A FESTA DO CANHU!
A FESTA do canhu (ukanyi) já começou.
Produzida a partir do fruto do canhoeiro, esta bebida mítica e secular é
bastante apreciada e consumida pelas comunidades da região sul do país, com
particular para os distritos de Boane, Moamba, Marracuene e Manhiça, na
província de Maputo, onde mais se faz a festa.
Mas para além destes pontos, o canhu,
que já começou a jorrar, é consumido na província de Gaza – e um pouco em
Inhambane - por estas alturas do ano.
E porque nunca será redundante
falarmos sobre o assunto, aqui recuperamos excertos retirados de um estudo
intitulado “Ritual das Primícias de Ukanyi”, realizado e publicado Instituto de
Investigação Sócio-Cultural (ARPAC).
Diz o estudo que ukanyi é um tipo de
vinho tradicional de baixo teor alcoólico bastante apreciado, não somente pelo
valor sócio-cultural que encerram as sessões de consumo, mas também pela sua
conotação afrodisíaca. De facto, ao longo de gerações, o ukanyi tem sido
objecto de muitos debates com relação à sua conotação afrodisíaca. Algumas
pessoas se esforçam em consumi-lo, supostamente para o aumento da sua
virilidade. Outras especulam negativamente em relação as tais propriedades.
O facto é que até agora não há
confirmação científica. As conotações afrodisíacas são do domínio de crenças,
essas propriedades têm sido atribuídas somente a uma parte de ukanyi,
nomeadamente o hongwe que é a parte densa da bebida que fica no fundo do
recipiente.
Tradicionalmente o hongwe era servido
aos jovens de ambos sexos, como forma de dota-los de capacidades para uma
melhor actividade sexual.
O suposto efeito afrodisíaco de ukanyi
tem levado à tomada de medidas cautelares, durante os convívios, com a
separação e distanciamento dos locais de dejecção, por sexo. Por outro lado,
tem-se assistido à exposição de cordas para serem usadas contra os que perturbam
a ordem e tranquilidade da festa de ukanyi.
A FESTA DA FAMÍLIA
Nos tempos idos a frutificação,
fabrico e posterior consumo de ukanyi marcava a transição do ano no seio das
comunidades. Uma outra importância associada ao ukanyi está relacionada, por um
lado, com o fortalecimento das relações sociais e, por outro, com a criação de
novos laços de solidariedade. É durante a época de ukanyi que se registam com
maior frequência visitas entre indivíduos pertencentes a uma mesma família,
incluindo membros de diferentes comunidades.
Durante o ano muitos membros das
famílias ficam dispersos, cada um nos seus afazeres, mas chegada a época de
ukanyi, as pessoas concentram-se, aproximam-se para conviver e discutir vários
assuntos ligados à sua vida e a da sua comunidade. É também nesta ocasião que
se fazem novas amizades.
O ritual de ukanyi cria e fortifica as
redes de solidariedade entre habitantes de diferentes ecossistemas, o que por
sua vez se revela importante na resposta às crises provocadas por calamidades
naturais, no âmbito da segurança alimentar ou ruptura de reservas de sementes
para a agricultura.
No que se refere à dimensão
espiritual, o ukanyi reveste-se de uma importância crucial na manutenção do
equilíbrio social. A época de ukanyi é vista com a fase de maior aproximação
das populações locais aos espíritos dos seus antepassados, para fazer preces de
vária ordem, tendo como finalidade a busca de um equilíbrio cosmológico, o que
levou a sacralização da bebida e transformou-a num produto de venda proibida.
Para as comunidades do sul de
Moçambique, o fabrico de ukanyi tornou-se numa das actividades que acompanham
alguns momentos da sua vida. Com efeito, o ukanyi é indispensável nos eventos
sócio-culturais, quer no seio da família, quer das comunidades.
RITUAIS ASSOCIADOS
Nas celebrações relacionadas com
ukanyi, o seu consumo segue algumas regras costumeiras, nomeadamente três
rituais fundamentais (kuphahla ukanyi, xikuwha e kuhayeka mindzeko), ou seja,
as fases de abertura, festa e encerramento, respectivamente.
Estes rituais condicionam, na visão
comunitária, o sucesso de toda a época de ukanyi, pois, supõe-se que esta
bebida também alimenta os antepassados.
Todas as comunidades,
independentemente do contexto social, realizam acções de modo a atingirem certa
finalidade, seja política, económica ou cultural. Grosso modo, os ritos
praticados testemunham a grande necessidade que o Homem tem de estar em
harmonia com o cosmos.
Do ponto de vista mais pragmático, o
ritual consiste na operacionalização de uma crença ou mais crenças, trazendo à
superfície determinadas normas, valores e tradições comunitárias.
É neste contexto que o consumo de
algumas bebidas tradicionais no seio das comunidades toma em consideração uma
conjugação de factores sócio-culturais inerentes a cada grupo social. O ukanyi
não é excepção. O seu consumo observa alguns rituais e mitos transmitidos de
geração em geração, na base da oralidade.
Com efeito, para se proceder com o
consumo de ukanyi, existem algumas regras a serem respeitadas: é preciso que o
chefe de cada comunidade comece, em presença dos seus súbditos, o kuluma
(ritual da abertura da época e o seu sentido ritual é tirar por certas
cerimónias o carácter nocivo de um certo alimento) e só depois é que estes
podem beber livremente nas suas povoações.
Tal acontece até hoje, o consumo
liberalizado de ukanyi é antecedido por um ritual de abertura, conduzido por
líderes comunitários, onde são evocados os espíritos dos antepassados. Este
ritual é designado, de forma genérica por Kuphaha ukanyi.
IMPORTÂNCIA DO CANHOEIRO
O canhoeiro possui uma grande
importância para as comunidades. Nalgumas, reveste-se de valores associados à
sacralidade, noutras a aspectos políticos utilitários. Estas qualidades, por um
lado, tornam esta árvore mítica e especial, no contexto da preservação cultural
e, por outro lado, inserem-na na vivência política e quotidiana das
comunidades.
A respeito da sacralidade, esta surge
como uma tentativa de interpretação do mundo e, sobretudo de busca de
tranquilidade espiritual. Trata-se de um fenómeno antigo, adoptado numa
primeira fase para o estabelecimento de uma feliz convivência entre o mundo
animal e o humano e depois, como uma resposta às dinâmicas societárias.
Com efeito, o canhoeiro acabou fazendo
parte da cosmovisão e do modus vivendi das comunidades da África Austral, em
geral, e de Moçambique, em particular.
Em suma, embora não seja de carácter
obrigatório, variando de comunidade para comunidade, o canhoeiro é usado para
as cerimónias de veneração ou evocação de espíritos dos antepassados (localmente,
ou melhor, na região sul do país, apelidados por “gandzelo”).
No concernente aos aspectos políticos,
o canhoeiro está associado a aspectos como a lealdade às tradições e o respeito
aos símbolos comunitários. É neste contexto, que se estabelece a relação entre
o canhoeiro e os aspectos políticos, pois, no seio das comunidades, esta árvore
simboliza o poder do chefe tradicional.
O canhoeiro é das árvores que os
líderes comunitários e seus súbditos se sentam à sua sombra, discutem e
resolvem os vários problemas que afectam a comunidade.
Os frutos do canhoeiro em Moçambique
caem somente de Janeiro a Março. Nas suas múltiplas utilidades figura também o
processamento e fabrico de jam de fruta, doces variados, vinagre e xarope
anti-tússico. Entretanto, as comunidades usam mais para o fabrico de sumo.
Refere-se igualmente, que na província
da Zambézia, centro do país, os frutos do canhoeiro são colocados ao redor das
machambas para afugentar algumas pragas, especialmente os ratos.
APLICAÇÃO MEDICINAL
O fruto, já maduro, pronto para ser
esprimido e fermentado
No âmbito da medicina tradicional, as
aplicações do canhoeiro se inserem no domínio do conhecimento tradicional ou
local.
As comunidades usam a casca interna
para o tratamento da malária, tosse, aftas, hemorróides, bem como no alívio às
picadas de escorpiões e cobras. A raiz é usada como antidiarreico. As folhas
são fervidas, produzindo-se um chá, usado no tratamento de má-digestão e na
cura de dores de ouvido.
A casca do tronco é usada para
variados fins medicinais.
TIMONGO
A semente do canhoeiro, localmente
designado por “fula” é usada, após o processo do fabrico do sumo (ukanyi) para
extrair a amêndoa (timongo) que as comunidades usam como tempero na confecção
de diversos alimentos.
A amêndoa, melhor o timongo, é também
iguaria, servida para acompanhar o consumo de bebidas alcoólicas ou ara servir
a pessoas de importância especial, como o chefe da família, o filho ou o neto
mais amado.
O consumo do timongo é um indicador
social da posição hierárquica reservada à alguém e, em geral, de admiração ou
respeito no quadro das relações de parentesco. Assim, o consumo do timongo
permite evidenciar o status social do individuo, distinguindo-o dos demais.
MARRABENTA E SUA HISTÓRIA UNINDO
GERAÇÕES
A CIDADE de Maputo acolhe na
sexta-feira a abertura da edição do Festival Marrabenta que será marcada por um
mega-espectáculo no Centro Cultural Franco-Moçambicano (CCFM), reunindo as
velhas glórias da marrabenta e do cancioneiro popular moçambicano com músicos
da nova geração, fazedores do estilo pandza/dzukuta.
Músicos como Dilon Djindji, Orquestra
Djambo 70, Xidiminguana, Wazimbo, Mingas, Neyma, Stewart Sukuma, Mr. Bow, MC
Roger, DJ Ardiles, entre outros da nova geração vão subir a palco do CCFM para
um “show” que certamente ficará gravado na mente dos espectadores.
Na cerimónia de lançamento do festival
realizada na semana passada, na capital do país em Maputo, os músicos afirmaram
estar devidamente preparados para fazer um grande “show”, e prometeram dar o
melhor de si para a valorização da cultura moçambicana, ao mesmo tempo que
apelaram ao público para se fazer em massa aos locais dos espectáculos.
Na ocasião foi também anunciado que o
evento vai pela primeira vez abranger as províncias de Maputo, Gaza e
Inhambane. Desta forma, na província de Maputo o festival irá para além do CCFM
abarcar o distrito de Marracuene (na vila-sede, onde se realiza o Gwaza
Muthini, e em Matalane).
Em Gaza serão abrangidas as cidades de
Xai-Xai e Chókwè e na província de Inhambane o evento terá lugar na cidade da
Maxixe.
Num programa paralelo, será
apresentado também amanhã no CCFM, o projecto “Marrabenta: Origem e Evolução”,
desenvolvido pelo Arquivo do Património Cultural (ARPAC) desde Agosto de 2011 e
que deverá posteriormente ser transformado em livro.
O projecto procura trazer elementos
que contribuíam para o debate sobre este género musical. Trata-se de uma
abordagem que procura situar a marrabenta no contexto sócio-cultural que lhe
deu origem, desde o xitikini e xingobela xa ussiku das zonas rurais do Sul de
Moçambique, passando pelas influencias adquiridas ao longo da história, como do
trabalho nas minas da África do Sul e do sistema colonial. De um modo geral, a
pesquisa descreve o percurso destas populações até a sua convergência nas zonas
suburbanas de Lourenço Marques (actual Maputo), onde surgiu a marrabenta.
Na mesma senda, no dia 31 de Janeiro,
haverá no Café Bar Gil Vicente, em Maputo, um intercâmbio musical entre os
músicos Carlitos Gove e Jorge Domingos.
Entre os dias 6 e 8 de Fevereiro
realiza-se na cidade de Maxixe, província de Inhambane, um Workshop de
capacitação técnica e produção cultural orientado pela equipa do Festival
Marrabenta aos organizadores do Festival Nacional da Cultura que terá lugar
este ano naquela província.
Marracuene dança
marrabenta
Como tem sido hábito, no domingo (2 de
Fevereiro) espera-se que o “Comboio da Marrabenta” escale o distrito de
Marracuene, integrado nas cerimónias oficiais do Massacre de Marracuene (Gwaza
Muthini), onde terá lugar um concerto denominado “Festival Marrabenta Gwaza
Muthini”.
O comboio vai apitar às 14:00 horas da
Estação Central dos Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM) com destino ao
distrito de Marracuene transportando parte dos artistas que actuam no evento em
interacção com os passageiros num ambiente de festa e descontracção.
Este comboio tornou-se um ícone do
turismo cultural em Moçambique que surgiu por intermédio de uma parceria entre
os organizadores do festival e os CFM.
O Festival Marrabenta tem desde a sua
criação sido associado ao Gwaza Muthini que este ano celebra o seu 119º
aniversário, uma data em que se evoca a resistência anti-colonial que opôs
guerreiros comandados por Nwamatibyana, Zihlahla, Mahazule, Mulungu e Mavzaya
ao Exército colonial português em 1895.
As cerimónias centrais desta efeméride
têm lugar no distrito de Marracuene, onde é realizado o habitual “kuphahla”
(evocação dos espíritos dos antepassados), seguido de uma deposição de flores
junto ao monumento que lembra os guerreiros e a entoação do Hino Nacional e dos
discursos de praxe.
Estão também agendadas várias
actividades culturais para este dia, com principal destaque para o espectáculo
musical, feiras de gastronomia e artesanato. Outra não mesmos importante
atracção é o “ukanyi”, bebida feita com base no canhú (fruta do canhoeiro),
bastante apreciada na zona Sul do país e consumida durante o mês de Fevereiro.
Ela é preparada na véspera das festividades para que esteja disponível em
quantidades suficientes para todos.
O Gwaza Muthini foi um de uma série de
combates que se deram no local, no âmbito da conquista portuguesa para a
ocupação efectiva. Do ponto de vista português, essas batalhas eram conhecidas
por Campanhas de Pacificação. Para os locais era resistência à ocupação
portuguesa.
Entretanto, a celebração desta data
não é de todo original do Estado moçambicano. Um ano após a batalha de
Marracuene, em 1896, as autoridades coloniais portuguesas celebraram o Gwaza
Muthini em memória dos soldados portugueses mortos na batalha.
A celebração por parte de Moçambique
teve início em 1974, tendo havido na época apenas três celebrações, em 1974,
1975 e 1976.
A mesma voltou a ser reactivada pelo
empresário moçambicano António Yok Chan em 1994.
Para encerrar as actividades
programadas para a VII edição do Festival Marrabenta na província de Maputo, no
dia 3 de Fevereiro, o Centro Cultural de Matalane vai acolher o “Acústico
Marrabenta”, uma sessão de música acústica concebida pelo falecido artista
plástico Malangatana Velente Ngwenha, em 2009.
O Festival Marrabenta foi concebido
pelo Laboratório de Ideias em 2008 e tem como objectivos valorizar e promover a
cultura moçambicana, em particular a marrabenta, sem se dissociar das questões
sociais bem como a promoção da cidadania, entretenimento e promoção de
intercâmbio e diálogo entre a velha e nova geração.
Durante os sete anos do festival foram
vários os artistas contribuíram para sucesso deste evento, alguns dos quais já
não fazem parte do mundo dos vivos como são os casos de Augusto Rodrigues, Tony
Django, Sox, Victor Bernardo e Frascisco Mahecuane.