AS RELAÇÕES ENTRE A IGREJA E ESTADO EM MOÇAMBIQUE
Ambiguidades e contradições
Eric
Morier-Genoud levanta dúvidas quanto à natureza totalitária do projecto
político da Frelimo, posto em prática pelo governo por ela dirigido durante a
1ª República. Morier-Genoud é omisso quanto ao teor desse projecto, deixando no
ar a ideia de que se trataria de algo subjectivo, situado entre o “não todo
bonito” e o “não todo feio”.
Define-se
como sistema totalitário aquele em que um governo exerce controlo absoluto e
centralizado sobre todos os aspectos da vida social, política e económica, em
que o cidadão está totalmente subordinado à autoridade absoluta do Estado. São
sistemas de partido único, em que é proibida a expressão política e cultural
contrárias. Não existe nesses sistemas a separação dos poderes executivo,
judicial e legislativo.
O
projecto da Frelimo não responsabilizava o executivo perante o legislativo, mas
perante o partido. Tanto assim é que a Constituição da República Popular de
Moçambique foi elaborada pela Frelimo e aprovada pelo seu Comité Central para
vigorar como Lei Fundamental do país. A Constituição continha todos os traços
comuns aos sistemas totalitários. A nível do poder legislativo, lê-se no Art.
37 da Constituição que a Assembleia Popular, descrita como “o mais alto órgão
legislativo da República Popular de Moçambique”, era exclusivamente constituída
por membros da Frelimo ou de pessoas escolhidas por esta formação politica.
Na 1ª
República, o regime sobrepunha-se à lei, desautorizando os tribunais e
impedindo as instituições jurídicas de fiscalizar as acções do governo e de
salvaguardar os direitos dos cidadãos. Banidos os partidos políticos da
oposição e desmantelado o poder tradicional, o regime aboliu depois as
associações recreativas, culturais, desportivas e outras. Os clubes passaram a
funcionar sob a alçada dos diversos ministérios. As organizações
socioprofissionais estavam submetidas ao partido através de organizações na
essência idênticas às corporações que o Estado Novo havia copiado da legislação
que vigorou na Itália de 1922 a 1945, como a OTM, a ONJ, a ONP, a OJM, a OMM,
ou ainda a Continuadores da Revolução.
O que
vem estipulado no citado artigo da Constituição demonstra que a fusão
Frelimo-Estado ocorreu com o nascimento da República Popular de Moçambique e
não depois do 3° Congresso, como defende Morier-Genoud. O 3° Congresso apenas
veio confirmar toda uma prática que decorria desde a proclamação da
independência e que começara a ser ensaiada durante o governo de transição. O
Art. 3 da Constituição não deixava dúvidas quanto a esse facto: “A República
Popular de Moçambique é orientada pela linha política definida pela Frelimo,
que é a força dirigente do Estado e da Sociedade”.
Se,
como estipula o Art. 19 da Constituição, “na República Popular de Moçambique as
actividades das instituições religiosas devem conformar-se com as leis do
Estado”, e tomando em linha de conta o facto de a Frelimo ser a força dirigente
desse Estado, disso se pode inferir que, no cumprimento das orientações do
Comissariado Político da Frelimo contidas na «Circular» de Outubro de 1975, o
Estado moçambicano desse andamento ao “combate organizado contra os estandartes
do imperialismo”, não havendo razão plausível para aguardar pelo 3° Congresso,
nem por uma suposta purificação, quer a nível da cúpula, quer a nível das fileiras
do partido.
Fazendo
tábua rasa da «Circular», Morier-Genoud não insere o confisco dos bens das
igrejas no “combate organizado”, quando estava cristalinamente claro que o
objectivo era o de privar as igrejas de meios, impedindo-as assim de
desenvolver a sua acção junto das comunidades dado que estas estavam destinadas
a ser arregimentadas. E Morier-Genoud diz peremptoriamente que “quer se queira,
quer não, a Frelimo só desencadeou uma luta aberta e total contra as igrejas a
partir de 1978”. Ambíguo, afirma que não se tratou de um ‘combate total’, mas
de uma combate ‘‘muito específico e limitado’. Ou há combate, ou não há. Se é
“específico” e “limitado”, não deixa ser combate.
Mas se
hoje Morier-Genoud defende que o combate ‘‘muito específico e limitado” visou
estabelecer um equilíbrio entre as várias confissões religiosas, dada a
supremacia da Igreja Católica, em 1996 ele defendia uma posição diferente. Num
estudo que remonta a 31 de Março desse ano, e assinado conjuntamente com Yussuf
Adam , Morier-Genoud dizia que “o Estado socialista tentou submeter as
instituições religiosas ao seu poder. “E acrescenta: “Aqueles que não queriam
nem um pouco se submeter ao Estado foram deportados com é o caso agora famoso
das Testemunhas de Jeová.” Portanto, segundo este estudo, não houve intenção de
se conseguir um equilíbrio entre as várias confissões religiosas, mas sim a
vontade expressa de submetê-las à vontade do Estado.
Num
outro estudo , Morier-Genoud reitera que houve, de facto, um combate contra as
igrejas imediatamente a seguir à independência, não para estabelecer um
equilíbrio entre as confissões religiosas, mas para aumentar o poder do Estado.
Segundo ele, “entre 1974 e 1977, a política da Frelimo teve como objectivo
principal a diminuição do poder das igrejas, e o estabelecimento e aumento do
poder do Estado. Para esse fim, a Frelimo atacou as instituições religiosas na
sua dimensão material e de poder, isto é, como organizações”.
E se
hoje Morier-Genoud justifica o sucedido aos membros das Testemunhas de Jeová
devido à sua alegada utilização pelas Forças Armadas Portuguesas como tampão na
Zambézia para impedir a entrada de guerrilheiros da Frelimo, vindos do Malawi,
do estudo de Março de 1996 está subjacente uma razão diferente: a recusa dessa
confissão religiosa em submeter-se ao Estado. A versão agora apresentada por
Morier-Genoud constitui um novo dado. Ele não indica, porém, as fontes
consultadas que permitiriam um cruzamento com aquilo que já é conhecido, isto
é, as dificuldades deparadas pela guerrilha na Frente da Zambézia tiveram como
causa o facto do regime de Kamuzu Banda não ter permitido que o território
malawiano fosse utilizado para incursões militares em Moçambique. Essas fontes
poderiam porventura explicar o que terá efectivamente justificado, também em
Outubro de 1975, a prisão de Testemunhas de Jeová em Gaza e Maputo, províncias
não afectadas pela guerra colonial, ambas distantes da fronteira com o Malawi.
A
alegação de que outras confissões religiosas estavam comprometidas com a “PIDE
e o imperialismo” merece ser esclarecida para se determinar se a fonte é a
«Circular» do Comissariado Político da Frelimo, se foram consultadas fontes
independentes, se aos presumíveis culpados foi concedida a oportunidade de se
defenderem daquilo que eram acusados, e quem, entre as largas dezenas de
missionários presos e expulsos do país na fase do “combate específico e
limitado”, trabalhava na realidade para a PIDE ou estava ao serviço do
imperialismo.
1975
Aqui
não se argumentou, como deduz Morier-Genoud, que “a igreja católica não tinha
posição dominante antes da independência”, nem tão pouco se “recus(ou) que
havia competição entre instituições religiosas antes de 1975”. O que aqui
se pretendeu salientar, foi que em 1975 o regime colonial, apontado como favorecendo
a Igreja Católica em detrimento das demais confissões religiosas, e de
perseguição de outras confissões que se lhe opunham, tinha deixado de existir
como consequência do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974. Moçambique passara
a ser um Estado independente. A Concordata de 1940 e o Acordo Missionário a ela
anexo não vinculavam o Estado moçambicano à Santa Sé.
Em Moçambique, desde os meados
da década de 60, a própria Igreja Católica havia iniciado uma nova era de
relações com as comunidades islâmicas. Como refere Mário Artur
Machaqueiro, “os novos ventos ecuménicos do Concílio Vaticano II levaram
a que certas figuras da Igreja Católica em Portugal encetassem uma aproximação
às comunidades muçulmanas, renunciando tacticamente a uma evangelização mais
agressiva”. O Concílio Vaticano II havia aprovado em Dezembro de 1965 a
declaração “Nostra Aetate” (No Nosso Tempo), a qual fazia uma análise da
atitude da Igreja Católica para com as religiões não-cristãs, sintetizada no
pedido joanino: “Buscai primeiramente aquilo que une, antes de buscar o que
divide”. Em Moçambique, salienta Machaqueiro, essa reorientação foi
protagonizada, em Setembro de 1966, pelo Bispo de Vila Cabral (Lichinga), D.
Eurico Dias Nogueira, através da publicação da “Carta Fraterna aos Muçulmanos”.
Num estudo sobre a “problemática neo-islâmica” no Niassa , publicado no ano
seguinte, Frederico Peirone, da Consolata, insistia “sobre o dever que terá
qualquer missionário de respeitar as leis particulares que regem a comunidade
muçulmana...” A partir de então, a Igreja Católica moçambicana fez questão de
convidar dignitários islâmicos a participar nas Procissões das Velas realizadas
anualmente nas várias dioceses.
Segundo
Fernando Amaro Monteiro, a “Carta Fraterna aos Muçulmanos” incentivou o governo
a actuar também, e serviu de catalisador em relação ao processo que a seguir se
desenrolou. Ainda de acordo com Fernando Amaro Monteiro , houve um
esforço do regime colonial a partir de 1966 de se conseguir uma melhoria nas
relações com as comunidades muçulmanas do norte de Moçambique, se bem com o
objectivo de retirar à Frelimo uma potencial base de apoio. Esse esforço,
segundo o autor, sofreu um impulso com a nomeação de Baltazar Rebelo de Sousa
como governador-geral da colónia em 1968. Em 1971, em plena «Primavera
Marcelista», o regime vigente aprovava a Lei da Liberdade Religiosa, que
pressupunha tratamento igual para todas as confissões religiosas.
Tudo
isto, para ilustrar que o ambiente prevalecente em Moçambique à data da
independência não justificava as medidas tomadas pelo regime da Frelimo.
Tivesse sido intenção do regime estabelecer relações de igualdade entre
as várias confissões, como umas vezes defende Morier-Genoud, não faz sentido
que se tivesse reprimido as confissões no seu todo, incluindo as que
Morier-Genoud aponta como tendo sido alvo de discriminações e da hostilidade da
Igreja Católica durante a época colonial.
Argumenta
Morier-Genoud ser ‘parcial’ o exemplo de abertura à comunidade islâmica, pois
em simultâneo prendiam-se e assassinavam-se líderes muçulmanos, ignorando ele
que perseguidos e reprimidos eram todos os que se opunham ao então regime,
incluindo católicos. Os objectores de consciência não pertenciam apenas às
Testemunhas de Jeová e tal como elas também pagaram um preço. Os católicos
assumiram uma posição contra a guerra colonial. Tornou-se emblemático o caso da
Capela do Rato. Foram padres católicos que do púlpito da Igreja do Macúti na
Beira denunciaram o massacre de Mucumbura. Esses e outros prelados católicos foram
expulsos da colónia, como D. Manuel Vieira Pinto, bispo de Nampula, tal como os
que denunciaram o massacre de Wiriamu. Em várias ocasiões, o jornal da Diocese
da Beira, Diário de Moçambique, foi encerrado por decisão do regime colonial
para levá-lo à falência, tendo saído muitas vezes à rua com páginas em branco
devido a cortes da «Comissão de Censura».
A par
de um alegado equilíbrio entre as várias confissões religiosas, o confisco de
estabelecimentos de ensino visava ainda, segundo Morier-Genoud, salvaguardar a
independência de Moçambique. Quando vista à luz da situação que decorre desde o
início da 2ª República, em que o governo iniciou o processo de devolução dos
bens confiscados, e a Igreja Católica tem vindo desde então a edificar escolas
de ensino primário e secundário, além de universidades de norte a sul do país,
e inclusivamente a gerir escolas do Estado, a tese de Morier-Genoud cai pelas
bases.
Não
houve “má interpretação” do chamado desenvolvimento positivo. Este tem
necessariamente de ser analisado em função do “combate organizado” que o
precedeu, quer seja na fase específica e limitada, quer seja na fase total. Não
se pode dissociar os resultados desse combate de todo o cortejo de violações e
atropelos à lei. Independentemente de como que se queira olhar o objectivo a
atingir, ele não pode justificar os meios, especialmente quando estes negam
direitos fundamentais universalmente reconhecidos.
Notas de Rodapé
1
Yussuf Adam e Eric Morier-Genoud: Religião e o Poder em Moçambique. URL: www.africa.upenn.edu/Newsletters/notmoc75.html
2 Eric Morier-Genoud: Of God
and Caesar. The Relation between Christian Churches & the State in
post-colonial Mozambique, 1974-81”, Le Fait Missionnaire. Social Sciences & Missions, No. 3,
1996, Setembro de 1996.
3
Mário Artur Machaqueiro: Islão Ambivalente – A construção identitária dos
muçulmanos sob o poder colonial português », Cadernos de Estudos Africanos, 22
, 2012.
4
Frederico Peirone: A Tribo Ajaua do Alto Niassa (Moçambique) e alguns aspectos
da sua Problemática Neo-Islâmica, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa
1967.
5
Fernando Amaro Monteiro: Entrevista dada a António Pacheco in Além-Mar Visão
Missionário, Janeiro de 2004, URL: http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EEFZyZyFAAXovADxBp
6
Fernando Amaro Monteiro: (Moçambique: Memória Falada do Islão e da Guerra,
Almedina 2011) (João Cabrita in Canal de Moçambique, 10/09/2012)
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