13 novembro 2012

IDEIAS - LIVRO CRENDICE OU CRENÇA DE JUVENAL BUCUANE: QUANDO OS MANES ANCESTRAIS SE TORNAM DEUSES


IDEIAS - LIVRO CRENDICE OU CRENÇA DE JUVENAL BUCUANE: QUANDO OS MANES ANCESTRAIS SE TORNAM DEUSES
Juvenal Bucuane, escritor moçambicano
O respeitável e amigo, Juvenal Bucuane, perguntou-me se teria disponibilidade para ler histórias suas, que pretendia publicar em livro. Sem hesitar, respondi afirmativamente, pois, ser um dos primeiros leitores constitui um privilégio.

Dias depois do contacto, recebi o exemplar intitulado Crendice ou Crença – Quando os manes ancestrais se tornam deuses. Impelido pela curiosidade, que é congénita no Homem, pus-me me a folhear o volume. A seguir à ficha técnica, deparei-me com a palavra Prefácio, estampada no topo da página. Na página seguinte, estava gravado o meu nome, o que deixava bem clara a minha segunda missão: prefaciar o livro. Confesso que, a partir desse momento, invadiu-me um misto de sensações: ora o fascínio pela eleição para leitor de um inédito, ora o nervosismo face aos desafios que me impõe a tarefa de “parir” um prefácio. É, sim, um parto, por requer caminhos tortuosos. Trata-se, sobretudo, de encontrar o que dizer, o Inventio, como sabiamente ensina Aristóteles. A resposta a esta preocupação veio-me sob a forma de duas questões inquietantes: um Prefácio, o que é? Para que serve? Perante as interrogações, não resisti ao prazer de citar o venerado professor e estudioso da Literatura, Francisco Noa: “os títulos, os subtítulos, as epígrafes, as advertências, os glossários, os prefácios são unidades discursivas paratextuais que, enquanto verdadeiros adjuvantes leiturais, impõem-se como chaves para a descodificação da mensagem, remetendo para a significação global do texto.” (Noa, 2002: 369-378).
Uma vez resolvida a inquietação em torno do termo prefácio, tomei os paratextos (títulos e subtítulos) como elementos estruturantes deste adjuvante leitural de Crendice ou Crença – Quando os manes ancestrais se tornam deuses.
1. O título: Crendice ou Crença – remete para o domínio psicológico oscilatório de Nfezi e Tonina, protagonistas da acção. Oscilação entre o absurdo e o verdadeiro, um misto de sensações, filtradas quer nos diálogos e/ou monólogos, quer no discurso do narrador. No título está sintetizada a actualização de um imaginário sócio cultural híbrido, fruto de séculos de contacto e de contaminação mútua entre povos diversos. 
2. Os subtítulos: Quando os manes ancestrais se tornam deuses – os manes, essas almas dos mortos considerados como divindades entre os romanos, esses deuses infernais do paganismo, dominam o subconsciente de Nfezi e Tonina.  Com efeito, as sucessivas investidas do  casal Mbelele, com vista à explicação e solução dos problemas que abalam a sua família, passam pela referência aos espíritos ancestrais, seja sob a forma de crendice (crença absurda ou ridícula) seja por força da convicção e fé religiosa (crença). A incontornabilidade dos manes, na vida e destino dos Mbeleles, atinge os píncaros da transcendência quando aqueles se transformam em autênticos deuses, esses seres  superiores ao Homem que, num reconhecimento tácito de politeísmo, tanto os venera. Isto é, os manes comandam a visão do mundo do casal Tonina e Nfezi. Porém, uma visão fissurada, pois, deixa passar marcas de outras mundividências. Eis, por exemplo, a resistência, numa fase inicial,  de Nfezi  em consultar os adivinhos: “ – Foste a uma mungoma! Que mungoma?! Sabes que não gosto dessas coisas, isso não faz parte da minha vida. – indignou-se, Nfezi”.
3. Outros títulos e subtítulos: a história é contada em sete capítulos, numerados e encimados por títulos. Exemplos: 1) “Tonina surpreende Nfezi Mbelele”. Um título ou a prenunciação do retrato de uma mulher detentora do pulso de liderança familiar? “Tonina, uma mulher batalhadora quando a causa era seu reduto familiar.”  É, sem dúvida, uma nova realidade em que uma mulher, valendo-se do poder da palavra, coloca em causa a hegemonia tirânica do homem, convencendo Nfezi, seu esposo, a consultar os magos. Desta forma, Juvenal Bucuane surpreende ao trazer uma focagem virada para o presente, ao invés do resgate do passado distante, que se tornou lugar comum, na escrita literária moçambicana. 2) “Blindagem ou a inexpugnabilidade do corpo e do espírito”. Assim apresentado, o título acentua o carácter oscilatório que domina o universo psicológico das personagens. Ou seja: por um lado, a crendice na magia dos magos, por outro lado, a crença verdadeira na invencibilidade do corpo e da alma. 3) “Os tambores rufaram noite adentro”; “Kufemba – o exorcismo dos espíritos”; “A evasão do xipoko”; “A sucessão dos rituais”; “Como se transmite vuloyi”. Seleccionei estes títulos, por duas razões: a primeira tem a ver com o facto de todos e cada um deles sumariar o relato que se lhe segue, ao mesmo tempo que cumpre uma função instigativa para o leitor. A segunda decorre da vertente interpretativa. Com efeito, os títulos em apreço, ao abrigo do tom neutral e por vezes irónico e indagatório em que aparecem, fazem um apelo a uma reflexão sobre questões ligadas aos espíritos dos mortos (?), feitiçaria e curandeirismo. São, pois, indagações que ora se verificam no quotidiano empírico-social das comunidades, ora elaboradas nas histórias contadas à volta da fogueira, ora recriadas através da sagrada escrita por escribas como Edgar Nasi Pereira, em Mitos, Feitiços e Gente de Moçambique: Narrativas e Contos; Aldino Muianga, em Mitos (histórias de espiritualidade); Aníbal Aleluia, em Contos Fantásticos; Ungulani ba ka Khosa, em “Exorcismo”, só para citar alguns nomes, da extensa lista de participantes (alguns anónimos) na (re)invenção da nossa mbenga cultural.  
  • Aurélio Cuna

notícias Maputo, Quarta-Feira, 14 de Novembro de 2012

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