04 julho 2012

HISTÓRIA SOCIAL E O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL EM MOÇAMBIQUE


HISTÓRIA SOCIAL E O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL EM MOÇAMBIQUE



Jorge Fernando Jairoce


 

Introdução

Este artigo pretende analisar o alcance da nova abordagem da História Social, que se enquadra na perspectiva da abordagem da História Nova no ensino de História em Moçambique, ou seja pretende contribuir para uma proposta de ensino de História mais inclusivo (considerando os papéis dos grupos sociais desfovorecidos) nas escolas moçambicanas.



I. Abordagem de História Social

A História Social visa reflectir sobre construções de conhecimento histórico voltada para mudança social, um conhecimento histórico relacionado com as práticas sociais e culturais dos indivíduos no dia a dia. A História Social preocupa-se com as desigualdades sociais, pobreza, a marginalização do indivíduo, etc e reflecte o indivíduo inserido num determinado contexto sócio-cultural que precisa ser compreendido. Tal metodologia de análise coloca o aluno diante de factos próximos da sua realidade, portanto, gerando maior curiosidade e consequentemente promovendo conhecimento.



A História Social, delimita a cultura enquanto campo privilegiado do sentido de viver e da reflexão histórica e empreender criticamente a reavaliação das referências teóricas e metodológicas, académicas e políticas assumidas neste processo” (Maciel, 2006, p.10).



Assim sendo esta nova abordagem histórica abre-se aos objectos mais variados, como a cultura popular, a cultura letrada, as representações, as práticas discursivas partilhadas por diversos grupos sociais, os sistemas educativos, a mediação cultural através dos intelectuais, ou quaisquer outros campos temáticos atravessados pela polissêmica noção de “cultura” entendido como modos de vida. Esta proposta da História que toma a cultura como elemento central de análise histórica amplia as possibilidades de explicação, interpretação e perspectivas de investigação e de intervenção no social. É uma abordagem que valoriza a memória que não está apenas nas lembranças das pessoas, mas também nas marcas que a história deixou ao longo do tempo em suas avenidas, monumentos, equipamentos, ou seus espaços de convivência e várias linguagens utilizadas em História, imprensa, literatura, fotografia, cinemas e narrativas orais.

É uma análise do passado a partir da perspectiva do presente. É uma perspectiva de análise histórica que implica mudanças na prática do professor na sala de aula, no seu relacionamento com os alunos. É uma proposta que exige uma reformulação das metodologias de ensino; da organização curricular; dos manuais escolares, etc. Esta proposta sugere ao historiador que nas suas análises reflicta sobre a utilização das diferentes possibilidades de linguagens com vista a produção do conhecimento histórico. Exige um diálogo permanente do pesquisador com os documentos. É uma perspectiva de análise histórica, cuja compreensão só pode ser na totalidade histórica. Em suma é uma perspectiva de análise histórica voltada ao olhar político, que significa por outras palavras, a tomada de atitude crítica em relação aos problemas da sociedade (Sarlo, 1997).

A partir desta perspectiva histórica pode-se explorar as potencialidades da história local no ensino básico em Moçambique. A análise sócio-cultural da História encontra em Edward Thompson um aliado científico e metodológico de relevo, conforme demonstra-se na sua obra “A miséria da teoria: um planetário de erros” que têm influenciado os estudantes de História em várias universidades da Europa e do Brasil .



II. Breve comentário sobre a obra de Edward Thompson

Na obra de Edward Thompson, com o título “ A miséria da teoria: um planetário de erros” ele trava um acirrado debate contra o estruturalismo marxista.

O abandono, pelo marxismo estruturalista, da noção de “ experiência” que era material de demonstração de discursos históricos, implicaria inúmeros problemas de ordem teórica e prática, pois, ao priscindir do diálogo necessário entre o “ser social” e “consciência social”, o materialismo histórico perderia suas referências princípais. Contudo, apesar de reinvidicar o lugar da  experiência na história, e portanto, no materialismo histórico Thompson não está invalidando o papel da teoria ou mesmo proclamando o “empirismo” como a forma mais correcta de se lidar com a história. Pelo contrário, o procedimento adequado para o trabalho

com materiais históricos, dizia Thompson, pressuporia um método que articulasse o diálogo permanente entre teoria e prática, entre hipóteses e evidências. A experiência surgiria, compondo uma espécie de “dialéctica de conhecimento histórico”.

Para Thompson, a história conheceria causas necessárias, mas nunca suficientes, “pois as leis” (ou, a lógica ou as apreensões) do processo social e económico estão sendo continuamente infrigidas pelas contigências, de modo que invalidaram qualquer regra nas ciências experimentais.

A análise histórica de Thompson valoriza muito a cultura e experiência. Aliás, temos que recordar que foi Thompson que procurou dar significado a categoria de “classe”, retirando-a do campo “essencialista” da estrutura e inserindo-a no campo das identidades e relações constituídas historicamente.

Para ele, nenhuma categoria histórica foi mais incompreendida, atormentada, des-historicizada do que a categoria de classe social; uma formação histórica autodefinidora, que homens e mulheres elaboram a partir da sua própria experiência de luta foi reduzida a uma categoria estática, das quais os homens não são autores, mas vectores.

Ele construíu uma metodologia de análise histórica que trabalha materiais históricos, em que se recortavam, no fundamental, as classes sociais em um permanente processo de fazer-se. Daí se abstrairiam a experiência, a cultura, a política – tudo aquilo que no marxismo dogmático era deixado de fora. Em torno da pesquisa Thompson considerava que a mesma não pode ser fechada, finita, acabada, absoluta, mas sim um conhecimento em operações, se considerarmos que o campo de historicidade é aberta, problemática que exige uma investigação flexível e permanentemente aberta.



III. Relação da abordagem teórica da História Social, perspectiva teórica de Edward Thompson e o ensino de História em Moçambique

A abordagem teórica da História Social e visão apresentada pelo E. Thompson acima referido inspirou-me a pensar seriamente no sistema educacional moçambicano, concretamente no tipo de ensino de História que ministramos nas nossas escolas, desde o ensino básico até o nível médio geral. O ensino de História em Moçambique, considerando os diferentes níveis continua pautado na memorização e repetição oral de textos escritos, isso significa dizer que a História é ensinada numa concepção cronológica e linear. Um ensino com finalidade de perpetuar a história dos “heróis” da classe dominante da considerada “nomenclatura política’’, deixando no anonimato outros sujeitos que construiram o quotidiano das relações sócio-culturais, económicas e políticas.

É um tipo de ensino que têm revelado os resquícios da cultura historiográfica ainda centrada num paradigma conservador. Os professores trabalham os conteúdos da forma fragmentada baseada numa concepção de História cronológica. Muitos deles ou quase a maioria utiliza o livro didáctico como referencial para o seu trabalho pedagógico sem fazer uma adaptação a realidade do meio onde o aluno está inserido. É um tipo de ensino dependente dos programas e currículos baseados em modelos culturais europeus, ou seja, é um ensino cujo centro é a história da Europa. Daí que a periodização adoptada é a tradicional baseada em épocas sucessivas “ história antiga, medieval, moderna e contemporânea”. Em relação aos conteúdos sobre a história de Moçambique e de África, a sua análise é a partir de experiência europeia, que é considerado como modelo de desenvolvimento, provocando uma abordagem centrada nas ausências, ou seja, naquilo que falta nestas sociedades em relação à Europa, tal como referiu Cabrini (2000).

É um tipo de ensino com predominância da noção linear de desenvolvimento das sociedades que anula a acção dos indivíduos na história, pois o processo histórico toma um sentido único e irreversível, duma trajectória que não depende da realidade concreta dos sujeitos históricos comuns, uma vez que suas acções não são consideradas (Fonseca, 2003).

As nossas práticas escolares no ensino de História fragmentam as diversas dimensões que constituem  a realidade social. A divisão didáctica da sociedade é feita em níveis (social, político, económico e cultural) como se pode observar nos manuais e programas da (4ª a 10ª Classe). Nesta divisão em categorias estanques, normalmente com o predomínio do político e/ou económico, rompe com a ideia da totalidade histórica, a qual a história deveria se ocupar de construir ideia que permite pensar na possibilidade de aproximação da história a partir de qualquer tema, objecto ou personagem. Este ensino exclui os sujeitos, acções e lutas sociais.

Analisando a situação do ensino de História em Moçambique comparando com os pontos de vista da historiografia social inglesa defendidos por Edward Thompson e Raymonds Williams, remete-nos a pensar num tipo de ensino que aposta a recuperação de diferentes experiências vividas por diversos sujeitos históricos comuns, numa perspectiva da história vista de baixo e romper com a linearidade e determinismo e onde a história se apresenta como um campo de possibilidades.

É neste contexto educacional que proponho um tipo de ensino de História que se baseia na realidade local do aluno.

O estudo de temas locais oferece sérias possibilidades de análise histórica. Daí que para a mudança da concepção de ensino de História atrás referido, devemos tomar em conta as diferentes instituições, lugares e linguagens de História, ou seja, analisarmos museus, bibliotecas e famílias (instituições), história de vida, bairro, cidade e testemunhos de pessoas (linguagens) que viveram factos históricos num passado recente e que são fontes vivas do quotidiano vivido por estas comunidades.

Os estudos da História local revelam-se extremamente motivadores para os alunos porque lhes permitem realizar actividade sobre temas que lhes despertam o interesse, pela sua relação com o passado do que ainda reconhecem os mais variados vestígios. A motivação deve contudo ultrapassar a satisfação de simples curiosidade para fomentar um verdadeiro trabalho de investigação (Ibid., p.158).

A história local dá possibilidade para questionar o tipo de História que ensinamos nas nossas escolas, porque ela põe o aluno em contacto directo com dados empíricos de pesquisa e factos concretos, reais, possibilitando um aprendizado de maior interesse da sua parte (Fonseca, 2003). Ao estudar temas de localidade, de sua aldeia, princípio de concreto, pode-se articular na esfera do particular a sua preocupação singular em conexão com o universal. A história forma consciência de inserção dos educandos na sociedade e no mundo, construir identidade (além de tomar consciência da sua própria identidade e de outras), a consciência social tal como referiu Thompson (1978).

É de realçar que no ensino básico, o Ministério de Educação e Cultura de Moçambique orienta que os professores aproveitem 20%, reservado para o trabalho com o Currículo Local, o que constitue uma óptima oportunidade para a exploração da História Local. Porém, existe uma dissociação entre o que é proposto e o que é desenvolvido nas escolas com vista a formação das crianças. Isto deve-se a vários factores que a seguir mencionamos:

• Valorização excessiva de aspectos políticos como heróis, figuras políticas pertencentes às elites locais;

• Não existem fontes de estudo e documentos em geral disponíveis aos professores. As existentes são, muitas vezes, produzidos por orgãos administrativos locais, o que as transforma em expressão de difusão e de preservação de memória dos grupos do poder político e económico das elites locais. São documentos com restrito rigor científico. Quase sempre reflectem uma construção que nega o movimento de fazer humano e da dialética da sociedade. Portanto há escassez de recursos didácticos. O livro didáctico é o recurso mais utilizado pelos professores nas aulas de História;

• Falta de preparação didáctico-pedagógica dos professores primários em Metodologia de abordagem do Currículo Local.

• Falta de criatividade e desmotivação de alguns professores em explorar a realidade social local nas suas aulas.



Conclusão

Face ao exposto e a partir da proposta da História Social e de Edward Thompson abre-se o espaço para a pesquisa sobre o ensino de História em Moçambique desde o período da dominação colonial até a actualidade considerando as finalidades de ensino em cada período no sentido de perceber a noção de conceitos da classe social, consciência social, práticas culturais, identidade, cidadania, sujeitos históricos comuns e o lugar da História Local no ensino de História e diferentes fases da história de Moçambique. Por fim proponho uma revisão dos conteúdos dos programas de História de diferentes níveis com vista a ter um ensino de História que respeita os valores culturais da sociedade. Uma proposta que inculca o aluno como sujeito histórico activo no movimento da História. Uma história que valoriza a realidade social do aluno, que o ajuda a entender a sociedade onde vive. Um ensino de História que visa afastar-se da abordagem linear, cronológica, política, hegemónica, elitista, antidemocrática, parcial da realidade.



Bibliografia



BARROS, José D’Assunção. O Campo da História. Especialidades e Abordagens. 2ª Edição. Petropólis: Vozes.2004.

CABRINI, Conceição et alii. O ensino de História: revisão urgente. 5ª edição. São Paulo: 

GRUPO DE MEMÓRIA POPULAR. “ Memória Popular: teoria, política e método”, em Déa MUITAS MEMÓRIAS, OUTRAS HISTÓRIAS , São Paulo: Olho D’Água, 2004.

FONSECA, S.G. Didáctica e Prática do ensino deHistória: experiências, reflexões e aprendizados.Campinas, São Paulo: Papirus. 2003.

MACIEL, Laura et alii. Outras Histórias: Memórias e Linguagens. São Paulo: Olho D’ Água. 2006.

PORTELLI, Alessandro. “A filosofia e os factos, narração, interpretação e significados nas memórias e nas fontes orais” em, TEMPO,Revista do Departamento de História da UFF,Rio de Janeiro, vol.1, nº 2, 1996, pp.59-72.

SARLO, Beatriz “O olhar político em defesa do partidarismo da arte” em PAISAGENS IMAGINÁRIAS, São Paulo: EDUSP, 1997, p.55-63

THOMPSON, Edwards. A miséria da teoria ou umplanetário de erros: uma crítica ao pensamentode Althusser. Rio de Janeiro: Zahar . 1981, p.180- WILLIAMS, Raymonds. Marxismo e Literatura.Rio de Janeiro: Zahar. 1979. p. 7-76 e 111-137


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