É uma mulher de várias facetas. A mãe de todas elas é o facto de ser
africanista. O mundo conhece-a mais como cantora, mas ela é, acima disso, uma
activista dedicada às crianças, sendo por isso embaixadora de boa vontade do
UNICEF.
A promoção da mulher e da rapariga também são uma causa para a
bebinense Angélique Kpasseloko Hinto Hounsinou Kandjo Manta Zogbin Kidjo, ou
simplesmente Angélique Kidjo. Durante cerca de dez dias até domingo, a cantora
que entre nós se popularizou com o tema “Agolo” foi estrela nos quatro
espectáculos (o último deles no encerramento da FACIM) da quarta edição do More
Jazz Series, festival organizado pelo saxofonista moçambicano Moreira
Chonguiça. Foi o fascínio dos fãs que a passaram a conhecer melhor, pois para
além de cantar também explanava as causas que abraça. Uma dessas causas é,
também, a promoção do continente, pretexto para esta entrevista com a
beninense:
- Tem ideia do quão poderosa é a sua música?
- Não tenho! Não tenho em absoluto a noção desse poder. Quando faço música,
sinceramente não olho para esses detalhes. Se ela tiver algum poder, tomara,
gostaria que fosse o poder de levar as pessoas a levarem melhor as suas vidas,
que elas saibam quem elas são e o que é que podem fazer melhor para si e para o
próximo. Isso é, na verdade, o poder da música, o poder de levar as pessoas a
encontrar as soluções para a sua vida, para a vida do próximo, para a vida dos
nossos países e, especialmente, para o meu caso, para a vida de África.
- Vive há muitos anos fora da sua Cotonou e do seu Benim mas conserva muito
do seu país e do seucontinente, a cantar ou não. Como é que consegue manter as
suas origens depois da tanta estrada quepercorreu ao longo de décadas fora de
África?
- Eu venho sempre a África. Se não ao Benin, vou a muitos outros países do
continente. África toda é também minha terra e uma inspiração presente não só
quando estou cá fisicamente, porque espiritualmente, acreditem, eu estou sempre
aqui. Já fui à Tanzania, Tunísia, Senegal e em muitos outros países, numa lista
a que se acrescenta agora Moçambique. Em todos os países africanos em que
estive senti-me em casa. Estou agora em casa. Antes de partir, eu nasci em
África, fiz aqui a minha escola primária, secundária e os meus estudos
universitários. Por outro lado, nasci numa família em que a cultura é muito
importante e durante os meus tempos de criança sempre me aproximei dos mais
velhos para colocar perguntas diversas sobre muitos temas. Sou uma pessoa que
gosta de perguntar, porque assim ensinaram-me, porque assim tive e tenho a
certeza de que aprendo. Portanto, quando aprendes quem tu és e de onde vens,
nunca deixarás de ser o que és. Eu nunca quis ser diferente do que alguma vez
fui, sou a mesma de há tempos atrás. Sou africana e nunca o negarei, é a minha
identidade e isso sempre será evidente em mim. Não tenho nada a cobiçar na
Europa ou na América, não sou nem europeia nem americana. O que é bom na
cultura deles implemento na minha mas nunca deixo de ser o que sou, nem mesmo
interrompo o que sou para estar na pele deles, porque eu sou eu, sou africana.
Não apenas por uma questão de pertença, o meu continente é mesmo uma
inspiração. As coisas que ainda temos que superar, as nossas virtudes, a nossa
história, incluindo a de sofrimento, como o tempo da escravatura, são uma
eterna inspiração para que cada um de nós batalhe para que nos tornemos
melhores do que somos e alcancemos o que tanto queremos.
- África está em muitos dos seus pronunciamentos e uma das mensagens que
tem transmitido é a da esperança no futuro. Com tudo o que se passa hoje, como
as várias crises que assolam o continente, que futuro augura para os africanos?
- Somos um continente de desafios. Enfrentamos hoje desafios enormes,
talvez os maiores do que alguma vez enfrentámos no nosso passado. Por exemplo,
em 2050 África será o continente com maior número de jovens no planeta. Estamos
preparados para isso, em termos sociais, políticos e económicos? Enfrentamos
desafios de desenvolvimento e, sinceramente, apesar de algumas evidências de
que algo esteja a ser feito em alguns países, não vejo tanto a ser feito para
enfrentar os nossos desafios do futuro. Naturalmente que há que encorajar
alguns esforços que estão a ser feitos, mas mesmo esses precisam de ser levados
muito mais a sério. Penso que em termos de continente a aposta séria que deve
ser levada a cabo é a criação de infra-estuturas. De forma mais ousada, porque
este é o ponto em que nos encontramos mais atrasados, em que não nos conhecemos
e não partilhamos nada ou quase nada uns dos outros, dentro de África. Isso
pode ser visto apenas do ponto de vista económico mas não é só em termos de
economia que é nefasto. Mesmo em termos culturais, em que sabemos pouco uns dos
outros, em que as indústrias culturais não fluem como devia ser, há que
trabalhar muito.
- Até que ponto em termos culturais África não se conhece a si mesma?
- Por exemplo, para além dos artistas mais badalados, por exemplo aqueles
que actuam em palcos de fora, são repercutidos. É uma cadeia grande, que para
mim é absurda. Ou seja, para eu ser um artista africano de renome devo ir
primeiro para fora? Para que alguém conheça a música de Moçambique, do Benin,
do Senegal ou de outra parte precisaríamos mesmo dos outros? Não, não deve ser
assim. Volto à economia: nas estatísticas sobre o comércio internacional
deparamo-nos que o comércio intra-africano, ou seja entre os países africanos,
é apenas de um por cento. Isso não é normal. Temos dentro de África muito ou
quase tudo o que precisamos, mas não alcançamos. É uma questão de vontade
política, o desenvolvimento de infra-estuturas como estradas, linhas férreas,
portos, etc. sei que no vosso país, como em alguns outros, se está a apostar e
muito bem nas infra-estruturas, mas, olhando para o continente como um todo,
muito há por fazer. Isso é apenas um exemplo que dou. Depende de nós,
africanos, queremos nos ver diferente do que o mundo nos vê hoje. Questionemos
as opções que nos são impostas e lutemos para as melhores soluções para os
nossos países e povos. Incluindo na cultura. Podemos, sim, dizer ao mundo
“olhem, nós podemos fazer melhor para nós mesmos”. É tempo também de os nossos
líderes africanos olharem para o seu povo como um potencial para um continente
melhor, saberem que se investirem nos seus povos, em termos de educação e
saúde, terão países mais ricos. A corrupção é uma ponta de icebergue que deve
ser derretida, porque também, no nosso caso, mina muito o desenvolvimento. A
corrupção existe também na Europa e na América, mas porque os cidadãos têm
educação, os seus países são desenvolvidos. As vagas de emigração dos países africanos
para a Europa ou América, as fugas de cérebros, etc., não existiriam se se
trabalhasse efectivamente para os nossos países. Por tudo isso, para mim, tem
que haver um investimento forte na educação, principalmente na educação da
rapariga…
- … porquê sublinha a educação da rapariga?
- Porque durante décadas, séculos até, a mulher e rapariga foram tidos como
seres inferiores e nada mais do que corrigir essa aberração secular. Está
provado que com o investimento na educação da rapariga, o PIB dos países sobe.
Porquê? Porque uma rapariga educada, quando for mãe colocará os seus filhos,
rapaz e rapariga, na escola e assisti-los de forma igual. Esse investimento
também fará com que a educação destes dois filhos gere netos educados, com
capacidade de educar mais. Os benefícios da educação para a sociedade são
óbvios. Mais: com uma mulher educada um marido não será o único com a
responsabilidade de sustentar o lar. Com recursos conjuntos planifica-se muito,
incluindo o número de filhos. A partir da planificação da economia doméstica,
com a mulher envolvida, muito mais se poderá planificar, como a educação. Se
planificarmos melhor a educação, por exemplo, não teremos tanta gente a cantar
a tom alto, lá fora, e com um tom sarcástico, que África é uma terra pobre, de
gente pobre. Essas pessoas que cantam isso são as mesmas que têm negócios e
tiram de África vários milhares de milhões de dólares todos os anos. Em França,
na América ou em qualquer outra parte jamais dizem que África é rica, o que de
facto é. Portanto, temos uma grande responsabilidade de transformar a nossa
sociedade africana, transformar os nossos países e s nossos continentes. Temos
definitivamente que mudar para o melhor. Alguns países estão no caminho certo.
Moçambique é um deles, que está a mudar, passo a passo, um passo mais rápido
que o outro rumo ao que deve ser feito por todos nós. Temos que mudar muito
mesmo, incluindo a nossa forma de nos relacionarmos com os nossos parceiros
externos. Como é que se explica que a Nigéria, há muitos anos uma potência em
áfrica, um colossal produtor de petróleo, com exportações impressionantes, só
agora, há poucos anos, é que começou a construir uma refinaria. Ou seja,
compram o petróleo da Nigéria, refinam-no e vendem-no de novo à Nigéria, ao
povo nigeriano. Isto é de loucos, não é? Já é momento de acabarmos com
aberrações como esta. Eu acredito na nossa capacidade de transformar o nosso
continente.
- Tem exemplos de países africanos que pode citar para que outros sigam e
se transformem para um nível de desenvolvimento aceitável?
- O Botswana é um bom exemplo para todos. A partir dos diamantes, a sua
principal riqueza, criou para o seu povo um nível de vida incrivelmente melhor.
A população do Botswana, em termos estatísticos, não é comparável à população
sul-africana ou moçambicana, mas a fórmula pode ser a mesma ou nela inspirada.
O vosso país está a fazer muito boas coisas. Vi aqui obras de construção de
estradas e foi-me dito que há uma aposta muito grande em termos de
infra-estruturas. É o caminho certo. Aliado a isso, é necessário olhar-se para
as outras potencialidades e fazer delas ponto de partida para o desenvolvimento
deste país que é lindo. Seria para mim decepcionante não construir o vosso país
como o estão a construir. Com uma rede de estradas que ligue vários pontos do
norte e os do sul, o que é produzido no norte pode ser facilmente consumido no
sul ou no centro a custos aceitáveis, o que é produzido no sul chegaria mais
facilmente ao norte e ao centro. Para além disso, o comércio com os países vizinhos
pode ser incrementado e com vantagens para todos. Por outro lado, o sector
fiscal tem que ser justo. Se os cidadãos pagam impostos, tem que haver a
transparência no destino que se dá a essas contribuições, proporcionando-se
melhores serviços aos cidadãos, havendo uma gestão o mais transparente
possível. A transformação a que me refiro preconiza isso.
- Uma das suas batalhas é contra as desigualdades no mundo. Até que ponto
elas podem ser combatidas?
- O ponto que eu não percebo e ninguém ainda me deu uma resposta para a
seguinte questão: como é que este continente que todos sabemos que tem tanta riqueza
tem tanta gente a viver na pobreza. Não sou boa a matemática e julgo não ser
necessário sê-lo para vermos que esta equação é vergonhosa. Países com riqueza
na Europa conseguem ter melhores serviços para o seu povo mas aqui acontece
justamente o inverso. Porquê? É uma das desigualdades que não me agrada. Outra:
em África há desigualdade do género. Porque é que os rapazes vão e são
acarinhados a ir à escola e as raparigas não? Apregoou-se que as mulheres são
menos inteligentes, o que não é verdade, é de loucosfazer passar isso por
verdade. Era uma forma de exercício de poder que não faz sentido. Meu pai
dizia: o homem digno desse nome não tem medo da inteligência da sua parceira.
Aquele que a esconde na cozinha está a condenar a sua família à pobreza. É uma
hipocrisia criminosa, essa. Quando o BokoHaram raptou aquelas raparigas,
justamente porque são raparigas não se fez qualquer movimento para resgata-las
nem para condenar o acto. Escandaloso! Se fossem rapazes a Nigéria se teria
mobilizado.
- Acredita que a actual geração de africanos pode eliminar essas
desigualdades?
- Se começarmos agora, claros que vamos a tempo. Mas o problema está mesmo
aí, no começo. Se começarmos já, veremos os resultados em pouco tempo. Se não
começarmos é um pesadelo adiado. Se virmos essas transformações e os resultados
que elas trarão na vida diária, os que querem manter o status quovão mudar de
ideia, o que acontece a África não vai continuar assim, porque os estrangeiros
que deslealmente fazem negócios em África não continuarão assim.
- Uma das suas facetas é a do activismo, incluindo a parceria com o UNICEF,
com quem tem trabalhado. Crê que o seu engajamento encontra soluções para os
problemas que se predestina a combater?
- Creio, sim! As pessoas ouvem-me, sinto isso. A África de antes, de há
alguns anos, não é a mesma de hoje mas, obviamente, há muitas mentalidades a
mudar. Gostaria de ver mesmo diferenças na forma de pensarmos o continente. Há
que dar direcção às mudanças que estão a ocorrer, em alguns casos dando-lhes o
melhor discernimento. A mudança de mentalidades inclui também mudanças na forma
como encaramos algumas convicções culturais. Ninguém me vai dar cultura na
falta de educação de raparigas e na mutilação genital feminina, por exemplo.
Dirão que é uma tradição, mas julgo que pelos seus efeitos, que incluem
dificuldades para que as mulheres tenham filhos e mortes durante o parto, não
dão orgulho nem dignidade a ninguém.
- Uma das críticas que faz é à falta de conhecimento da história de África
pelos africanos…
- … oh, sim! Falando da história do nosso continente, a começar pela da
escravatura, é uma frustração. Sabemos de tudo sobre o nosso passado a partir
de livros escritos por aqueles que nos escravizaram, pelos que geraram lucros
grandes à custa dos nossos recursos, incluindo humanos, ao longo de séculos.
Quando viajas pelo mundo e encontras um descendente de escravos africanos, a
relação que se desenvolve à partida é de fricção, porque eles sofreram uma
lavagem cerebral que lhes faz pensar que nós, que ficámos em África, os
vendemos no comércio negreiro. Eles cometeram o crime, não reconhecem o crime e
fazem-nos responsáveis por este crime. Nunca falam dos africanos que se
rebelaram contra a escravatura. Alguém disse-me, não há muito tempo que “não é
a nós, europeus, que cabe contar a parte positiva da vossa história, é a vocês
que isso cabe”. De que é que estamos à espera?
- Ainda que grande parte das suas audiências não se perceba o que diz nas
músicas, por não entender a língua em que canta, entende-se a mensagem quando a
explica, em inglês ou francês, que elas são maioritariamente de activismo.
Quando compõe é essa a intenção?
- A música em África é exactamente isso, um activismo. Cantamos causas,
ambições, vontades, ambições… A nossa história não é escrita, na maioria das
vezes, e cabe a nós divulga-la. A música é um dos meios para tal. Eu dedico
muito tempo a ouvir os mais velhos. A minha avó materna contou-me muitas
histórias do tempo da escravatura, que lhe foram contadas por gerações
anteriores e remontando do tempo da escravatura. Falou-me de gente da comunidade
e de familiares aprisionados e vendidos para escravatura. Sinto que devo
escrever essas histórias, antes que a minha memória desapareça. Os meus
ancestrais estavam na linha da frente da resistência à escravatura e sei das
suas histórias pela tradição oral, que inclui cânticos no seio dos meus
familiares. Dizia, essa história faz também as minhas canções como forma de
partilha. Não tenho a ideia imediata de incitar ao activismo, mas a minha ideia
final é essa, fazer com que mais de nós seja sabido. Sei muito da história do
continente não necessariamente por via da leitura de livros, porque poucos, mas
colocando questões aos mais velhos, por exemplo. Sei sobre Samora Machel, Kwame
Nkrumah, Julius Nyerere mais assim do que por via de uma produção historiográfica
activa.Existe alguma coisa e li, mas podia ser mais, podia ser mais divulgada e
sobretudo podia preconizar mais o continente. Gostaria que mais africanos,
incluindo cientistas, historiadores africanistas, trabalhem de modo a que
tenhamos menos crianças a sonharem em ir à Europa ou América no lugar de
sonharem com o seu próprio continente. Façamos da geração deles uma geração
feliz em África. Na verdade, não precisamos muito da Europa ou da América para
sermos felizes, é uma questão de olharmos para as opções que existem dentro do
nosso continente.
GIL FILIPE, In: Notícias, Quarta, 03 Setembro 2014