08 janeiro 2014

EUSÉBIO




Dispensa-se dizer que é um astro absoluto no firmamento do futebol, conhecido em todo o mundo. Foi a estrela mais brilhante do Mundial de 1966, o primeiro a ser transmitido em directo pela televisão, e o mundo inteiro pude ver, em branco e preto, as suas acrobacias. Eusébio, “o artilheiro africano de Portugal que conseguiu atravessar por nove vezes essas impenetráveis muralhas nas retaguardas rivais”, ganhando o primeiro lugar na classificação dos goleadores.

Costuma-se dizer que foi com Pelé e com Eusébio, chamado “a resposta europeia ao Pelé” apesar de ser apenas de dois anos mais novo, que o futebol mudou a cor da pele, numa curiosa sintonia com as vitórias que nos anos 60 os portugueses conseguiam graças aos futebolistas negros e mulatos moçambicanos com as vitórias que obtêm os futebolistas negros e mulatos brasileiros.

Muito antes de George Weah, Didier Drogba, Michael Essien ou Samuel Eto’o, havia o nome de Eusébio da Silva Ferreira que, mesmo jogando toda a sua carreira profissional em Portugal, no Benfica, de 1961 até 1975, Moçambique e África podem orgulhar-se de terem como símbolo do futebol mundial de uma inteira época. Sempre disse que a sua foi a melhor geração de sempre. “Era só coração e é por isso que havia assim tantos jogadores bons. Portugal, Inglaterra, Brasil, Argentina: muitos. Por isso eu fico feliz com aquilo que tive, de ter sido um grande jogador. Fico feliz de ter sido parte de uma época.”

A história de Eusébio é paradigmática e pode ser interpretada como um “furto” ao futebol africano ou como o “reconhecimento” do valor dos futebolistas africanos na Europa e no mundo. Qualquer seja a resposta, o dado mais relevante é que ele foi um vencedor e os seus golos foram fundamentais para uma nova e positiva visão dos futebolistas africanos. Claro que havia muita ambiguidade porque o futebol estava perfeitamente inserido no sistema colonial, num período em que a luta anticolonial atinge o seu ápice, como é recordado por Mauro Valeri, no livro La razza in campo: a FRELIMO, a Frente de Libertação de Moçambique, é criada em 1962, dois meses antes da final da Copa dos Campeões, por Eduardo Mondlane, que será assassinado em 1969 com uma carta-bomba.

Mia Couto descreve esta ambiguidade emO dia em que fuzilaram o guarda-redes da minha equipa. Nesse conto exemplar, no bar Viriato, algures em Moçambique, um dia, um dos bonecos dos matraquilhos apareceu pintado de preto. Os soldados portugueses desataram a rir e chamaram o boneco de Eusébio. De repente, mais três bonecos ficaram pretos, então ficaram com os nomes de Coluna, Vicente e Matateu. O dono do bar estava muito zangado, mas não estava à espera daquilo que aconteceu logo a seguir. Os bonecos ficaram todos pretos. Chegaram os soldados, mas já ninguém deles se ria. Estavam irritados. Até que um deles, com a espuma de raiva na boca, sacou a pistola e disparou contra o guarda-redes que ficou reduzido em estilhaços espalhados pelo bar.  

Como todos os miúdos, Eusébio jogara futebol nos descampados e com a bola de trapos, mostrando, desde logo, as suas qualidades extraordinárias. Como todos os grandes, conta com muito orgulho as suas origens, “já era um grande jogador, só não era profissional”. Eduardo Galeano descreve com esta imagem a infância do futebolista moçambicano: “Filho de mãe viúva, jogava futebol com os seus muitos irmãos nos areais dos subúrbios, do amanhecer ao pôr-do-sol. Chegou aos campos de futebol a correr como só corre alguém que foge da polícia ou da miséria que lhe morde os calcanhares. E dessa forma, disparado em ziguezague, foi campeão da Europa aos vinte anos. Então chamaram-lhe a Pantera”.

O primeiro clube do Eusébio foi “Os Brasileiros”, na Mafalala, o bairro onde vivia. Os seus ídolos eram Garrincha, Didi, Pelé. “Nasceu destinado a engraxar sapatos, vender amendoim ou roubar os incautos. Em criança, chamavam-lhe Ninguém”, escreveu Eduardo Galeano no belíssimo retrato que publicou no livro Futebol: sol e sombra. “Foi africano de Moçambique o melhor jogador de toda a história de Portugal. Eusébio: pernas altas, braços caídos, olhar triste.”

Aquelas pernas altas que lhe davam uma velocidade estonteante chamaram à atenção os olheiros do Benfica de Lisboa que o recrutaram imediatamente para jogar em Portugal, enquanto jogava pelo Sporting de Lourenço Marques.

Na verdade, Eusébio queria jogar no Desportivo, porque o ídolo dele, em Moçambique, era Mário Coluna. Mas quando se apresentou para o teste com a equipa, foi mandado embora porque não tinha o equipamento para treinar. Ofendido, foi directamente para o Sporting que o aceitou imediatamente.

A sua carreira internacional está marcada pelo Sport Lisboa e Benfica. Existem diversas histórias à volta da ida de Eusébio para o Benfica. A mãe, Elisa Anissabeni, está presente em todas. A primeira história conta que, no começo de 1961, chegou a Lourenço Marques a equipa brasileira do São Paulo, treinada por Josi Bauer. Tendo o Sporting de Lourenço Marques ganho o último campeonato, organizou uma partida com a equipa brasileira. Eusébio marcou dois golos e jogou uma belíssima partida. Josi Bauer queria mesmo que ele ficasse na sua equipa, mas não conseguiu chegar a um acordo económico. Falou dele aos dirigentes do Benfica que “namoraram” a mãe de Eusébio e conseguiram o campeão. A outra versão da história reza que Bauer teria falado com Bela Guttman, o então treinador do Benfica, num barbeiro em Lisboa e esse apanhou logo a seguir o avião para ver com os seus olhos o fenómeno, em Lourenço Marques. Existe ainda uma versão que fala de um italiano, Ugo Amoretti, treinador da selecção dos Naturais de Moçambique, não se sabe como. Foi para Itália de férias com o objectivo de encontrar um clube que contratasse o jovem Eusébio. Quando regressou para fechar o negócio, o jogador já tinha sido recrutado pelo Benfica, com a bênção da mãe. 

Eusébio costuma dizer que os dirigentes do Benfica foram muito atenciosos com a família. “Foram falar com a minha mãe e o meu irmão, e ofereceram 1.000 euros por três épocas. O meu irmão pediu o dobro e eles pagaram. Eles assinaram o contrato com minha mãe e deram-lhe o dinheiro. Ela depositou-o no banco em Moçambique com a cláusula que se o filho não se tornasse um campeão de futebol, devolveria o dinheiro!”

Na Europa encontraria outros moçambicanos, Matateu, Vicente, Hilário, Mário Coluna, que chegara ao Benfica em 1954. O salário de Eusébio era duas vezes mais alto que o salário mais bem pago até então a um futebolista africano... Pois ele era a Pérola Negra. Ele era o Rei! Mas naquela época, os contratos não eram milionários como hoje. Por isso, Eusébio fica feliz quando vê os jogadores actuais assinarem contratos muito chorudos. “Fomos nós que ajudamos a que isso se tornasse possível!”, diz Eusébio que se tornou uma estátua viva. Ele foi o único futebolista que teve direito a uma estátua, no estádio onde se fez campeão profissional, ainda em vida.

No auge da sua carreira foram muitos os clubes europeus que o queriam. O Inter e a Juventus, na Itália, o Real Madrid, na Espanha, entre outros. Em 1964, aquando do convite da Juventus, o presidente do conselho dos ministros de Portugal, António Salazar, decretou Eusébio como instituição nacional, mandou-o para a tropa e apenas teve autorização para sair de Portugal para compromissos de futebol.

Foram vinte anos de carreira numa época em que o jogo era muito duro. Quase brutal. E não havia as atenções para a preparação física como há hoje. O joelho direito de Eusébio é o testemunho disso. Foi operado seis vezes no mesmo sítio. Ele bem queria jogar até aos 50 anos como Sir Stanley Matthews ou como Matateu, mas teve que parar aos 39. Depois de ter sido premiado com duas Botas de Ouro e com sete Bolas de Prata. E ter-se tornado uma lenda do futebol mundial.

PAOLA ROLLETTA



* Texto que inclui no livro “Finta Finta” (Texto Editores, 2012), que reúne perfis de 31 futebolistas de Moçambique que fizeram sucesso no estrangeiro

Notícias, Quarta, 08 Janeiro 2014


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