a pena realmente viver?” e conclui : “é um livro que nos apazigua, nos leva a um encontro connosco próprios.”
Mas também na óptica de Matusse, Aldino Muianga é uma referência da nossa literatura e, como médico/escritor, constitui uma figura que desbravou o caminho que muitos outros médicos seguem.
“Existe mais dois ou três médicos já com livros no país, mas ele foi o primeiro e todos estes o seguem. Quando publicou o seu primeiro livro em 1987, eu estava entrar na faculdade e já o tinha como referência.”
Comprometido com a causa da escrita
Por seu turno, o académico Nataniel Ngomane considera Aldino Muianga como um escritor de grande dimensão, isto porque tem um percurso e coerência na sua entrega na arte de escrever, facto que é comprovado pela sua vasta publicação literária.
Entretanto, Ngomane explica que há grandes autores que se tornaram grandes apenas por um único livro, o caso de Luís Bernardo Honwana, mas este de Aldino tem a ver com a perseverança e entrega na escrita.
“Mas também é grande autor porque ele consegue fazer nos seus livros, aquilo que se quer que a literatura faça. Que é, de alguma forma, mostrar muitos possíveis e aproveitar esses muitos possíveis para criar imaginários reais. E ele consegue.
Os textos de Aldino Muianga, particularmente aqueles em que retrata os subúrbios de Lourenço Marques (Maputo), conseguem criar o imaginário real desses cenários.”
Nataniel Ngomane compara Aldino Muianga com outros autores moçambicanos como José Craveirinha, Aníbal Aleluia e Paulina Chiziane.
Segundo o académico, há um elemento comum a todos eles que é o compromisso com o País, ao trazerem por dentro dos seus textos as diversas realidades moçambicanas.
“Da forma como eles escrevem, embora cada um o faça da sua maneira, colocando-os juntos, nós percebemos que há, a partir desses autores, uma construção suficiente de um imaginário da nação, de um imaginário cultural e esse imaginário acaba construindo nos leitores um imaginário da coesão nacional, portanto, a ideia da nação e de uma identidade.”
Contudo, a grande comparação que Nataniel Ngomane faz do Aldino é com Aníbal Aleluia.
“Não necessariamente o Craveirinha, porque os dois exploram antropologicamente o nosso mundo, trazem ao de cima, as nossas crenças, preocupações e inquietações. “Quando estou doente aonde vou? Vou ao médico (hospital) ou ao curandeiro? Alguém morre e tenho preocupações sociais, vou à campa de um familiar para poder sossegar o meu espírito. Isso é explorado por esses dois autores.”
As ideias de Nataniel Nogmane, que é professor de Literatura Moçambicana na Faculdade de Letras e Ciências Sociais e Director da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade Eduardo Mondlane, levam-no a comparar ainda o autor com Paulina Chiziane, por que esta também explora a espititualidade.
Aldino Muianga, o Aníbal e a Paulina desenvolvem esses temas. Estes são autores que exploram esse lado com mais veemência.
Mas, Ngomane avança outros nomes como Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa e Suleimane Cassamo que entram nessas histórias. Tal como acontece com a Lília Momplé e Calane da Silva.
“Mas o Aníbal, Aldino e Paulina exploram de uma forma mais profunda e em obras singulares. É isso que me faz os colocar juntos. Há várias linhas que colocam o Aldino Muianga ao lado de outros autores.
Feitas estas análises, Ngomane conclui que estamos perante um autor de obrigatória leitura por que contribui para a imagem de Moçambique não só como País, mas uma imagem das crenças moçambicanas, hábitos, sonhos, preocupações, organização social, cultural e religiosa.
“É como se fosse um cartão postal, uma radiografia da nossa sociedade. E a vivência que ele tem no âmbito da medicina, como médico a receber doentes desde que se formou há mais de 25 anos. É uma experiência fundamental porque a partir daí ele pode construir várias histórias que reflectem de alguma maneira, o jeito de pensar desses pacientes.”, considerou Ngomane.
E reflectir isso nos textos é, de acordo com o académico, uma forma de produzir um desenho de Moçambique e é importante que nós conheçamos esse desenho para sabermos quem somos, para onde vamos e para onde nós queremos ir.
Por causa disso, a Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane (FLCS-UEM), tem, no curso de Literatura Moçambicana, uma lista de textos literários moçambicanos em que está inclusa a obra “O Domador de Burros”, de Aldino Muianga.
Mas a nossa fonte refere que a outros níveis mais acima, nós começamos a introduzir mais livros deste autor para que o estudante tenha um leque de escolhas e poder trabalhar com um deles.
“Mas já vínhamos fazendo isto com vários autores, como é o caso de Ungulani Ba Ka Khosa, Paulina Chiziane e Mia Couto, mas sentimos uma necessidade de ir introduzindo mais escritores no leque de escolhas de estudantes. Fazendo isso, damos uma grande oportunidade aos estudantes de ter várias escolhas, mas ao mesmo tempo estamos a valorizar institucionalmente os nossos autores. Todos nós conhecemos Machado de Assis, Fernando Pessoa, mas não conhecenmos os próprios nossos autores. É papel da universidade contribuir na divulgação desses autores.” Concluiu.


O REGRESSO DO MORTO: ORALIDADE, MEMÓRIA E TRADIÇÃO*
Este ensaio tem como objeto de estudo o livro O Regresso do Morto, de Suleiman Cassamo, autor moçambicano. Serão discutidos alguns aspectos da oralidade, memória e tradição como constituintes da identidade nacional.

BREVÍSSIMO HISTÓRICO DA LITERATURA MOÇAMBICANA
O apego à terra é uma característica marcante nos moradores das sociedades rurais. Na maior parte das sociedades africanas a vida é rural. O processo de urbanização está a ocorrer gradualmente após as independências e fim das guerras civis, daí a literatura africana ser repleta de cenas de ambientes rurais. Nestes ambientes não urbanizados são guardadas as tradições: expressas no respeito aos mais velhos, na importância da palavra falada (seja no acto de falar agindo no mundo, seja no acto de contar, a fim de modificar ou entender alguma coisa do mundo), na valorização dos elementos da natureza, na reverência aos antepassados falecidos, enfim, em todos os elementos que de alguma forma identificam os grupos formadores de África.
Moçambique é independente desde 1975 e livre da guerra civil desde 1992, ou seja, é uma sociedade que ainda está se acostumando com o facto de ser nação, no sentido moderno.
Está dividida entre a vida rural e a vida urbana. Aqueles que abandonaram o campo, para empreender uma nova vida na cidade, geralmente acabam se afastando dos princípios e costumes da vida rural, os quais são fundamentais na construção da identidade cultural do país.
A assimilação cultural exigida para a ascensão na escala social obriga os moçambicanos a abandonarem as suas raízes culturais e religiosas. Para ser assimilado pela cultura branca europeia (dominante mesmo após o processo de independência) é necessário falar português, deixando de lado os dialetos do país; estar inserido no mundo letrado e de alguma forma abandonando as raízes da oralidade; e aceitar os dogmas cristãos, contrários aos princípios das religiões locais. Estas e outras práticas produzem um processo de “branqueamento cultural”, pois obrigam o africano a deixar as suas vivências e aceitar o estilo de vida importado da Europa e de outros lugares.
Este processo de desenraizamento é doloroso, pois, mesmo quando as pessoas optam por uma vida na cidade e de alguma forma aceitam as regras propostas pelo sistema dominante, a dor é sentida: há uma quebra no sistema de valores individuais e grupais. Essa dor está sendo registrada na literatura e nas artes em geral.
As primeiras manifestações literárias nos meados de 1975 tinham o intuito de convocar os moçambicanos leitores e os leitores de literatura moçambicana a repensar as suas posições políticas sobre o país. Nesta época temos a presença de Luis Bernardo Honwana, José Craveirinha e outros, que, através da literatura, levantaram a bandeira da independência, denunciando o estado de abandono e a crise que havia se instaurado com a saída dos portugueses do território moçambicano.
Os anos passaram e outras pessoas surgiram no espaço literário, porém a bandeira agora não é de convocação, mas sim de denúncia, pois Moçambique sofrera um processo de abandono por parte da ONU, durante a guerra civil que assolou o país. Os primeiros livros de Mia Couto e de Noémia de Souza são reveladores dos aspectos históricos deste momento. Em Terra Sonâmbula,Mia Couto (1992) apresenta a situação daqueles que fogem da guerra civil, começando a viver o desapego da terra e da vida rural: “Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.” (COUTO, 1992. p 15)
Quinze anos marcam o fim da guerra civil em Moçambique, o cenário teve algumas modificações, porém as questões relativas à tradição e a terra ainda são importantes. O processo de assimilação não é uma prática tranqüila, pois os moradores do mundo rural ainda precisam abandonar suas raízes tradicionais. A literatura continua o seu registro, porém a situação não é de apenas denúncia, o papel dos escritores da atualidade é também o de resistir à imposição da cultura européia. Muitos são os nomes que surgem no cenário da atualidade: Mia Couto continua escrevendo, e talvez seja o mais conhecido escritor moçambicano; Paulina Chiziane tem quatro romances publicados; vários poetas e prosadores têm surgido, entre eles Suleiman Cassamo, autor de quatro livros, publicados em Moçambique e Portugal.
É sobre Suleiman Cassamo e seu livro O Regresso do Morto (1997) que passaremos a deter nosso olhar neste ensaio.
VISÃO PANORÂMICA DE O Regresso do Morto (1997)
O Regresso do Morto é uma coletânea de contos, publicada em 1989 em Moçambique, onde recebeu o Prêmio da Associação dos Escritores. Em 1997 foi publicado em Portugal e já obteve uma tradução para o francês. A obra é marcada por um profundo amor pela terra: a terra vista como a mãe, como símbolo de vida e guardiã dos ancestrais. O autor dedica o livro aos seus pais: “A meus pais: porque o sangue é veículo da memória” (CASSAMO,1997 p.07).
Já na dedicatória do livro percebe-se a importância dos antepassados, marcada não só na dedicatória aos pais, mas principalmente na maneira como se refere ao sangue e à memória. A memória, ao ser conduzida pelo sangue, simboliza a vitalidade e força contida num passado; o sangue, veículo da memória, deixa de ser apenas o elemento natural do ser humano, assume o compromisso de transmitir às gerações vindouras o passado de uma família, comunidade, ou nação.
Há, na abertura do livro, uma mensagem aos leitores, onde o autor expressa o que deseja oferecer através de seu livro: “Que da leitura destes contos vos fique um leve, levíssimo sabor a terra. O sabor da nossa terra” (CASSAMO,1997, p.09). Talvez a principal pergunta que nos surja desta nota inicial seja: “Quem é este leitor?”. Uma primeira tentative de resposta, talvez aponte para um leitor não-moçambicano. Pensamos, porém que o escritor se refere tanto ao leitor estrangeiro, quanto ao leitor nacional, pois o livro se presta a dar um sabor da terra: uma oportunidade para o estrangeiro degustar, e para o moçambicano um renovo em seu prazer. Inferimos que a literatura, neste caso, o livro de CASSAMO (1997), passa a ser “um molho” que, além de incrementar o sabor, faz aumentar o apetite por um alimento já conhecido – a terra de Moçambique.
Os dez contos que compõem o livro trazem aspectos da vida urbana e rural. Ao apresentar a vida nas cidades, o autor ora apresenta os moradores bem sucedidos, ora os habitantes das periferias, com suas tristezas ou dificuldades. Nestes contos, o autor marca a ambigüidade da vida urbana, que impõe o afastamento das tradições, mas não consegue eliminar, com os encantos da pós-modernidade, os conhecimentos e saberes tradicionais.
A temática central do livro é a morte, que ora representa o fim natural da vida, ora simboliza as dificuldades e percalços cotidianos. Um segundo tema que pode ser apreendido é a situação da mulher: o autor apresenta as mulheres como portadoras de força motriz na sociedade. Pensamos que as mulheres podem significar vida, se opondo, desta forma, à morte.
Os contos são curtos, apenas um é narrado em primeira pessoa, tendo um aspect epistolar – o narrador é claramente culto e assimilado. Os outros nove contos são narrados emterceira pessoa, dando-nos a sensação de estar diante de um contador de histórias. Os elementos da natureza são constituintes do universo literário africano, pois as culturas africanas estabelecem uma relação de valoração e intimidade com a natureza. Em O Regresso do morto isso não é diferente, porém o autor escolhe o elemento terra como principal em suas narrativas.
Após uma brevíssima revisão da história literária de Moçambique, e uma visão panorâmica da obra O Regresso do Morto, buscaremos assinalar aspectos relevantes da tradição, da oralidade e da memória, expressos nesta obra. Dividiremos nossa análise em duas partes: primeiramente pensaremos sobre os movimentos da tradição na sociedade moçambicana; logo após, discutiremos alguns aspectos relativos à memória e à oralidade na constituição da identidade do país.
OS MOVIMENTOS DA TRADIÇÃO NA SOCIEDADE MOÇAMBICANA
Zygmunt Bauman (1999) postula que a modernidade é marcada por uma profunda ambivalência, ou seja, pela presença concomitante de juízos contraditórios sobre o mesmo objeto. Os indivíduos modernos são atraídos simultaneamente por dois impulsos opostos, deixando-os sem saber qual adotar. Esse desejo de atender a ambos os impulsos, coloca o sujeito num constante estado de tensão e de indecisão. A dúvida gera a divisão, advindo daí uma das palavras chaves da modernidade: fragmentação. A sociedade moderna, fragmentada, apresenta um homem cindido em seus conceitos, tornando-o agitado, inquieto ou paralisado, pois não pode se firmar naquilo que acredita, visto que, muitas vezes é ultrapassado, e, no entanto, não sente segurança diante do novo porque ainda o desconhece. O tempo presente se constitui em verdadeira guerra, onde passado e futuro lutam, sendo perdedor no conflito o homem moderno.
A obra de CASSAMO (1997) nos apresenta este homem cindido que habita os diversos lugares de Moçambique. Em muitos contos de O Regresso do Morto, este sujeito fragmentário aparece, mas cremos que o mais chocante e que melhor exemplifica essa fragmentação da modernidade é o conto “Madalena, xiluva do meu coração”. Fabião (narrador e protagonista do conto) abandonou sua terra, suas raízes e seu amor em busca da vida na cidade e da assimilação cultural: em troca recebeu a tristeza de nem ao menos ter coragem para escrever uma carta à mulher que ama. Esta personagem exemplifica a distância que existe entre o mundo urbano e rural, e o quanto dói estar inserido na cultura moderna.
Fabião, ao ser assimilado, passa a atender pelo nome de Neves e a ter costumes de branco.
Não pode assim dedicar seu amor à Madalena, já que ela ficou no campo e é ignorante no ambiente urbano. Ao justificar o abandono de Madalena, desculpa também à abdicação das tradições, pois, de certa forma, ele fora obrigado a recusar suas raízes, a fim de ver o país rescer e acompanhar o desenvolvimento. Fabião e Neves exemplificam a cisão ou fragmentação da modernidade, a ambivalência de conceitos num mesmo sujeito. Em um mesmo corpo habita o Fabião, que ama Madalena, as tradições, e a terra; mas há também o Neves, que reconhece que, “Estudar é ainda necessário. Fabião busca nos livros o saber para forjar o ferro da tua enxada, o cobre para tuas pulseiras de Nhancuave, teu nome de criança que vem dos avôs-dos-avôs, para fazer o teu sabão, o pente e sapatos para pôr e vir no Xilunguini.” (CASSAMO, 1997 p. 42).
A tradição (do latim traditio, significa entrega) resiste em muitos outros aspectos do cotidiano moçambicano: no significado dos sonhos, na aparição de fantasmas, na expressão dos elementos da natureza, etc. O conto “Vovó Velina” é outro revelador deste traço ambivalente dos sujeitos, visto que um casal assimilado, da cidade, espera um bebê. Presumese que por viverem no ambiente urbano e serem letrados têm condições de saber o sexo do bebê por meios modernos, porém a personagem mãe revela: “Mamana, não falta muito vou ter bebé. Sonhei, vai ser minina xonguile parece xiluva e xiphatiphati parece nyeleti. Nome dela vai ser Velina”.(CASSAMO, 1997. p. 71). Embora a vida da cidade tenha furtado muitas crenças tradicionais do casal, conforme o narrador do conto nos apresenta, ela não consegue apagar o sentido que os sonhos têm nesta cultura. Nas culturas tradicionais, os sonhos não são apenas os postulados freudianos: expressão do subconsciente. Eles assumem o papel de vidente ou profeta, visto que são anunciadores de coisas boas ou más. O sonho tanto revela o sexo do bebê, trazendo a boa notícia que muda o ânimo de Vovó Velina, quanto é portador de maus agouros, como podemos ver no conto “José, pobre pai natal”. Neste conto é através do sonho, chamado de pesadelo, que a personagem Maria vê prenunciada a morte de seu marido José:
Levava uma bacia na cabeça e gritava: Ama-rhumbo! Ama-rhumbo! Ama-rhumbo!... Ia a todo
lado e ninguém comprava. Fechavam portas e janelas, fugiam dela. A bacia crescia e pesava na
cabeça. Cansada, regressou. Pôs a bacia no chão. Oh, o que ela não viu!...
-Em vêgi de tripa, um morto, Senhora. A rir-me com dentes assim!... (CASSAMO, 1997. p.60)
Mencionamos que o autor estabelece, a partir do nosso ponto de vista, uma oposição entre vida e morte, sendo a vida expressa nas personagens femininas. Laurinda, personagem central, do segundo conto do livro, é moradora da periferia. Laurinda precisa levar pão para sua família – e isto quase lhe custa a própria vida e a dignidade, porém vemos inscrita nesta mulher uma força capaz de superar os maiores obstáculos para preservar a família e a si mesma. Em sua espera pelo pão, ela faz reflexões sobre a vida cotidiana, e intervém nas situações corriqueiras indicando a força e o desejo que tem de manter-se honesta, mesmo quando está em jogo a sobrevivência de sua família.
Laurinda mordeu, outra vez, o lábio, com força. Sentiu o sangue na língua. Que o sangue sabia a sal, há muito, sabia. Mas misturado com raiva tinha um sabor novo, um sabor de merda.
Explodiu:
-Sacana! Eu não me vende com pãozinho! Eu não é puta, ouviu? Tem marido, tem filhos, eu.
Eu... eu... – batia com a mão no peoti – eu não é cadela , ouviu? Você és moluene! Vai-te
subir, moluene! Mbuianguana! Agora qu’star massar tricô quer dormir com mulher de dono.
Não tem virgonha. ( CASSAMO, 1997 p. 23)
O autor registra o idioma de Laurinda: o português, língua oficial de Moçambique, porém repleto de expressões das línguas locais. Este imbricamento de línguas assinala mais um ponto de resistência das culturais tradicionais à imposição da modernidade. A convivência das diversas línguas em Moçambique sabe-se que ainda não é harmônica, pois é necessário falar português, mas segundo o Professor Lourenço do Rosário:
Da mesma maneira que o português no Brasil, com toda a sua plasticidade, consegue hoje, responder e corresponder à tropicalidade do brasileiro, o português africano (de cada país africano), se for amparado e acompanhado, poderá saber representar e bem a ritmicidade africana. (ROSÁRIO, 2007 p.13)
A temática feminina está presente em vários contos desta obra, embora o autor não dê voz a essa mulher, suas histórias sempre aparecem na voz do narrador. Inferimos que o narrador, pelo distanciamento que tem das personagens femininas, é um sujeito masculino. O conto que abre livro evoca a prática do tradicional lobolo, na qual o homem oferece alguns bens à família da esposa, tornando-se assim proprietário dela. Ao marcar a experiência do lobolo, mais recorrente nas camadas mais pobres, a narrativa demonstra a existência de dois discursos antagônicos: o discurso feminista, contrário à coisificação da mulher, e o discurso tradicional resistindo a esse e a outros discursos.
Um ano passou. O marido começou com zangas. Diz Nglina não nasce filhos. Não sabe porque a lobolou. Não é mulher. Batea-a por tudo e por nada. Com cinto que tem ferro, com paus, com socos , com pontapés, com tudo. Coitadinha, Nglina, era uma minina xonguile mas agora ficou velha num ano só. Ngilina é xiluva que murclhou.
O corpo dói, sim, mas dói é muito muito o coração. O coração ‘sta inchado, vai rebentar no peito. Nglina, tu vai morrer. Pode ir para casa descansar sofrimento. Mas qual manera se o pai comeu todo o dinheiro do lobolo no nhonthontho e no vinho do monhé da vila? Yotatanéé, é melhor não pensar nada. (CASSAMO, 1997 p. 17)
A personagem central desta narrativa não parece ser uma mulher consciente de que nela estejam impressos conceitos divergentes sobre a constituição familiar, especificamente a feminina, porém ela vive o conflito comum do homem moderno, o qual apontamos no início desta sessão: a cisão. Ela acaba conseguindo sua liberdade, infelizmente, através da morte.
Os mitos e histórias de Moçambique são registrados ao longo dos contos. Em vários momentos eles aparecem, demonstrando que este processo de modernização e assimilação cultural pode até conseguir furtar algumas pessoas das suas origens, mas não é capaz de apagar delas as marcas impressas pela memória.
O conjunto de contos nos coloca em volta da fogueira, diante do griot (contador de história). Em muitos contos o narrador se transforma no contador de histórias, conforme veremos adiante, ao falarmos sobre oralidade. Esse movimento da literatura, ou seja, do escrito, demonstra, novamente, o sujeito ambivalente. O escritor recria no seu narrador a figura do contador tradicional, o que nos mostra que, junto da necessidade de belas histórias escritas, convive a necessidade de belas histórias faladas.
A terra constitui um elemento importantíssimo para o conjunto de contos de CASSAMO (1997), pois os homens mantêm uma ligação profunda com ela. A terra representa a mãe geradora de vida, ao mesmo tempo em que é aquela que encerra um ciclo de vida para dar início a outro na morte. Esta terra, sagrada para a maior parte dos africanos, tem sido furtada no processo de urbanização e de assimilação cultural do país. O autor registra este movimento de desapego dos homens a sua mãe terra, conseqüentemente às suas tradições. Em “O regresso do morto” (conto que nomeia o livro) vimos que a personagem principal parte para trabalhar na cidade, ainda muito jovem. O moço sai da sua terra sem a menor reverência às suas raízes, pois nem mesmo se despede de sua mãe. Ao regressar (após a noticia de sua suposta morte) não tem o reconhecimento dos seus, causa espanto, torna-se um fantasma naquele mundo, porém a mãe, representando a terra e as tradições, o reconhece.
Queremos fechar esta parte do trabalho contrapondo dois conceitos: o moderno de BAUMAN (1999) e o tradicional, proposto por CASSAMO (1997) no conto “O regresso do morto”. BAUMAN (1999) após analisar os tempos modernos, aponta a pós-modernidade como saída, mas não consegue ser otimista. O professor ocidental afirma: “o que é realmente novo na nossa atual situação, em outras palavras, é o nosso ponto de observação”.(BAUMAN, 1999, p. 288) Desta forma ele não dá muitas expectativas para o homem livrar-se do conflito imposto pela ambivalência de conceitos. Cassamo (também professor universitário em Moçambique), através do narrador em “O regresso do morto”, diz que, quando o jovem fitou sua mãe rachando lenha, “o fogo avivou os olhos mortos” (CASSAMO, 1997 p.82). Vemos nisso uma metáfora de vida e de liberdade que o regresso à casa e às tradições pode dar ao homem. Estamos diante de dois conceitos, não poderia ser diferente em tempos modernos ou pós-modernos, cabe a cada um fazer sua opção.
MEMÓRIA E ORALIDADE NA IDENTIDADE CULTURAL MOÇAMBICANA
“A memória é a mais épica de todas as faculdades” (BENJAMIN, 1985, p. 210): sendo assim, é forma discursiva que recria e fixa vivências, transformando-as em interpretações que atravessam tempos e desdobram realidades. Desta forma, o passado pode apresentar diversas versões, está instalado entre a memória e a história e encontra na linguagem a sustentação que "reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho, a imagem lembrada e as imagens da vigília atual" (BOSI, 1996, p.56).
Para os africanos, particularmente, a memória tem um papel fundamental para a preservação da cultura, pois na África a tradição e a história foram, durante muito tempo, repassadas aos jovens, basicamente, por via oral, assim a ausência de memória equivaleria à perda de parte da história e das tradições. Os velhos são os cronistas dos acontecimentos que devem ser passados aos jovens. Ao contarem as histórias passadas, eles asseguram o viver da tradição. A figura do contador de histórias passa a um lugar de destaque, pois nela se encerram não apenas os saberes que precisam ser repassados, mas também as formas de repasse. O contador de histórias (griot) tem um papel que vai além do contar, visto que ele também deve formar outros contadores, pois, deste modo, garantirá a perpetuação das tradições.
Ao nos voltarmos para a obra O regresso do morto de CASSAMO (1997), percebemos este cuidado, ou seja, o autor instala, na figura do narrador, a responsabilidade de perpetuar a tradição. Como falamos na abertura de nosso texto, o início do livro (dedicatória e epígrafe) já aponta para isso, mas é na figura do narrador que o autor consolida o seu projeto. O narrador de Cassamo seduz o leitor de forma que este tem desejo de ouvi-lo, é impossível a realização da história sem a sua voz. Há interação entre o narrador/contador e os seus leitores/ouvintes: homens, mulheres ou crianças o ouvirão com atenção, pois ele cria um ambiente que permite muitas leituras e aprendizados com uma única história. O conto “Nyeleti” exemplifica isto.
Esse conto trata de uma temática básica: dois jovens disputando o amor de uma moça. Um é amado, o outro rejeitado. O amado parte para fazer fortuna, e o rejeitado aproveitando a ausência dele, usa um feitiço que encanta a jovem, e esta casa com ele. Quando o amado retorna, há uma disputa, e o final não é feliz, pois a moça acaba ficando sem nenhum dos dois.
O narrador seduz o leitor, instaurando um clima poético, pois as personagens e seus atos são descritos a partir de metáforas da natureza. Na abertura do conto, ele convida o seu interlocutor a prestar atenção numa papaieira, com isso ele exemplifica o espaço de sua história. O narrador nos coloca tanto na posição de ouvintes, sentados no chão, quanto na posição de leitores que podem imaginar o cenário. Queremos nos ater, contudo, às inúmeras temáticas possíveis de serem depreendidas desta história. Sabemos que muitos são os sentidos que um texto pode ter, mas, particularmente neste conto, pensamos em alguns sentidos pedagógicos que podem ser transmitidos numa contação para público misto. Há toda uma crítica à partida do jovem amado, pois este abandona sua terra e sua amada para ir em busca de dinheiro, assim desvincula-se das tradições, abrindo espaço para que o segundo entre em jogo. Malatana, o rejeitado, tenta seduzir Nyeleti, porém não é bem sucedido, então decide partir e buscar artifícios religiosos: o feitiço. Assim o rejeitado passa a amado, porém, não age de forma honesta, pois ele sabe que a jovem não o ama e que já fora firmado um compromisso de lobolo. Nyeleti também erra, pois na ausência do amado ficara ouvindo a voz de Malatana, ou seja, deixando que seu coração tivesse esperanças, quando ela estava comprometida com o jovem Foliche.
Em “Nyeleti”, o narrador, nos fala do respeito às entidades sagradas da natureza, pois é na floresta e nas águas que Malatana busca o feitiço. Ao descrever Foliche voltando agressivo como um tsotsi, relembra que o país é formado por diversos grupos, cada um com suas características. O conto é pedagógico, no sentido de ensinar aos mais jovens algumas tradições: cuidado com a natureza, pois ela abriga o sagrado; o uso do feitiço não pode ser de qualquer forma; o poder da palavra está acima de tudo, pois havia compromisso de lobolo, o qual foi quebrado quando Nyeleti abandonou a casa dos pais para viver com Malatana.
Independente de quem seja o público, o conto se presta a ensinar alguma coisa, seja para uma moça ou para um moço que deseje casar, ou ainda para uma criança ou um velho, que ouvirá a história pelo seu encanto de ser história.
Ana Mafalda Leite (1998) prefere usar o termo oralidades, que permitiria dar conta de diferenciar a maneira como os escritores se relacionam com as histórias orais e com as línguas. Ela postula que existem três tipos de apropriação da oralidade: oralizar a lingual portuguesa; hibridizar, através da recriação sintática e lexical; ou interseccionar com as diferentes línguas africanas. Percebemos que Cassamo faz uso da intersecção, pois ele constrói as frases usando palavras de diferentes línguas. Faz uso de onomatopéias, e escreve algumas palavras de forma que venham marcar cada segmento do texto com um ritmo diferenciado. Além disso, o escritor insere palavras inglesas nos textos, as quais, geralmente, são usadas nas atividades financeiras de compra e venda de produtos ou de força de trabalho.
Ao final do livro é inserido um glossário, pois a ausência deste impossibilitaria aos de for a terem uma boa compreensão do texto.
As estratégias narrativas usadas pelo autor combinam elementos da modernidade e da tradição. Da modernidade, usa a fragmentação: seja nos aspectos lingüísticos, seja na construção das histórias; da tradição, recupera os aspectos culturais fundamentais, ao mesmo tempo em que questiona as heranças negativas ainda presentes na sociedade moçambicana.
Cassamo, através deste narrador, se constitui contador de histórias, inscrevendo em seus textos uma visão crítica tanto do contexto social, quanto da própria arte de narrar e escrever.
Pelo viés de Stuart Hall (2006), uma das figuras mais importantes na área de estudos sociais da atualidade, uma cultura nacional é uma comunidade imaginada. As nações são formadas por diversos povos, logo abrigam diversas culturas. Em cada nação há uma cultura dominante, e geralmente, a sua dominação se dá ou se deu, através de processos violentos. Ao discutirmos a identidade de uma nação, “devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais contribuem para ‘costurar’ as diferenças numa única identidade”. (HALL, 2006 p. 65)
O contexto africano, mais especificamente moçambicano, vive este processo de luta para a construção desta cultura nacional. A literatura tem registrado os inúmeros embates culturais que o país tem vivido. Ao olhar a obra de Cassamo, e através dela, pensarmos este momento de construção da identidade nacional, verificamos que a sociedade atual tem lutado contra a globalização, que tenta exterminar todas as culturas. Sabemos que a luta é desigual, e que a oponente globalização possui armas poderosas, porém Stuart Hall (2006, p. 58) nos aponta que “as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança” são os conceitos constituintes de uma comunidade imaginada.
A Literatura, junto com outras artes e em parceria com algumas ciências, tem buscado construir esta comunidade imaginada. Na obra de CASSAMO (1997), percebemos que há voz para homens e mulheres, não fazendo distinção de gêneros; espaço para jovens e velhos, abrindo mão dos preconceitos de idade; ambiente para brancos e negros, independente dos julgamentos errôneos a respeito de raça; discussão dos diversos grupos culturais e religiosos do país, sem julgamento de superioridade ou inferioridade; convivência de oralidade e escrita, não atribuindo a uma ou outra, aspectos mais ou menos positivos; e por fim, lugar para modernidade e tradição, discutindo as contribuições de ambas para uma vida melhor.
A memória e a oralidade, desta forma, contribuem para o processo de construção da identidade moçambicana, no momento em que homens e mulheres falam como Lucas, personagem central do conto Casamento de um casado: “- É do meu primeiro casamento: lutar pela nossa terra!” (CASSAMO, 1997 p.77)

HARMONIA CONTRADITÓRIA: PALAVRAS FINAIS
O movimento de regresso às tradições e a terra é a ênfase desta obra de Suleiman Cassamo. Nela o autor apresenta uma mescla de culturas que dividem o mesmo espaço:
Moçambique. Através do hibridismo cultural ele procura afirmar uma identidade nacional moçambicana: é na diversidade cultural do país que o autor encontra os ingredientes de seus contos, que darão novo sabor à terra.
Benjamin postula que é necessário que a história seja desvendada, não apenas os fatos históricos que se encontram registrados nos livros oficiais, mas também aqueles que correspondem aos relatos orais do povo. Segundo ele, é preciso recuperar o imaginário dos oprimidos, armazenado nos mitos, nas lendas, nas crenças e nos testemunhos orais.
Percebemos que Cassamo busca, através da memória, recuperar os fatos importantes da história e da tradição moçambicana. O autor promove um encontro de culturas ao colocar num mesmo espaço, o livro: as histórias do patrimônio oral e os relatos das dificuldades cotidianas da vida no campo ou na cidade.
A concepção de tradicional na obra de Cassamo não pode ser compreendida como conservadorismo simplesmente, visto que ela abre espaço para o desenvolvimento de uma outra versão da História de Moçambique, contada e experimentada pelos sujeitos cindidos que a (pós) modernidade tem criado. Aos leitores/ouvintes resta decidir entre os encantos modernos e a tradição; ou ainda buscar este “novo”, fusão do moderno e do tradicional, que é proposto por Homi Bhabha:
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “novo” que não seja parte de um continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estático; ela renova o passado, refigurando-o como um “entre-lugar” contigente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia de viver. (BHABHA, 2007 p.27)
A construção de identidades nacionais modernas, a partir do que expusemos, deve privilegiar o contato dos diferentes, numa relação de paridade. A literatura e as artes têm apontado para a existência de uma harmonia entre idéias contraditórias. Cremos que, apesar de parecer uma idéia romântica, essa é a única porta para um mundo “pós-moderno” melhor.
*Este texto é uma readaptação do texto O regresso do morto: a vida escondida na obscuridade da morte, apresentado como trabalho de conclusão da Disciplina: Oralidade Memória e Tradição (PPG-Letras/UFRGS) no em 2007/01. Foi comunicado e publicado no III Encontro de Professores Literatura Africana na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
** Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da referida universidade, na especialidade Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Literaturas Luso-africanas.

Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1999.
BENJAMIN, Walter. KOTHE, Flávio (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985
(Coleção Grandes Cientistas Sociais).
BHABHA, Hommi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhias das Letras, 1996.
CASSAMO, Suleiman. O regresso do morto. Lisboa: Ed. Caminho, 1997.
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Caminhos, 1992.
HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
LEITE, Ana Mafalda. Oralidades e escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Colibri, 1998.
MOREIRA, Terezinha Taborda. O vão da voz: a metamorfose do narrador na ficção
moçambicana. Belo Horizonte: Ed. PUC-Minas, 2005.
ROSÁRIO, Lourenço. Singularidades II. Maputo: Texto Editores, 2007.


05 junho 2014



A EXPRESSĂO artística e cultural Timbila, proclamada pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) a 25 de Novembro de 2005, Património Oral e Imaterial da Humanidade, foi atribuída esta segunda-feira o mais alto título honorífico da República de Moçambique: a Medalha Bagamoyo.

A atribuição desta medalha é em reconhecimento da sua contribuição sociológica no país e também para a consolidação da unidade nacional.
A cerimónia da entrega da medalha, que mereceu honras de Estado, foi dirigida pelo Presidente Armando Guebuza, na vila de Quissico, distrito de Zavala, no início da visita de trabalho em mais uma etapa da presidência aberta que termina amanhã na província de Inhambane.
Escolhida de um total de 64 candidaturas submetidas à UNESCO, em 2005, para o seu reconhecimento como obra patrimonial e intangível da humanidade, a Timbila é originária da região dos Chopi, na zona sul da província de Inhambane, sendo Quissico reconhecida como a sua capital.
Segundo o Presidente da República, o Estado decidiu atribuir igualmente o tão honroso galardão, que ficará registado nos anais da história de Moçambique, na memória de África e do mundo que o nosso país presta vénia à esta expressão artística cultural e, por seu intermédio, ao conhecimento local subjacente à construção tecnológica e melódica, bem como aos cidadãos que ao longo de gerações asseguraram a sua vitalidade. Aqui está subjacente a sua internacionalização como valioso contributo dos moçambicanos para a história e civilização do mundo.
Armando Guebuza disse, durante a cerimónia que movimentou diversas individualidades do país, da UNESCO, e membros do corpo diplomático acreditado em Maputo, que ao longo da dominação colonial alguns compatriotas, de forma engenhosa, serviram-se da Timbila para denunciar e resistir ao colonialismo português.
Igualmente faziam a transmissão de valores nobres da moçambicanidade, de educação social e de promoção da unidade nacional e da paz.
Enalteceu as instituições culturais e académicas, nacionais e estrangeiras que se esmeram na criação dos fundamentos científicos indispensáveis para a proclamação da Timbila como expressão artística nacional e internacional.
Na ocasião, o estadista moçambicano defendeu a necessidade de todos fazedores da cultura unirem esforços para a preservação e valorização desta cultura, através da protecção dos direitos autorais dos seus fazedores e executantes, aprofundar a pesquisa e divulgarem as suas potencialidades nela incorporadas.
Guebuza exortou ainda para que se dinamize as indústrias culturais, continuando, ao mesmo, a fazer a reposição dos efectivos do Mwenje, a planta usada para o fabrico da Timbila, no contexto das Iniciativas Presidenciais “Um Líder, uma floresta comunitária”, e “Um aluno, uma árvore em cada ano lectivo”.
“Ao prestarmos esta merecida homenagem à nossa Timbila, deixemo-nos banhar desta manifestação emblemática da nossa cultura, hoje e sempre. De forma inequívoca, o génio dos moçambicanos, o significado transcendental e sua originalidade e dimensão universal mereceram o reconhecimento internacional”, disse o Presidente Guebuza.
A Timbila, segundo Guebuza, apresenta-se com uma das emblemáticas expressões da nossa moçambicanidade, contribuindo por isso ao lado de outras expressões culturais, como fonte da auto-estima de todos, dando por isso razão para repetir-se vezes sem conta que vale a pena sermos moçambicanos.
“A técnica do seu fabrico, a sua apresentação como produto musical e a sua sonoridade singular, sublinham o nível de sofisticação do nosso povo e do grande avanço tecnológico e conceptual que alcançou há milénios”, disse Armando Guebuza, acrescentando que são esses atributos da Timbila que têm atraído musicólogos e outros estudiosos para Zavala, onde realizam os seus trabalhos de campo para testes académicos e para artigos de revistas de especialidades.
Convergem à vila de Quissico homens e mulheres das artes e culturas para se deleitarem do M’Saho, uma actividade cultural que se realiza todos anos entre 27 e 28 de Agosto, para recolherem material fotográfico, áudio e visual para produções literárias e outros estudos académicos.
Por causa do M’Saho, sublinhou o Presidente, Quissico tornou-se já um centro do turismo cultural atraindo gente de todo mundo, homens e mulheres que gostam da boa musica, tocada por executantes da primeira água.
INVESTIGAÇÃO NA FORJA
O Ministro da Cultura, Armando Artur, disse em Quissico durante a cerimónia de entronização da Timbila que o Governo está a trabalhar na investigação de outras expressões culturais e artísticas nacionais de forma a serem candidatas ao seu reconhecimento pela UNESCO.
Trata-se de Utsi, de Sofala; Mapiko, de Cabo delgado; Tufo, de Nampula; Xigubo e Marrabenta de Maputo e Gaza; e ainda Niketche, da Zambézia.
Aquele dirigente explicou que um dos requisitos fundamentais para que estas expressões artísticas culturais sejam reconhecidas internacionalmente é necessário que haja a nível nacional um trabalho de socialização destas artes de forma a despertar atenção das agências internacionais.
Apoio para fomento do mwenje
Custódio Petola, 67 anos, residente na localidade de Mavila, foi um dos fazedores da Timbila.
Bastante emocionado, Custódio Petola, casado e pai de oito filhos, disse que uma das formas para imortalizar esta arte é investir-se muito, não só na formação dos continuadores desta cultura nas escolas, mas também em outros locais.
Entende ser importante apoiar aqueles que demonstram vontade de fomentar o Mwenje, principal matéria-prima para o fabrico do tal valioso e cobiçado instrumento.

“Eu tenho em Mavila onde vivo, cerca de um hectare de mwenje, mas preciso de apoio de todos para aumentar a minha área de produção. Tenho muitas mudas desta planta, mas faltam-me meios para transportar, regar e produzir melhor esta importante árvore. Tenho planos de fazer uma escola não só para ensinar fazer timbila, tocar e dançar, mas quero ensinar a produzir o mwenje porque no dia que vamos ficar sem esta planta “era uma vez” timbila em Zavala e em todo o país”, disse.



A CIDADE de Macuti, na Ilha de Moçambique, está em risco de desaparecer. Tudo por causa de os moradores desta área da Ilha, deixarem de cobrir as suas residências com as folhas de palmeiras, conhecidas por macuti, a favor das chapas de zinco.
E esta não era a prática em toda aquela zona, que acabou sendo denominada por “Cidade de Macuti”, pelo facto de todas as residências ali existentes serem cobertas de macuti, que é o principal material usado pelos ilhéus na construção das suas casas.
Com efeito, segundo apurou a nossa Reportagem no local, a “Cidade de Macuti” pode deixar de existir porque as folhas das palmeiras estão a escassear na Ilha, para além de que as poucas que ainda existem são vendidas a preços incomportáveis para os moradores daquela zona, que acolhe a maior parte da população da Ilha de Moçambique.
Esta situação preocupa as autoridades locais por a zona ser uma das principais atracções turísticas, pois representa uma marca cultural desta parte da ilha.
O presidente do Município da Ilha de Moçambique, Saide Amur, disse que para mitigar o problema, criado pela escassez e o custo das folhas de palmeira, que chega a superar o das chapas de zinco, a Associação dos Amigos da Ilha de Moçambique está a subsidiar a aquisição daquele material.
Esta acção está a coberto do projecto denominado “Macuti Homestay” e é feito pela associação em coordenação com uma Organização Não-Governamental Tecno Serve. Para além de subsidiarem a aquisição de macuti, ajudam igualmente na reabilitação de algumas residências, tendo já intervido em pelo menos 20 delas.
Alguns moradores da Cidade de Macuti arrendam as suas casas para os turistas que visitam a Ilha de Moçambique, o que contribui para gerar renda para as respectivas famílias, melhorando, deste modo, as suas condições de vida.
 Divisão arquitectónica

A Ilha de Moçambique está dividida em duas partes: Uma denominada Cidade de “Macuti”, onde as cerca de 1200 casas, de construção precária, estão cobertas com folhas de palmeiras (Macuti). Aqui vive a maior parte da população. A outra é a chamada “Cidade de Pedra”. Nesta localizam-se as residências oficiais, serviços governamentais, unidades hoteleiras e de restauro, entre outras infra-estruturas sociais e económicas.
A Ilha de Moçambique tem cerca de três quilómetros de comprimento e perto de 400 metros de largura.
Devido ao seu valor histórico, que se traduz no valor arquitectónico, em 1991 a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) classificou a Ilha de Moçambique como Património Mundial da Humanidade. A partir dai iniciou a difícil jornada de restauro das infra-estruturas ali existentes, tendo mais incidido na zona da “Cidade de Pedra”.
Contudo, apesar de o número de infra-estruturas reabilitadas estar a registar um crescimento, o Conselho Municipal reconhece que ainda persistem algumas ruínas pertencentes a singulares e instituições do Estado.
“A contínua degradação de imóveis deriva do facto de, por um lado, a maior parte dos seus proprietários não se importarem com a sua reabilitação e, por outro, da falta de um dispositivo legal que pressione aqueles a realizar obras de restauro”, explica Amur.
Como propostas para se ultrapassar o cenário, a edilidade sugere a afectação na Ilha de Moçambique de um oficial residente da UNESCO, que poderá ajudar a fazer a reabilitação das obras e restauro dos imóveis. O mesmo oficial poderá ainda, segundo proposta do Presidente do Município da Ilha, formar quadros que poderão reforçar a capacidade humana e técnica do Gabinete do Restauro da Ilha de Moçambique.
ASSANE ISSA