MEMÓRIAS EM VOO RASANTE
CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA POLÍTICA RECENTE DA ÁFRICA AUSTRAL
Por Jacinto Veloso
Um livro com revelações inéditas para quem quer conhecer os últimos quarenta anos da História da África Austral, escrito por um dos seus principais protagonistas e tendo como pano de fundo o conflito Leste-Oeste.
O autor participou na luta de libertação de Moçambique e desempenhou um papel importante em todo o processo de negociações que conduziu ao Acordo de Não Agressão e Boa Vizinhança com a África do Sul, mais conhecido por Acordo de Nkomati.
Também participou na série de negociações que contribuíram para a independência da Namíbia, a retirada das tropas sul-africanas e cubanas de Angola e para o desmantelamento do apartheid na África do Sul.
Depois de tantos anos de guerra, todo esse esforço possibilitou o alcançar da paz em Moçambique.
Este livro manifesta a opinião do autor sobre diversos acontecimentos e factos históricos, contendo algumas revelações de interesse.
No dia 12 de Março de 1963, o autor abandonou Moçambique pilotando um avião militar, rumo a Dar es-Salaam, manifestando dessa forma a sua oposição à guerra colonial que se preparava e a sua adesão à luta de libertação de Moçambique.
Estas memórias lêem-se com facilidade e despertam, capítulo a capítulo, uma incontida curiosidade que se mantém até à última linha.
O conceito de interesse nacional é uma constante ao longo do livro, ilustrado e documentado, que inclui o texto integral do Acordo de Cessar-Fogo entre a FRELIMO e o Estado Português, assinado em Lusaka, a 7 de Setembro de 1974.
Excertos do livro VOO RASANTE de Jacinto Veloso sobre o acidente que vitimou Samora Machel:
"Nos finais de 1986, aconteceu a tragédia que ninguém esperava. No dia 19 de Outubro, um domingo, o avião que transportava o Presidente Samora e a sua comitiva, que tinham participado numa reunião com outros Chefes de Estado, em Mbala, no norte da Zâmbia, despenhou-se em Mbuzini, em território sul-africano, nas proximidades da fronteira com Moçambique, uma zona montanhosa.
Quem matou Samora Machel? Esta era a pergunta que nos atormentava. Não que hoje eu tenha uma resposta. Obviamente que não. Mas como qualquer pessoa, tenho formulado as minhas conjecturas na tentativa de contribuir para explicar o sucedido.
Quem matou Samora Machel? Esta era a pergunta que nos atormentava. Não que hoje eu tenha uma resposta. Obviamente que não. Mas como qualquer pessoa, tenho formulado as minhas conjecturas na tentativa de contribuir para explicar o sucedido.
O meu raciocínio levou-me a traçar aquilo a que eu chamo de "pistas para a investigação", que se traduzem no seguinte: todas as evidências apontam para um erro de pilotagem, um grosseiro erro de pilotagem. Tão grosseiro que levantou logo dúvidas quanto à probabilidade de ter sido cometido, Um comandante de aeronave experiente não poderia jamais ter iniciado uma descida sem ter a certeza que estava na boa direcção para Maputo. Então, por que apontou ele o avião em direcção a um VOR que ele pensava ser de Maputo e começou a descer tomando o rumo da montanha de Mbuzini? Como foi ele induzido a cometer esse erro fatal?
Parece não haver dúvidas (eu não as tenho) que um VOR com a mesma frequência de Maputo foi colocado na rota de Mbuzini por um perito em guerra electrónica especialmente contratado para o efeito. Contudo, a existência de uma rádio-ajuda (VOR) na direcção de Mbuzini não justifica por si só os erros de pilotagem cometidos. Mais uma vez afirmo que um comandante experiente não poderia ter decidido descer sem estar seguro que se encontrava na direcção correcta do aeroporto de Maputo. Algo dentro da cabine de pilotagem o induziu, assim como a toda a tripulação, a acreditar que se encontrava na direcção certa e que aquela era a decisão mais correcta
a tomar para aterrar em Maputo.
a tomar para aterrar em Maputo.
E aqui colocam-se algumas questões: por que é que o radar do avião não estava a funcionar? Estava desligado? Avariado? Estava muito provavelmente fora de serviço, pois caso contrário a tripulação tê-lo-ia ligado. Se o radar estivesse ligado, como era de normal procedimento, o "erro de pilotagem" jamais teria tido lugar porque esse instrumento de navegação teria indicado visualmente o exacto recorte da baía de Maputo e da Ilha da Inhaca, não deixando qualquer dúvida quanto à localização do aeroporto internacional de Maputo. Consequentemente, o piloto não teria sido induzido
a acreditar no falso sinal do rádio-farol que lhe assinalou erradamente a direcção de Mbuzini, em vez de Maputo.
a acreditar no falso sinal do rádio-farol que lhe assinalou erradamente a direcção de Mbuzini, em vez de Maputo.
Existe uma grande probabilidade que, no assassinato de Samora Machel, os serviços secretos sul-africanos não tenham actuado sozinhos. Mas estariam com quem? Muito provavelmente contariam com algum elemento da ala dura do Leste, especialmente recrutado pelo serviço secreto sul-africano para a "operação Mbuzini".
Por que motivo coloco esta hipótese? Porque Samora estava condenado. Era um homem a abater porque tinha "traído o campo soviético" na confrontação bipolar, decidindo optar pela liberalização da economia e da sociedade, aderindo ao sistema capitalista internacional, ao Banco Mundial e ao FMI. [...]
Na prática, Moçambique deixava de privilegiar exclusivamente o "bloco de Leste" para passar a cooperar também com o "bloco Ocidental". A Frelimo, agora mais independente, iniciava a transição do "socialismo científico" para o "socialismo democrático", ajustado às condições concretas do país e à realidade que se vivia à escala africana e mundial.
Mas Samora era também um alvo a abater pela military intelligence sul-africana porque cedo se tornou evidente que o Acordo de Nkomati foi na realidade o golpe fatal que marcou o começo da destruição o apartheid, regime que a partir desse acordo iniciou a sua derrocada, tanto pela intensificação da contestação interna, como pela crescente pressão internacional do Ocidente para que houvesse uma rápida reforma desse sistema, dentro do princípio "um homem, um voto". O pretexto da luta contra a penetração da URSS na região já não era muito consistente.
Também estava claro que o apoio do governo de Samora Machel ao ANC não tinha terminado. Os serviços secretos militares sul-africanos concluíram então que o Acordo de Nkomati estava a ser um mau "negócio" para eles. Na sua opinião o culpado de tudo era Samora Machel.
Esta concentração de interesses dos sectores mais ultra radicais, tanto do apartheid como do Leste, terá sido, em minha opinião, uma possível causa que levou à programação de uma minuciosa operação destinada a eliminar Samora Machel. E nada mais insuspeito do que provocar um "erro de navegação", utilizando a própria tripulação russa do TU 134ª-3.
Dois factos aconteceram que aumentam as minhas suspeitas quanto à implicação de um agente recrutado para agir dentro da cabine do avião: o primeiro diz respeito a um indivíduo, que dizem ser do Leste (não identificado), que visitou o avião presidencial, na placa de Mbala, tendo permanecido bastante tempo no seu interior. Sabe-se que alguns membros da tripulação, presentes no aparelho, conversaram amigavelmente com o visitante. Este indivíduo poderá perfeitamente ter inutilizado o radar de bordo e até instalado algum dispositivo electrónico que, conjugado com a falsa rádio-ajuda colocada na direcção de Mbuzini, terá dado ao piloto, no momento crucial, a "certeza
absoluta" de que estava a iniciar a descida em direcção a Maputo.
absoluta" de que estava a iniciar a descida em direcção a Maputo.
O outro facto foi o caso de um tripulante, o engenheiro de bordo, Vladimir Novosselov, que um pouco antes da queda da aeronave se deslocou para a cauda do avião e teve a sorte de sair praticamente ileso do trágico acidente. Esse tripulante foi imediatamente internado num hospital de Nelspruit. Quando elementos da comissão moçambicana de inquérito quiseram interrogá-lo, o pessoal da segurança da embaixada da URSS impediu-os. Foram alegadas razões médicas óbvias e até houve a promessa de que, quando o tripulante estivesse recuperado e fora do estado de choque, a parte moçambicana poderia entrevistá-lo.
Dois ou três dias depois, um dos membros da comissão de inquérito foi ao hospital para saber como estava o tripulante. Com enorme espanto, constatou que o pessoal da embaixada já o havia evacuado para Moscovo. A Comissão de Inquérito de Moçambique protestou e pediu para ir a Moscovo falar com o tripulante, mas a embaixada informou que isso não era aconselhável e que as autoridades soviéticas iriam fazer o inquérito e transmitir as respostas às questões colocadas pela parte moçambicana.
Dois ou três dias depois, um dos membros da comissão de inquérito foi ao hospital para saber como estava o tripulante. Com enorme espanto, constatou que o pessoal da embaixada já o havia evacuado para Moscovo. A Comissão de Inquérito de Moçambique protestou e pediu para ir a Moscovo falar com o tripulante, mas a embaixada informou que isso não era aconselhável e que as autoridades soviéticas iriam fazer o inquérito e transmitir as respostas às questões colocadas pela parte moçambicana.
Até hoje, pelo que sei, a parte ex-soviética não transmitiu qualquer informação sobre o assunto. Haveria algo a esconder ou tratou-se de simples negligência? [...].
Voltando ao fatal acidente, não se compreende, por exemplo, porque é que o comandante do avião, ao ouvir o sinal de alarme da proximidade ao solo, não meteu a potência máxima nos motores e iniciou uma subida imediata, como exige o manual de operações do construtor da aeronave. A razão é que ele estava mesmo convencido que descia para Maputo. É a única explicação.
Por estas dúvidas todas que persistem, o nosso governo, daquilo que me consta, ainda não declarou encerrado o inquérito, ao contrário do que sucedeu na época com os governos da África do Sul e da URSS, que logo consideraram o processo terminado. No início de 2006, foi finalmente revelado que o actual governo da África do Sul ira reabrir o inquérito.
Com ou sem agente recrutado, é minha convicção que algo se passou na cabine de pilotagem que induziu o comandante do avião a cometer aquele monumental e fatídico 'erro'. Terá sido mais um caso de crime perfeito?"
Por estas dúvidas todas que persistem, o nosso governo, daquilo que me consta, ainda não declarou encerrado o inquérito, ao contrário do que sucedeu na época com os governos da África do Sul e da URSS, que logo consideraram o processo terminado. No início de 2006, foi finalmente revelado que o actual governo da África do Sul ira reabrir o inquérito.
Com ou sem agente recrutado, é minha convicção que algo se passou na cabine de pilotagem que induziu o comandante do avião a cometer aquele monumental e fatídico 'erro'. Terá sido mais um caso de crime perfeito?"
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