15 janeiro 2013

GUINÉ-BISSAU E EM CABO-VERDE


A PRESENÇA DE AMÍLCAR CABRAL NA MÚSICA RAP NA GUINÉ-BISSAU E EM CABO-VERDE
Nos anos de 1990, com a vaga de democratização na Guiné-Bissau e em Cabo-Verde, quer o PAIGC quer o PAICV, partidos tidos como “força, luz e guia do povo”, perdem esse estatuto, pondo fim simultaneamente à cadeia de domesticação dos espíritos, precipitando assim uma descoletivização social das organizações juvenis sob o prisma comunista. Isto fez com que os jovens reinventassem formas de sociabilidades no seio dos grupos de pares, num contexto marcado pela globalização e afro-americanização do mundo, em que a cultura hip-hop, através do seu elemento oral, o rap, aparece como veículo da liberdade de expressão e de protesto dos grupos urbanos em situação de maior precariedade.
Este artigo pretende analisar de que forma os jovens guineenses e cabo-verdianos recontextualizaram através do rap, na nova conjuntura dos dois países, o discurso pan-africanista e nacionalista de Amílcar Cabral, tendo em conta o risco de branqueamento da memória coletiva e histórica; a suposta traição dos seus ideais pelos atuais políticos dirigentes; a necessidade de o resgatar enquanto guia do povo; e de representá-lo como um MC (mensageiro da verdade).  
  
 O “MC” enquanto mensageiro e guia
O grupo liderado por Cabral assume um protagonismo decisivo e se não inédito no processo de afirmação da nação, por ter desencadeado uma luta em nome de dois territórios dominados com vista à construção de uma nação pan-africana (Hobsbawm, 2002). Desta feita e na perspetiva de Fernandes (2005: 231), a geração de Cabral assume um inequívoco rompimento com os discursos nacionalistas lusitanos no que se refere à sua ramificação colonial, por forma a se obter uma total emancipação africana do sistema colonial.
É deste modo que as nações guineense e cabo-verdiana começam a ser tematizadas nas oralituras (canto-poesia) através da exaltação (da possibilidade) dessa nova condição, constituindo o mais importante legado simbólico e identitário da luta para a autodeterminação. No entanto, esse estádio foi algo efémero em Cabo-Verde, com o fim do projeto bi-nacional em 1980, reconvertendo-se para dimensões mais localistas na Guiné-Bissau e, desta forma, favorecendo a criação de bases para uma progressiva desideologização da produção cultural nos dois países.

Embora esse momento não coincida com a emergência da produção da música rap nos dois países, podemos dizer que a progressão destutelada da produção cultural na Guiné-Bissau e em Cabo-Verde constituiu bases favoráveis para o surgimento de uma determinada música de intervenção e um estilo não tradicional por parte de um grupo de jovens , considerados pelos sectores dominantes como “os que perderam valores” – nem partido, nem igreja, contribuindo assim para a modificação significativa da produção cultural, ou seja, das formas de estar no espaço público e também a reformulação de conteúdos e estilos da comunicação musical.
Estando assim expostos a riscos e à necessidade de encontrarem saídas individuais para sustentar o seu futuro, os jovens aqui em análise vivenciaram ambientes de fragmentação, desorientação e distorção, levando à perda do sentido atribuído originalmente. Numa etapa seguinte, verificou-se a edificação de réplicas da sociedade que haviam deixado para trás, instaurando assim novas referências. É neste quadro que entendemos que Cabral – expoente máximo de uma geração que levou até às últimas consequências a dimensão de um intelectual comprometido e que não devia alhear-se ao seu entorno sociopolítico, desencandeando e liderando uma luta de libertação com carácter pan-africanista – é resgatado enquanto elemento simbólico de referência, como o próprio Cabral afirma no seu “testamento político” (Janeiro de 1973):
 “(..) o que quer o Homem africano é ter a sua própria expressão política e social – independência. Quer dizer, a soberania total do nosso povo no plano nacional e internacional, para construir ele mesmo, na paz e na dignidade, à custa dos seus próprios esforços e sacrifícios, marchando com os seus próprios pés e guiado pela sua própria cabeça o progresso que tem direito como qualquer povo do mundo!”


Na Guiné-Bissau e em Cabo-Verde, Cabral ka muri/mori (não morreu) é um slogan que imortaliza o espírito de sacrifício e luta que o próprio fez ressurgir. No entanto, numa incursão à problematização do estudo, selecionámos três dimensões para a análise: - em que situações é que o nome de Cabral é citado nas músicas rap nos dois países?; - qual a justificação ou argumentação nos diferentes usos do nome de Cabral?; - qual a aproximação que fazem à sua ação enquanto rappers com a ação política de Cabral?
Das recolhas feitas nos dois países, no rap dito consciente e/ou político com menção de Cabral sobressaem quatro aspetos fundamentais:
  •  Preocupação em manter Cabral como referência face ao risco de branqueamento da memória coletiva e histórica;
  • Crítica aos “camaradas” e atuais políticos vis-à-vis das práticas alheias ao pensamento político enunciado por Cabral;
  • Utilização de Cabral como “guia” e portador de esperança;
  • Cabral como mensageiro da verdade ou seja como MC.

É frequente ouvir nas músicas analisadas preocupações em manter Cabral como referência face ao risco de branqueamento da memória coletiva e histórica:
“(…) poku poku guentis sta ta skeci / bu sta mori manenti na mimoria di nos povu / bu storia ta duvidadu pa gerason mas nobu / nem bu imagem ka sta mas na livru primaria / na dinheru djes trau / (…) bu bai bu dexa puema pa nôs kriança ki e flor di revoluson i di sperança / mas mesmu si ka sta xinti bu prizensa / kriança sta nasi e ka konxi storia di ses eróis / alguem ki da si vida pa liberta si povo se foi / es ta trokau pa eróis virtuais / homem-arranha, super-homem”1 (POMBA PRETO, Abel Djassi, 2010).

Dissecando a narrativa acima apresentada, é notória a preocupação com a salvaguarda da memória daquele que reivindicam ser o verdadeiro herói dos dois povos em pauta, com críticas relativamente à tentativa de substituição da sua existência enquanto protagonista real da história por heróis virtuais e ausentes do espaço físico nacional.
Na narrativa a seguir, paradoxalmente, a figura do Cabral parece ter menor pujança simbólica que um colonizador, ou seja, substituída a nível da orientação estratégica do país pela figura de um ocidental e colonizador:
“(…) N`ka kre odja statua di Cabral rostu pa simiteriu / Di Diogo Gomi2 rostu pa palasiu di governu / Dja sta bom di rodidju ku portugues!”3 (NAX BEAT, Odja Oby Ntedy Dypoz Fala - vyzon krytyku, 2009).


Por outro lado, ao mesmo tempo que as narrativas denunciam tentativas de branqueamento da história nos espaços institucionais, são apresentadas posturas em que alguns jovens periféricos assumem a continuidade da memória do Cabral:
“Cabral moré pa nôs i agora povu ka krê lembra-l / Bô e parti mais inportanti di nôs stôria i nu ka ta dal / Ka bô priokupá ki a luta kontinua / Bô morê na parlamentu ma bô vivê na nôs rua”4 (KAYA, LBC MINAO SOLDJAH e CHULLAGE, Amílcar Cabral, 2010).


De uma forma global, a preocupação com a manutenção e atualização da memória viva de Cabral está mais presente nas narrativas dos rappers cabo-verdianos do que guineenses. Este facto pode ser entendido na medida em que a luta para a independência dos dois países não teve como teatro das operações Cabo-Verde, vivenciando assim Cabral quase que de uma forma espiritual. Por outro lado, a vigência do projeto bi-nacionalista foi efémera, a liberalização política com a derrota do PAICV nas primeiras eleições democráticas levou à mudança do paradigma ideológico e à necessidade de busca de novas referências, projetando Cabo-Verde mais no mundo (do que em África), o que é patenteado numa certa recuperação das ideologias protonacionalistas (nativistas e regionalistas).
Já no que se refere à crítica da conduta dos camaradas de Cabral e atuais políticos vis-à-vis as palavras de “ordem”, é onde encontramos maior produtividade dos rappers dos dois países, envolvendo também as suas diásporas. Quase todas as narrativas neste campo apelidam-nos de “traidores” de um suposto ideal humanista de Cabral.
A traição da sua morte:  
“(…)disgrasa d’es tera kunsa desdi mortu di Cabral / chefi di guera matadu / objetivu di luta mudadu / en vez di concordia nacional i bin concordia criminal”5(TORRES GEMEOS, Culpadus, 2008).

Traição pelos desvios verificados:
“(…)Ma n punta, será ki anos ku na paga díbida di n ba luta? NAU! / Ei abós ke Amílcar falaba bos es? NAU! / Ke Amílcar falaba bos ora ku luta kaba pa nterga povu fatura? / Bo mata Amílcar bo nteral djuntu ku si konbersas / Konbersas ki pusível i pasa sedu impusível”6 (FBMJ, Guiné ka na fika sin, 2008)

Traição pela derrapagem:
“(…)Bardadi situason sta gravi / Kampu kinti / Amílcar Cabral erói mas garandi / Aonti bu matadu aós bu fidju na sufri kansera garandi / Kin ku pudi imajinaba kuma anós no na abandona no tera / Nde ku no firma ku arma na mon no nganha ki guera / kontra no toma independensia no pensa kuma tudu na sedu mindjor / Ma son kansera vida di djintis na tiradu suma flor7 (N`PANS, Fidjus di Guiné, 2006).
A incapacidade de promoção de desenvolvimento e estabilidade política no caso guineense e a produção de desigualdades sociais no contexto cabo-verdiano são elementos cruciais nas narrativas escutadas. Neste campo, o papel dos políticos e governantes é posto em xeque, na medida que são considerados opressores ao invés de defensores do povo, como aqui é elucidado pelos Cientistas Realistas (Guiné-Bissau) e Kaya, LBC Minao Soldjah e Chullage (Cabo-Verde):
“(…) País sta desorganizadu / Korupson sta jeneralizadu / Aparelhu di no stadu aos torna un sistema di korupson / Dinheru ku no djunta pasa na sbanjadu a toa i grande orgulho / fama(! ) / Guiné-Bissau i narkotráfiku / Djintis di stadu na prátika di negósius ilegais / E na fasi krimes organizadu ma faladu na nomi di stadu / Es tudu anós i kontra (…) Povu inosenti ku fomi na paga kulpa di dirijentes / Sorti ka ten, Cabral muri i ka ten kin ku na lebanu pa dianti / Tchur di Cabral tem ku tokadu pa es tera pudi bai pa dianti / Até aós Guiné-Bissau nada i ka tchiga di konkista, purblema d’es tera n ta pensal tok n ta disgostaaa”8 (CIENTISTAS REALISTAS, Contra, 2009).
“Cabral bu môri sedu i dja nu ka tem ninguen pa difendenu / Bu luta pa bu libertanu di un opresor mau feitor / Oji na nôs tera opresor so muda rostu i kor / Povu ignorante ta bati palma pa prizidenti ki e traidor / Mosus ki nen pa sis povu ka ta xinti un poku di amor / Kel ki bu konstrui es distrui dipôs di indipendensia / Trai pensamentu di povu kantu privatiza tudu inpreza / Guvernu sem autunomia ki ka ta kontrola ikunomia / Ku rijimi nun frontera ki dimokrasia ta kunfundidu ku tirania”9 (KAYA, LBC MINAO SOLDJAH e CHULLAGE, Amílcar Cabral, 2010).
Nesta parte, há um sentimento de revolta e desencantamento com a falta de oportunidades, de justiça social e de um clima de paz e união vivenciados por estes jovens.
Já nas duas narrativas a seguir os rappers apresentam-se como agentes com capacidade de produzir a arte da descosmetização da realidade social e política nos dois contextos, como ilustram:
 “(…) Na nha tera ka tem so morna ku koladera / Tem monti asnera kes ta bari pa baxu stera / Gosi e dibaxu meza ki nigosius sta fitxadu / (…) Monti makakisi i monti makaku di fatu, gordu i tudu fartu / Otus ta furta k apa farta ma sin pa mata fomi / Ami n sta odja monti mininu ta sufri na lugar di omi / (…) Thugs sta ta aumenta tudu dia pa alimenta skina / Alvés n ta pensa si tudu kel stôria di thugs li e ka un bodi espiatóriu ba tudu es prublema di susiadadi li / Juventudi ka sta dadu oportunidade / Monti sta ta termina lise upa inisia na mundu di marginalidade / Monti Zé-ninguen sta ta fazi so maldadi pamô es dadu puder pa ser autoridade”10 (BUDDHA, Na Nha Tera, 2008).
“E sufrimentu i garandi dimás / Te gosi no fika tras / Di nos i pena / Di nos i tristi / Nha ermons até kuandu? / Tera di Amílcar Cabral /  Ex-colónia di Portugal / Nunde ku 80% di povu ta vivi mal / Vizinhu di Conakry ku Senegal / Situadu na kosta osidental / sukundidu na kintal (…) Tera di no eroína mama Titina Silá / Djintis ku luta / pa serka António Spínola / Independensia tomadu prejuízu kunsa ten / Povu ta vivi mal pa un grupusinhu vivi ben (…) Chefi bati rendimentu / Povu entra na sufoku / No sai di país mas limpu / Pa país mas porku / 7 di junhu komplikanu situason / Balas di kanhons matanu populason”11 (MC MÁRIO, DON PINA e PATCHE DI RIMA, Relatório 1973-2012, 2012).
No fundo esta parte é elucidativa de como a teoria do suicídio de classe (pequena-burguesia) defendido por Cabral falhou12 com base nas criações de afinidades entre a poesia e a música de intervenção face ao desnorteio político-ideológico dos “camaradas” para otimização dessa realidade e a projeção dessa apropriação despartidarizada do legado cultural de Cabral.
As narrativas que apresentam Cabral como “guia” de referência aparecem em discurso indireto em contraponto ao tipo de liderança que se implantou depois da independência, sem compromisso, incapaz de resolver os problemas e ainda que tende a instrumentalizar os jovens, como por exemplo aqui: 
“Guvernantis karismáticos / Ku no misti / Guvernantis problemátikos / No ka misti / Guvernantis ku ason prátikos / Ku no misti / Guvernantis psikopátikus / No ka misti / Figa kanhota bo na mata pubis lentamenti / Ma n toma nota / Udju ta odja boka kala / Ma no ta nota / Bo vira-volta sin spiritu di patriota / Bo panha fábrika bo bota / Te di kompota bo bota / En kontrapartida bo ka kumpu nin palhota / So manda boka / Bo sobra fábrika di binhu / Na kantinhu / Pa pudi ba ta tchamintinu / Pa guinguitinu la na padja / Pa no pudi pega bari-bari bos padja / Nha pubis / Es i ora di no korda / Sol na iardi dja la fora …”13 (BUNKA MC e OKARKI BUTT, Natal Guiné, 2010).
Quando as narrativas que apresentam Cabral como “guia” e são apresentadas em discurso direto as referências são portadoras de apelo à luta, resistência, reapropriando-se do slogan Cabral Não Morreu: 
“ (…) Cabral kaba ku sufrimento kulonial / Ma luta ka kaba e dexanu pa nu kontinual / Inton kuzê nu sta spera? / Nu jura bandera / ka tem tenpu pa brinkadera / (…) Nu ten ki luta oji i sempri”14 (FARP, Antis Barku Skravu, 2007).
“( …) Cabral ka môri / Cabral tinha razon / E ka môri / E fika na nôs kurason / El e nôs erói / (…) Si bu pensa ma Cabral sta mortu bu sta enganadu pamô Cabral e mi Cabral e bô Cabral e tudu kauberdianus e guineensis (…)”15 (KAYA, LBC MINAO SOLDJAH e CHULLAGE, Amílcar Cabral, 2010).
Nesta parte, os rappers convocam Cabral entre o sonho e a esperança com uma preocupação em mobilizar a nova geração deixando transparecer a necessidade de “correr atrás do prejuízo”. Ainda, Cabral é apresentado como fator de orgulho e de identidade para o futuro:
“ (…)Amílcar Cabral / Omi ku ta pensaba futuru di no tera (…) Bu nomi ku n ta ronka / I bu bandera na nha testa / Bu inu na nha boka (…) nha identidadi nunka n ka na disisti del”16 (FBMJ, Guiné ka na fika sin, 2008).
No tocante ao último aspeto analisado, Cabral como mensageiro da verdade ou seja um MC, constata-se que para além da aproximação que os rappers fazem da sua ação produtiva e interventiva que lhes dá a possibilidade de se auto-representarem como verdadeiros herdeiros das causas políticas e militantes de Cabral, muitos deles procuram legitimar essa condição através da utilização da voz do próprio Cabral, intercalando os seus discursos nas suas músicas. É o caso dos Sindykatto de Guetto (golpe de stadu, 2011), Rhyman (Bissau, 2007) e 4ARTK (Strela Negra-Abel Djassi, 2010) que deste modo contribuem para reavivar Cabral no imaginário dos jovens politicamente desfiliados e localizados em contextos de exclusão.
Globalmente, das narrativas selecionadas e analisadas apercebe-se que os rappers procuram resgatar, atualizar e desenvolver uma cultura crítica, segundo Cabral (1973: 55), baseada na história e nas relações da própria luta, promovendo a constante da consciência política do povo (de todos os grupos sociais), mas visando os detentores de poder (político e económico) bem como do patriotismo/nacionalismo. Assim, o rap kriol(u), em particular os rappers (re)encontram em Cabral a teoria da capacidade de ação enquanto condição prévia, instrumento para fazer história e emancipação humana.


Referências bibliográficas
BARROS, M. (2012), “Participação Política Juvenil em Contextos de «Suspensão» Democrática: a música rap na Guiné-Bissau”, in BORDONORO, L. & MARCON, F. (Coord.), Juventudes, Expressividades e Poder em Perspectivas Cruzadas, Revista Tomo, n. 21 - jul./dez. 2012 – EdUFS, São Cristóvão.
CABRAL, A. (1973), “National Libertation and Culture”, in CABRAL, A., Return in the Source: Selected Speeches of Amílcar Cabral, Monthly Press: New York.
FERNANDES, G. (2006) Em busca da Nação: notas para uma reinterpretação do Cabo Verde crioulo, UFSC: Florianópolis.
GODINHO GOMES, R. (2001), O PAIGC e o futuro: um olhar transversal, Afro Expressão Publicações: Lisboa.
HOBSBAUWM, E. (2002), Nações e Nacionalismos desde 1780, Paz e Terra: Rio de Janeiro.
LIMA, R. W. (2012), “Rappers Cabo-Verdianos e Participação Política Juvenil”, BORDONORO, L. & MARCON, F. (Coord.), Juventudes, Expressividades e Poder em Perspectivas Cruzadas, Revista Tomo, n. 21 - jul./dez. 2012 – EdUFS: São Cristóvão.


O presente ensaio é extraído do estudo independente intitulado RAP KRIOL(U): o pan-africanismo de Cabral na música de intervenção juvenil na Guiné-Bissau e em Cabo-Verde” no prelo em Realis - Revista de Estudos AntiUtilitaristas e PosColoniais (Brasil). As conclusões deste trabalho serão apresentadas no Fórum Científico Amílcar Cabral (Cidade da Praia, 18-20/01/2013), organizado pela Fundação Amílcar Cabral.
  1.“Pouco a pouco as pessoas estão a esquecer / estás paulatinamente a morrer na memória do nosso povo / a geração mais nova duvida da tua história / a tua imagem ja não se encontra nos livros da escolaridade básica / tiraram-te do dinheiro / (…) foste e deixaste poemas para as nossas crianças que são as flores da revolução e de esperança / mas mesmo assim não se sente a tua presença / crianças nascem e não conhecem a história dos seus heróis / alguém que deu a sua vida para a libertação do seu povo se foi / trocaram-no por heróis virtuais / homem-aranha, super-homem”.
 2.Diogo Gomes (14?? – c. 1502) foi um navegador e explorador português. Capitaneava uma esquadra de três navios que reclamou para si o descobrimento do arquipélago de Cabo-Verde, na companhia do italiano António da Noli.
  3.“ (…) Não quero ver a estátua de Cabral com a cara virada para o cemitério / E a do Diogo Gomes virada para o palácio de governo / Chega de esquemas com portugueses”.
 4.“Cabral morreu por nós e agora não querem lembrar-se dele / Tu és a parte mais importante da nossa história e não a damos (…) Não te preocupes que a tua luta continua / Morreste no parlamento mas vives nas nossas ruas”.
5.“ (…) A desgraça desta terra começou com a morte de Cabral / O chefe da guerra foi assassinado / O objetivo da luta foi mudado / Ao invés da concordância nacional / Veio a concordância criminal”.
6.“ (…) Mas pergunto, será que nós é que vamos pagar a divida de terem lutado? Não! / Ei vocês será que Amílcar tinha vos dito isto? Não! / Amílcar vos falou que depois da luta era para entregar a fatura ao povo? / Não!/ Vocês mataram o Amílcar e o enterraram junto com as suas conversas / Conversas que eram materializáveis tornaram-se logo impossíveis”.
7.“ (…) Verdade situação agravou / Campo aqueceu / Amílcar Cabral herói maior / Ontem assassinaram-te hoje os teus filhos muito sofrem / Quem podia imaginar que com o tempo íamos abandonar a nossa terra / Onde defendemos com as armas na mão e vencemos a guerra / Quando tomámos a independência pensávamos que tudo ficaria melhor / Mas a vida da nossa gente anda a ser tirada como se fosse flor”.
8.“(…) país está desorganizado / corrupção está generalizada/ o nosso aparelho do estado tornou-se num sistema de corrupção / o nosso dinheiro é esbanjado à toa e com grande orgulho-fama / Guiné-Bissau é narcotráfico / servidores do estado praticam negócios ilegais / praticam crime organizado mas dizem em nome do estado / somos contra isso tudo (…) povo inocente com fome é quem paga a culpa dos dirigentes / não há sorte, Cabral morreu e não existe quem nos possa levar à frente / até hoje Guiné-Bissau não conquistou nada, problema desta terra penso-o e me dá desgosto”.
9.“(…)Cabral morreste cedo e já não temos quem nos defenda / (…) Lutaste para libertar-nos de um opressor mau feitor / Hoje na nossa terra opressor só mudou cara e cor / Povo ignorante bate palmas por um presidente que é traidor / Pessoas que nem pelo seu povo sentem um pouco de amor / Aquilo que construíste eles destruíram depois da independência / Traíram o pensamento do teu povo com as privatizações de empresas / Governo sem autonomia não controla a economia / Com o regime numa fronteira em que a democracia se confunde com a tirania / Triste ver os meus manos africanos humilhados em casa de seus irmãos”.
10.“Na minha terra não têm só morna e coladeira / Têm muita asneira que é varrido por debaixo da esteira / Agora é por debaixo da mesa que os negócios são fechados / (…) muita macaquice e muito macaco de fato, gordo e tudo de farto / Outros roubam não para se fartarem mas para matarem a fome / Vejo muitas crianças a sofrer no lugar dos homens / (…) Thugs aumentam todos os dias para sustentar as esquinas / O seu dia começa quando o teu termina / E ando a pensar se toda esta história de thugs não é um bode expiatório de todos os problemas da sociedade / Não é dada oportunidade à juventude / Muitos estão a terminar os estudos liceais para entrarem no curso de marginalidade / Muitos Zé-ninguém fazem apenas maldade porque foi-lhes dado poder para serem autoridade”.
11.“Este sofrimento é demais / Até agora ficamos para trás / (…) Meus irmãos até quando? / Terra de Amílcar Cabral / Ex-colónia de Portugal / Onde 80% do povo vive mal / Vizinho de Conakry e Senegal / Situada na costa ocidental / Escondido no quintal (…) terra de heroína Titina Silá / Gentes que lutaram / para expulsar António Spínola / Tomaram independência deixaram de ter juízo / O povo vive mal para um pequeno grupo viver bem (…) Chefe quebrou o rendimento / Povo entrou no sufoco / Saímos do país mais limpo / Para o país mais porco / 7 de Junho complicou a situação / Balas de canhão mataram a nossa população”.
 12.Para maior problematização do falhanço da teoria de classe defendida pelo Cabral ver: Godinho Gomes, R. (2001), O PAIGC e o futuro: um olhar transversal, Lisboa: Afro Expressão Publicações.
13.“Governantes carismáticos / Precisamos / Governantes problemáticos / Não precisamos / Governantes com ações práticos / Precisamos / Governantes psicopáticos / Não precisamos / Cruz credo estão a matar o povo lentamente / Mas ando a tomar nota / Vejo mas calo-me / Mas andamos a tomar nota / A tua vira volta sem espírito de patriota / Destruíram fábrica de compota / (…) Em contrapartida não construíram nem palhota / Só mandam bocas / Só deixaram com fábrica de vinho / O cantinho / para que possam embebedar-nos / Para afastarem-nos / De modo que ponhamos a bajular-vos / Meu povo / Está na hora de acordarmos / O sol já nasceu lá fora”.
14.“ (…) Cabral acabou com o sofrimento colonial / mas a luta não acabou e ele deixou-a para continuarmos / então o que esperamos? / vamos jurar a bandeira / não há tempo para brincadeiras / (…) temos de lutar hoje e sempre”.
15.“Cabral não morreu / Cabral tinha razão / Ele não morreu / Ficou no nosso coração / Ele é que é o nosso herói (…) E se pensares que Cabral está morto estás enganado porque Cabral sou eu Cabral és tu Cabral são todos os cabo-verdianos e guineenses (…)”.
16.“ (…) Amílcar Cabral / Quando penso no futuro da nossa terra (…) O teu nome é aquele que aparece / E a tua bandeira na minha testa / O teu hino na minha boca / A minha identidade nunca hei-de desistir dela.”


Por Redy Wilson Lima e Miguel de Barros - Mukanda | 15 Janeiro 2013 | 

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