10 setembro 2012

ISLÃO EM MOÇAMBIQUE


ISLÃO EM MOÇAMBIQUE
ENTREVISTA AO PROF. FERNANDO AMARO MONTEIRO
Por: ANTÓNIO PACHECO, Jornalista
O islão é tão violento como o foi o cristianismo das cruzadas ou como o é ainda em algumas zonas», assegura o prof. Fernando Amaro Monteiro. Um dos poucos estudiosos portugueses que conhecem a fundo o mundo muçulmano. E um apaixonado por uma faceta recalcada da nossa identidade, que, apesar de católico, não hesita em confessar: «Um dos momentos mais próximos de Deus que passei foi numa mesquita muito pobre, uma palhota, numa sexta-feira, durante o período da oração. Era Deus que estava ali.

Está a preparar um livro sobre as confluências religiosas na Guiné desde o século XVII até aos finais do século XIX. Uma das coisas que notou, aliás como sempre aconteceu em relação a Moçambique, é que as fontes documentais portugueses são empíricas na apreciação dos muçulmanos como realidade religiosa, e no entanto «eles eram uma concorrente fortíssima no terreno». Fernando Amaro Monteiro considera que o passado islâmico está «presente e bem sedimentado» em Portugal, como componente da nossa cultura e como «atitude», e que, «se calhar, é por causa disso que os portugueses não analisam, ou analisam muito pouco, os reflexos desse passado na psicologia colectiva». «Como se tivessem medo de se confrontarem consigo mesmos, de se verem ao espelho.»

O professor é, em Portugal, um dos poucos especialistas do islão. Como vê esta «diabolização» que acompanha a realidade muçulmana de hoje, especialmente no chamado mundo ocidental?
É erradíssima. Como atitude, como juízo, e como processo. Induz à violência. Formou-se como que um círculo vicioso. Nas áreas do islão onde a violência é mais impressiva, os ingredientes para ela lá estão: pobreza, situação interna periclitante, exploração, em resumo todas as razões objectivas da revolta. Isolar essas realidades é o pior que se pode fazer. E a análise que possa levar a isso está errada: o islão, como comunidade religiosa, pode ser tão violento como foi a cristandade das cruzadas ou como, no final do século XX, a ortodoxia cristã nos Balcãs, por exemplo. É verdade que, do ponto de vista doutrinal, contém elementos que são susceptíveis, num plano de «acção psicológica», de induzir a acções ou reacções violentas. Nega a Trindade, e portanto não veicula uma regra como a de «amai-vos uns aos outros como Eu vos amei». O arquétipo islâmico é diferente. Recomenda a paz e estimula a sua promoção, mas prevê e condiciona as hipóteses da violência. Não na essência de um comportamento, mas nos procedimentos humanos previsíveis. É espiritualista, sim, indubitavelmente. Mas lida com uma realidade terrena muito assumida. Às vezes isso assusta e é explorável.

Nalguns meios ocidentais e portugueses, começa a mostrar-se alguma «preocupação» com a permeabilidade dos muçulmanos do Norte de Moçambique e da Guiné-Bissau a influências radicais. Acha que as ex-colónias podem vir a ser envolvidas nas actuais sanhas pró e antifundamentalistas?
A possibilidade de Moçambique e da Guiné serem ou virem a ser objectos de radicalismos é igual à que poderá vir a verificar-se em qualquer outro território onde a presença do islão tenha progredido de forma significativa ou mantenha a sua importância sociocultural e onde haja condições propícias aos radicalismos. Ali como em toda a África, na Ásia, etc. Depois, repare, as estruturas de influência islâmica são maleáveis e muito dinâmicas. Em termos de difusão, não estão nada viradas para a passividade. Mesmo as estruturas voltadas para o misticismo, como as confrarias, podem apresentar-se muito actuantes em todos os aspectos. Não esqueça que as confrarias islâmicas podem transportar uma ordem de cunho militar – como acontecia, aliás, com as nossas antigas ordens militares, na Idade Média.

Se tivesse que aconselhar as autoridades moçambicanas quanto ao futuro do islão naquele país, o que lhes diria?
Que ao tratarem com a massa muçulmana recorressem, quanto possível, aos textos sagrados do islão, em tudo o que pudesse apontar para a coesão nacional e para a solidariedade comunitária, para a manutenção da ordem e para a exaltação do trabalho. Ir por aí seria sempre uma forma hábil de apelar aos muçulmanos. Está escrito no Alcorão e na tradição islâmica.

E se tivesse que aconselhar as autoridades portuguesas? Afinal, temos forças militarizadas no Iraque e temos, entre nós, uma desconhecida mas importante comunidade de gente ligada ao islão.
Não teria! Sou professor universitário e investigador, e esse tipo de solicitação não se usa em Portugal. Ou usou-se em casos muito raros, como me aconteceu de facto, mas há já 30 anos, na guerra de África. O sistema tem os seus órgãos próprios. De resto, a nível geral, não há preocupação no esclarecimento rigoroso. Há, sim, a preocupação do efeito imediato. Informa-se apenas. Com muita exibição, claro. Isso acaba por banalizar as coisas, desinteressar, e desgastar de antemão uma hipótese formativa que de resto nem vejo como poderia ter lugar.

Foi consultado para participar na formação dos homens da Guarda Nacional Republicana que estão no Iraque?
Não! Não fui contactado nem, como já disse, me caberia sê-lo! Mas penso que alguém das instâncias próprias terá com certeza dado a formação suficiente. De outro modo haveria aí uma lacuna séria. Do ponto de vista operacional, é preciso «conhecer o terreno». «Sem informações, não há operações», regra de valor absoluto.

O que acha da presença das forças militarizadas portuguesas no Iraque?
Preferia que não tivessem ido.

Desconhecimento e hostilidade

O seu profundo conhecimento dos problemas do islamismo surge do contacto com a realidade moçambicana, no início dos anos 60?
Eu preferia utilizar a expressão «islão». «Islamismo» tem hoje uma conotação muito politizada, e por isso está na ordem do dia. Considero-me um estudioso do islão, como doutrina, como ideologia, como conglomerado sociológico, como campo de comunicação, e não do estrito ponto de vista político. O meu interesse começou muito cedo, por intermédio de um excelente professor de história que tive no liceu de Luanda, o dr. António de Vasconcellos, que nos despertava para aspectos que normalmente não eram incluídos nos programas de ensino. Vi depois com surpresa, na Faculdade de Letras, que nada se estudava sobre o islão: era o vazio total! O que era de facto uma omissão espantosa, um facto extraordinário, uma vez que Portugal é um país com uma história onde o islão está bem presente: uma presença cultural de séculos, relações diplomáticas e comerciais importantes, os antagonismos e convívios nos espaços ultramarinos, etc. Tudo! Portugal tinha obrigações de ter incluído esta matéria, individualizada como cadeira, nos currículos das suas Faculdades de Letras. Mas não era assim, infelizmente; havia um desconhecimento total do assunto; e um certo grau de hostilidade mais ou menos «dormente». Esta situação generalizava-se a todos os níveis de ensino. O islão, nos livros escolares do secundário, era normalmente estigmatizado. Lembro-me que no início da década de 60, quando comecei a leccionar em Moçambique, no ensino técnico, os livros escolares de «Língua e História Pátria» traziam excertos sobre o islão e os muçulmanos com expressões como «a seita de Mafoma» e outras do género, próprias da nossa literatura da expansão, mas que eram totalmente inadequados para estudantes de um território em que o islão tinha uma presença demográfica muito impressiva, com percentagem importante na população escolar, e com uma distribuição de importância vital na geografia física e humana. Era, do ponto de vista humano, ofensivo e humilhante. Do ponto de vista político, era uma gaffe impressionante. Ninguém tinha olhado, pelo menos, para este aspecto da questão.

os religiosos, etc?
Poucas..., apenas em uma ou outra pessoa especialmente atenta. Lembro-me que conversava muito sobre essas coisas com o major de Eng.ª Nuno Vaz Pinto, que era um distinto oficial do Exército a exercer então o cargo de secretário provincial das Obras Públicas; com o dr. Vítor Hugo Velêz Grilo, médico e antropólogo, dissidente do PCP; com o arquitecto Pedro Quirino da Fonseca, da Comissão de Monumentos, e com mais duas ou três pessoas. Só Nuno Vaz Pinto ia intervindo conforme podia, usando a posição no Governo Geral de Moçambique. Morreram todos já...

E incentivos oficiais?
Como digo, só por influência indirecta de Nuno Vaz Pinto, sempre muito desperto para tudo. Por recomendação dele, como tutela da Comissão de Monumentos, vim a ter uma bolsa da Fundação Gulbenkian para pesquisas arqueológicas em estabelecimentos árabes do Norte de Moçambique, concretamente na área de Kionga, no estremo Nordeste de Moçambique. Nessa altura, o Comando da Região Militar solicitou-me que, aproveitando a estadia e a naturalíssima cobertura, ficasse atento a quaisquer sinais de preparação guerrilheira. A área, densamente islamizada, bordejava com o «outro lado» da fronteira, que funcionou como um dos «santuários» da Frelimo. Ainda nada eclodira. Mas isso veio a acontecer semanas depois, mais para sul, e sem conexão com os muçulmanos.

D. Eurico, o pioneiro

E o islão de Moçambique mantinha ligações internacionais?
Sempre! Com o Sultanato de Zanzibar até 1963. E também, via Durban, mantinha uma relação estreita com Karachi. Com a queda do sultão, aquela linha inflectiu para as Comores.

O Comando da Região Militar temia essas ligações internacionais do islão?
Não necessariamente. Temia já antes, sim, o risco de um movimento de guerrilha no Norte, através da fronteira com o Tanganica (mais tarde Tanzânia).

Mas não se temia nada que tivesse a ver com o islão ou com as ligações do islão com o exterior?
Sim, a nível de Governo Geral e de Comando-Chefe temeu-se na fase inicial da guerrilha um alastramento às populações muçulmanas. E, como hipótese, acautelou-se isso até final. A Frelimo, enquanto movimento relativamente moderado sob a liderança de Eduardo Mondlane, integrava uma série de forças sociais, incluindo do islão, que tinham como denominador comum o combate à administração portuguesa. Mais tarde, depois da morte de Mondlane e com a radicalização que se verifica no interior da Frelimo, os muçulmanos assumiram posição diferente.

Desencantados com a Frelimo...
Não propriamente só! O não-alinhamento deles começou a ser também o resultado de uma nova política da administração portuguesa em relação ao islão. Começara, a meu ver tarde, mas começara. Vamos lá a ver... o Governo não podia permanecer cego frente a esta realidade: em 1960, os muçulmanos moçambicanos eram cerca de 400 mil pessoas; em 1974, os números revelam perto de um milhão e 200 mil pessoas... O crescimento tinha sido fortíssimo por razões demográficas, mas não só. Tinha havido um notório esforço de absorção das populações de «religião tradicional».

Há quem diga que se tratava de novos rumos, representados, no plano político e administrativo, por Baltazar Rebelo de Sousa, o último governador-geral nomeado pelo doutor Salazar, e, no plano da Igreja, pelo bispo de Vila Cabral, D. Eurico Dias Nogueira...
São referências correctas. D. Eurico foi na verdade o grande pioneiro com a famosa «Carta fraterna do bispo de Vila Cabral aos muçulmanos da sua diocese». É um texto pós-conciliar magnífico. De um grande significado humano, político, e de conteúdo doutrinal muito rico. A «Carta» é também bela do ponto de vista literário. É de certa forma este documento que incentiva o Governo a actuar também. Quer em Lisboa quer em Lourenço Marques, as autoridades já tinham percebido que não poderiam continuar a desconhecer a população muçulmana – como tal – pois representava uma percentagem impressiva da população do território. A iniciativa do bispo de Vila Cabral serviu de catalisador em relação ao processo. Tudo isto acelera o plano de «acção psicológica» que o Governo-geral de Moçambique decide aplicar em relação aos muçulmanos e que estava traçado para quatro fases. Concebi-o na base. Subiu pelos canais próprios. É o dr. Baltazar Rebelo de Sousa quem assume esse projecto politicamente, iniciando a sua aplicação, e fê-lo com uma habilidade pessoal notável. Teve, claro, a aprovação e solidariedade do ministro do Ultramar, professor Silva Cunha.

Como se explica o avanço muçulmano em Moçambique entre 60 e 74?
Não esqueçamos que o islão funcionava, sobretudo através das confrarias, como um eficaz processo de solidariedade social, e, depois, não aparecia identificado com o conflito interno; apresentava-se como aquilo que chamei uma «nacionalidade de recurso». Os factores de identificação do muçulmano permitiam ao nativo apresentar-se então como «fora» das forças que estavam em confronto. No fundo, era como se ele dissesse: «Eu não tenho nada a ver com esta guerra que separa a administração portuguesa e a Frelimo. Eu até sou muçulmano!» Vestiam-se de maneira diferente, adoptavam nomes de origem árabe, usavam caracteres árabes, observavam interditos próprios, enterravam os seus mortos à parte, etc., etc. Em suma, pareciam estar «fora»...

O senhor, quando fala do islão, fica empolgado. Vê-se que não é um investigador distante...
Não, eu vivi apaixonadamente a realidade do islão. Eu amei o trabalho com essas pessoas que em Moçambique viviam o islão. Sou e sempre fui católico. Mas um dos momentos mais importantes da minha vida aconteceu numa mesquita muito pobre, uma palhota, algures no mato, quando pedi para assistir à oração do fim da tarde. Percebi, na profunda interiorização daquela gente humílima, que Deus estava ali.


Retrato breve

Fernando Amaro Monteiro nasceu em 1935 , tendo feito os estudos primários e secundários em Angola, onde foi aluno do Liceu Nacional de Salvador Correia (Luanda). É doutor em Ciências Sociais (Relações Internacionais), pela Universidade Técnica de Lisboa, Docteur d´Université em História, pela Universidade de Aix-Marseille (por equivalência Mestre em Estudos Africanos pela Universidade Técnica de Lisboa) e Licenciado em Ciências Históricas e Filosóficas, pela Universidade Clássica de Lisboa. Foi bolseiro do Governo francês para estudos sobre o islão, na Faculdade de Letras de Aix-en-Provence (1967/68). Desde 2000, é professor de Teoria das Relações Internacionais na licenciatura em Relações Internacionais, da Universidade Independente (Lisboa). De 1978 até à actualidade tem sido convidado a proferir muitas dezenas de conferências no Instituto da Defesa Nacional, nos Institutos de Altos Estudos dos três ramos das Forças Armadas, no Instituto Superior de Educação da Praia (Cabo Verde), em universidades públicas e privadas.




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