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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

23 setembro 2012

ENTREVISTA COM ÓSCAR CARDOSO EX- SUB-INSPECTOR DA PIDE


ENTREVISTA COM ÓSCAR CARDOSO  EX-  SUB-INSPECTOR DA PIDE (1965-1974)

Oscar Cardoso- Sub-Inspector da PIDE, 1965-1974

Bruno Oliveira Santos (B. O. S): Como é que viveu o início do terrorismo em Angola?
Óscar Cardoso (O.C.) : Quando o terrorismo começa em Angola, eu estava ao serviço da GNR. O terrorismo em Angola não era mais nem menos do que a cobiça de quatro potências pela  África Portuguesa: a União Soviética, a China, os Estados Unidos da América e o Vaticano. Os  movimentos de libertação eram apenas marionetas manobradas por terceiros. (...)
B.O.S: O que eram os Flechas?
O.C: Eu fui para Angola em 1966 e, como era normal, fiz um curto estágio em todos os serviços da delegação - investigação, administrativos, etc. Depois disso, o director São José Lopes mandou-me fazer um périplo por todas as subdelegações do território. Isso permitiu-me ter um conhecimento profundo sobre todos os problemas que havia em Angola. A dado momento, fui para o Luso. Quem estava a chefiar a subdelegação era o inspector Fragoso  Allas, um homem que traiu a PIDE no 25 de Abril. O Fragoso Allas, que depois esteve na  Guiné, dava-se muito bem com o Spínola. No 25 de Abril estava feito com ele. Mas não era o único! O inspector superior Rogério Dias Coelho, antigo colega de Spínola no Colégio Militar, era outro que tal. No 25 de Abril já estava indigitado por Spínola para ser o novo director-geral!
O Fragoso Allas tinha organizado o chamado Corpo de Auxiliares, indivíduos recrutados e pagos por nós e que eram utilizados como intérpretes, guias e até mesmo como guardas prisionais. Ora, nessa altura eu conheci um velhote - o Manuel Pontes Júnior - que me fala nas Terras do Fim do Mundo, cuja existência eu já conhecia por ser referida em vários livros. Aliás, a designação de Terras do Fim do Mundo é da responsabilidade do Henrique Galvão, que assim as classifica no seu admirável livro Outras Terras, Outras Gentes.
B.O.S: Não estava à espera de o ouvir tecer grandes elogios à obra literária do Henrique Galvão!...
O.C: Eu sei, mas olhe que esse livro é extraordinário! Aliás, as pessoas estão mal informadas sobre o Galvão. Nos seus últimos anos de vida, ele arrependeu-se de tudo, estava mesmo muito arrependido de todas aquelas conspirações. Sabe quem é que pagou o funeral do Galvão? A PIDE. Mas eu estava a dizer que nesse livro do Galvão há referências às chamadas Terras do Fim do Mundo. Nessas terras habitavam os Bosquímanos. Eu comecei logo a idealizar o recrutamento desses homens para o Corpo de Auxiliares, até um bocado influenciado pela tropa de guardas de fronteira do KGB. Era conhecido o ódio que os Bosquímanos tinham aos negros. Foram sempre escravizados pelos pretos, trocados e vendidos como se fossem objectos ou cabeças de gado. Não era preciso gastar praticamente dinheiro nenhum em alimentação - os Bosquímanos encontravam comida em qualquer sítio. Eram rápidos, eram pequenos, conheciam bem o terreno.
Enviei um memorando ao São José Lopes a propor o recrutamento daqueles homens e ele lá me deixou ir para o Cuando-Cubango organizar tudo aquilo. Levei a minha mulher e um velho Land Rover. Foram os melhores tempos da minha vida! Os Bosquímanos detestavam mesmo os pretos! Olhe que, ainda em 1969, eram trocados e vendidos a abatidos pelos negros sem dó nem piedade. Bem, comecei por recrutar três ou quatro. No início, utilizavam apenas arcos e flechas, sobretudo flechas envenenadas, o que causava um grande Pânico entre os turras. É  por isso que receberam a designação de Flechas. Comecei a ter bons resultados com a  incorporação daqueles Bosquímanos, tão bons resultados que cheguei a ter mais de 400 flechas treinados, só no Cuando-Cubango. Mais tarde, criaram-se flechas por toda a província  de Angola e em Moçambique.
 B.O.S: Eram só Bosquímanos?
O.C: Depois foram incorporados homens de outras minorias. Os Bosquímanos eram uma  minoria do Cuando-Cubango, que era uma savana quase deserta. (...)
B.O.S: Foram recuperados vários guerrilheiros da FNLA, do MPLA e da UNITA?
O.C: Sim, sim. Muitos dos terroristas andavam lá contrariados - eram obrigados a fazer aquela  guerra para evitar que as famílias sofressem represálias.
B.O.S: É verdade que Jonas Savimbi foi assistido por médicos do exército português no  princípio dos anos 70?
O.C: É. A UNITA tinha sido abandonada pela China e sabia que não tinha quaisquer hipóteses  de implantação em Angola sem o nosso apoio. Como aspirava a integrar um futuro governo de  Angola, os seus guerrilheiros aceitaram colaborar com o exército português em diversas acções contra os outros movimentos. Vários portugueses com interesses económicos na zona  do Luso, sobretudo os madeireiros, pagavam à UNITA para não serem molestados no transporte de mercadorias. Isto ajuda a compreender as razões pelas quais Jonas Savimbi foi assistido pelo Serviço de Saúde Militar, no Luso. O oficial encarregado das ligações com Savimbi era o major Passos Ramos, da Zona Militar Leste. Foi ele quem tratou de tudo. Já não me recordo da doença de que Savimbi padecia...Julgo que era uma apendicite, mas não tenho a certeza.
B.O.S: A PIDE teve alguma participação no assassínio de Eduardo Mondlane?
O.C: A carta armadilhada que provocou a morte de Eduardo Mondlane foi preparada pelo Casimiro Monteiro, que era de facto um grande especialista em explosivos. Mas o Casimiro Monteiro não agiu sozinho, teve a colaboração do chefe de segurança do Mondlane, o Joaquim Chissano, actual Presidente da República de Moçambique. Portanto, esse trabalho foi feito com a própria Frelimo, que estava muito interessada em eliminar o Mondlane.
Casimiro Monteiro, agente da PIDE que preparou
a carta armadilha para Mondlane

B.O.S: Teve acesso aos relatórios sobre Wiryamu?
O.C: Não conheço essa história. De resto, na província de Tete, que eu conheci bem, não existia nenhuma terra chamada Wiryamu. Nem existia em Moçambique nenhuma terra começada por W. Eu não gosto de falar sobre esses assuntos, numa guerra há sempre massacres... O que lhe posso dizer é que nas instruções das Forças Armadas, da PIDE e demais forças da ordem havia a preocupação de evitar os massacres. As instruções eram muito claras: não molestar a população, evitar todo e qualquer tipo de barbaridad, etc. Era exactamente o contrário do que sucedia nos manuais dos terroristas, que aterrorizavam a população. É evidente que há sempre excepções. Um soldado, cansado de fazer a guerra, farto de ver os seus camaradas estropiados por minas, pode, às tantas, tomar tudo por igual e cometer um erro qualquer...
B.O.S: Que relações mantinha a PIDE com o general Costa Gomes?
O.C: O Costa Gomes era muito amigo do meu inspector superior, Aníbal de São José Lopes.
Era tão amigo que, a seguir à revolução, enquanto nós fomos todos presos, o São José Lopes foi mandado para Timor. O Costa Gomes arranjou maneira de ele ir para lá e escapar assim à detenção. Nem outra coisa era de esperar. O São José Lopes conhecia muitos dos podres do Costa Gomes. É que o Costa Gomes prezava muito o dinheiro e falava-se à boca pequena que gostava muito de umas pedrinhas, de uns diamantes, de que o solo angolano é fértil...É muito provável que o São José Lopes estivesse a par de umas negociatas quaisquer.  De resto, as relações que mantivemos com o Costa Gomes, quando ele era comandante-chefe em Angola, foram da maior cordialidade. Não havia festa para a qual não fosse convidado: o Dia do Flecha, o aniversário do São José Lopes, e por aí fora. Foi-lhe oferecido o crachat de ouro da PIDE, que ele aceitou com todo o gosto. Pessoalmente, mantive sempre as melhores relações com ele. Aliás, o Costa Gomes namorou a minha tia, irmã de minha mãe, e tratou-me  sempre com muito respeito. Como vê, para além de ter sido meu professor, podia ter sido meu tio.
B.O.S: A PIDE delineou algum plano secreto para matar Amílcar Cabral?
O.C: Não. Assim como lhe disse abertamente que a PIDE colaborou na eliminação de Eduardo Mondlane, também lhe garanto que nunca existiu nenhum plano para matar Amílcar Cabral. Quem matou Cabral foram dissidentes do PAIGC, a PIDE não teve nada a ver com aquilo. Essas histórias estão todas muito mal contadas. E na altura do 25 de Abril havia já um acordo entre o Nino Vieira e o nosso governo para aquele vir para Portugal, com a mulher e a filha, cuja colocação na Universidade estava já assegurada. Ora, quem conta essa história muito bem é o coronel Vaz Antunes, que estava então na Guiné, num opúsculo chamado Uma Diligência Interrompida. Os guerrilheiros do PAIGC estavam cansados, queriam acabar com a guerra e sobretudo não admitiam a sua subordinação aos cabo-verdianos.
B.O.S: A PIDE era um bom serviço de inteligência?
O.C: Como sabe, todas as Forças Armadas têm serviço de inteligência. Em África, a PIDE  desempenhou essas funções. O melhor serviço de informação que existia no país era o nosso. A GNR tinha o seu serviço de informação. A PSP tinha também um serviço de informação, mas o melhor de todos era o da PIDE.  Prestámos serviços importantíssimos às Forças Armadas. Salvámos muitas vidas. Alguns dos oficiais que se notabilizaram no 25 de Abril foram salvos pela acção corajosa e abnegada de funcionários da polícia. (...)  Os militares, por natureza, não gostam de informação. Aquilo para eles é uma chatice. Mas a verdade é que o nosso serviço de inteligência funcionava muito bem. É isso que explica que, já
depois do 25 de Abril e tendo em conta que as nossas tropas continuavam a fazer a guerra, alguns quadros da PIDE foram libertados para integrar a Polícia de Informação Militar (PIM), então criada.
Os militares revolucionários sabiam perfeitamente que, sem esse serviço de informação, era impossível continuar a guerra. Há até um caso, naturalmente pouco conhecido, mas que vale a pena contar: um dos quadros da PIDE chamado para integrar a nova polícia foi o inspector José Vítor Carvalho. Em 1975, em pleno PREC, foi promovido a inspector-adjunto!
B.O.S: Os serviços de informação da polícia dispunham de informadores nos países vizinhos?
O.C: A verdadeira história das nossas relações com esses países ainda está por fazer. Muito do que se tem dito não corresponde à verdade. O Malawi não nos era hostil. Era-o o Zaire, teoricamente, mas na prática obtínhamos tudo quanto queríamos desse país. De resto, dispúnhamos de vários informadores ao mais alto nível. Na Zâmbia era mais difícil, mas também tínhamos informadores. O mesmo acontecia no Congo-Brazzaville.
B.O.S: E na Rodésia?
O.C: Na Rodésia não precisávamos de informadores porque colaborávamos directamente com o CIO (Central Intelligence Organisation). O mesmo se passava em relação à Africa do Sul: havia uma colaboração estreita com as polícias e os serviços de informação sul-africanos. Repare que todos os países situados entre Angola e Moçambique não nos podiam ser hostis porque a sua sobrevivência dependia dos abastecimentos que chegavam, exclusivamente, pelas linhas-férreas da Beira e do Lobito.
(...)
B.O.S: Como é que reagiu à publicação de Portugal e o Futuro do general Spínola? O.C: Muito mal. Ficámos todos com a sensação de que aquilo era o princípio do fim. Aliás, não foi o Spínola quem escreveu o livro - foi o coronel Pereira da Costa. O Spínola era um oficial de Cavalaria, era um eguariço, como se costumava dizer. Tinha um vocabulário de duzentas palavras. Não tinha capacidade para escrever nada. Talvez as ideias tenham sido fornecidas pelo Spínola, mas quem redigiu o livro foi o outro.
B.O.S: E como militar?
O.C: Era bom militar.
B.O.S: Acha que sim?! Então não era só fachada? O Spínola era vaidoso como um  pavão, dispunha de vários sacos azuis para pagar a sua própria propaganda. Olhe, é à custa disso que ainda hoje o julgam um grande estratega militar...
O.C: Eu conheço essas histórias, mas pelo menos em Angola foi um bom coronel. Era, sobretudo, um militar com prestígio, tinha carisma, era o homem que aparecia lá em cima com pose autoritária, com as luvas e o pingalim... Sabe que as Forças Armadas vivem também da fachada, dos tambores, das cornetas.
B.O.S: Os missionários causavam-lhe problemas?
O.C: Em África, existiam missionários católicos e missionários protestantes. De um modo geral, aqueles que nos eram mais favoráveis eram os católicos. Entre os missionários protestantes havia de tudo - uns eram agentes da CIA, outros do MI6, alguns do próprio SDECE francês... Lembro-me de que na missão de Catata, perto de Serpa Pinto, existia um missionário que era- soubemo-lo através de intercepção de correspondência - um agente da CIA. Escrevia cartas para os Estados Unidos descrevendo a situação, o ambiente da população, as tendências da  população, os ataques, etc. Por tudo o que ele escrevia percebia-se que era hostil à presença portuguesa. Eu fiz esse missionário mudar rapidamente de ideias com a ajuda de alguns flechas. Vesti os flechas com fardas da UNITA e organizámos um ataque à missão:
provocámos uns distúrbios, partimos uns vidros. O certo é que o missionário mudou logo de ideias em relação à presença dos portugueses em África. Lembro-me também de que existia no Cuando-Cubango, numa terra chamada Chama Vera, uma congregação de frades franceses, na qual seguimos a mesma estratégia. Eles até estavam a fazer uma obra engraçada. Olhe, eram os únicos brancos que falavam correctamente o dialecto dos Bosquímanos! Mas a verdade é que também apoiavam claramente os terroristas: davam-lhes roupas, alimentação, etc. E, repare, numa altura em que nós tínhamos já alguns conflitos com a Santa  Sé, a simples expulsão desses missionários não era a melhor solução. Era preciso fazê-los mudar de ideias. Organizámos também um ataque, vestindo os flechas com as fardas dos terroristas, e os padres decidiram ir embora... Mas não se julgue que as missões tinham apenas aspectos negativos. Lembro-me muito bem da madre Cristina, da missão do Cuchi, uma missão linda, muito bem organizada. A madre Cristina era brasileira e dirigia naquela missão várias freiras, que tinham a seu cargo a educação de inúmeras meninas. Uma ou outra vez, os terroristas chegaram mesmo a entrar na missão, tendo mesmo violado algumas meninas (...), podemos dizer que os serviços de informação dos diversos países infiltravam agentes seus em diversas missões. Os americanos, os ingleses, os franceses, todos faziam isso. E se calhar o Vaticano também lá devia ter alguns! Aliás o Vaticano tem o serviço de informações mais bem organizado do mundo inteiro!
B.O.S: Qual era a situação militar nas três frentes de guerra, em Abril de 1974?
O.C: Na Guiné, havia um cansaço geral das duas partes. Era a mais dura das frentes de guerra. De qualquer modo, a situação não era desastrosa para os portugueses, como alguns tentaram fazer crer. Havia graves divergências no seio do PAIGC, onde a facção caboverdiana, mais intelectualizada, dominava os guineenses, que não se conformavam com essa situação.
Ao contrário do que se diz, nem os terroristas dominavam a maior parte do território, nem as nossas tropas abandonavam algumas zonas em favor do inimigo. O que se passava é que a Guiné não tinha população em várias áreas do interior e, a partir de determinada altura, entendeu-se retirar os militares que ocupavam essas zonas desertas. Os historiadores de pacotilha que temos vêem nessas retiradas a prova de que o nosso exército estava completamente batido. Não é verdade! Em Moçambique, a situação estava controlada. Havia alguns problemas com os Macondes, mas dominávamos o território.
Em Angola, a guerra estava ganha. A UNITA cooperava connosco, o MPLA estava falido e não fazia guerrilha e a FNLA limitava-se a fazer algumas incursões esporádicas no norte.

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