ISLÃO
EM MOÇAMBIQUE
ENTREVISTA
AO PROF. FERNANDO AMARO MONTEIRO
Por: ANTÓNIO PACHECO, Jornalista
Por: ANTÓNIO PACHECO, Jornalista
O islão é tão violento
como o foi o cristianismo das cruzadas ou como o é ainda em algumas zonas»,
assegura o prof. Fernando Amaro Monteiro. Um dos poucos estudiosos portugueses
que conhecem a fundo o mundo muçulmano. E um apaixonado por uma faceta recalcada
da nossa identidade, que, apesar de católico, não hesita em confessar: «Um dos
momentos mais próximos de Deus que passei foi numa mesquita muito pobre, uma
palhota, numa sexta-feira, durante o período da oração. Era Deus que estava
ali.
Está a preparar um livro
sobre as confluências religiosas na Guiné desde o século XVII até aos finais do
século XIX. Uma das coisas que notou, aliás como sempre aconteceu em relação a
Moçambique, é que as fontes documentais portugueses são empíricas na apreciação
dos muçulmanos como realidade religiosa, e no entanto «eles eram uma
concorrente fortíssima no terreno». Fernando Amaro Monteiro considera que o
passado islâmico está «presente e bem sedimentado» em Portugal, como componente
da nossa cultura e como «atitude», e que, «se calhar, é por causa disso que os
portugueses não analisam, ou analisam muito pouco, os reflexos desse passado na
psicologia colectiva». «Como se tivessem medo de se confrontarem consigo
mesmos, de se verem ao espelho.»
O professor é, em
Portugal, um dos poucos especialistas do islão. Como vê esta «diabolização» que
acompanha a realidade muçulmana de hoje, especialmente no chamado mundo
ocidental?
É erradíssima. Como
atitude, como juízo, e como processo. Induz à violência. Formou-se como que um
círculo vicioso. Nas áreas do islão onde a violência é mais impressiva, os
ingredientes para ela lá estão: pobreza, situação interna periclitante,
exploração, em resumo todas as razões objectivas da revolta. Isolar essas
realidades é o pior que se pode fazer. E a análise que possa levar a isso está
errada: o islão, como comunidade religiosa, pode ser tão violento como foi a
cristandade das cruzadas ou como, no final do século XX, a ortodoxia cristã nos
Balcãs, por exemplo. É verdade que, do ponto de vista doutrinal, contém
elementos que são susceptíveis, num plano de «acção psicológica», de induzir a
acções ou reacções violentas. Nega a Trindade, e portanto não veicula uma regra
como a de «amai-vos uns aos outros como Eu vos amei». O arquétipo islâmico é
diferente. Recomenda a paz e estimula a sua promoção, mas prevê e condiciona as
hipóteses da violência. Não na essência de um comportamento, mas nos procedimentos
humanos previsíveis. É espiritualista, sim, indubitavelmente. Mas lida com uma
realidade terrena muito assumida. Às vezes isso assusta e é explorável.
Nalguns meios ocidentais
e portugueses, começa a mostrar-se alguma «preocupação» com a permeabilidade
dos muçulmanos do Norte de Moçambique e da Guiné-Bissau a influências radicais.
Acha que as ex-colónias podem vir a ser envolvidas nas actuais sanhas pró e
antifundamentalistas?
A possibilidade de
Moçambique e da Guiné serem ou virem a ser objectos de radicalismos é igual à
que poderá vir a verificar-se em qualquer outro território onde a presença do
islão tenha progredido de forma significativa ou mantenha a sua importância
sociocultural e onde haja condições propícias aos radicalismos. Ali como em toda
a África, na Ásia, etc. Depois, repare, as estruturas de influência islâmica
são maleáveis e muito dinâmicas. Em termos de difusão, não estão nada viradas
para a passividade. Mesmo as estruturas voltadas para o misticismo, como as
confrarias, podem apresentar-se muito actuantes em todos os aspectos. Não
esqueça que as confrarias islâmicas podem transportar uma ordem de cunho
militar – como acontecia, aliás, com as nossas antigas ordens militares, na
Idade Média.
Se tivesse que
aconselhar as autoridades moçambicanas quanto ao futuro do islão naquele país,
o que lhes diria?
Que ao tratarem com a
massa muçulmana recorressem, quanto possível, aos textos sagrados do islão, em
tudo o que pudesse apontar para a coesão nacional e para a solidariedade
comunitária, para a manutenção da ordem e para a exaltação do trabalho. Ir por
aí seria sempre uma forma hábil de apelar aos muçulmanos. Está escrito no
Alcorão e na tradição islâmica.
E se tivesse que
aconselhar as autoridades portuguesas? Afinal, temos forças militarizadas no
Iraque e temos, entre nós, uma desconhecida mas importante comunidade de gente
ligada ao islão.
Não teria! Sou professor
universitário e investigador, e esse tipo de solicitação não se usa em
Portugal. Ou usou-se em casos muito raros, como me aconteceu de facto, mas
há já 30 anos, na guerra de África. O sistema tem os seus órgãos próprios. De
resto, a nível geral, não há preocupação no esclarecimento rigoroso. Há, sim, a
preocupação do efeito imediato. Informa-se apenas. Com muita exibição, claro.
Isso acaba por banalizar as coisas, desinteressar, e desgastar de antemão uma
hipótese formativa que de resto nem vejo como poderia ter lugar.
Foi consultado para
participar na formação dos homens da Guarda Nacional Republicana que estão no
Iraque?
Não! Não fui contactado
nem, como já disse, me caberia sê-lo! Mas penso que alguém das instâncias
próprias terá com certeza dado a formação suficiente. De outro modo haveria aí
uma lacuna séria. Do ponto de vista operacional, é preciso «conhecer o terreno».
«Sem informações, não há operações», regra de valor absoluto.
O que acha da presença
das forças militarizadas portuguesas no Iraque?
Preferia que não
tivessem ido.
Desconhecimento
e hostilidade
O seu profundo
conhecimento dos problemas do islamismo surge do contacto com a realidade
moçambicana, no início dos anos 60?
Eu preferia utilizar a
expressão «islão». «Islamismo» tem hoje uma conotação muito politizada, e por
isso está na ordem do dia. Considero-me um estudioso do islão, como doutrina,
como ideologia, como conglomerado sociológico, como campo de comunicação, e não
do estrito ponto de vista político. O meu interesse começou muito cedo, por
intermédio de um excelente professor de história que tive no liceu de Luanda, o
dr. António de Vasconcellos, que nos despertava para aspectos que normalmente
não eram incluídos nos programas de ensino. Vi depois com surpresa, na
Faculdade de Letras, que nada se estudava sobre o islão: era o vazio total! O
que era de facto uma omissão espantosa, um facto extraordinário, uma vez que
Portugal é um país com uma história onde o islão está bem presente: uma
presença cultural de séculos, relações diplomáticas e comerciais importantes,
os antagonismos e convívios nos espaços ultramarinos, etc. Tudo! Portugal tinha
obrigações de ter incluído esta matéria, individualizada como cadeira, nos
currículos das suas Faculdades de Letras. Mas não era assim, infelizmente;
havia um desconhecimento total do assunto; e um certo grau de hostilidade mais
ou menos «dormente». Esta situação generalizava-se a todos os níveis de ensino.
O islão, nos livros escolares do secundário, era normalmente estigmatizado.
Lembro-me que no início da década de 60, quando comecei a leccionar em
Moçambique, no ensino técnico, os livros escolares de «Língua e História
Pátria» traziam excertos sobre o islão e os muçulmanos com expressões como «a
seita de Mafoma» e outras do género, próprias da nossa literatura da expansão,
mas que eram totalmente inadequados para estudantes de um território em que o
islão tinha uma presença demográfica muito impressiva, com percentagem
importante na população escolar, e com uma distribuição de importância vital na
geografia física e humana. Era, do ponto de vista humano, ofensivo e
humilhante. Do ponto de vista político, era uma gaffe impressionante.
Ninguém tinha olhado, pelo menos, para este aspecto da questão.
os religiosos, etc?
Poucas..., apenas em uma
ou outra pessoa especialmente atenta. Lembro-me que conversava muito sobre
essas coisas com o major de Eng.ª Nuno Vaz Pinto, que era um distinto oficial
do Exército a exercer então o cargo de secretário provincial das Obras Públicas;
com o dr. Vítor Hugo Velêz Grilo, médico e antropólogo, dissidente do PCP; com
o arquitecto Pedro Quirino da Fonseca, da Comissão de Monumentos, e com mais
duas ou três pessoas. Só Nuno Vaz Pinto ia intervindo conforme podia, usando a
posição no Governo Geral de Moçambique. Morreram todos já...
E incentivos oficiais?
Como digo, só por
influência indirecta de Nuno Vaz Pinto, sempre muito desperto para tudo. Por
recomendação dele, como tutela da Comissão de Monumentos, vim a ter uma bolsa
da Fundação Gulbenkian para pesquisas arqueológicas em estabelecimentos árabes
do Norte de Moçambique, concretamente na área de Kionga, no estremo Nordeste de
Moçambique. Nessa altura, o Comando da Região Militar solicitou-me que,
aproveitando a estadia e a naturalíssima cobertura, ficasse atento a quaisquer
sinais de preparação guerrilheira. A área, densamente islamizada, bordejava com
o «outro lado» da fronteira, que funcionou como um dos «santuários» da Frelimo.
Ainda nada eclodira. Mas isso veio a acontecer semanas depois, mais para sul, e
sem conexão com os muçulmanos.
D.
Eurico, o pioneiro
E o islão de Moçambique
mantinha ligações internacionais?
Sempre! Com o Sultanato
de Zanzibar até 1963. E também, via Durban, mantinha uma relação estreita com
Karachi. Com a queda do sultão, aquela linha inflectiu para as Comores.
O Comando da Região
Militar temia essas ligações internacionais do islão?
Não necessariamente.
Temia já antes, sim, o risco de um movimento de guerrilha no Norte, através da
fronteira com o Tanganica (mais tarde Tanzânia).
Mas não se temia nada
que tivesse a ver com o islão ou com as ligações do islão com o exterior?
Sim, a nível de Governo
Geral e de Comando-Chefe temeu-se na fase inicial da guerrilha um alastramento
às populações muçulmanas. E, como hipótese, acautelou-se isso até final. A
Frelimo, enquanto movimento relativamente moderado sob a liderança de Eduardo Mondlane,
integrava uma série de forças sociais, incluindo do islão, que tinham como
denominador comum o combate à administração portuguesa. Mais tarde, depois da
morte de Mondlane e com a radicalização que se verifica no interior da Frelimo,
os muçulmanos assumiram posição diferente.
Desencantados com a
Frelimo...
Não propriamente só! O
não-alinhamento deles começou a ser também o resultado de uma nova política da
administração portuguesa em relação ao islão. Começara, a meu ver tarde, mas
começara. Vamos lá a ver... o Governo não podia permanecer cego frente a esta
realidade: em 1960, os muçulmanos moçambicanos eram cerca de 400 mil pessoas;
em 1974, os números revelam perto de um milhão e 200 mil pessoas... O
crescimento tinha sido fortíssimo por razões demográficas, mas não só. Tinha
havido um notório esforço de absorção das populações de «religião tradicional».
Há quem diga que se
tratava de novos rumos, representados, no plano político e administrativo, por
Baltazar Rebelo de Sousa, o último governador-geral nomeado pelo doutor
Salazar, e, no plano da Igreja, pelo bispo de Vila Cabral, D. Eurico Dias
Nogueira...
São referências
correctas. D. Eurico foi na verdade o grande pioneiro com a famosa «Carta
fraterna do bispo de Vila Cabral aos muçulmanos da sua diocese». É um texto
pós-conciliar magnífico. De um grande significado humano, político, e de
conteúdo doutrinal muito rico. A «Carta» é também bela do ponto de vista
literário. É de certa forma este documento que incentiva o Governo a actuar
também. Quer em Lisboa quer em Lourenço Marques, as autoridades já tinham
percebido que não poderiam continuar a desconhecer a população muçulmana – como
tal – pois representava uma percentagem impressiva da população do território.
A iniciativa do bispo de Vila Cabral serviu de catalisador em relação ao
processo. Tudo isto acelera o plano de «acção psicológica» que o Governo-geral
de Moçambique decide aplicar em relação aos muçulmanos e que estava traçado
para quatro fases. Concebi-o na base. Subiu pelos canais próprios. É o dr.
Baltazar Rebelo de Sousa quem assume esse projecto politicamente, iniciando a
sua aplicação, e fê-lo com uma habilidade pessoal notável. Teve, claro, a
aprovação e solidariedade do ministro do Ultramar, professor Silva Cunha.
Como se explica o avanço
muçulmano em Moçambique entre 60 e 74?
Não esqueçamos que o
islão funcionava, sobretudo através das confrarias, como um eficaz processo de
solidariedade social, e, depois, não aparecia identificado com o conflito
interno; apresentava-se como aquilo que chamei uma «nacionalidade de recurso».
Os factores de identificação do muçulmano permitiam ao nativo apresentar-se
então como «fora» das forças que estavam em confronto. No fundo, era
como se ele dissesse: «Eu não tenho nada a ver com esta guerra que separa a
administração portuguesa e a Frelimo. Eu até sou muçulmano!» Vestiam-se de
maneira diferente, adoptavam nomes de origem árabe, usavam caracteres árabes,
observavam interditos próprios, enterravam os seus mortos à parte, etc., etc.
Em suma, pareciam estar «fora»...
O senhor, quando fala do
islão, fica empolgado. Vê-se que não é um investigador distante...
Não, eu vivi
apaixonadamente a realidade do islão. Eu amei o trabalho com essas pessoas que
em Moçambique viviam o islão. Sou e sempre fui católico. Mas um dos momentos
mais importantes da minha vida aconteceu numa mesquita muito pobre, uma
palhota, algures no mato, quando pedi para assistir à oração do fim da tarde.
Percebi, na profunda interiorização daquela gente humílima, que Deus estava
ali.
Retrato breve
Fernando Amaro Monteiro nasceu em 1935 , tendo feito os estudos primários e
secundários em Angola, onde foi aluno do Liceu Nacional de Salvador Correia
(Luanda). É doutor em Ciências Sociais (Relações Internacionais),
pela Universidade Técnica de Lisboa, Docteur d´Université em História, pela
Universidade de Aix-Marseille (por equivalência Mestre em Estudos
Africanos pela Universidade Técnica de Lisboa) e Licenciado em
Ciências Históricas e Filosóficas, pela Universidade Clássica de Lisboa.
Foi bolseiro do Governo francês para estudos sobre o islão, na Faculdade de
Letras de Aix-en-Provence (1967/68). Desde 2000, é professor de Teoria das
Relações Internacionais na licenciatura em Relações Internacionais, da
Universidade Independente (Lisboa). De 1978 até à actualidade tem sido convidado
a proferir muitas dezenas de conferências no Instituto da Defesa Nacional, nos
Institutos de Altos Estudos dos três ramos das Forças Armadas, no Instituto
Superior de Educação da Praia (Cabo Verde), em universidades públicas e
privadas.
Um comentário:
o islam é muito hábil a enganar.
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