CASA DOS ESTUDANTES DO IMPÉRIO: BERÇO
DE LÍDERES AFRICANOS EM LISBOA
Criada
durante a ditadura salazarista, a Casa dos Estudantes do Império devia apoiar e
controlar estudantes das colónias. Não conseguiu o controlo e a Casa teve um
papel fundamental para as lutas de independência.
Quem passa
hoje pela Avenida Duque D’Ávila, nº 23, na esquina com a Rua Dona Estefânia, na
zona das Avenidas Novas no coração moderno de Lisboa, não se apercebe à
primeira vista que aqui se situou a Casa dos Estudantes do Império (CEI). O
edifício foi totalmente renovado e pintado de amarelo – e quase ninguém conhece
a função que o prédio teve entre 1944 e 1965.
Alguns
transeuntes interrogados pela reportagem da DW África não sabiam que ali
funcionou a Casa dos Estudantes do Império. Só quando atraídas a ler os dizeres
na placa colocada no pavimento se aperceberam da história especial
do edifício.
Casa dos estudantes do império, 1959
Associação de jovens dos
territórios ultramarinos de Portugal
A Casa dos
Estudantes do Império foi uma associação de jovens dos territórios ultramarinos
a estudar na metrópole. Após o início não oficializado em 1943, foi
oficialmente fundada em 1944, por proposta do então ministro das Colónias,
Vieira Machado.
Mas a Casa
não existiu apenas em Lisboa, afirma o historiador Álvaro Mateus: “A Casa tinha
uma sede em Lisboa e duas delegações em Coimbra. Em Lisboa tinha, digamos, um
posto médico, a cantina e tinha um lar de estudantes que até aumentou – nos
últimos anos já tinha pelo menos duas dezenas de estudantes”, explica.
Grupos subversivos
Como
precisa Inocência Mata, professora universitária, estudiosa das literaturas
africanas de língua portuguesa, tratava-se de um espaço aberto a todos os
estudantes, do Minho a Timor. “Qualquer estudante podia ser da Casa”,
recorda-se. “Realmente a Casa não era um lugar fechado nesse sentido. Ora,
dentro da Casa constituíram grupos bastante subversivos. Nem todos os
estudantes pertenciam a esse grupo. Havia portugueses também, não eram só
africanos”.
Na primeira fase a partir da fundação em 1944, os jovens negros que se
aproximaram da Casa dos Estudantes do Império para discutir a africanidade
foram corridos, como explica o médico são-tomense Tomás Medeiros. Lembra quem,
no início, mais frequentava a Casa: “Essencialmente estudantes brancos, vindos
de Moçambique, que eram a maioria, vindos de Angola, também em maioria, poucos
cabo-verdianos que se isolavam, guineenses em número residual, são-tomenses que
viviam na Casa da tia Andreza”, conta Medeiros.
O Estado Novo
de Portugal
Segundo
Medeiros, defendiam-se na Casa os ideais coloniais dentro da ideologia do
Estado Novo português, que foi fundado por António de Oliveira Salazar em 1933
e derrubado pela revolução do 25 de Abril de 1974. A Mocidade Portuguesa, a
organização juvenil do Estado Novo, teve um papel especial, diz o médico
são-tomense Tomás Medeiros: “A Casa era correia de transmissão da Mocidade
Portuguesa junto da juventude africana, de tal forma que ela fornece um
presidente da Câmara, Canto e Castro, e fornece também o Governador Geral
de Angola”.
Estrutura crítica a Salazar e
ao colonialismo
O regime do Estado Novo criou a Casa dos Estudantes do Império com o objetivo
de fortalecer a mentalidade imperial e o sentimento da portugalidade entre os
estudantes das colónias. No entanto, desde cedo, a Casa despertou neles uma
consciência crítica sobre a ditadura e o sistema colonial, mas também a vontade
de descobrir e valorizar as culturas dos povos colonizados. Assim, pouco a
pouco, a orientação ideológica dos estudantes da Casa mudou de uma posição a
favor do Estado Novo à luta contra o governo fascista português.
Terá contribuído para isso o surgimento do Centro de Estudos Africanos, de
acordo com Inocência Mata: “O Centro de Estudos Africanos era uma estrutura que
nasceu dos contatos dentro da Casa dos Estudantes do Império, mas funcionava na
casa de uma das tias, na altura colega Alda Espírito Santo, na rua Actor Vale,
onde vivia a tia Andreza. Desse Centro de Estudos Africanos obviamente que nem
todos fizeram parte porque era uma estrutura fechada precisamente por causa da
PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado]”, explica.
A
CEI foi completamente reformada. Apenas a placa de pedra lembra os tempos de
Casa de Estudantes vindos das ex-colónias africanas
Berço do nacionalismo das
ex-colónias
A Casa viria a ser assim o berço em Portugal do nacionalismo das ex-colónias.
Por ela passaram muitas figuras da resistência. Entre outros, muitos dos nomes
já conhecidos viriam a assumir importantes responsabilidades na luta
anticolonial e de libertação dos antigos territórios em África, como Amílcar
Cabral, o mais conhecido defensor da independência da Guiné-Bissau e de Cabo
Verde, e representantes conhecidos do MPLA (hoje partido no poder em Angola),
como o ex-secretário geral do partido, Lúcio Lara, e o primeiro presidente do
país, Agostinho Neto. De Moçambique, passou pela CEI Marcelino dos Santos,
membro fundador da FRELIMO (partido no poder) e primeiro ministro da
Planificação e Desenvolvimento do país.
De Amílcar Cabral a
Agostinho Neto
A fuga era
um sinal de contestação: “Era um período conturbado e interessante porque era
um período em que nós queríamos aprender e fazer coisas. E encontrámos um
ambiente bom em Portugal, que era o ambiente aceso da luta contra o fascismo”,
lembra o médico são-tomense Tomás Medeiros.
O historiador Álvaro Mateus, que foi membro do Conselho
Fiscal da Casa dos Estudantes do Império entre 1960 e 1961, lembra-se de um
artigo na revista Mensagem, o boletim mensal da Casa: “Por exemplo,
Amílcar Cabral, no nº 11 da revista Mensagem de 1949, ele (sic) publica um artigo com
o pseudónimo de Arlindo António, que tem por título Hoje e Amanhã, em que diz o
seguinte: ‘Do caos surgirá um mundo novo e melhor, o que dignificará o homem
preto ou branco, vermelho ou amarelo’”, lembra Mateus.
Segundo o historiador, “Agostinho Neto, em 1949, é secretário da direção da
delegação de Coimbra da Casa dos Estudantes do Império. O Marcelino dos Santos,
de Moçambique, é em 1950 e 1951, secretário da seção de Moçambique e delegado à
direção geral da CEI. Lúcio Lara, em 1952, é presidente da delegação de Coimbra
da Casa. Está a ver, quer dizer gerações inteiras que [por lá] passam”.
Formação de líderesda luta pela
descolonização
Para Adelino Torres, professor catedrático na Universidade Técnica e Lusófona
de Lisboa, que passou pouco tempo pela Casa, a formação de líderes da luta pela
independência dos países de língua portuguesa foi um processo inevitável,
“porque mais cedo ou mais tarde isso tinha que acontecer. Foi uma das poucas
coisas que o Estado Novo, com outra intenção, fez”, constata Torres.
“Deu resultado negativo para o Estado Novo porque agregou, mas ao mesmo tempo
foi vantajoso para todos os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
(PALOP). Porque os futuros líderes encontraram-se primeiramente e em segundo
lugar porque houve ali um movimento de mobilização e de estímulo recíproco que
foi muito importante e que marcou”, avalia.
Influência comunista e
instrumentos para as independências
Ao perceber que havia estudantes simultaneamente a fazer política de oposição,
o governo de Portugal deixa de homologar as direções da Casa. Durante oito
anos, a partir de 1953, a Casa funcionou com comissões administrativas.
Em 1960, a CEI tinha no total 600 sócios. Mas, no ano seguinte, fogem cem
estudantes africanos da Casa para reforçar as direções dos movimentos de
libertação das colónias africanas.
Aprender com o Partido
Comunista Português – PCP
“Naquela altura, costuma-se dizer, ou estás comigo ou estás contra. Ou
estava-se com o regime ou estava-se com o Partido Comunista”, continua
Medeiros. “Mesmo não estando no Partido Comunista, a influência era grande e
aprendemos muita coisa com os comunistas. Os livros que devíamos ler, a maneira
de organização, a estrutura do partido, tudo isso aprendemos com o PCP não
sendo militantes”.
O edifício
da Casa dos Estudantes do Império foi restaurado e preservado por fora, mas
hoje já não é igual o seu interior, abrigando atualmente serviços e
áreas residenciais.
Ainda de
acordo com Medeiros, a Casa muniu os quadros africanos das colónias de
instrumentos essenciais para a condução dos processos que culminaram com as
independências nos anos 70. “Começámos a interessar-nos por tudo que se
passasse pelo mundo negro, que não conhecíamos, das Américas Latina e do Norte.
Isso fez com que criássemos uma mentalidade muito própria”, explica.
“Éramos todos amigos, éramos todos pessoas interessadas em querer encontrar uma
solução para o nosso futuro. Somos africanos, mas somos dominados, como sair
desta situação? E [com isso], tornámos pessoas disponíveis para um processo que
conduzisse à fase da afirmação da luta pela independência
nacional”, afirma.
CEI fecha as portas
Mas o espírito da Casa foi-se esmorecendo com o tempo e a PIDE , a polícia
política do regime salazarista, veio a encerrá-la em setembro de 1965. Depois
disso, Manuel Ferreira, estudioso das literaturas africanas de expressão
portuguesa, compilou os vários textos da revista Mensagem, publicados em dois
volumes, os quais testemunham a força do movimento cultural da Casa dos
Estudantes do Império. Dez anos depois do encerramento da Casa dos
Estudantes do Império, nasceram os países de língua portuguesa em África,
os PALOP.
Restauro do edifício
da Casa
Como marco
desse período, em 1992, durante o mandato do então edil Jorge Sampaio
(ex-presidente de Portugal e atual secretário geral da Aliança das Civilizações,
iniciativa das Nações Unidas), a Câmara Municipal de Lisboa mandou embutir no
pavimento frente ao edifício uma placa evocativa em homenagem à Casa dos
Estudantes do Império para que não se perca completamente a memória deste lugar
histórico da luta pela independência dos países africanos.
Casa do Estudantes do Império
actualmente, fotografia de João Carlos
Artigo retirado da DW África, para ouvir a reportagem
completa ver aqui.