13 novembro 2012

ENTREVISTA - CINEASTA JOSÉ CARDOSO: PARA FAZER CINEMA É PRECISO VER


ENTREVISTA - CINEASTA JOSÉ CARDOSO: PARA FAZER CINEMA É PRECISO VER
Cineasta Jose Cardoso

Fascínio e curiosidade moveram-me durante meses, até que, em Outubro, me sentei diante desse homem de 82 anos, cuja obra tem sido várias vezes relembrada nos últimos tempos. Chama-se José Cardoso e o seu nome está para sempre ligado à história de Moçambique, como o mais antigo cineasta, o 1º a internacionalizar o nome do país através da imagem e a granjear-lhe reconhecimento e prémios.

-“Sou uma pessoa muito íntegra. O que à minha volta se apresenta como uma injustiça flagrante revolta-me!”
Foi assim que iniciámos uma conversa franca, recheada de memórias e sorrisos, numa manhã fresca de Maputo. Rodeava-nos o seu ambiente familiar, o aconchego do seu dia-a-dia feito de recantos e objectos que contam uma vida, presenças e vozes que denotam intimidade, espírito de união e ternura, ingredientes que garantem a qualquer ser, longevidade e espaço para pensar e criar.
Cada uma das suas frases desenhou desde logo os contornos do cidadão atento e alerta, que transpôs para a tela, com cuidadoso sentido cinematográfico, mensagens humanas límpidas e sem artifícios estéticos, nem retóricos. Mas, mais do que da obra, era do homem e do seu percurso que eu queria falar. Conhecer o de hoje, para reconhecer o de ontem. Mapear a vida para assinar a obra.
Por isso, avancei com uma 1ª questão que o fez sorrir:
- Como vê a sua carreira, assim, nesta fase da vida?
-Olhando para trás, para a minha carreira de cineasta, vejo-a com certa nostalgia. Pelo que me deu, e pelo que sonhei com ela e não consegui concretizar. Mas também com uma certa revolta. Não pelo sonho do cinema, mas pelo que esperava que me desse e não deu. As dificuldades financeiras de hoje são resultado disso. Cheguei a esta idade, esperei 20 anos por uma reforma, e ainda não está resolvida. O cinema deu-me muitas alegrias, mas no final também desencanto, tristeza e raiva.
- Como imagina que seria, se fosse hoje?
-Se tivesse autonomia financeira, queria que fosse brilhante, porque são inúmeras as ideias para filmes, que queria fazer. Naquele tempo, fi-los no cinema amador. Se fosse hoje, sem financiamento, fazer um filme seria difícil, até porque eu não aceitaria pressões políticas, nem que o dinheiro viesse de ONG’s para fazer temas de encomenda. Quero dizer, os meus pensamentos são livres e sem sujeição a pressões.
- Como é chegar até aqui e não parar de ter ideias e projectos sempre novos?
-Mais do que anos de idade, o que tenho são ideias e energia mental. O que eu queria era continuar agarrado a uma máquina de filmar e fazer filmes. Mas é um trabalho cansativo e, por isso, hoje ponho essas ideias no papel. Há anos que o faço. E, apesar de alguns problemas me desanimarem ultimamente, luto contra isso, e essa luta ajuda-me.
- O reconhecimento de então e o que recebe hoje são diferentes?
-O reconhecimento do público naquele tempo era muito bom. ‘O vento sopra do norte’, por exemplo, creio que foi o filme que maior audiência teve, em Moçambique, 100 mil espectadores em ano e meio de exibição.


Públicos e políticas culturais públicas

- O público dessa época e o de hoje são diferentes. Agora parece mais ausente e desinteressado?
-Naquela altura, mesmo assim, havia sempre público. Hoje, não tenho como aferir, mas pelo que me parece, talvez haja menos mas mais selectivo. O resto não vai ao cinema e isso é muito preocupante. Parece haver uma apatia geral. Ora, como os jovens são os futuros dirigentes deste país, parece que o futuro está hipotecado.
- Os cineclubes tinham uma função social agregadora, por que será que hoje não vingam?
-Os cineclubes fazem falta para cultivar o gosto pelo cinema e pôr o público a debater, despertando-lhe a capacidade de análise crítica. Naquele tempo, um cineclube era uma escola, aqui como em muitos países. É uma actividade que precisa ser revitalizada. Em Moçambique, o 1º a surgir foi o Cineclube da Beira, que até foi considerado o 2º mais importante do mundo português, quer em qualidade de filmes exibidos, quer em número de sócios.
- Já noutra época, o Kuxa Kanema teve uma função que foi muito bem aceite. Mas hoje, a sua réplica parece ter menos adesão. Estará o público cansado?
-O Kuxa Kanema era uma jornal de actualidades, mas nasceu e cresceu numa época revolucionária, levando às pessoas a notícia do que se passava no país, mas também uma boa dose de propaganda política do partido único, e era bem aceite porque toda a gente estava grata pela mudança verificada, e havia esperança no ar. Embora houvesse dificuldades em se ver Moçambique como um país uno, havia muita aceitação e, portanto, teve sucesso.
- O que faria para educar e criar novos públicos?
-A quebra na existência de público está assente na pobreza e na preguiça mental. Por isso, tem de haver projectos de formação relativamente à imagem. É urgente fazer-se formação e preparação das pessoas. Aliás, devia ser feita em todas as áreas e começar logo na escola. Deviam ser expostos ao cinema desde cedo, em ambiente escolar. Mas, ao contrário, as pessoas estão a ser contaminadas pelas novelas, que não exigem raciocinar.

Cineastas e fazedores de cinema

- Naquela época, os cineastas eram uma geração unida. Agora, é o salve-se quem puder. O que considera que motivou isso?
-Quando temos a barriga cheia, temos facilidade de agir, mas quando passamos dificuldades, tudo é mais difícil. As pessoas passam a olhar mais para o seu umbigo, procurando soluções para os próprios problemas. Nesse tempo, havia rivalidade, mas era uma rivalidade saudável - entre Beira e Lourenço Marques, por exemplo. Porque a maioria dos cineastas tinha uma certa cultura intelectual e havia alguma preocupação com o que se passava no mundo. Hoje, impera o egoísmo, as pessoas são pouco solidárias com o que se passa à sua volta e no mundo, e isso é muito mau. Os cineastas estão dispersos pela televisão, ou com suas empresas. Cada um tem um universo para gerir e ideias que não partilha. Procuram as coisas ao seu modo. A unidade que havia à roda de um projecto nacional, morreu.
- Parece-lhe que fazer filmes por encomenda faz sentido?
-Creio que não é só por ser mais fácil. Os que o fazem também têm sonhos como eu, mas fazem-no porque é o modo mais simples e o único de ‘ir fazendo’. É melhor que nada. Submetem-se. Têm um pouco a sensação de estar a fazer cinema. Mesmo numa temática obrigatória pode-se sempre pôr o nosso cunho pessoal e a nossa sensibilidade.
- Como vai, então, ser o caminho? Pela encomenda temática?
-Não é fácil. Se houvesse uma política de apoio, os cineastas podiam, pelo menos, voar!
- Que tipo de apoios?
-Criar-se, por exemplo, um Fundo de apoio ao cinema e aplicarem-se verbas oficiais a propostas de projectos candidatos.
- E a selecção, quem a faria?
-Um júri formado por cineastas não no activo e por cineastas em actividade mas que não concorressem, além de intelectuais, escritores e outros.
- O apreço do público, existente aqui em Moçambique, pelo género documentário, parece estar a decair um pouco, em benefício da ficção, coisa que não sucede no resto do mundo, onde os festivais de documentário proliferam. Por que será?
-O documentário, mesmo que se limite a imagens reais, obriga a pensar e, aqui em Moçambique, há tendência para não se apreciar esse exercício mental. Essa é a causa de vingar a ficção, com a qual é só fruir e tirar algum benefício emocional com isso. O mesmo se passa com a leitura. É através dela que conhecemos o mundo e a nós próprios, mas aqui não se lê…

O campeão de xadrez

José Cardoso é um homem multifacetado, arguto e perspicaz. Isso explica, em parte, que seja tão exímio no xadrez, modalidade de que foi campeão e que continua a praticar. Diz ele que lhe dá calma e distanciamento.
- Ser cineasta e campeão de xadrez. Ambas as funções jogam com o raciocínio do outro. Qual é que o estimula mais?
-As duas me estimulam. O cinema permite-me voar, enquanto o xadrez é mais dirigido, mas exige muita perícia. Hoje, como saio menos de casa para encontrar parceiros, jogo no computador, e jogo com o nível 10, mas é um nível fraco para mim. Quando estou cansado, uso o xadrez para me distanciar e distrair. Dá-me tranquilidade. Uma partida pode durar 4 horas – é uma luta estratégica, um grande exercício de memória. É preciso analisar o outro e ter muita calma e disciplina mental. Quando vivia na Beira, o xadrez tinha outra função, é que nós encontrávamo-nos num clube para discutir a situação política, e a capa era o xadrez. A PIDE pôs lá um ‘fraquezas’ para nos espiar, mas nós ali fazíamos uma espécie de laboratório para se ‘analisar’ e recrutar pessoas. Foi lá que acabei por me apaixonar pelo xadrez.  






Um ávido escritor

- O cinema é uma forma de intervir, mas o José Cardoso também escrevia. Essa vontade de ‘dizer’, por imagens e palavras, ainda o domina. O que o motivava a isso? O que o motiva agora?
-Sim, intervinha muito! Este livro que estou a terminar agora é muito político. Preocupo-me e critico em relação ao passado. É um conjunto de 3 contos. Mas tenho um romance que está pronto, intitulado ‘Butterfly, o guerrilheiro’ e estou a acabar de escrever as minhas memórias ‘Memorandos da Vida-memórias e reflexões’, que é uma autobiografia crítica. Mas tenho outros livros já publicados.
- O que gostava de ter feito se não tivesse feito nada disto?
-Teria bisado. Gostava de ter feito exactamente o mesmo. As motivações não mudaram.
“Como vê a sociedade e a arte em Moçambique, e o percurso que o país tem feito?”
-Antigamente era um país muito intelectualizado, mas uma elite. Depois da Independência ficou mais generalizado, embora com alguma preocupação de usar as artes para a revolução, em detrimento da ‘arte pensada’. Depois começou um certo amadurecimento em termos artísticos. Surgiram outros valores que nunca foram recusados. Hoje há uma melhoria, uma nova postura. Há mais atenção aos problemas sociais, em denunciar o que está mal.
- Se fosse político o que faria para mudar o estado de coisas?
-Varria todos os políticos e abria uma escola para formar bons e novos políticos.
- Os novos cineastas lutam com os mesmos dilemas de antes – falta de recursos; não apoio oficial; onde exibir; pouco reconhecimento do mérito. Apesar disso, eles não se unem, e quase se prejudicam deliberadamente uns aos outros, por um lugar ao sol. Acredita que isto é alterável?
-Acho que a Amocine devia ter uma postura mais enérgica, dinâmica e crítica, para agitar as poeiras e tirar delas algo de bom. A tendência é entrar-se com força, mas a força acaba acomodatícia. A associação e os próprios cineastas devem ser mais pró activos e também mais críticos. O bajulamento é um hábito que se está a instalar. A formação pode contrariar o estado de coisas. Mas tem de ser coberta e debruçar-se sobre essas questões. Formação só pelo papel, não leva a nada. Mas, se mudar os valores, então sim.
- Que filme faria hoje, se a oportunidade surgisse?
- Um filme de denúncia. Acreditou-se num projecto que nos foi proposto e o que se vive está longe disso. O filme seria de denúncia da mentira, baseado em algumas pequenas histórias dos livros de contos. Eu escrevo da mesma maneira com que faço os filmes.
- Por que parou de fazer filmes?
-Deixei de ter forças e substituí-o pela imagem escrita. O computador é agora a minha câmara.
- Como vê a recente onda de reconhecimento que lhe têm prestado? Que sensação?
-A sensação é de que estão a despertar, quando já estou no final da vida. Esse reconhecimento de agora não aconteceu antes. Nessa altura, havia tanto de apoio por parte de alguns colegas, como inveja de outros.
- A sua homenagem pelo KUGOMA e pela FLCS-UEM, de que modo as viu?
-Foram muito agradáveis. Serviram para acordar as cabeças para coisas que devem ser feitas e para agitar os jovens criando-lhes a capacidade de pensar no passado e projectar o futuro.
- Veio da Beira para Maputo? Que mudança foi essa? Tem saudades da Beira?
-Em 1970, o então director do INC, Américo Soares, que me conhecia pelos meus filmes e o sucesso por eles obtido, e porque o INC não tinha quadros, convidou-me para o INC. Aceitei e vim com a família para Maputo. Mas, a verdade é que tenho muitas saudades da Beira.
- É um homem de muitas habilidades. Chegou mesmo a ser cantor lírico?
-Sim. Poucos se lembrarão, mas eu era tenor. Fui solista no Orfeão da Beira. Tinha entrado 1º no Grupo Coral do Rádio Clube de Moçambique, depois na Emissora do Aeroclube da Beira e, finalmente, solista do Orfeão, com o maestro Tomás Firmino.



Zeca Afonso – um amigo e um activista cívico e cultural

José Afonso, o conhecido compositor e cantor de baladas de intervenção é uma referência como cidadão, política e socialmente, não apenas em Portugal. Ele viveu em Moçambique antes e após a exibição do 1º filme do José Cardoso – ‘O Anúncio’, e é autor da canção ‘Vejam bem’, que abre e fecha o filme. Ela parafraseia bem a história, com as suas sequências cheias de originalidade e conteúdo dramático, a que a voz límpida do Zeca transmite bem um sentimento de fraternidade que o filme também clamava.
Em 1971, o Nº 332 do semanário ‘A voz de Moçambique’, relatava que o Zeca vivera aqui e tinha sido muito marcado por essa vivência, ao ponto de quase todas as canções, de alguns dos seus LP’s (discos de vinyl da época), terem sido compostas aqui no país e gravadas em 1ª mão, em casa de amigos.
- Como foi que aconteceu essa canção para o seu filme?
-O Zeca tinha um irmão na Beira, que era membro do cineclube. Ele tornou-se sócio e numa sessão descobriu o meu filme e entusiasmou-se com ele. Quando o filme ficou pronto perguntou-me se podia fazer uma canção. Eu concordei, claro. E ele escreveu e compôs a música numa noite. Em Portugal, houve críticos que pensaram que o filme tinha sido feito sobre a história da canção, mas a verdade é que, ela é que foi composta à medida do filme. E a montagem foi feita logo directamente.
- Ele estava integrado no círculo local?
-Para além do cineclube, a convivência era enorme em casa do Álvaro Simões, que hoje vive na Matola. Faziam-se tertúlias de poesia, música, cantigas. As músicas dele eram muito fortes e causavam muita confusão. Iam para a censura e o censor só aprovava se alterassem certas palavras.
O próprio Zeca dizia: “Em 64-65 estava no meu início de cantor nos meios académicos, infiltrei-me em alguns meios e ia conseguindo dar os meus recados, passar as minhas mensagens. Na Beira, de 65 a 67, fui protegido pelo cineclube local. Ali convivi numa enorme camaradagem e solidariedade. Aquilo era uma ’colónia’ dentro da colónia e percebi a intensa actividade que eles desenvolviam”. E recordava uma cena relativa ao censor de serviço – “Havíamos planeado representar Bertold Brecht e até incluía fados e guitarradas de Coimbra. O censor, que também fazia parte da representação, resolveu ‘cortar’ o texto de Brecht e até reescreveu à margem, modificando o texto. Então eu declarei que sem o texto do Brecht não cantaria fados nenhuns. Como o censor era também actor, acabou cedendo”.
Foi assim, que Brecht foi representado pela 1ª vez no ‘império colonial’, musicado pelo Zeca Afonso, que compôs 5 canções para a representação da peça “A excepção e a regra”. O Zeca foi impedido de permanecer em Moçambique quando, em 1972, tentou visitar o país. 
  • Gabriela Moreira - Colaboração

notícias Maputo, Quarta-Feira, 14 de Novembro de 2012




Um comentário:

  1. O vento soprano do norte....foi emocionante ter aquela realizacao no meio de tantas carencias

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