AS RELAÇÕES ENTRE A IGREJA E O ESTADO DEPOIS
DA INDEPENDÊNCIA: NUANCES, DISCÓRDIAS E PERSPECTIVAS
O debate sobre as igrejas e o Estado após a independência ganhou
mais um contributo de João Cabrita a semana passada. Nas primeiras páginas do
jornal, ele discorda fortemente com a minha análise das relações entre Estado e
instituições religiosas após 1975.
O debate se
enriquece assim com mais um contributo, mas parece-me que estamos a chegar a um
ponto onde temos simplesmente de aceitar que discordamos. Para concluir, quero
esclarecer no entanto alguns dos meus argumentos e contrastar as nossas
perspectivas.
Na minha
entrevista inicial no Canal de Moçambique, de Julho passado, eu afirmei que era
difícil promover novas perspectivas na análise de alguns assuntos quando os
debates sobre eles oscilam entre posições absolutistas (tudo é unicamente bom,
ou unicamente mau). Falava eu da história do nacionalismo, mas está agora claro
que é o caso da história da religião também. Sobre a política da Frelimo em
relação às igrejas, João Cabrita argumenta que não pode haver nuances ou meio
termos, pois “ou há combate, ou não há”. E já que eu trouxe nuances à análise,
ele acusa-me de “levantar dúvidas sobre a natureza totalitário do regime após
1975”.
João Cabrita
leu os meus textos e sabe muito bem que eu não ponho em dúvida a natureza
totalitária do regime após a independência e ainda menos levanto dúvidas sobre
o ataque contra religião no país como ele tenta insinuar. Documentei
pormenorizadamente este período nos meus trabalhos científicos e até chamei o
Estado no fim dos anos 1970 de “Estado Teólogo”. Portanto, o problema não esta
aí. O problema é que, para Cabrita, a natureza totalitária do regime após 1975
é absoluta e indiscutível enquanto para mim foi variável e ela é para ser
analisada, discutida e debatida.
A minha
análise mostra que existiram em Moçambique diferentes períodos nas relações
entre Estado e Igrejas após 1975 (o que significam diferentes graus e formas de
totalitarismo). Podemos falar de dois, ou melhor, três períodos. Primeiro,
entre 1975 e 1977, quando a Frelimo teve uma política de secularismo forte e de
submissão das instituições religiosas ao regime. A seguir, o período entre 1978
e 1982, quando o regime tentou acabar com a religião e substitui-la com o
ateísmo – a fase do “Estado Teólogo”. Finalmente, os anos após 1982, quando o
Estado abandonou a sua pretensão teológica e passou a outro regime de
secularismo, com forte controlo das instituições religiosas.
A
controvérsia entre Cabrita e eu gira sobretudo em torno de saber se o regime
era anti-religioso antes de 1977. Eu acho que não; Cabrita acha que sim. Ele
diz que a Frelimo combateu as igrejas desde o início e que a questão dos graus
não importa, pois “há combate ou não há”. Na minha perspectiva, a Frelimo não
tentou acabar com a religião antes de 1977-78. Se tivesse, como se explicaria
que religiosos pudessem ser membros da Frelimo até 1977? E como se explicaria
que o regime esperasse até 1978 para fechar igrejas e começar a propagar
oficialmente o ateísmo? Simples táctica? Podia ser, mas isso implicaria dizer
que a Frelimo tinha tudo planificado desde o início, que sempre controlou tudo
e que nunca mudou. E falta explicar porque é que foi preciso esta táctica.
Ainda na
minha perspectiva, a Frelimo teve na altura da independência que reintegrar na
sua liderança elementos na clandestinidade no país e fazer alianças internas
para assentar o seu regime, e algumas destas alianças/reintegração foram com
crentes, o que mudou a dinâmica da liderança da Frente. As coisas mudaram no
entanto em 1977 com o III Congresso, quando a Frelimo se transformou em
Partido-Estado e excluiu das suas fileiras e da sua direcção os religiosos. A
Frelimo usou então a linguagem da “purificação das suas fileiras”, mas esta
expressão foi usada precisamente para dar impressão que não havia mudança. Na
verdade, houve uma radicalização e é esta radicalização que levou a Frelimo a
tentar acabar com a religião no país e tentar converter o povo ao ateísmo
durante 3 anos.
Outro
assunto de controvérsia entre Cabrita e eu, é a “Circular” de 1975 do
Comissário Político Nacional Armando Guebuza. Para Cabrita, a Circular mostra
que o regime era anti-religioso desde o início. Na minha análise, a circular
mostra que o regime exigia submissão e tencionava reprimir todos os que se
opunham, ou não se submetiam, ao regime. A repressão das Testemunhas de Jeová e
de pastores evangélicos e ziones (justificada ou não) se enquadrou nesta
política – e não numa tentativa de acabar com a religião no país. Podemos
concordar que as duas políticas foram negativas, mas não posso aceitar que é
tudo a mesma coisa. Se ler os jornais nacionais e internacionais da época (e.g.
1976), há-de ver que, se alguns religiosos já gritavam à perseguição comunista
à igreja, muitos outros (inclusive bispos católicos insuspeitos de simpatia de
esquerda) diziam que havia problemas, mas não perseguição.
O terceiro
elemento de discórdia tem a ver com as nacionalizações de 1975. Para Cabrita,
isto foi o primeiro ataque à religião em Moçambique e não foi nada justificado
porque já não havia mais concordata e a igreja católica tinha mudado com o
Vaticano II. Na minha óptica, as nacionalizações não foram o primeiro passo dum
suposto plano pré-estabelecido de acabar com a religião e as nacionalizações
justificavam-se. Não foi plano pré-estabelecido porque a liderança da Frelimo
teve que mudar para virar oficialmente anti-religiosa. E as nacionalizações
justificavam-se porque se a concordata não existia mais, a igreja católica
continuava a controlar quase toda a educação no país assim como uma boa parte
da saúde. Ora isto não podia ser, porque ia comprometer a natureza laica do
Estado, e ia causar problemas ao partido no poder. Não é por acaso que esta
medida foi bem acolhida pela maioria dos protestantes, muçulmanos, ziones e
outras instituições religiosas não católicas. Aliás, até dentro da própria
igreja católica, havia grupos significantes que estavam a favor de acabar com o
modelo duma igreja de poder!
Para
concluir, qual é a importância das diferenças entre a minha perspectiva e a de
Cabrita? Na visão de Cabrita, a Frelimo foi sempre totalitária e
anti-religiosa. Todas as acções desfavoráveis à religião foram injustificadas e
foram planificadas pela Frelimo desde o primeiro dia da independência com o
grande objectivo de acabar com a religião. Nesta perspectiva, a Frelimo parece
um monstro Gargamel! Em contraste, na minha perspectiva, a Frelimo foi
totalitária, mas também dinâmica. Ela mudou internamente com o tempo e alterou
as suas políticas, só chegando a ser realmente anti-religiosa entre 1978 e
1981. Será isto só nuances? Qualquer que seja a resposta, a minha perspectiva
tem a vantagem de mostrar algo da dinâmica interna do regime e de explicar com
subtilidade o que aconteceu em relação à religião no país após a independência (CanalMoz - 21/09/2012 - Eric Morier-Genoud).
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