A MODERNIDADE,
A QUESTÃO RACIAL E A SUBALTERNIDADE
Por Jorge Fernando Jairoce
Introdução
Neste artigo pretendo trazer uma
reflexão sobre a modernidade e os seus efeitos na História da humanidade,
relacionando particularmente com a questão da desvalorização da raça negra, sua subalternidade e a imposição da violência epistêmica sobre
outros povos e culturas pelo
Ocidente.
1.1.Significado
da modernidade na História
A partir do século XVII, os filósofos modernos como René Descartes, Emanuel
Kant e Francis Bacon atribuem a razão (os racionalistas) ou os
sentidos (os empiristas) como via privilegiada do conhecimento (dimensão filosófica da modernidade). A modernidade visto nesta perspectiva expressa
a ideia de que a ciência em geral e não apenas as ciências sociais assentava
nas seguintes ideias fundamentais: distinção entre sujeito e objecto e
entre natureza e sociedade ou cultura; redução da complexidade do mundo a
leis simples susceptíveis de formulação matemática; uma concepção da
realidade dominada pelo mecanicismo determinista e da verdade como
representação transparente da realidade; uma separação absoluta entre
conhecimento científico – considerado o único válido e rigoroso – e outras
formas de conhecimentos como o senso comum ou estudos humanísticos; privilegiamento
da causalidade funcional, hostil à investigação das “causas últimas”,
consideradas metafísicas, e centrada na manipulação e transformação da
realidade estudada pela ciência.
A questão do conhecimento se impôs no cenário moderno a partir das
incertezas presentes no século XVI em consequência do declínio do modo de
vida feudal. Para isso contribuíram fatores como a retomada da vida urbana,
o incremento do comércio como forma de produção de riqueza, a constituição
dos Estados Modernos, as Grandes Navegações e a descoberta de novos povos,
a invenção da imprensa, a Reforma (e a contra-reforma) religiosa e,
por fim, o surgimento da física matemática.
Costuma-se situar o início da modernidade com o pensamento de
Descartes, o fundador do funcionalismo moderno. Ele propôs estabelecer as
condições de possibilidade para a obtenção de um conhecimento seguro da
verdade. Descartes é tomado como inaugurador da Modernidade no sentido de
que ele marca o fim de todo um conjunto de crenças que fundamentavam o
conhecimento. O homem moderno não buscava a verdade em um além, em algo
transcendente.
O filósofo Francis Bacon, contemporâneo de Descartes, pode ser
apresentado como o fundador do moderno empirismo. Para Bacon a razão
deixada em total liberdade pode se tornar tão especulativa e delirante que
nada do que produza seja digno de crédito. É necessário dar à razão uma
base nas experiências dos sentidos e na percepção; desde que essa percepção
tenha sido purificada, liberada de erros e enganos a que está submetida no
cotidiano.
A sociedade que se formou na Europa durante a Idade Moderna para
além de constituir um modelo complexo e especifico de organização social,
econômica e política e ela vai criar bases para edificação de uma sociedade
baseada na geopolítica do conhecimento que subalterniza saberes, povos e
culturas, memórias, línguas e histórias locais. Portanto as histórias
locais serão silenciadas e suprimidas pela colonialidade do poder no
imaginário moderno/colonial (Mignolo. 2003). A edificação deste modelo de
sociedade foi possível através de elaborações científicas baseadas na
racionalidade científica europeia que era considerada a mais credível e
verdadeira como veremos a seguir.
1.2. Modernidade, filósofos
iluministas e o preconceito racial
A ideia de que o mundo explica-se com base na
racionalidade científica é atinente a Europa e como tal somente ela tem a
capacidade de criar a cultura e a civilização. É recorrente, nos compêndios
que apresentam a ideia de uma história da civilização ocidental, o
equívoco no tratamento do
referencial que diz respeito ao continente africano e às suas gentes
(Hernandez, 2008, p.17). Estas considerações foram feitas no cerne do
Iluminismo como foi evidenciado por filósofos e cientistas desta época,
David Hume e Immanuel Kant, Montesquieu e mais tarde Hegel, por exemplo, afirmaram a inferioridade
congênita do Negro.
Na leitura do livro “Tratado
sobre os caracteres nacionais” Hume diz que a raça negra é inferior a raça branca.
Segundo Hume, não existe nenhuma nação desta raça que seja civilizada e
nenhum indivíduo ilustre por suas ações ou suas capacidades intelectuais ou
morais. Para ele os negros ignoram tudo o que tem a ver com inteligência: a
manufatura, a arte, a ciência. O autor vai mais longe: não existe nenhuma
comparação entre a barbárie do negro mais evoluído e a barbárie do branco
mais vulgar. É que o branco revela um potencial do progresso indefinido
enquanto o negro se caracteriza pela estagnação. Isso significa que ao
longo do tempo e do espaço, a diferença entre essas raças é permanente e
invariável. Hume continua dizendo que é a própria natureza que explica tais
diferenças. É que o objetivo da natureza era diferenciar as raças humanas e
estabelecer uma hierarquia rigorosa entre elas. Preventivamente, Hume
recusa o argumento histórico-social que tenta explicar a imbecilidade do
negro pela servidão. Ele fornece um exemplo: os negros livres não mostram
nenhum indício de inteligência superior em comparação ao indício dos negros
escravizados. Sobre um negro da Jamaica que teria talento, Hume afirma a
mediocridade das obras daquela pessoa, semelhante a um papagaio que apenas
balbucia algumas palavras aprendidas (Hume, 1999, p. 207, nota 12).
Sobre essas questões, Kant concorda
com Hume e parece severo. Kant diz que “Os
negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve
acima do ridículo”(Kant, 1993, p. 75). Chamando a autoridade de Hume,
ele afirma que
“Dentre os milhões de pretos que
foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido
postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo
grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os
brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa,
adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão
essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão
grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A
religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de
idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à
natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha,
ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas
palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros.” (Kant,
1993, p. 76).
A filosofia de Kant era cheia de
preconceitos. E nas relações com os negros ele recomenda o uso do chicote:
“Os negros são muito vaidosos, mas à
sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a
pauladas.”(Kant, 1993, p. 75-76). Este posicionamento pode ter
influenciado para violência física impostas aos negros escravos nas
plantações das Américas e mesmo no contexto da exploração nas colónias
(Gilroy, 2007).
Reconhecidamente, a imagem reservada à África designava um espaço
assoberbado pela opressão dos elementos naturais, assolado pela indigência
cultural e pela inferioridade diante da civilização européia. Nesse
recorte, existiam apenas populações destinadas a serem sujeitadas, jamais
compreendidas. O pensamento referente à incapacidade do africano de
produzir conhecimento racional ou civilização – conceito bastante utilizado
pelos pensadores deste século – foi subjacente a diversas manifestações intelectuais
do mundo ocidental e foi compartilhada, por exemplo, por diversos autores
modernos iluministas dentre os quais o francês como Voltaire, o escocês
Hume e Kant , mesmo enfatizando a universalidade da razão, negaram aos
africanos e a sua descendência a posse de capacidade literária e
civilizacional como bem dizia Kant: “ O
Negro permaneceu trancado do lado de fora do círculo das relações
intersubjectivas.” (Gilroy, 2007, p.84).
O filósofo alemão, Emmanuel Kant, importante teórico da “ética” como conceito
prático da reflexão sobre a “moral” e defensor da
racionalidade como ferramenta essencial à produção do conhecimento, em um
livro publicado em 1802, se referia aos africanos ao sul do Saara como “homens que
cheiram mal” e têm a pele negra por “maldição
divina. Kant rejeitava desta forma a humanidade dos
indivíduos africanos visto que para ele somente o europeu, se supunha ser a essência da
humanidade e da civilização. Entendia que os negros eram mais um elemento
da natureza africana, semelhante aos bichos e rios. (Foé, 2011).
Sobre esta questão, devemos notar a especificidade do
caso de Voltaire na medida em que seu ponto de vista parece contraditório.
Inicialmente, Voltaire aceita a fraternidade e a igualdade entre as raças
negra e branca, quando ele afirma a identidade de todas as raças do mundo.
Em nome deste princípio fundamental, Voltaire condena veementemente a
escravidão e a opressão que sofrem os negros. Mas de maneira surpreendente
o mesmo. Voltaire tenta justificar a escravidão do negro quando ele diz que
a Europa compra os escravos domésticos nos países dos negros porque este
povo trafica seus próprios filhos. Voltaire não compreende a razão porque a
Europa é censurada quando ela pratica este negócio. Porque, segundo
Voltaire, um povo que trafica seus filhos é mais condenável que o comprador.
De qualquer maneira, este negócio demonstra a superioridade absoluta da Europa.
E Voltaire conclui que aquele que se entrega a um mestre nasceu para ter
um. (Voltaire, 1963, p. 807). Esta conclusão merece uma observação. Tentar
convencer o povo vencido da África que ele é responsável pela sua própria
servidão parece um fenômeno único na história.
Voltaire tenta explicar a inferioridade dos negros.
Primeiro, ele enfatiza a inferioridade física descrevendo-o com um nariz chato, os olhos
redondos, os lábios sempre espessos, os cabelos em forma de lã e depois enfatiza
ainda a inferioridade intelectual
afirmando que a medida da inteligência mostra enormes diferenças entre o
povo branco e o povo negro. Assim, como exemplos, diz que os africanos não
são capazes de concentrar a atenção; eles são incapazes de calcular. Enfim,
esta raça não parece criada para suportar nem os benefícios nem os abusos
da filosofia da Europa. O retrato do negro feito aqui mostra uma ligação
forte entre as características físicas e as qualidades morais e
intelectuais. O preconceito comum era que a beleza física condiciona a boa
qualidade da mente, como o explica o livro
“Do Espírito das Leis” do Montesquieu . Nele relata
os preconceitos da época dele e
escreve que é tão natural considerar que é a cor que constitui a essência
da humanidade, que os povos da Ásia, que fazem eunucos, privam sempre os
negros da relação que eles têm conosco de uma maneira mais acentuada.
Pode-se julgar da cor da pele pela dos cabelos, que, entre os Egípcios, os
melhores filósofos do mundo, eram de tão grande importância, que mandavam
matar todos os homens ruivos que lhes caíam nas mãos. De um ponto de vista
moral, os homens da época de Montesquieu estavam convencidos que Deus, que
é um ser muito sábio, não podia introduzir uma alma boa num corpo
completamente negro. De um ponto de vista intelectual, Montesquieu aponta a
estupidez dos negros que, segundo ele, não são capazes de tirar proveito
dos metais preciosos dos seus países. Uma prova de que os negros não têm
senso comum é que dão mais importância a um colar de vidro do que ao ouro,
fato que, entre as nações policiadas, é de tão grande conseqüência. Durante
a época de Montesquieu, a cor preta justificava plenamente a escravidão dos
povos da África. Então, porque lamentar estes seres que, além de ser preto,
têm um nariz achatado. A verdade é que nesta época não se teve certeza da
humanidade dos negros. Mas é interessante ver como o capitalismo recusa a
humanidade a um grupo humano ou a uma raça para justificar a escravidão. É
que a economia da Europa precisava de novos animais de carga para
substituir os Índios da América exterminados. (Foé, 2011).
É porque
Montesquieu diz que: “Se eu tivesse
que defender o direito que tivemos de escravizar os negros, eis o que
diria: Tendo os povos da Europa exterminados os da América, tiveram que
escravizar os da África, a fim de utilizá-los no desbravamento de tantas
terras. O açúcar seria muito caro se não se cultivasse a planta que o
produz por intermédio de escravos”. (Montesquieu, 1979, livro XV, cap.
1).
O Iluminismo decretou a
inferioridade dos negros para legitimar a servidão. As diferenças dos
caracteres com os brancos são permanentes e imutáveis porque os negros são
condenados a se tornarem escravos dos Europeus.
Como já citado, os europeus haviam iniciado a conquista do continente
africano e o domínio de suas populações. Como este domínio carecia destas justificativas
morais, além da concepção de que a África não é uma
parte histórica do mundo. Os filósofos modernos e iluministas conceberem
estas justificativas morais e os seus ideiais influenciaram vários
cientistas sociais. A ideia de que a África não tem movimentos, progressos
a mostrar, movimentos históricos próprios esta e outras considerações hegelianas foram reforçadas pela aplicação dos
princípios de Darwin. (Foe, 2011). Ainda que a influência de
Hegel na elaboração da história africana tenha sido fraca, a opinião que
ele representava foi aceita pela ortodoxia histórica de seu século. Na concepção
do século XIX, a África não tinha e nem poderia ter história. Essa opinião
anacrônica e destituída de fundamento ainda hoje não deixa de ter adeptos.
O professor A. P. Newton – grande defensor da atividade histórica como
uma análise científica e rigorosa de fontes originais e escritas, em 1923,
numa conferência diante da Royal African Society de Londres, sobre “A África e a pesquisa histórica”
expôs que este continente não possuía nenhuma história antes da chegada dos europeus. A história começa quando
o homem se põe a escrever. Assim, segundo o mesmo, o passado da África
antes do inicio do imperialismo europeu só podia ser reconstituído a partir de testemunhos dos restos materiais, da linguagem e dos
costumes primitivos, coisas que não diziam respeito aos historiadores, e
sim aos arqueólogos, aos lingüistas e aos antropólogos. Fica clara, assim,
a concepção muito presente tanto no século XIX quanto no XX, de que a
história da África só poderia ter inicio, com a chegada do europeu
“civilizado” e da escrita como fonte histórica. Negando, desta forma, as
diversas outras possibilidades de fontes históricas e a própria existência
de escritas autóctones africanas, além dos hieróglifos egípcios, uma das
primeiras escritas criadas pela humanidade. Diversos outros sistemas
gráficos ricos em informações histórica tal qual o meroídico, o núbio antigo, o copta, o tifinagh – milenar sistema de
escrita milenarutilizado pelos tuaregues, aparentemente derivado do
alfabeto púnico de Cartago –, o ge’ez – sistema de escrita
etíope com símbolos gráfico utilizados nas líguas ahmárico e o tygrinia – e
o bamun também denominado Aka Uku, criado no século
XIX pelos administradores do Reino do Bamum na atual República do Camarões.
Além de ideogramas estilizados nsidibi, inventados pelos ejagham da Nigéria e do Camarões (Hernandez, 2008).
A construção historiográfica do continente africano estava barrada pelo
preconceito e pelo etnocentrismo. Os europeus acreditavam que sua pretensa
superioridade sobre os negros africanos estava confirmada por sua conquista
colonial. Em consequência disso, em muitas partes da África, especialmente
no cinturão sudanês e na região dos Grandes Lagos, eles estavam convictos
de que sua presença no continente tinha como finalidade legar as populações
africanas os conhecimentos e a civilização européias (Idem).
No decorrer das primeiras décadas do século XX, mais explicitamente pós
década de 1920, um movimento de renovação quanto aos paradigmas, métodos e
temáticas históricos Escrevia George Friedrich Hegel (1770-1831), importante
filósofo alemão do século XIX, em sua obra “Filosofia da
História Universal”, que a a-istoricidade da África, decorre, em
particular, de duas razões independentes: “A primeira,
pelo fato de a história ser própria de um Velho Mundo que excluía a África
subsaariana e a segunda por conceber o africano como sem autonomia para
construir a sua própria história” (Hernandez, 2008, p.19). Portanto
para o Hegel na África subsaariana “...não
há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria,
entendimentos intuitivos ou subjectivos, que na melhor das hipóteses,
podem-se tornar-se objectos ou matéria-prima para inquirição científica.”(Santos,
2009, p. 25). Contudo, esta
África genérica e a-histórica, é divida por Hegel, em sua referida obra, em
partes distintas: a setentrional, banhada pelo mar mediterrâneo a qual “pode dizer-ser
que esta parte não pertence propriamente à África, senão à Espanha com a
qual forma uma concha” e a “África propriamente dita”, que fica ao
sul do Saara (Hernandez, 2008, p.19). Sobre esta última região, diz o filósofo:
“A África propriamente dita é a parte característica
deste continente. Começamos pela consideração deste continente, porque em
seguida podemos deixa-lo de lado, por assim dizer.
Não tem interesse histórico próprio, senão o de que
os homens vivem ali na barbárie e na selvageria, sem fornecer nenhum
elemento à civilização. Por mais que retrocedamos na história,acharemos que
a África está sempre fechada no contanto com o resto do mundo, é um
Eldorado recolhido em si mesmo, é o país criança, envolvido na escuridão da
noite, aquém da luz da história consciente. [...] Nesta parte principal da
África, não pode haver história” (Ibid., p. 20).
A partir da leitura deste trecho específico podem se perceber alguns
pontos instintos da visão historiografia hegeliana. Primeiro, percebe o
continente num perpétuo eterno estado selvagem, “no qual
predomina a natureza”, negando a existência de cultura ou de
história possível aos povos africanos. Segundo, percebe a África como um
bloco fechado em si mesmo – “acharemos que a África está sempre
fechada no contato com o resto do mundo, é um Eldorado recolhido em si
mesmo” – negando, desta forma, a extensa realização de
comércio extra-continentais com a China, Índia ou Península Arábica na
África oriental ou a grande quantidade de caravanas responsáveis por abastecer o centro
africano ou mesmo boa parte dos mercados auríferos europeus (Idem).
Contudo o contexto no qual estas idéias foram criadas – o século XIX –
os mundos asiáticos e africanos encontravam-se sob o domínio colonial da
Europa e outros países Imperialistas. Tais idéias foram criadas como
justificativa, para a subordinação e submissão destes povos então considerados
inferiores, selvagens ou desprovidos de cultura nas mãos das potências
européias. Este pensamento etnocêntrico enraizado no inconsciente dos
pensadores e filósofos do norte do globo contribui como justificativa moral
e até religiosa, para as ações realizadas por estas nações ditas
“civilizadas” no restante do mundo. Como fica claro no trecho citado do
mesmo livro de Friedrich Hegel:
“Encontramos, [...], aqui o homem em seu estado bruto.
Tal é o homem na África. Porquanto ohomem aparece como homem, põe-se em
oposição à natureza; assim é como se faz homem.
Mas, porquanto se limita a diferenciar-se da
natureza, encontra-se no primeiro estágio, dominado pela paixão, pelo
orgulho e a pobreza; é um homem estúpido. No estado de selvageria achamos o
africano, enquanto podemos observá-lo e assim tem permanecido. O negro
representa o homem natural em toda a sua barbárie e violência; para
compreendê-lo devemos esquecer todas as representações européias. Devemos
esquecer Deus e a lei moral. Para compreendê-lo exatamente, devemos
abstrair de todo respeito e moralidade, de todo o sentimento. Tudo isso
está no homem em seu estado bruto, em cujo caráter nada se encontra que
pareça humano” (Hernandez, 2008, p.21).
Assim, desde o Iluminismo até a
época de Hegel e de Gobineau e com exagero até os dias de hoje pela
corrente eurocêntrica o ser negro foi excluído do gênero humano comum e
mesmo da História. O ser negro foi submetido para além da violência física
(pela prática do trabalho braçal) uma violência epistêmica, cuja tática de
neutralização do Outro, seja ele subalterno ou colonizado consiste em
inviabilizá-lo, expropriando-o de qualquer possibilidade de representação,
silenciando-o fazendo analogia a violência epistêmica sofrido pelo sujeito
subalterno (Spivak, 2010).
As ideias apresentadas pelos filósofos iluministas
e outros contribuiram para criação
de formas de representação do homem negro e da história e cultura de África
acabando por ser um factor catalisador do capitalismo imobilizando a
história dos povos vencidos ou a maneira como este regime obriga as nações
exploradas a executar as tarefas repetitivas. A exploração dos vencidos não
é possível sem a imobilização da cultura indígena e sem a saída do vencido
de sua historia anterior. É o sentido que o negro é desvalorizado como
sujeito histórico e perda a iniciativa histórica (Gilroy, 2007). Em jeito de conclusão,
Gilroy (2007, p.82) afirma que estas ideias raciológicas misturam o físico
e o metafísco num poderoso e elaborado argumento cosmopolitista para
justificar a matriz colonial do poder que vai-se desenhando e que implicava
também a colonialidade do saber.
1.3. Modernidade,
colonialidade do poder e saber e a questão da raça
Walter Mignolo refere que não dá para pensar a
modernidade sem pensar na matriz da colonialidade do poder que assenta-se no
controle da economia, da autoridade, da natureza e seus recursos naturais,
do género e sexualidade e da subjectividade e conhecimento (Mignolo, 2010,
p.12). Isto para dizer que, não bastava a colonização do poder como tal,
era necessário também uma colonização do saber (Mignolo, 2003) sobretudo
para as raças não europeias. Para reforçar este argumento Quijano acrescenta referindo-se ao termo
colonialidade do poder para designar a classificação social da população
mundial de acordo com a ideia de raça. Trata-se de uma "construção mental que expressa a
experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as
dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade
específica, o eurocentrismo." (Ibid., p.13). A ideia de raça foi
assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo das
relações de dominação que a conquista exigia. Assim, foi classificada a
população da América, da África e posteriormente, do mundo, a partir desse
novo padrão de poder, ou seja, embora o pensamento da raça tenha existido
em periodos anteriores, a modernidade transformou o modo como a raça era
compreendida e praticada (Gilroy, 2007, p.80) para responder obviamente aos
interesses da matriz colonial do poder. Não foi por acaso que os índios
numa primeira e depois os negros foram
desumanizados e reduzidos a máquinas de trabalho escravo. A questão racial
foi bem aproveitada para este propósito e como refere Gilroy (2007, p.81)
certas raças foram historica e socialmente inventadas pela modernidade
catalisando o regime distinto de verdade. Em outras palavras, as ciências
humanas modernas particularmente a
antropologia, geografia e filosofia emprenderam um elaborado trabalho de
modo a tornar a ideia da raça
epistemológicamente correta (Idem). Sobre este aspecto ficou bem patente no
subtítulo anterior quando os filósofos iluministas e outros cientistas
sociais apresentaram vários argumentos para justificar a ideia da
superioridade/inferioridade racial.
A perspectiva de
superioridade/inferioridade além de estar na base do conceito de
superioridade étnica, também implica a superioridade epistêmica. O
conhecimento produzido pelo homem branco é geralmente qualificado como
científico, objetivo e racional, enquanto que aquele produzido por homens de
cor (ou mulheres) é mágico, subjetivo, irracional e subalterno (Spivak, 2010).
Esta dimensão, da colonialidade epistêmica ou do saber, não apenas
estabelece o eurocentrismo como perspectiva única de conhecimento, mas
também descarta as outras produções intelectuais. Para Mignolo (2003) a
diferença colonial epistêmica parte de uma pressuposição situada sobre um julgamento
antecipado de que os legados de línguas e pensamentos não europeus são de
algum modo deficientes. A hipótese é que as pessoas que falam e são
educadas nessas línguas são de alguma maneira epistemicamente inferiores.
A superioridade atribuída
ao conhecimento europeu em muitas áreas da vida foi um aspecto importante
da colonialidade do saber. Os conhecimentos subalternos foram excluídos,
omitidos, silenciados e ignorados
(Spivak, 2010). Desde a Ilustração, no século XVIII, esse silenciamento foi
legitimado pela ideia de que tais conhecimentos representavam uma etapa
mítica, inferior, pré-moderna e pré-científica do conhecimento humano.
Somente o conhecimento gerado pela elite científica e filosófica da Europa
era considerado como conhecimento verdadeiro, já que era capaz de fazer
abstração de seus condicionamentos espaço-temporais para se localizar em
uma plataforma neutra de observação. (Mignolo, 2003).
Mas a
modernidade possui outras características, que também são derivadas das
relações de produção capitalistas. A dominação e exploração da classe
trabalhadora provocam a resistência desta e a luta de classes. A classe
capitalista busca manter sua dominação através da repressão, da ideologia,
do imaginário, da criação de instituições que buscam integrar o
proletariado na sociedade burguesa enfim marginalizando e subalternizando
este grupo sem voz como diria Spivak.
Depois de vários argumentos apresentados pelos filósofos iluministas
observa-se que eles foram importantes para o avanço do pensamento racional
moderno europeu que criou padrões da racionalidade para o mundo, abrindo espaço para desvalorização
(violência epistêmica) de outras formas de conhecimento que não respondesse
a esse padrão. Consequentemente essa racionalidade contribui para edificação
de preconceitos raciais sobretudo para a raça negra, o que propiciou
condições para sua dominação cultural e económica daí que, não dá para
pensar a modernidade sem a colonialidade do poder e saber. E como
alternativa para esta modernidade Mignolo fala de pensamento liminar “gnose liminar” que aponta uma razão
pós-ocidental e uma reflexão crítica sobre a produção do conhecimento
pautada na colonização epistêmica e na subalternização de todas as formas
de saberes que não estivessem pautadas nos cânones da ciência eurocêntrica-
projecto que vai se chamar de estudos pós-coloniais que representa um
grande desafio para o sul global.
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