30 janeiro 2014

A FESTA DO CANHU!



A FESTA do canhu (ukanyi) já começou. Produzida a partir do fruto do canhoeiro, esta bebida mítica e secular é bastante apreciada e consumida pelas comunidades da região sul do país, com particular para os distritos de Boane, Moamba, Marracuene e Manhiça, na província de Maputo, onde mais se faz a festa.
Mas para além destes pontos, o canhu, que já começou a jorrar, é consumido na província de Gaza – e um pouco em Inhambane - por estas alturas do ano.
E porque nunca será redundante falarmos sobre o assunto, aqui recuperamos excertos retirados de um estudo intitulado “Ritual das Primícias de Ukanyi”, realizado e publicado Instituto de Investigação Sócio-Cultural (ARPAC).
Diz o estudo que ukanyi é um tipo de vinho tradicional de baixo teor alcoólico bastante apreciado, não somente pelo valor sócio-cultural que encerram as sessões de consumo, mas também pela sua conotação afrodisíaca. De facto, ao longo de gerações, o ukanyi tem sido objecto de muitos debates com relação à sua conotação afrodisíaca. Algumas pessoas se esforçam em consumi-lo, supostamente para o aumento da sua virilidade. Outras especulam negativamente em relação as tais propriedades.
O facto é que até agora não há confirmação científica. As conotações afrodisíacas são do domínio de crenças, essas propriedades têm sido atribuídas somente a uma parte de ukanyi, nomeadamente o hongwe que é a parte densa da bebida que fica no fundo do recipiente.
Tradicionalmente o hongwe era servido aos jovens de ambos sexos, como forma de dota-los de capacidades para uma melhor actividade sexual.
O suposto efeito afrodisíaco de ukanyi tem levado à tomada de medidas cautelares, durante os convívios, com a separação e distanciamento dos locais de dejecção, por sexo. Por outro lado, tem-se assistido à exposição de cordas para serem usadas contra os que perturbam a ordem e tranquilidade da festa de ukanyi.

A FESTA DA FAMÍLIA

Nos tempos idos a frutificação, fabrico e posterior consumo de ukanyi marcava a transição do ano no seio das comunidades. Uma outra importância associada ao ukanyi está relacionada, por um lado, com o fortalecimento das relações sociais e, por outro, com a criação de novos laços de solidariedade. É durante a época de ukanyi que se registam com maior frequência visitas entre indivíduos pertencentes a uma mesma família, incluindo membros de diferentes comunidades.
Durante o ano muitos membros das famílias ficam dispersos, cada um nos seus afazeres, mas chegada a época de ukanyi, as pessoas concentram-se, aproximam-se para conviver e discutir vários assuntos ligados à sua vida e a da sua comunidade. É também nesta ocasião que se fazem novas amizades.
O ritual de ukanyi cria e fortifica as redes de solidariedade entre habitantes de diferentes ecossistemas, o que por sua vez se revela importante na resposta às crises provocadas por calamidades naturais, no âmbito da segurança alimentar ou ruptura de reservas de sementes para a agricultura.
No que se refere à dimensão espiritual, o ukanyi reveste-se de uma importância crucial na manutenção do equilíbrio social. A época de ukanyi é vista com a fase de maior aproximação das populações locais aos espíritos dos seus antepassados, para fazer preces de vária ordem, tendo como finalidade a busca de um equilíbrio cosmológico, o que levou a sacralização da bebida e transformou-a num produto de venda proibida.
Para as comunidades do sul de Moçambique, o fabrico de ukanyi tornou-se numa das actividades que acompanham alguns momentos da sua vida. Com efeito, o ukanyi é indispensável nos eventos sócio-culturais, quer no seio da família, quer das comunidades.

RITUAIS ASSOCIADOS
Nas celebrações relacionadas com ukanyi, o seu consumo segue algumas regras costumeiras, nomeadamente três rituais fundamentais (kuphahla ukanyi, xikuwha e kuhayeka mindzeko), ou seja, as fases de abertura, festa e encerramento, respectivamente.
Estes rituais condicionam, na visão comunitária, o sucesso de toda a época de ukanyi, pois, supõe-se que esta bebida também alimenta os antepassados.
Todas as comunidades, independentemente do contexto social, realizam acções de modo a atingirem certa finalidade, seja política, económica ou cultural. Grosso modo, os ritos praticados testemunham a grande necessidade que o Homem tem de estar em harmonia com o cosmos.
Do ponto de vista mais pragmático, o ritual consiste na operacionalização de uma crença ou mais crenças, trazendo à superfície determinadas normas, valores e tradições comunitárias.
É neste contexto que o consumo de algumas bebidas tradicionais no seio das comunidades toma em consideração uma conjugação de factores sócio-culturais inerentes a cada grupo social. O ukanyi não é excepção. O seu consumo observa alguns rituais e mitos transmitidos de geração em geração, na base da oralidade.
Com efeito, para se proceder com o consumo de ukanyi, existem algumas regras a serem respeitadas: é preciso que o chefe de cada comunidade comece, em presença dos seus súbditos, o kuluma (ritual da abertura da época e o seu sentido ritual é tirar por certas cerimónias o carácter nocivo de um certo alimento) e só depois é que estes podem beber livremente nas suas povoações.
Tal acontece até hoje, o consumo liberalizado de ukanyi é antecedido por um ritual de abertura, conduzido por líderes comunitários, onde são evocados os espíritos dos antepassados. Este ritual é designado, de forma genérica por Kuphaha ukanyi.

IMPORTÂNCIA DO CANHOEIRO
O canhoeiro possui uma grande importância para as comunidades. Nalgumas, reveste-se de valores associados à sacralidade, noutras a aspectos políticos utilitários. Estas qualidades, por um lado, tornam esta árvore mítica e especial, no contexto da preservação cultural e, por outro lado, inserem-na na vivência política e quotidiana das comunidades.
A respeito da sacralidade, esta surge como uma tentativa de interpretação do mundo e, sobretudo de busca de tranquilidade espiritual. Trata-se de um fenómeno antigo, adoptado numa primeira fase para o estabelecimento de uma feliz convivência entre o mundo animal e o humano e depois, como uma resposta às dinâmicas societárias.
Com efeito, o canhoeiro acabou fazendo parte da cosmovisão e do modus vivendi das comunidades da África Austral, em geral, e de Moçambique, em particular.
Em suma, embora não seja de carácter obrigatório, variando de comunidade para comunidade, o canhoeiro é usado para as cerimónias de veneração ou evocação de espíritos dos antepassados (localmente, ou melhor, na região sul do país, apelidados por “gandzelo”).
No concernente aos aspectos políticos, o canhoeiro está associado a aspectos como a lealdade às tradições e o respeito aos símbolos comunitários. É neste contexto, que se estabelece a relação entre o canhoeiro e os aspectos políticos, pois, no seio das comunidades, esta árvore simboliza o poder do chefe tradicional.
O canhoeiro é das árvores que os líderes comunitários e seus súbditos se sentam à sua sombra, discutem e resolvem os vários problemas que afectam a comunidade.
Os frutos do canhoeiro em Moçambique caem somente de Janeiro a Março. Nas suas múltiplas utilidades figura também o processamento e fabrico de jam de fruta, doces variados, vinagre e xarope anti-tússico. Entretanto, as comunidades usam mais para o fabrico de sumo.
Refere-se igualmente, que na província da Zambézia, centro do país, os frutos do canhoeiro são colocados ao redor das machambas para afugentar algumas pragas, especialmente os ratos.

APLICAÇÃO MEDICINAL
O fruto, já maduro, pronto para ser esprimido e fermentado
No âmbito da medicina tradicional, as aplicações do canhoeiro se inserem no domínio do conhecimento tradicional ou local.
As comunidades usam a casca interna para o tratamento da malária, tosse, aftas, hemorróides, bem como no alívio às picadas de escorpiões e cobras. A raiz é usada como antidiarreico. As folhas são fervidas, produzindo-se um chá, usado no tratamento de má-digestão e na cura de dores de ouvido.
A casca do tronco é usada para variados fins medicinais.

TIMONGO
A semente do canhoeiro, localmente designado por “fula” é usada, após o processo do fabrico do sumo (ukanyi) para extrair a amêndoa (timongo) que as comunidades usam como tempero na confecção de diversos alimentos.
A amêndoa, melhor o timongo, é também iguaria, servida para acompanhar o consumo de bebidas alcoólicas ou ara servir a pessoas de importância especial, como o chefe da família, o filho ou o neto mais amado.
O consumo do timongo é um indicador social da posição hierárquica reservada à alguém e, em geral, de admiração ou respeito no quadro das relações de parentesco. Assim, o consumo do timongo permite evidenciar o status social do individuo, distinguindo-o dos demais.

 MARRABENTA E SUA HISTÓRIA UNINDO GERAÇÕES



A CIDADE de Maputo acolhe na sexta-feira a abertura da edição do Festival Marrabenta que será marcada por um mega-espectáculo no Centro Cultural Franco-Moçambicano (CCFM), reunindo as velhas glórias da marrabenta e do cancioneiro popular moçambicano com músicos da nova geração, fazedores do estilo pandza/dzukuta.
Músicos como Dilon Djindji, Orquestra Djambo 70, Xidiminguana, Wazimbo, Mingas, Neyma, Stewart Sukuma, Mr. Bow, MC Roger, DJ Ardiles, entre outros da nova geração vão subir a palco do CCFM para um “show” que certamente ficará gravado na mente dos espectadores.  
Na cerimónia de lançamento do festival realizada na semana passada, na capital do país em Maputo, os músicos afirmaram estar devidamente preparados para fazer um grande “show”, e prometeram dar o melhor de si para a valorização da cultura moçambicana, ao mesmo tempo que apelaram ao público para se fazer em massa aos locais dos espectáculos. 
Na ocasião foi também anunciado que o evento vai pela primeira vez abranger as províncias de Maputo, Gaza e Inhambane. Desta forma, na província de Maputo o festival irá para além do CCFM abarcar o distrito de Marracuene (na vila-sede, onde se realiza o Gwaza Muthini, e em Matalane).
Em Gaza serão abrangidas as cidades de Xai-Xai e Chókwè e na província de Inhambane o evento terá lugar na cidade da Maxixe.
Num programa paralelo, será apresentado também amanhã no CCFM, o projecto “Marrabenta: Origem e Evolução”, desenvolvido pelo Arquivo do Património Cultural (ARPAC) desde Agosto de 2011 e que deverá posteriormente ser transformado em livro.
O projecto procura trazer elementos que contribuíam para o debate sobre este género musical. Trata-se de uma abordagem que procura situar a marrabenta no contexto sócio-cultural que lhe deu origem, desde o xitikini e xingobela xa ussiku das zonas rurais do Sul de Moçambique, passando pelas influencias adquiridas ao longo da história, como do trabalho nas minas da África do Sul e do sistema colonial. De um modo geral, a pesquisa descreve o percurso destas populações até a sua convergência nas zonas suburbanas de Lourenço Marques (actual Maputo), onde surgiu a marrabenta.
Na mesma senda, no dia 31 de Janeiro, haverá no Café Bar Gil Vicente, em Maputo, um intercâmbio musical entre os músicos Carlitos Gove e Jorge Domingos.
Entre os dias 6 e 8 de Fevereiro realiza-se na cidade de Maxixe, província de Inhambane, um Workshop de capacitação técnica e produção cultural orientado pela equipa do Festival Marrabenta aos organizadores do Festival Nacional da Cultura que terá lugar este ano naquela província. 

Marracuene dança marrabenta 

Como tem sido hábito, no domingo (2 de Fevereiro) espera-se que o “Comboio da Marrabenta” escale o distrito de Marracuene, integrado nas cerimónias oficiais do Massacre de Marracuene (Gwaza Muthini), onde terá lugar um concerto denominado “Festival Marrabenta Gwaza Muthini”.
O comboio vai apitar às 14:00 horas da Estação Central dos Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM) com destino ao distrito de Marracuene transportando parte dos artistas que actuam no evento em interacção com os passageiros num ambiente de festa e descontracção.
Este comboio tornou-se um ícone do turismo cultural em Moçambique que surgiu por intermédio de uma parceria entre os organizadores do festival e os CFM.
O Festival Marrabenta tem desde a sua criação sido associado ao Gwaza Muthini que este ano celebra o seu 119º aniversário, uma data em que se evoca a resistência anti-colonial que opôs guerreiros comandados por Nwamatibyana, Zihlahla, Mahazule, Mulungu e Mavzaya ao Exército colonial português em 1895.
As cerimónias centrais desta efeméride têm lugar no distrito de Marracuene, onde é realizado o habitual “kuphahla” (evocação dos espíritos dos antepassados), seguido de uma deposição de flores junto ao monumento que lembra os guerreiros e a entoação do Hino Nacional e dos discursos de praxe.
Estão também agendadas várias actividades culturais para este dia, com principal destaque para o espectáculo musical, feiras de gastronomia e artesanato. Outra não mesmos importante atracção é o “ukanyi”, bebida feita com base no canhú (fruta do canhoeiro), bastante apreciada na zona Sul do país e consumida durante o mês de Fevereiro. Ela é preparada na véspera das festividades para que esteja disponível em quantidades suficientes para todos. 
O Gwaza Muthini foi um de uma série de combates que se deram no local, no âmbito da conquista portuguesa para a ocupação efectiva. Do ponto de vista português, essas batalhas eram conhecidas por Campanhas de Pacificação. Para os locais era resistência à ocupação portuguesa.
Entretanto, a celebração desta data não é de todo original do Estado moçambicano. Um ano após a batalha de Marracuene, em 1896, as autoridades coloniais portuguesas celebraram o Gwaza Muthini em memória dos soldados portugueses mortos na batalha.
A celebração por parte de Moçambique teve início em 1974, tendo havido na época apenas três celebrações, em 1974, 1975 e 1976.
A mesma voltou a ser reactivada pelo empresário moçambicano António Yok Chan em 1994. 
Para encerrar as actividades programadas para a VII edição do Festival Marrabenta na província de Maputo, no dia 3 de Fevereiro, o Centro Cultural de Matalane vai acolher o “Acústico Marrabenta”, uma sessão de música acústica concebida pelo falecido artista plástico Malangatana Velente Ngwenha, em 2009.
O Festival Marrabenta foi concebido pelo Laboratório de Ideias em 2008 e tem como objectivos valorizar e promover a cultura moçambicana, em particular a marrabenta, sem se dissociar das questões sociais bem como a promoção da cidadania, entretenimento e promoção de intercâmbio e diálogo entre a velha e nova geração.

Durante os sete anos do festival foram vários os artistas contribuíram para sucesso deste evento, alguns dos quais já não fazem parte do mundo dos vivos como são os casos de Augusto Rodrigues, Tony Django, Sox, Victor Bernardo e Frascisco Mahecuane.

09 janeiro 2014

O lugar de Eusébio no Estado Novo

Por NUNO DOMINGOS 

O discurso do Estado Novo sobre o negro mudou nos anos 60 e Eusébio ajustava-se bem a esta imagem.


No Portugal dos anos 60, abundavam as imagens de Eusébio da Silva Ferreira. Ele aí estava, espalhado por jornais e revistas, mas também em programas e serviços noticiosos da Radiotelevisão Portuguesa. Atleta do Benfica e da selecção nacional, sempre na sua função de jogador de futebol, era aclamado pelo seu inegável talento. No Portugal metropolitano de então, onde rareavam ainda os naturais de África, nunca um negro merecera tanto destaque e fora objecto de tamanha glória. Uma representação destas distinguia-se da imagem do africano, que proliferara na cultura popular. Como demonstrou Isabel Castro Henriques (A Herança Africana em Portugal, ed. CTT), o negro era quase sempre  ridicularizado com evidente crueldade, em livros, imagens, jornais, bandas desenhadas, campanhas publicitárias e anedotas. A construção de um outro tipo de africano, fundada numa distância que permitia as maiores efabulações, só tomou um sentido mais concreto durante a guerra colonial, onde o africano era o inimigo, o "turra".
Desde os seus primórdios, o Estado Novo contribuíra decisivamente para a disseminação de um racismo generalizado, garantindo-lhe até um carácter científico. Em exposições e congressos, nos trabalhos de diversas ciências coloniais, e em muitas publicações oficiais, expunha-se um outro africano culturalmente diferente, que fazia parte integrante do império português, mas que era colocado à parte, como se se tratasse de um todo racial e cultural discrepante. O império afirmara o atraso civilizacional das populações africanas, legitimando assim uma conquista colonial anunciada como uma missão de desenvolvimento destas regiões e dos seus povos. Justificou-se, desta forma, que Portugal atribuísse uma cidadania específica à maioria dos povos que governava, enquadrada pelo chamado sistema de indigenato, que cessou em 1961, precisamente no ano em que Eusébio começou a jogar no Benfica, depois de chegar a Portugal em Dezembro de 1960.
É evidente que as retóricas integracionistas do Estado Novo na década de 60 obrigavam a outras representações do africano, nomeadamente a de um sujeito colonial assimilado à sociedade portuguesa. Eusébio ajustava-se bem a esta imagem. A sua autobiografia, publicada em 1966 em Portugal e redigida por Fernando G. Garcia a partir de um conjunto de entrevistas (traduzida em inglês no ano seguinte), conta a história de um "bom rapaz", narrativa mestra e memória oficial a partir daí repetida em jornais, biografias e bandas desenhadas.
A "verdadeira" história de Eusébio apresenta um conjunto de etapas, do Bairro da Mafalala na Lourenço Marques colonial, onde vivia com a mãe Elisa num contexto de pobreza honrada, os jogos de bairro e a equipa dos "brasileiros", as idas à escola, o deslumbramento com o centro da cidade colonial, que pouco conhecia, a entrada no futebol local, a transferência atribulada para o Benfica e os diversos passos da brilhante carreira profissional.
Nesta história, a lista impressionante de feitos desportivos é intervalada pelo relato do casamento com Flora e pela incorporação de Eusébio, em 1963, no Exército português, profusamente fotografada e utilizada como propaganda. A incorporação militar, o casamento e a vida familiar contribuíam para a construção quase perfeita da biografia de um indivíduo assimilado, preocupado com o trabalho e com a família e plenamente integrado no Portugal de Salazar, um jovem de origens desfavorecidas que, apesar da sua notoriedade, continuava a perceber o seu lugar social.
A apropriação oficial da imagem de Eusébio não anulava os efeitos produzidos pelo facto de um negro se ter tornado uma figura dominante da cultura popular portuguesa. Eusébio entrou, tal como a fadista Amália, num universo de glorificação cultural até aí constituído por indivíduos com origens e percursos muito distintos, consagrados em actividades oficialmente legitimadas e de onde o futebol e o fado se encontravam afastados.
Apesar do reconhecimento do seu mérito, a apreciação entusiástica que mereceu não resultava de uma inusitada consciência de igualdade racial, tão-pouco poderia servir de prova de que a sociedade portuguesa estava preparada, devido a uma característica cultural adquirida, a aceitar a diferença. A relevância de Eusébio dependia do seu valor enquanto elemento de uma economia particular, no contexto de uma troca muito específica, proporcionada pelo processo de profissionalização do futebol. O jogador moçambicano oferecia quase todas as semanas capitais preciosos à representação nacional mas sobretudo clubista, a uma específica cidadania exercida diariamente por muitos indivíduos, quase todos homens, durante incontáveis encontros, conversas e imensas retóricas, nos quais se manifestava uma identificação, uma forma de apresentação na vida de todos os dias. Os que no campo representavam com o seu génio desportivo esta pertença (ser do Benfica, do Sporting, do Porto, ou da selecção) mereciam quase todas as recompensas, independentemente da sua origem ou da cor da sua pele. O valor de Eusébio nesta economia particular dependia da manutenção de um nível performativo constante, de um ritmo laboral intenso, com consequências físicas conhecidas, como asseveram as inúmeras cirurgias ao seu martirizado joelho.
As exibições no Mundial de 1966 ampliaram a reputação de Eusébio, oferecendo-lhe uma dimensão global. Este enorme atleta, personagem principal de uma cultura de consumo em expansão que gerava novas identificações, juntou-se à memória visual colectiva de uma geração, ao lado de outros ícones da cultura popular dos anos 60. Em Inglaterra, país que na altura já abdicara da grande parte das suas colónias, governada em 1966 por um governo trabalhista, os negros eram uma enorme raridade nos campeonatos desportivos e nenhum chegara à selecção nacional.
O efeito do poder mediático de vedetas populares como Eusébio foi alvo de escrutínio, as suas posições interpretadas, os resultados políticos dos seus actos avaliados. Se o Estado Novo sempre desconfiara da espectacularização do desporto assente no movimento associativo, veio depois a perceber que esta lhe podia ser útil. Para as oposições ao regime, menos preocupadas em reconhecer o efeito propriamente político da invulgar notoriedade social de um negro em Portugal, importava denunciar a utilização de Eusébio na defesa da "situação", enquanto elemento da narcotização do povo - ao lado do fado, do chamado nacional-cançonetismo e de Fátima - e especificamente da propaganda imperial, fundada na mitologia do pluri-racialismo, num período em que Portugal lutava pelos seus territórios numa guerra travada em três frentes.
É interessante verificar que nas últimas décadas Eusébio veio a tornar-se objecto de interesse para os estudiosos do continente africano, entendido como um pioneiro do futebol em África, um exemplo de talento extraordinário e, simultaneamente, ao lado de outros grandes nomes negros da história do desporto internacional, nomeadamente norte-americanos, desde Joe Louis a Jesse Owens, alguém que vingara num mundo fortemente discriminatório. O desejo de alguns académicos e jornalistas estrangeiros em encontrar no discurso de Eusébio posições emancipadoras e politizadas esbarrou quase sempre em respostas evasivas e no habitual refúgio no mundo do futebol. Na verdade, o universo que ele, desde pequeno nos espaços livres da Mafalala, aprendera a dominar. Para aquele que foi considerado, depois do Mundial de 1966, como "o melhor da Europa", e de quem se falava estar a disputar com Pelé o título de "rei do futebol mundial", África e a política africana estavam muito longe.

De regresso a África
O Estado Novo tratou de voltar a lembrar que Eusébio era africano, parte de um Portugal enorme que se prolongava para sul. Se é evidente que o impacto de Eusébio na sociedade portuguesa não pode ser avaliado apenas à luz de uma história política, sendo essencial investigar o efeito simbólico da notabilidade de um jogador negro, é também certo que na década de 60 a sua glória serviu a defesa de uma excepcionalidade colonial. Foi esta que serviu de justificação à soberania sobre os territórios africanos e a sua história, contada e recontada até aos nossos dias, contribuiu para lançar um manto sobre o passado, ajudando a reproduzir mitos sobre a tolerância racial dos portugueses.
Um ano antes do Mundial de 1966, o embaixador português Franco Nogueira, numa conferência na embaixada portuguesa em Londres (em Maio de 1965), falou sobre os princípios orientadores da política portuguesa em África: "O nosso primeiro princípio orientador é a igualdade racial - uma pequena noção que trouxemos para África há mais ou menos 500 anos". Portugal orgulhava-se do seu império se constituir como um "espaço multirracial", uma "democracia racial real" onde todos "trabalham harmoniosamente para os mesmos fins".
Falso e mitificador, o olhar de Franco Nogueira, ao incluir o império dentro da sociedade portuguesa, acabava por realçar o facto de que o mundo governado pelos portugueses na década de 60 era maioritariamente negro e africano, realidade por vezes esquecida nas análises historiográficas sobre Portugal. E qual era o lugar que a gestão colonial portuguesa atribuíra a esta grande maioria da população? Segundo a história mediatizada da vida de Eusébio existia em Moçambique um contexto de igualdade de oportunidades e uma ausência de preconceito racial, bem ilustrados por um percurso de mobilidade social, desde o Bairro da Mafalala até à metrópole e aos grandes estádios europeus.
Poderá um caso excepcional ilustrar a excepcionalidade de um regime colonial? É que o lugar da população africana, na grande sociedade portuguesa de 60, era bem diferente do representado pelo caso de Eusébio. A sua integração estava longe de estabelecer qualquer padrão que pudesse explicar os 500 anos de colonialismo de que falava Franco Nogueira.
Mais fiável parecia ser a história da cidade onde o jogador moçambicano cresceu. Desde a sua fase moderna, iniciada no final do século XIX e projectada pela industrialização da África do Sul, que Lourenço Marques se dividira entre um centro colono, predominantemente branco, e um subúrbio precário, predominantemente negro. Pela força, afastaram-se as populações locais para a periferia. Separada fisicamente, a mão-de-obra africana que se acumulava nos subúrbios, essencial para o funcionamento do sistema colonial, foi enquadrada por leis e normas. Estas regulavam uma discriminação racial, a qual era evidente não apenas na lógica do indigenato, mas que se traduzia no quotidiano, nos espaços públicos, nas escolas, nos transportes e nos locais de trabalho, onde sofreram durante muito tempo o flagelo do trabalho forçado. O historiador Valdemir Zamparoni explicou bem este mesmo processo, na sua tese sobre a capital de Moçambique.
Já depois do fim do indigenato persistia o que, num artigo publicado em 1963 no jornal A Tribuna, o arquitecto Pancho Guedes chamava de "cinto do caniço" que separava o centro urbano da "cidade dos pobres, dos serventes e dos criados", isto é a cidade dos africanos. Lourenço Marques carecia então, segundo o arquitecto, de "uma genuína integração social - ou serão os "pretos" só para estar nas cozinhas e nas recepções?"
Os habitantes dos bairros periféricos da cidade, onde nasceu Eusébio em 1942, trabalhavam nas indústrias locais, nos portos e nos caminhos-de-ferro, nos serviços domésticos, em actividades ditas informais, dependendo de pequenas lavras, ou faziam parte da forte emigração para o país vizinho, controlada e taxada pelo estado colonial. Esta estrutura laboral era fortemente racializada, pertencia a um sistema onde a cor da pele mostrava os contornos da organização social. Na grande sociedade portuguesa de 60, o lugar dessa maioria africana, mesmo depois do fim do indigenato, continuava a revelar a herança de um colonialismo predador e racista, não muito diferente dos outros colonialismos nos seus propósitos e objectivos, nos meios e nas estratégias, e absolutamente nada excepcional.
Explicada pela conjugação única entre a profissionalização do futebol e a procura de talentos, a força da cultura popular mediática e um regime que necessitava de defender por todas as formas o mito do pluri-racialismo lusófono, a carreira extraordinária de Eusébio não belisca a imagem pérfida do sistema colonial português. Tão-pouco deve servir de modelo para descrever, hoje, as relações raciais em Portugal.
Investigador do ICS-UL


08 janeiro 2014

RECORDANDO O GRANDE MESTRE MALANGATANA



ASSINALOU-SE no último domingo, 05 de Janeiro, o terceiro ano sobre o desaparecimento físico do pintor-mor moçambicano, o mestre Malangantana.
Malangatana Valente Ngwenya nasceu a 6 de Junho de 1936 e perdeu a vida a 5 de Janeiro, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, Portugal, vítima de doença prolongada e os seus restos mortais repousam em Matalana, sua terra natal.
Frequentou a Escola da Missão Suíça, em  Matalana, onde aprendeu a ler e a escrever em ronga. Encerrada a escola protestante, transita para a da missão católica em Bulázi, onde conclui a terceira classe rudimentar e parte depois para Lourenço Marques, onde arranja emprego como criado de crianças. Foi “apanhador de bolas” e  criado de mesa no Clube de Lourenço Marques, frenquentado pela elite colonial.
A partir de 1959, descobertas as suas capacidades artísticas, Malangatana envereda por uma carreira de pintor profissional, com o apoio de Augusto Cabral e do Arqt. Miranda Guedes (Pancho), que lhe cedeu a garagem para atelier e lhe  adquiria dois quadros por mês, para que se pudesse manter.
Em 1961, Malangatana realiza a sua 1.ª exposição individual em Lourenço Marques, na Associação dos Organismos Económicos. Torna-se frequentador assíduo do Núcleo de Arte de Lourenço Marques, onde contacta com os artista da época e onde começa a mostrar os seus trabalhos de cariz eminentemente social.
Após o início da luta armada em Moçambique, Malangatana junta-se à rede clandestina da FRELIMO, desenvolvendo actividades que levaram a PIDE a afirmar, mais tarde, que Malangatana servia de cartaz de propaganda política antagónica à linha da administração ultramarina portuguesa, tendo sido preso por duas vezes pela polícia do Estado Novo (1966/1968).
Em 1971, recebe uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para vir para Lisboa especializar-se em  gravura. Trabalhou em gravura, na Sociedade Cooperativa dos Gravadores Portugueses e, em cerâmica, na Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego. No mesmo ano, expõe na Livraria Bucholz e na Sociedade Nacional de Belas Artes.
Em 1973, vai para a Suíça a convite de amigos, onde tem contactos com diferentes galerias e artistas que lhe abrem novos horizontes.
Com a independência de Moçambique, Malangatana envolve-se directamente na actividade política, participando em acções de mobilização e alfabetização, sendo enviado para Nampula com o objectivo de organizar as aldeias comunais.
Foi um dos criadores do Museu Nacional de Arte de Moçambique e convidado a criar o Centro de Estudos Culturais, actual Escola Nacional de Artes Visuais. Procurou manter e dinamizar o Núcleo de Arte (associacção que agrupa os artistas plásticos) e criou os núcleos dos artesãos das zonas verdes de Maputo.
Desenvolve intensa  actividade no âmbito do Grupo Dinamizador do Bairro do Aeroporto, onde reside, e participa em múltiplas actividades cívicas e sociais. Intervém na organização da Escolinha dominical “Vamos Brincar”, promovida pela UNICEF. Na sequência, é convidado para ir à Suécia (1987) participar em actividades similares com crianças e refugiados de diversos países.
Foi um dos criadores do Movimento para a Paz. Pertence à Direcção da Liga dos Escuteiros de Moçambique (LEMO), e é membro da Direcção da Associacção dos Amigos da Criança. Foi deputado pela FRELIMO, de 1990 até às primeiras eleições multipartidárias, em 1994, a que não foi candidato. Em 1998, é eleito pela FRELIMO para a Assembleia Municipal de Maputo e, em 2003, é nomeado vereador do Município pelo pelouro da Cultura, Desporto e Juventude.
Terminada a guerra civil em 1992, retomou o projecto cultural que impulsionara na sua aldeia de Matalana, surgindo assim a Associação do Centro Cultural de Matalana, de grande valor social e cívico, de que é o actual  presidente. Foi membro do júri para os cartões de boas festas da UNICEF, bem como de outros eventos de artes plásticas tanto em Moçambique como no estrangeiro. Foi Vice-Comissário nacional para a área da cultura de Moçambique na EXPO98 (Lisboa), em Portugal,  e  Hannover 2000, na Alemanha.
A sua obra é reconhecida em todo o mundo, participando em múltiplas exposições individuais e colectivas, integrando diversos júris, em Moçambique e no estrangeiro, bem como participando em múltiplos e diversos workshops. Pintor, ceramista, cantor, actor, dançarino, Malangatana é uma presença assídua em numerosos festivais, afirmando sempre a sua origem africana e moçambicana.
Em 1996 e 2004, publica dois livros de poemas que reúnem a sua obra poética desde os anos sessenta. O último é ilustrado com vinte e quarto desenhos inéditos. A 6 de Junho de 2006, é homenageado em Matalana por ocasião do seu 70.º aniversário, sendo condecorado pelo Presidente da República de Moçambique com a Ordem Eduardo Mondlane do 1.º Grau, o mais alto galardão do país, em reconhecimento do trabalho desenvolvido não só nas artes plásticas mas também como o grande embaixador da cultura moçambicana. Nessa mesma data foi lançada a Fundação Malangatana Ngwenya, com sede em Matalana, sua terra natal. Em 2007, foi condecorado pelo governo francês com a distinção de Comendador das Artes e Letras. Foi-lhe atribuído o doutoramento ”Honoris Causa” pela Universidade Politécnica de Maputo, em 2007, e, em 2010, pela Universidade de Évora.
A sua vida e obra tem sido objecto de vários filmes e documentários, estando representado em vários museus, por todo o mundo, bem como, em inúmeras colecções particulares.


“Italiana” a última obra

Meses antes da sua morte, Malangatana realizou um grande sonho. Seu e da família Ferreira dos Santos. Um grande projecto de carácter social e artística.
O mestre Malangatana pegou num carro, Fiat 500, e transformou-o numa tela ao artista. Apelidava a viatura em que trabalhou durante o seu último mês em Maputo, de “a Italiana” porque diariamente, sempre que ia para as oficinas afirmava que “tinha encontro com a Italiana” referindo-se à nacionalidade da marca do carro, Fiat.
Concluiu a obra, mas não foi a tempo de apresenta-la ao mundo, tarefa que coube às famílias envolvidas no projecto e que pretendem, deste modo, homenagear um dos maiores artistas africanos de todos os tempos.
Tida como obra única no mundo, "A Italiana" foi apresentada através de um leilão e em Julho de 2011 foi arrematada por 242.500 dólares americanos contra o valor base de licitação que era de 125.000 dólares.
A ideia que norteou o projecto é que o valor obtido no leilão iria reverter para o desenvolvimento da cultura e arte moçambicanas através da formação aos mais jovens e carenciados.

Noticias, Quarta, 08 Janeiro 2014

EUSÉBIO




Dispensa-se dizer que é um astro absoluto no firmamento do futebol, conhecido em todo o mundo. Foi a estrela mais brilhante do Mundial de 1966, o primeiro a ser transmitido em directo pela televisão, e o mundo inteiro pude ver, em branco e preto, as suas acrobacias. Eusébio, “o artilheiro africano de Portugal que conseguiu atravessar por nove vezes essas impenetráveis muralhas nas retaguardas rivais”, ganhando o primeiro lugar na classificação dos goleadores.

Costuma-se dizer que foi com Pelé e com Eusébio, chamado “a resposta europeia ao Pelé” apesar de ser apenas de dois anos mais novo, que o futebol mudou a cor da pele, numa curiosa sintonia com as vitórias que nos anos 60 os portugueses conseguiam graças aos futebolistas negros e mulatos moçambicanos com as vitórias que obtêm os futebolistas negros e mulatos brasileiros.

Muito antes de George Weah, Didier Drogba, Michael Essien ou Samuel Eto’o, havia o nome de Eusébio da Silva Ferreira que, mesmo jogando toda a sua carreira profissional em Portugal, no Benfica, de 1961 até 1975, Moçambique e África podem orgulhar-se de terem como símbolo do futebol mundial de uma inteira época. Sempre disse que a sua foi a melhor geração de sempre. “Era só coração e é por isso que havia assim tantos jogadores bons. Portugal, Inglaterra, Brasil, Argentina: muitos. Por isso eu fico feliz com aquilo que tive, de ter sido um grande jogador. Fico feliz de ter sido parte de uma época.”

A história de Eusébio é paradigmática e pode ser interpretada como um “furto” ao futebol africano ou como o “reconhecimento” do valor dos futebolistas africanos na Europa e no mundo. Qualquer seja a resposta, o dado mais relevante é que ele foi um vencedor e os seus golos foram fundamentais para uma nova e positiva visão dos futebolistas africanos. Claro que havia muita ambiguidade porque o futebol estava perfeitamente inserido no sistema colonial, num período em que a luta anticolonial atinge o seu ápice, como é recordado por Mauro Valeri, no livro La razza in campo: a FRELIMO, a Frente de Libertação de Moçambique, é criada em 1962, dois meses antes da final da Copa dos Campeões, por Eduardo Mondlane, que será assassinado em 1969 com uma carta-bomba.

Mia Couto descreve esta ambiguidade emO dia em que fuzilaram o guarda-redes da minha equipa. Nesse conto exemplar, no bar Viriato, algures em Moçambique, um dia, um dos bonecos dos matraquilhos apareceu pintado de preto. Os soldados portugueses desataram a rir e chamaram o boneco de Eusébio. De repente, mais três bonecos ficaram pretos, então ficaram com os nomes de Coluna, Vicente e Matateu. O dono do bar estava muito zangado, mas não estava à espera daquilo que aconteceu logo a seguir. Os bonecos ficaram todos pretos. Chegaram os soldados, mas já ninguém deles se ria. Estavam irritados. Até que um deles, com a espuma de raiva na boca, sacou a pistola e disparou contra o guarda-redes que ficou reduzido em estilhaços espalhados pelo bar.  

Como todos os miúdos, Eusébio jogara futebol nos descampados e com a bola de trapos, mostrando, desde logo, as suas qualidades extraordinárias. Como todos os grandes, conta com muito orgulho as suas origens, “já era um grande jogador, só não era profissional”. Eduardo Galeano descreve com esta imagem a infância do futebolista moçambicano: “Filho de mãe viúva, jogava futebol com os seus muitos irmãos nos areais dos subúrbios, do amanhecer ao pôr-do-sol. Chegou aos campos de futebol a correr como só corre alguém que foge da polícia ou da miséria que lhe morde os calcanhares. E dessa forma, disparado em ziguezague, foi campeão da Europa aos vinte anos. Então chamaram-lhe a Pantera”.

O primeiro clube do Eusébio foi “Os Brasileiros”, na Mafalala, o bairro onde vivia. Os seus ídolos eram Garrincha, Didi, Pelé. “Nasceu destinado a engraxar sapatos, vender amendoim ou roubar os incautos. Em criança, chamavam-lhe Ninguém”, escreveu Eduardo Galeano no belíssimo retrato que publicou no livro Futebol: sol e sombra. “Foi africano de Moçambique o melhor jogador de toda a história de Portugal. Eusébio: pernas altas, braços caídos, olhar triste.”

Aquelas pernas altas que lhe davam uma velocidade estonteante chamaram à atenção os olheiros do Benfica de Lisboa que o recrutaram imediatamente para jogar em Portugal, enquanto jogava pelo Sporting de Lourenço Marques.

Na verdade, Eusébio queria jogar no Desportivo, porque o ídolo dele, em Moçambique, era Mário Coluna. Mas quando se apresentou para o teste com a equipa, foi mandado embora porque não tinha o equipamento para treinar. Ofendido, foi directamente para o Sporting que o aceitou imediatamente.

A sua carreira internacional está marcada pelo Sport Lisboa e Benfica. Existem diversas histórias à volta da ida de Eusébio para o Benfica. A mãe, Elisa Anissabeni, está presente em todas. A primeira história conta que, no começo de 1961, chegou a Lourenço Marques a equipa brasileira do São Paulo, treinada por Josi Bauer. Tendo o Sporting de Lourenço Marques ganho o último campeonato, organizou uma partida com a equipa brasileira. Eusébio marcou dois golos e jogou uma belíssima partida. Josi Bauer queria mesmo que ele ficasse na sua equipa, mas não conseguiu chegar a um acordo económico. Falou dele aos dirigentes do Benfica que “namoraram” a mãe de Eusébio e conseguiram o campeão. A outra versão da história reza que Bauer teria falado com Bela Guttman, o então treinador do Benfica, num barbeiro em Lisboa e esse apanhou logo a seguir o avião para ver com os seus olhos o fenómeno, em Lourenço Marques. Existe ainda uma versão que fala de um italiano, Ugo Amoretti, treinador da selecção dos Naturais de Moçambique, não se sabe como. Foi para Itália de férias com o objectivo de encontrar um clube que contratasse o jovem Eusébio. Quando regressou para fechar o negócio, o jogador já tinha sido recrutado pelo Benfica, com a bênção da mãe. 

Eusébio costuma dizer que os dirigentes do Benfica foram muito atenciosos com a família. “Foram falar com a minha mãe e o meu irmão, e ofereceram 1.000 euros por três épocas. O meu irmão pediu o dobro e eles pagaram. Eles assinaram o contrato com minha mãe e deram-lhe o dinheiro. Ela depositou-o no banco em Moçambique com a cláusula que se o filho não se tornasse um campeão de futebol, devolveria o dinheiro!”

Na Europa encontraria outros moçambicanos, Matateu, Vicente, Hilário, Mário Coluna, que chegara ao Benfica em 1954. O salário de Eusébio era duas vezes mais alto que o salário mais bem pago até então a um futebolista africano... Pois ele era a Pérola Negra. Ele era o Rei! Mas naquela época, os contratos não eram milionários como hoje. Por isso, Eusébio fica feliz quando vê os jogadores actuais assinarem contratos muito chorudos. “Fomos nós que ajudamos a que isso se tornasse possível!”, diz Eusébio que se tornou uma estátua viva. Ele foi o único futebolista que teve direito a uma estátua, no estádio onde se fez campeão profissional, ainda em vida.

No auge da sua carreira foram muitos os clubes europeus que o queriam. O Inter e a Juventus, na Itália, o Real Madrid, na Espanha, entre outros. Em 1964, aquando do convite da Juventus, o presidente do conselho dos ministros de Portugal, António Salazar, decretou Eusébio como instituição nacional, mandou-o para a tropa e apenas teve autorização para sair de Portugal para compromissos de futebol.

Foram vinte anos de carreira numa época em que o jogo era muito duro. Quase brutal. E não havia as atenções para a preparação física como há hoje. O joelho direito de Eusébio é o testemunho disso. Foi operado seis vezes no mesmo sítio. Ele bem queria jogar até aos 50 anos como Sir Stanley Matthews ou como Matateu, mas teve que parar aos 39. Depois de ter sido premiado com duas Botas de Ouro e com sete Bolas de Prata. E ter-se tornado uma lenda do futebol mundial.

PAOLA ROLLETTA



* Texto que inclui no livro “Finta Finta” (Texto Editores, 2012), que reúne perfis de 31 futebolistas de Moçambique que fizeram sucesso no estrangeiro

Notícias, Quarta, 08 Janeiro 2014