16 julho 2012

A MODERNIDADE, A QUESTÃO RACIAL E A SUBALTERNIDADE


A MODERNIDADE, A QUESTÃO RACIAL  E A  SUBALTERNIDADE
Por Jorge Fernando Jairoce

Introdução
Neste artigo pretendo trazer uma reflexão sobre a modernidade e os seus efeitos na História da humanidade, relacionando particularmente com a questão da desvalorização da raça negra,  sua subalternidade  e a imposição da violência epistêmica sobre outros povos  e culturas pelo Ocidente.

1.1.Significado da  modernidade na História
A partir do século XVII, os filósofos modernos como René Descartes, Emanuel Kant e Francis Bacon atribuem a razão (os racionalistas) ou os sentidos (os empiristas) como via privilegiada do conhecimento  (dimensão filosófica da modernidade). A modernidade visto nesta perspectiva  expressa  a ideia de que a ciência em geral e não apenas as ciências sociais assentava nas seguintes ideias fundamentais: distinção entre sujeito e objecto e entre natureza e sociedade ou cultura; redução da complexidade do mundo a leis simples susceptíveis de formulação matemática; uma concepção da realidade dominada pelo mecanicismo determinista e da verdade como representação transparente da realidade; uma separação absoluta entre conhecimento científico – considerado o único válido e rigoroso – e outras formas de conhecimentos como o senso comum ou estudos humanísticos; privilegiamento da causalidade funcional, hostil à investigação das “causas últimas”, consideradas metafísicas, e centrada na manipulação e transformação da realidade estudada pela ciência[1].
A questão do conhecimento se impôs no cenário moderno a partir das incertezas presentes no século XVI em consequência do declínio do modo de vida feudal. Para isso contribuíram fatores como a retomada da vida urbana, o incremento do comércio como forma de produção de riqueza, a constituição dos Estados Modernos, as Grandes Navegações e a descoberta de novos povos, a invenção da imprensa, a Reforma (e a contra-reforma) religiosa e, por fim, o surgimento da física matemática.
Costuma-se situar o início da modernidade com o pensamento de Descartes, o fundador do funcionalismo moderno. Ele propôs estabelecer as condições de possibilidade para a obtenção de um conhecimento seguro da verdade. Descartes é tomado como inaugurador da Modernidade no sentido de que ele marca o fim de todo um conjunto de crenças que fundamentavam o conhecimento. O homem moderno não buscava a verdade em um além, em algo transcendente.
O filósofo Francis Bacon, contemporâneo de Descartes, pode ser apresentado como o fundador do moderno empirismo. Para Bacon a razão deixada em total liberdade pode se tornar tão especulativa e delirante que nada do que produza seja digno de crédito. É necessário dar à razão uma base nas experiências dos sentidos e na percepção; desde que essa percepção tenha sido purificada, liberada de erros e enganos a que está submetida no cotidiano.
A sociedade que se formou na Europa durante a Idade Moderna para além de constituir um modelo complexo e especifico de organização social, econômica e política e ela vai criar bases para edificação de uma sociedade baseada na geopolítica do conhecimento que subalterniza saberes, povos e culturas, memórias, línguas e histórias locais. Portanto as histórias locais serão silenciadas e suprimidas pela colonialidade do poder no imaginário moderno/colonial (Mignolo. 2003). A edificação deste modelo de sociedade foi possível através de elaborações científicas baseadas na racionalidade científica europeia que era considerada a mais credível e verdadeira como veremos a seguir.

1.2. Modernidade, filósofos iluministas e o preconceito racial
A ideia de que o mundo explica-se com base na racionalidade científica é atinente a Europa e como tal somente ela tem a capacidade de criar a cultura e a civilização. É recorrente, nos compêndios que apresentam a ideia de uma história da civilização ocidental, o equívoco  no tratamento do referencial que diz respeito ao continente africano e às suas gentes (Hernandez, 2008, p.17). Estas considerações foram feitas no cerne do Iluminismo como foi evidenciado por filósofos e cientistas desta época, David Hume e Immanuel Kant, Montesquieu e mais tarde Hegel,  por exemplo, afirmaram a inferioridade congênita do Negro.
Na leitura do livro Tratado sobre os caracteres nacionais”  Hume diz que a raça negra é inferior a raça branca. Segundo Hume, não existe nenhuma nação desta raça que seja civilizada e nenhum indivíduo ilustre por suas ações ou suas capacidades intelectuais ou morais. Para ele os negros ignoram tudo o que tem a ver com inteligência: a manufatura, a arte, a ciência. O autor vai mais longe: não existe nenhuma comparação entre a barbárie do negro mais evoluído e a barbárie do branco mais vulgar. É que o branco revela um potencial do progresso indefinido enquanto o negro se caracteriza pela estagnação. Isso significa que ao longo do tempo e do espaço, a diferença entre essas raças é permanente e invariável. Hume continua dizendo que é a própria natureza que explica tais diferenças. É que o objetivo da natureza era diferenciar as raças humanas e estabelecer uma hierarquia rigorosa entre elas. Preventivamente, Hume recusa o argumento histórico-social que tenta explicar a imbecilidade do negro pela servidão. Ele fornece um exemplo: os negros livres não mostram nenhum indício de inteligência superior em comparação ao indício dos negros escravizados. Sobre um negro da Jamaica que teria talento, Hume afirma a mediocridade das obras daquela pessoa, semelhante a um papagaio que apenas balbucia algumas palavras aprendidas (Hume, 1999, p. 207, nota 12).
Sobre essas questões, Kant concorda com Hume e parece severo. Kant diz que “Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo”(Kant, 1993, p. 75). Chamando a autoridade de Hume, ele afirma que
Dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros.” (Kant, 1993, p. 76).
A filosofia de Kant era cheia de preconceitos. E nas relações com os negros ele recomenda o uso do chicote: “Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas.”(Kant, 1993, p. 75-76). Este posicionamento pode ter influenciado para violência física impostas aos negros escravos nas plantações das Américas e mesmo no contexto da exploração nas colónias (Gilroy, 2007).
Reconhecidamente, a imagem reservada à África designava um espaço assoberbado pela opressão dos elementos naturais, assolado pela indigência cultural e pela inferioridade diante da civilização européia. Nesse recorte, existiam apenas populações destinadas a serem sujeitadas, jamais compreendidas. O pensamento referente à incapacidade do africano de produzir conhecimento racional ou civilização – conceito bastante utilizado pelos pensadores deste século – foi subjacente a diversas manifestações intelectuais do mundo ocidental e foi compartilhada, por exemplo, por diversos autores modernos iluministas dentre os quais o francês como Voltaire, o escocês Hume e Kant , mesmo enfatizando a universalidade da razão, negaram aos africanos e a sua descendência a posse de capacidade literária e civilizacional como bem dizia Kant: “ O Negro permaneceu trancado do lado de fora do círculo das relações intersubjectivas.” (Gilroy, 2007, p.84).
O filósofo alemão, Emmanuel Kant, importante teórico da “ética” como conceito prático da reflexão sobre a “moral” e defensor da racionalidade como ferramenta essencial à produção do conhecimento, em um livro publicado em 1802, se referia aos africanos ao sul do Saara como “homens que cheiram mal” e têm a pele negra por “maldição divina. Kant rejeitava desta forma a humanidade dos indivíduos africanos visto que para ele somente  o europeu, se supunha ser a essência da humanidade e da civilização. Entendia que os negros eram mais um elemento da natureza africana, semelhante aos bichos e rios. (Foé, 2011).
Sobre esta questão, devemos notar a especificidade do caso de Voltaire na medida em que seu ponto de vista parece contraditório. Inicialmente, Voltaire aceita a fraternidade e a igualdade entre as raças negra e branca, quando ele afirma a identidade de todas as raças do mundo. Em nome deste princípio fundamental, Voltaire condena veementemente a escravidão e a opressão que sofrem os negros. Mas de maneira surpreendente o mesmo. Voltaire tenta justificar a escravidão do negro quando ele diz que a Europa compra os escravos domésticos nos países dos negros porque este povo trafica seus próprios filhos. Voltaire não compreende a razão porque a Europa é censurada quando ela pratica este negócio. Porque, segundo Voltaire, um povo que trafica seus filhos é mais condenável que o comprador. De qualquer maneira, este negócio demonstra a superioridade absoluta da Europa. E Voltaire conclui que aquele que se entrega a um mestre nasceu para ter um. (Voltaire, 1963, p. 807). Esta conclusão merece uma observação. Tentar convencer o povo vencido da África que ele é responsável pela sua própria servidão parece um fenômeno único na história.
Voltaire tenta explicar a inferioridade dos negros. Primeiro, ele enfatiza a inferioridade física  descrevendo-o com um nariz chato, os olhos redondos, os lábios sempre espessos, os cabelos em forma de lã e depois enfatiza ainda  a inferioridade intelectual afirmando que a medida da inteligência mostra enormes diferenças entre o povo branco e o povo negro. Assim, como exemplos, diz que os africanos não são capazes de concentrar a atenção; eles são incapazes de calcular. Enfim, esta raça não parece criada para suportar nem os benefícios nem os abusos da filosofia da Europa. O retrato do negro feito aqui mostra uma ligação forte entre as características físicas e as qualidades morais e intelectuais. O preconceito comum era que a beleza física condiciona a boa qualidade da mente, como o explica o livro  Do Espírito das Leis do Montesquieu . Nele relata os preconceitos da época dele  e escreve que é tão natural considerar que é a cor que constitui a essência da humanidade, que os povos da Ásia, que fazem eunucos, privam sempre os negros da relação que eles têm conosco de uma maneira mais acentuada. Pode-se julgar da cor da pele pela dos cabelos, que, entre os Egípcios, os melhores filósofos do mundo, eram de tão grande importância, que mandavam matar todos os homens ruivos que lhes caíam nas mãos. De um ponto de vista moral, os homens da época de Montesquieu estavam convencidos que Deus, que é um ser muito sábio, não podia introduzir uma alma boa num corpo completamente negro. De um ponto de vista intelectual, Montesquieu aponta a estupidez dos negros que, segundo ele, não são capazes de tirar proveito dos metais preciosos dos seus países. Uma prova de que os negros não têm senso comum é que dão mais importância a um colar de vidro do que ao ouro, fato que, entre as nações policiadas, é de tão grande conseqüência. Durante a época de Montesquieu, a cor preta justificava plenamente a escravidão dos povos da África. Então, porque lamentar estes seres que, além de ser preto, têm um nariz achatado. A verdade é que nesta época não se teve certeza da humanidade dos negros. Mas é interessante ver como o capitalismo recusa a humanidade a um grupo humano ou a uma raça para justificar a escravidão. É que a economia da Europa precisava de novos animais de carga para substituir os Índios da América exterminados. (Foé, 2011).
 É porque Montesquieu diz que: “Se eu tivesse que defender o direito que tivemos de escravizar os negros, eis o que diria: Tendo os povos da Europa exterminados os da América, tiveram que escravizar os da África, a fim de utilizá-los no desbravamento de tantas terras. O açúcar seria muito caro se não se cultivasse a planta que o produz por intermédio de escravos”. (Montesquieu, 1979, livro XV, cap. 1).
O Iluminismo decretou a inferioridade dos negros para legitimar a servidão. As diferenças dos caracteres com os brancos são permanentes e imutáveis porque os negros são condenados a se tornarem escravos dos Europeus.
Como já citado, os europeus haviam iniciado a conquista do continente africano e o domínio de suas populações. Como este domínio carecia destas justificativas morais, além da concepção de que a África não é uma parte histórica do mundo. Os filósofos modernos e iluministas conceberem estas justificativas morais e os seus ideiais influenciaram vários cientistas sociais. A ideia de que a África não tem movimentos, progressos a mostrar, movimentos históricos próprios esta e outras considerações hegelianas foram reforçadas pela aplicação dos princípios de Darwin. (Foe, 2011). Ainda que a influência de Hegel na elaboração da história africana tenha sido fraca, a opinião que ele representava foi aceita pela ortodoxia histórica de seu século. Na concepção do século XIX, a África não tinha e nem poderia ter história. Essa opinião anacrônica e destituída de fundamento ainda hoje não deixa de ter adeptos.
O professor A. P. Newton – grande defensor da atividade histórica como uma análise científica e rigorosa de fontes originais e escritas, em 1923, numa conferência diante da Royal African Society de Londres, sobre “A África e a pesquisa histórica” expôs que este continente não possuía nenhuma história antes da chegada dos europeus. A história começa quando o homem se põe a escrever. Assim, segundo o mesmo, o passado da África antes do inicio do imperialismo europeu só podia ser reconstituído a partir de testemunhos dos restos materiais, da linguagem e dos costumes primitivos, coisas que não diziam respeito aos historiadores, e sim aos arqueólogos, aos lingüistas e aos antropólogos. Fica clara, assim, a concepção muito presente tanto no século XIX quanto no XX, de que a história da África só poderia ter inicio, com a chegada do europeu “civilizado” e da escrita como fonte histórica. Negando, desta forma, as diversas outras possibilidades de fontes históricas e a própria existência de escritas autóctones africanas, além dos hieróglifos egípcios, uma das primeiras escritas criadas pela humanidade. Diversos outros sistemas gráficos ricos em informações histórica tal qual o meroídico, o núbio antigo, o copta, o tifinagh – milenar sistema de escrita milenarutilizado pelos tuaregues, aparentemente derivado do alfabeto púnico de Cartago –, o ge’ez – sistema de escrita etíope com símbolos gráfico utilizados nas líguas ahmárico e o tygrinia – e o bamun também denominado Aka Uku, criado no século XIX pelos administradores do Reino do Bamum na atual República do Camarões. Além de ideogramas estilizados nsidibi, inventados pelos ejagham da Nigéria e do Camarões  (Hernandez, 2008).
A construção historiográfica do continente africano estava barrada pelo preconceito e pelo etnocentrismo. Os europeus acreditavam que sua pretensa superioridade sobre os negros africanos estava confirmada por sua conquista colonial. Em consequência disso, em muitas partes da África, especialmente no cinturão sudanês e na região dos Grandes Lagos, eles estavam convictos de que sua presença no continente tinha como finalidade legar as populações africanas os conhecimentos e a civilização européias (Idem).
No decorrer das primeiras décadas do século XX, mais explicitamente pós década de 1920, um movimento de renovação quanto aos paradigmas, métodos e temáticas históricos Escrevia George Friedrich Hegel (1770-1831), importante filósofo alemão do século XIX, em sua obra “Filosofia da História Universal”, que a a-istoricidade da África, decorre, em particular, de duas razões independentes: “A primeira, pelo fato de a história ser própria de um Velho Mundo que excluía a África subsaariana e a segunda por conceber o africano como sem autonomia para construir a sua própria história” (Hernandez, 2008, p.19). Portanto para o Hegel na África subsaariana “...não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjectivos, que na melhor das hipóteses, podem-se tornar-se objectos ou matéria-prima para inquirição científica.”(Santos, 2009, p. 25).  Contudo, esta África genérica e a-histórica, é divida por Hegel, em sua referida obra, em partes distintas: a setentrional, banhada pelo mar mediterrâneo a qual “pode dizer-ser que esta parte não pertence propriamente à África, senão à Espanha com a qual forma uma concha” e a “África propriamente dita”, que fica ao sul do Saara (Hernandez, 2008, p.19). Sobre esta última região, diz o filósofo:

A África propriamente dita é a parte característica deste continente. Começamos pela consideração deste continente, porque em seguida podemos deixa-lo de lado, por assim dizer.
Não tem interesse histórico próprio, senão o de que os homens vivem ali na barbárie e na selvageria, sem fornecer nenhum elemento à civilização. Por mais que retrocedamos na história,acharemos que a África está sempre fechada no contanto com o resto do mundo, é um Eldorado recolhido em si mesmo, é o país criança, envolvido na escuridão da noite, aquém da luz da história consciente. [...] Nesta parte principal da África, não pode haver história” (Ibid., p. 20).

A partir da leitura deste trecho específico podem se perceber alguns pontos instintos da visão historiografia hegeliana. Primeiro, percebe o continente num perpétuo eterno estado selvagem, “no qual predomina a natureza”, negando a existência de cultura ou de história possível aos povos africanos. Segundo, percebe a África como um bloco fechado em si mesmo – “acharemos que a África está sempre fechada no contato com o resto do mundo, é um Eldorado recolhido em si mesmo” – negando, desta forma, a extensa realização de comércio extra-continentais com a China, Índia ou Península Arábica na África oriental ou a grande quantidade de caravanas  responsáveis por abastecer o centro africano ou mesmo boa parte dos mercados auríferos europeus (Idem).
Contudo o contexto no qual estas idéias foram criadas – o século XIX – os mundos asiáticos e africanos encontravam-se sob o domínio colonial da Europa e outros países Imperialistas. Tais idéias foram criadas como justificativa, para a subordinação e submissão destes povos então considerados inferiores, selvagens ou desprovidos de cultura nas mãos das potências européias. Este pensamento etnocêntrico enraizado no inconsciente dos pensadores e filósofos do norte do globo contribui como justificativa moral e até religiosa, para as ações realizadas por estas nações ditas “civilizadas” no restante do mundo. Como fica claro no trecho citado do mesmo livro de Friedrich Hegel:

Encontramos, [...], aqui o homem em seu estado bruto. Tal é o homem na África. Porquanto ohomem aparece como homem, põe-se em oposição à natureza; assim é como se faz homem.
Mas, porquanto se limita a diferenciar-se da natureza, encontra-se no primeiro estágio, dominado pela paixão, pelo orgulho e a pobreza; é um homem estúpido. No estado de selvageria achamos o africano, enquanto podemos observá-lo e assim tem permanecido. O negro representa o homem natural em toda a sua barbárie e violência; para compreendê-lo devemos esquecer todas as representações européias. Devemos esquecer Deus e a lei moral. Para compreendê-lo exatamente, devemos abstrair de todo respeito e moralidade, de todo o sentimento. Tudo isso está no homem em seu estado bruto, em cujo caráter nada se encontra que pareça humano” (Hernandez, 2008, p.21).

Assim, desde o Iluminismo até a época de Hegel e de Gobineau e com exagero até os dias de hoje pela corrente eurocêntrica o ser negro foi excluído do gênero humano comum e mesmo da História. O ser negro foi submetido para além da violência física (pela prática do trabalho braçal) uma violência epistêmica, cuja tática de neutralização do Outro, seja ele subalterno ou colonizado consiste em inviabilizá-lo, expropriando-o de qualquer possibilidade de representação, silenciando-o fazendo analogia a violência epistêmica sofrido pelo sujeito subalterno (Spivak, 2010).
As ideias  apresentadas pelos filósofos iluministas e outros  contribuiram para criação de formas de representação do homem negro e da história e cultura de África acabando por ser um factor catalisador do capitalismo imobilizando a história dos povos vencidos ou a maneira como este regime obriga as nações exploradas a executar as tarefas repetitivas. A exploração dos vencidos não é possível sem a imobilização da cultura indígena e sem a saída do vencido de sua historia anterior. É o sentido que o negro é desvalorizado como sujeito histórico e perda a iniciativa histórica (Gilroy, 2007). Em jeito de conclusão, Gilroy (2007, p.82) afirma que estas ideias raciológicas misturam o físico e o metafísco num poderoso e elaborado argumento cosmopolitista para justificar a matriz colonial do poder que vai-se desenhando e que implicava também a colonialidade do saber.

1.3. Modernidade, colonialidade do poder e saber e a questão da raça
Walter Mignolo refere que não dá para pensar a modernidade sem pensar na matriz da colonialidade do poder que assenta-se no controle da economia, da autoridade, da natureza e seus recursos naturais, do género e sexualidade e da subjectividade e conhecimento (Mignolo, 2010, p.12). Isto para dizer que, não bastava a colonização do poder como tal, era necessário também uma colonização do saber (Mignolo, 2003) sobretudo para as raças não europeias. Para reforçar este argumento Quijano acrescenta referindo-se ao termo colonialidade do poder para designar a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça. Trata-se de uma "construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo." (Ibid., p.13). A ideia de raça foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo das relações de dominação que a conquista exigia. Assim, foi classificada a população da América, da África e  posteriormente, do mundo, a partir desse novo padrão de poder, ou seja, embora o pensamento da raça tenha existido em periodos anteriores, a modernidade transformou o modo como a raça era compreendida e praticada (Gilroy, 2007, p.80) para responder obviamente aos interesses da matriz colonial do poder. Não foi por acaso que os índios numa  primeira e depois os negros foram desumanizados e reduzidos a máquinas de trabalho escravo. A questão racial foi bem aproveitada para este propósito e como refere Gilroy (2007, p.81) certas raças foram historica e socialmente inventadas pela modernidade catalisando o regime distinto de verdade. Em outras palavras, as ciências humanas modernas  particularmente a antropologia, geografia e filosofia emprenderam um elaborado trabalho de modo  a tornar a ideia da raça epistemológicamente correta (Idem). Sobre este aspecto ficou bem patente no subtítulo anterior quando os filósofos iluministas e outros cientistas sociais apresentaram vários argumentos para justificar a ideia da superioridade/inferioridade racial.
A perspectiva de superioridade/inferioridade além de estar na base do conceito de superioridade étnica, também implica a superioridade epistêmica. O conhecimento produzido pelo homem branco é geralmente qualificado como científico, objetivo e racional, enquanto que aquele produzido por homens de cor (ou mulheres) é mágico, subjetivo, irracional e subalterno (Spivak, 2010). Esta dimensão, da colonialidade epistêmica ou do saber, não apenas estabelece o eurocentrismo como perspectiva única de conhecimento, mas também descarta as outras produções intelectuais. Para Mignolo (2003) a diferença colonial epistêmica parte de uma pressuposição situada sobre um julgamento antecipado de que os legados de línguas e pensamentos não europeus são de algum modo deficientes. A hipótese é que as pessoas que falam e são educadas nessas línguas são de alguma maneira epistemicamente inferiores.
A superioridade atribuída ao conhecimento europeu em muitas áreas da vida foi um aspecto importante da colonialidade do saber. Os conhecimentos subalternos foram excluídos, omitidos, silenciados e ignorados (Spivak, 2010). Desde a Ilustração, no século XVIII, esse silenciamento foi legitimado pela ideia de que tais conhecimentos representavam uma etapa mítica, inferior, pré-moderna e pré-científica do conhecimento humano. Somente o conhecimento gerado pela elite científica e filosófica da Europa era considerado como conhecimento verdadeiro, já que era capaz de fazer abstração de seus condicionamentos espaço-temporais para se localizar em uma plataforma neutra de observação. (Mignolo, 2003).
Mas a modernidade possui outras características, que também são derivadas das relações de produção capitalistas. A dominação e exploração da classe trabalhadora provocam a resistência desta e a luta de classes. A classe capitalista busca manter sua dominação através da repressão, da ideologia, do imaginário, da criação de instituições que buscam integrar o proletariado na sociedade burguesa enfim marginalizando e subalternizando este grupo sem voz como diria Spivak.

Conclusão
Depois de vários argumentos apresentados pelos filósofos iluministas observa-se que eles foram importantes para o avanço do pensamento racional moderno europeu que criou padrões da racionalidade para o  mundo, abrindo espaço para desvalorização (violência epistêmica) de outras formas de conhecimento que não respondesse a esse padrão. Consequentemente essa racionalidade contribui para edificação de preconceitos raciais sobretudo para a raça negra, o que propiciou condições para sua dominação cultural e económica daí que, não dá para pensar a modernidade sem a colonialidade do poder e saber. E como alternativa para esta modernidade Mignolo fala de pensamento liminar “gnose liminar” que aponta uma razão pós-ocidental e uma reflexão crítica sobre a produção do conhecimento pautada na colonização epistêmica e na subalternização de todas as formas de saberes que não estivessem pautadas nos cânones da ciência eurocêntrica- projecto que vai se chamar de estudos pós-coloniais que representa um grande desafio para o sul global.

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[1] Boaventura Sousa Santos na Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra, de 16 a 18 de Setembro de 2004.



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