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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

19 setembro 2012

UM ADEUS À ESTAÇÃO ARQUEOLÓGICA DA MATOLA

Foto: Estação Arqueológica da Matola, agora destruída 

UM ADEUS À ESTAÇÃO ARQUEOLÓGICA DA MATOLA


Ali na Matola existiu até agora uma estação arqueológica. Sobre este “sítio” recorro a Teresa Cruz e Silva, no seu texto “O sul de Moçambique e o povoamento da África sul-oriental na idade do ferro inferior. Algumas considerações”, editado pelo Centro de Estudos Africanos em 1978: “A estação arqueológica (25º 57’ S, 32º 27’ E) situa-se a cerca de 20 metros acima do nível do mar, e a cerca de 1500 metros do rio Matola. (…) Concluímos que as suas características são da Idade do Ferro Inferior, e apresentam tipologicamente, fortes ligações com o material de Kwale no Quénia, Nkope a sul do lago Niassa, e Silver Leaves em Tzaneen, no nordeste do Mpumalanga” (actualizei os nomes respeitantes a entidades políticas actuais). Com isto está-se a falar de dados respeitantes ao início da Idade de Ferro na África Austral, associada à expansão nesta área das populações a que nos acostumámos chamar “Bantu” e à introdução novos de padrões culturais, a agricultura, a domesticação de animais, a tecnologia do ferro e a sedentarização. Para além da disseminação de padrões linguísticos, a tal mancha “bantu” que se tornou dominante. No respeitante aos dados da estação da Matola, e de algumas outras poucas estações no sul de Moçambique, estamos a falar de dados dos primeiros séculos no calendário cristão (grosso modo até 400 ou 500 d.c.). Naquela estação as primeiras escavações mostraram que “Entre os 75 cms e os 85 cms de profundidade, encontrava-se um solo contendo vestígios de uma lixeira com 10 000 fragmentos de olaria; alguma escória e ferro; conchas …; uma pequena quantidade de ossos … e sementes carbonizadas …”.  Um contexto rico que, inclusivamente, originou que se criasse uma denominação arqueológica, a “tradição Matola”, para sublinhar a especificidade cultural e temporal desta área e destes vestígios.
Mais não me alongo sobre as características da estação, até para não cansar o leitor leigo em pormenores técnicos. Mas não me parece necessário sublinhar a importância destes vestígios em termos de conhecimento sobre a história do continente, e do fluxo histórico particular à zona austral oriental africana. Refiro dois pontos: que apesar do trabalho de décadas na área da arqueologia muito haverá a fazer em Moçambique – a arqueologia é uma ciência lenta e cara (como aliás o deverá ser a ciência quando o realmente é), exige deslocações e não se pode dobrar aos prazos das encomendas de apressados doadores. Nem tampouco serve para legitimar as suas propostas políticas, sociais ou económicas. Muito há, portanto, para fazer.
Um outro ponto, importante, é que o país tem desde há bem pouco uma licenciatura em Arqueologia, na Universidade Eduardo Mondlane. Será necessário reforçar a ideia de que uma abertura de uma licenciatura destas, criar especialistas no passado profundo e silencioso, é um vigoroso sinal de desenvolvimento? Real, não retórico? Virado para a produção de um conhecimento que não é instrumentalmente identitário mas que pretende ser, pode ser, constitutivo de um olhar da sociedade sobre si própria e o mundo, mais denso, mais produtivo. E que, paralelamente, pode criar um núcleo alargado de quadros nacionais com sabedoria e atenção dedicada à preservação do património. Material, intelectual. Atitude, prática, profissão, que não serão monopólios dos arqueólogos mas para as quais os seus saberes especializados os conduzem.
Esta preservação do património poderá ter, e tem muitas vezes, efeitos identitários no sentido da (re)construção de um passado próprio. Mas muito mais do que isso tem efeitos identitários no sentido da construção de um futuro próprio. E às vezes é essa “equação” que se torna difícil de transmitir aos que nos rodeiam, distraídos destas questões. Que falar em preservação do património, no seu estudo, é fundamental, quando para tanta gente “tudo isso” pertence a um passado a esquecer, a ultrapassar, a “desenvolver”.
Tudo isto me surge a propósito da minha estupefacção actual, pois acabo de saber que a estação arqueológica da Matola foi destruída. Para que nela se construísse uma casa, de um particular. Esta construção, que confesso não ter tido coragem para ir visitar, foi licenciada. Colegas, tão doridos quanto eu, que visitaram a zona avisam que a placa indicativa da estação continua. Só a própria estação se esfumou. Um deles perguntou, corajoso, aos trabalhadores: “então mas não havia aqui vestígios?”. E a resposta veio, cândida, sem maldade: “sim, havia muita “loiça”. Levámos para o lixo”.
Não me fico na questão pragmática: essa de haver uma nova licenciatura, com necessidade de trabalho de campo para os estudantes, e como tal da facilidade em levá-los até à vizinha Matola para praticarem numa estação já descoberta. E do quão incoerente tudo isto aparece: abre-se uma licenciatura, investe-se no passado ou seja, no futuro. E, aqui ao lado, destrói-se uma riqueza incalculável para que surja mais uma mansão (ou cabana que fosse).
Resmungo também diante da ideia que me parece estar na base do licenciamento de uma obra destas, a de que o património que deve ser resguardado é o espectacular, as edificações, o vistoso, quiçá as jóias, as obras de arte. Desconhecendo que são estas aparentes minudências, os ossos, as sementes, as escórias, os fragmentos de olaria ou de qualquer outro material, que são imprescindíveis e riquíssimos materiais para se mergulhar no passado, na história de todos nós. Quantas vezes tão mais faladores do que o belo vaso ou o vigoroso castro (zimbabué, se  se preferir chamar assim).
Que fazer? Que pensar?
Adenda: tem-me sido um ano terrível. Talvez seja esta a característica do envelhecimento, o de chegar à idade em que partem os nossos mais queridos. E também aqueles amigos, mais ou menos próximos, que fazem o nosso meio, de afectos, de convívios. A nossa paisagem, activa, intelectual. Morreu agora Augusto Carvalho, meu patrício, meu colega, a quem devi uma boa meia dúzia de atenções, uma solidariedade pública em momento que me foi bem difícil, algo que nunca esqueci. E depois, como colega mais-velho, uma mão-cheia de interessantíssimas conversas. Sobre livros, autores, isto de ser professor. Sobre este país. Sobre o nosso país. Sempre denso, sempre com bonomia. Um homem vai ficando mais sozinho, mais pobre.
Foi bom conhecer Augusto Carvalho. Fica pior agora.
*****
E ainda a Gazeta do Departamento de Arqueologia e Antropologia, nº 4, Setembro de 2011, com extensa entrevista com o arqueólogo Hilário Madiquida e referência à “tradição Matola (ou Kwale-Matola) em texto da arqueóloga Solange Macamo.
jpt
In: http://ma-schamba.com/cooperacao/desenvolvimento/matola/



Nota do blog: Em 1988, como forma de regulamentar a protecção do património cultural, o Conselho de Ministros aprovou a lei 10/88 de 22 de Dezembro de 1988, relativa a protecção do patrimóno cultural moçambicano. Esta lei, no seu capítulo III, artigo 4, atribui ao Estado a responsabilidade de incentivar a criação das instituições científicas e técnicas como museus, bibliotecas, arquivos, laboratórios e oficinas de conservação e restauro, necessárias à protecção e valorização do património cultural. A lei estimula a  utilização dos meios do Sistema Nacional de Educação e orgãos de comunicação sociais para educar os cidadãos sobre a importância do património cultural e a necessidade da sua protecção.
Passados vinte e quatro anos após a aprovação desta lei, o Governo é o primeiro a não respeitar a lei e o direito a  memória. Parece que se valoriza mais empreendimentos turísticos e económicos do que a história e identidade de um Povo. Certamente que ninguém ousaria fazer isso com um dos lugares memoriais da Luta de Libertação Nacional. Valoriza-se mais o património da Luta de Libertação Nacional em Moçambique em detrimento de outros. Que tristeza. A futura geração não poderá conhecer este lugar histórico. Afinal para que serve a Lei 10/88?
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Estação Arqueológica da Matola [1]


I.                   Categoria: Sítio

II.                Localização:

Maputo. Cidade da Matola

III.             Descrição

Estação ao ar-livre, das primeiras comunidades de agricultores e pastores. Foi localizada em 1968 no decurso da arqueologia de salvaguarda relacionada com a construção da estrada que faz a ligação entre as cidades de Maputo e Matola. Escavações arqueologicas iniciadas desde 1975 permitiram o estabelecimento de relações entre diferentes estações com base na semelhanca entre as colecções de fragmentos de olaria nelas encontrados.
Tornou-se evidente a estreita semelhança entre os processos de decoração dos recipientes e a sua forma, numa grande regiao que se estende desde o sul de Moçambique ao Quenia, incluindo estações como Silver Leaves , na Africa do Sul e Kwale no Quenia e Tanzania.

IV.              Critérios

Histórico: (2)
Espiritual: (7)


[1] Departamento de Arqueologia e Antropologia. Universidade Eduardo Mondlane
Lei  N. 10/88, 22/12

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