Jorge Fernando Jairoce[1]
INTRODUÇÃO
Celebrar ou comemorar Samora parece que virou moda e
tem suscitado inúmeros debates em torno da sua figura, uns a deusificá-los,
outros indimoniá-los e outros ainda a não reconhecer seus efeitos. É só acompanhar
os debates nos orgãos de comunicação social e nas redes sociais poderão
perceber estas diferentes representações de Samora Machel.
A figura e a contribuição de Samora Machel já foram analisadas com competência por
historiadores e biógrafos, de forma que não me cabe fazer uma outra análise
histórica de seu governo com factos e citações. Não me parece relevante
discutir a polêmica sobre a governação de Samora, porque esta já foi amplamente
tratada por outros autores. Não é, também, meu objetivo fazer um perfil com a
enumeração de suas qualidades e defeitos, de seus muitos acertos e muitos
erros. Parece-me, todavia, que há uma abordagem que poderia ser útil: a do
ensaio de teoria política.
Importa saber
como a acção política de Samora se relacionou com a construção da Nação e do
Estado moçambicano, resultante da transição de um Estado Colonial para um
Estado Moderno de experiência socialista. Nesta perspectiva algumas questões
pessoalmente me inquientam: Por que sua figura é tão importante para os
moçambicanos apesar de haver governado o País de forma autoritária, como alguns
sugerem? Por que considerá-lo um estadista? Ou como alguns propõem, um líder
populista cujo discurso emocionava o povo? Na
verdade acho muito difícil elaborar uma
biografia completa sobre Samora, ou mesmo, tentando, só poderemos representar
uma parte daquilo que as nossas fontes permitirão enxergar.
Ora, tenho o desafio de falar de Samora como estadista, diferente de um
político que simplesmente governa. Por isso, discutirei nesta minha humilde
apresentação o conceito de estadista baseando em dois autores clássicos como
Aristóteles e Maquiavel. Mais adiante apresentarei algumas pistas que indiciam
Samora Machel como um estadista e por fim apresentarei algumas reflexões sobre
a historicidade de Samora.
I.
CONCEITO DE ESTADISTA E A HISTÓRIA
·
Para Aristóteles em “A Política”, o que o estadista mais
quer produzir é um certo caráter ético-moral nos seus concidadãos,
particularmente uma disposição para a virtude ou prática de acções virtuosas.
·
Já em Maquiavel em “ O Princípe”, a condução do Estado é
considerada uma arte e o estadista, um autêntico artista. Para Maquiavel, o
estadista é adaptável às circunstâncias,
harmonizando o próprio comportamento à exigência dos tempos. Sua virtude é a flexibilidade
moral, a disposição de fazer o que for necessário para alcançar e
perenizar a glória cívica e a grandeza - quer haja boas ou más acções
envolvidas - contagiando os cidadãos com essa mesma disposição.
Em jeito de síntese da visão dois autores, pode-se afirmar,
primeiro, que o estadista é o
dirigente político que, não obstante
suas próprias fraquezas e hesitações, tem a visão antecipada do momento
histórico que seu país ou sua nação está vivendo e tem a coragem de enfrentar o
velho em nome do novo; segundo, que
um momento decisivo na história de um povo – o da Revolução Nacional – é aquele no qual esse povo se transforma em
uma Nação não apenas formal mas real, e, terceiro,
a preocupação pela construção de um Estado-nação. Sob estas três perspectivas,
concluo que Samora Machel foi o grande estadista que Moçambique teve na década
70 e 80.
Um estadista é sempre um político com qualidades
extraordinárias de inteligência e capacidade de liderança, mas nem todos os
líderes políticos com essas qualidades se transformam em estadistas, porque, é
preciso também que chegue ao poder em um momento da história de seu país em que
sua sociedade e sua economia estejam enfrentando uma crise e se tornando madura
para a mudança. Nesses momentos, abre-se a oportunidade para o surgimento de um
dirigente político capaz de compreender a oportunidade e se antecipar ao
movimento da sociedade. Samora Machel surgiu na vida política moçambicana em um
desses momentos. Portanto compreender Samora torna necessário situar todos os acontecimentos e o
contexto econômico e social mais amplo em que ele cresceu, trabalhou, lutou e
governou.
Ora, considerando os diferentes contextos de
governação, podemos distinguir três tipos de líderes políticos: aquele que se antecipa à sua sociedade, aquele
que a acompanha e aquele que a faz voltar para trás. A grande maioria está
na segunda categoria. Da mesma forma que, em um plano mais amplo, o Estado é
uma expressão da sociedade, de suas
forças e de suas fraquezas, seus governantes também são em geral meros
produtos médios dessa sociedade. Possuem qualidades pessoais, ambição e sorte
para chegar à chefia do governo, mas não logram se sobrepor à sociedade que os
produziu. Outros, seja por uma questão de incompetência, ou de arrogância, ou
de falta mínima de espírito republicano, ou ainda por uma combinação desses
defeitos, tomam decisões equivocadas e causam males profundos a seu povo; são o inverso dos estadistas, porque só
olham para trás, ainda que acreditem fazer o oposto.
Os estadistas são o primeiro tipo de líder político
(aqueles que se antecipa à sua sociedade), e o mais raro. Um estadista tem
capacidade de se antecipar aos factos, de compreender em que sentido estão
caminhando os acontecimentos, porque sabe ou intui quais as alianças internas e
internacionais é preciso fazer, quais decisões tomar, e quais postergar. Ele é
estadista porque é um solitário que ouve a muitos, mas toma suas decisões só, e
assume a plena responsabilidade pelas mesmas. Porque tem amigos, mas não hesita
em abandoná-los. Porque seu critério para tomar as decisões não é apenas o
poder pessoal, mas é também o poder nacional, a realização de sua visão de
futuro. Ora, face a esta constatação, será Samora Machel um estadista ou
político.
II. VIRTUDES DE SAMORA MACHEL COMO ESTADISTA NO
CONTEXTO DA SUA GOVERNAÇÃO
Para distinguir Samora como estadista tomamos
como referências os vários discursos por
ele proferidos e nos depoimentos de algumas figuras que conviveram abertamente
como Samora, assim como a consulta de fontes biográficas elaboradas sobre Samora
Machel. Deste modo, elegi para esta apresentação algumas das acções e projectos
políticos que revelam as caracteríticas de Samora como estadista, que tem a ver
com o processo de construção do Estado – nação e a luta pelo desenvolvimento
económico e social.
·
Unidade, trabalho e vigilância
Samora tem sido uma
figura de consenso quando se fala de unidade, trabalho e vigilância. A
segurança do povo, a unidade e o
interesse pelo trabalho constituía uma das grandes preocupações de Samora
Machel. Em seus numerosos discursos ele
fala de produzir para desenvolver o país, pois só assim poderíamos sair da pobreza,
aliás elegeu a década 80 de luta contra o subdesenvolvimento. O PPI elaborado
em 1977, mostra, o nível de preocupação de Samora em promover a agricultura
comercial e a industrialização do País, pese, embora não tenha surtido os
efeitos desejados, por falta de financiamento adequado e os malefícios da
guerra. Em 1976, numa reunião com os operários das empresas industriais de
Maputo Samora chamava atenção aos
operários que produzir é um acto de militância e que a luta pela independência
económica implicava aumento de produção. Apontou ainda a grave insuficiência na
organização da classe trabalhadora. Apelou ainda nesta reunião a necessidade de
uma ofensiva política e organizacional generalizada na frente de produção.
Quem não se recorda
dos discursos de Samora sobre combate aos ditos Xiconhocas, ou seja, aqueles
que viviam do suor do povo, os corruptos e marginais, preguiçosos e
sanguessugas. Samora considerava este grupo de pessoas como verdadeiros
inimigos da revolução e era abertamente intolerante a corrupção, mesmo que
fosse praticado pelos seus correligionários e as leis desta época atestam o que
digo, refiro –me por exemplo as Lei contra a Segurança do Estado e do Povo e
das Vesgatadas (Chicotadas). Os
Xiconhocas (imagem de representação dos bandidos, malandros, preguiçosos e
sabotadores da economia do povo) tinham medo dele, por isso, que os níveis de criminalidade
no seu tempo era reduzidos. Para Samora a corrupção era vista como perda
da virtude pelo
conjunto dos cidadãos, por isso poucos eram aqueles
que tinham coragem de surripiar a coisa pública e mesmo alheia.
Aqui vale apenas também perceber
a intuição, a habilidade de Samora em unir interesses contrários. Antes da sua
morte Samora preocupou-se bastante pela busca pela Paz, não sendo por acaso que
assinou o humilhante Acordo de Incomáti (de não agressão) com o regime do
Apartheid. Ainda antes da sua morte vendo o nível de deterioração da economia
como foi reconhecido no IV Congresso abriu-se para o Ocidente. A entrada na
economia de Mercado também faz parte da sua visão em desenvolver a economia
nacional.
É importante a analisar a
perspectiva política central de Samora que era fazer do Estado um instrumento a
serviço da nação. Já na
época da sua governação lutava pelo excesso do burocratismo e espírito de
deixar andar nas instituições públicas. A ofensiva política e organizacional
constitui um exemplo claro das suas acções. Uns dos
aspectos a realçar nesta ofensiva era
sua exigência pela disciplina, rigor, pontualidade e entrega ao trabalho.
·
Construção
do Estado-nação
Em outras palavras, Samora entendeu que seu desafio
era o de construir uma Nação e um Estado, era o de formar um verdadeiro
Estado-nação independente, ao invés de aceitar a permanente subordinação
modelos colonialistas. É verdade que não chegou a essa política no primeiro dia
do seu governo, mas foi construindo-a aos poucos, através de acordos e
compromissos, de avanços e recuos. Os resultados, entretanto, foram inegáveis.
O nacionalismo
advogado por ele é essencialmente a ideologia da formação do
Estado-nação; é a ideologia que um povo, sentindo-se capaz de se transformar em
uma nação, usa para poder se dotar de um Estado com soberania sobre seu
território. Samora acreditava que o povo só se torna Nação quando, no quadro da
Revolução Popular, conta com um Estado ou tem condições objectivas de obtê-lo
e, assim, forma um Estado-nação e Samora tal como Renan via a construção da
Nação como um plesbicíto diário, por isso que no seu discursivo, dizia sempre abaixo o tribalismo e viva unidade nacional. Essa Nação irá,
depois, buscar suas origens em um passado mais longínquo, de forma a poder
fundar sua unidade em mitos e heróis comuns e se possível antigos, daí a sua
preocupação em valorizar a experiência dos heróis das resistências anti
coloniais e da luta de libertação nacional.
· Diálogo com o povo
Só participar num
comício dele era uma honra, por isso ninguém queria perder. Também porque o que
ele falava era tão forte emocionalmente que tocava cada um dos que estava lá
presente. Samora Machel era um Presidente muito mobilizador, daí que mesmo em meio
a muitas dificuldades as pessoas sentiam-se motivadas a ir trabalhar. Por isso ele era considerado muito amigo do
povo. Algumas das decisões anunciadas no comício eram sábias e positivas,
sempre procurando estar na dianteira dos interesses do povo, por isso, alguns
autores o consideram presidente populista e era na verdade.
No
diálogo como o Povo, encontramos as características do Estadista referido pelo
Maquiavel., visto que Samora estava sempre disposto a fazer o que fosse necessário para alcançar e perenizar a glória cívica
e a grandeza - quer haja boas ou más acções envolvidas - contagiando
os cidadãos com essa mesma disposição. Ele conseguia nos seus discursos
simular e manipular da opinião pública. Sobre a manipulação da opinião pública, quem não se recorda da sua expressão em pleno comício "é ou não é?". Obviamente que o público respondia positivamente.
III.USOS E ABUSOS DA HISTÓRIA NA EXALTAÇÃO DE SAMORA
MACHEL
Alguns
discursos expressos por diferentes personalidades não parecem representar
aquilo que Samora era de facto, mas as nossas pretensões individuais em
expressar algo, que na minha, opinião, se pretende transmitir uma certa
moralidade à sociedade ou mesmo usar Samora Machel como uma referência moralizadora para a sociedade moçambicana. O
problema que estas pretensões não possuem nenhuma base de historicidade, o que
acaba de certa escamoteando determinadas circunstâncias temporais da nossa
História. Por exemplo, tenho ouvido recorrentemente discursos como: se Samora
estivesse vivo teria tomado essa ou aquela atitude. Ora, estes posicionamentos,
revelam os nossos posicionamentos e não dele. De tal forma, que sou opinião que
apontemos as virtudes e as limitações da governação Samoriana nas
circunstâncias temporais da sua actuação política. Samora se estivesse vivo
teria a mesma virtude no cenário político internacional? Aliás, ele demonstrou
em vários momentos as mudanças políticas e económicas em função da conjuntura
política e económica nacional e internacional. Existe exemplos de alguns
líderes africanos que foram mudando com o tempo. Passaram de líderes queridos
para inimigos do Povo. Teria aceite alternância do poder? São algumas
incertezas e difíceis de prever historicamente. Por isso, que me refiro que em
alguns momentos os discursos não me parecem estarem a analisar feitos de
Samora, mas sim a deusificá-lo . É verdade que o passado pode ser aproveitado
para tudo que se queira fazer do presente. Nós menosprezamos quando mentimos
sobre ele (o passado) ou quando escrevemos a História que mostra um dos seus
lados. Podemos por em prática o que aprendemos de Samora tanto de um modo
cuidadoso quanto desastroso. Isso não siginifica que não somos capazes de ver a
história como fonte de conhecimento, apoio e ajuda, mas que devemos ter cautela
com o emprego que dela fazemos. É isso que chamo de uso e abuso da História,
talvez porque em Moçambique, valoriza-se bastante a História Política, razão
pela qual a nossa História esteja muita virada para análises do processo de
resistência anticolonial, governação colonial, a luta pela libertação nacional
e o processo de construção do Estado-Nação e a guerra dos 16 anos. Pouco
aborda-se outras componentes da História Social, Cultural e Económica,
refiro-me concretamente a história dos grupos rurais, mulheres, operários,
comerciantes informais, prostituição, economia informal, políticas culturais e
económicas e muito mais, que é outra vertente de análises de processos
históricos, porque na verdade César não construi Roma sozinho, Faraó não
construi as pirâmides sozinho e nem Samora tentou construir um Estado-nação sozinho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As circunstâncias políticas da governação samoriana permitiram actuar
como actuou, num período da construção do Estado- nação, mudanças de
mentalidade em relação a governação anterior – colonial e a tentativa de seguir
a experiência socialista. Samora preocupou-se imenso pelo interesse colectivo. E
neste processo encontramos em Samora virtudes convencionais como honradez, veracidade, escrúpulos que não
são típicas do político, que costuma ser propenso a certos vícios - desfaçatez,
hipocrisia, venalidade, mas apesar de ter sido um bom estadista, possuía também
suas invirtudes assim como qualquer homem.
Samora como estadista tomou decisões de alguma forma incompreendidas
pois preocupou-se com o longo prazo e tomou decisões impopulares a curto prazo,
enquanto a maioria dos políticos preocupa-se com resultados imediatos de suas acções.
Devemos continuar a celebrar Samora valorizando, seus feitos
carismáticos, mas apontado também suas invirtudes e limitações, se é, que
precisamos transmitir um legado histórico às diferentes gerações. Samora pelos
seus feitos, a sua representação simbólica, configura-se a de um herói real e não imaginário, criado e inventado.
Aliás, a invenção de heróis, símbolos e mitos em Moçambique no processo da construção na Estado-nação em Moçambique é um outro debate que deve ser aprofundado nas pesquisas históricas. Para terminar vou socorrer da frase de Ortega & Gasset
que afirma: “o estadista se preocupa com a próxima geração e o político com a
próxima eleição”.
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Maputo: Edição do Partido Frelimo, 1986
MACHEL, Samora. Produzir é um acto de militância.
Maputo: Edição do Partido Frelimo, 1979
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1984
[1] Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Director da
Biblioteca Nacional de Moçambique