HISTORICÍDIO NO MALI?
Cidade de
Tombuctu foi saqueada por islamitas
Ainda é cedo para avaliar o que um ano de
guerra fez a cidades como Tombuctu ou Gao, sobretudo agora que as tropas
francesas e os soldados malianos tomaram Tombuctu, Gao e Kidal.
Durante meses
sucederam-se notícias de mesquitas destruídas e bibliotecas saqueadas. No
início da semana, chegou mesmo a temer-se que grande parte da importante
colecção de livros e documentos do Instituto Ahmed Baba, com dezenas de
milhares de manuscritos, talvez os mais importantes do século XII e outros até
pré-islâmicos, tivesse desaparecido num incêndio. Os piores receios não se
confirmaram, mas há muito a fazer no terreno.
A guerra começou em
Janeiro do ano passado e, quase em simultâneo, surgiram relatos de que os
rebeldes, muitos de grupos extremistas com ligações à Al-Qaeda, estavam a
arrasar túmulos com centenas de anos que consideravam idólatras, mesmo que
consagrados a santos muçulmanos. Tombuctu é conhecida como a “cidade dos 333
santos”, mas os islamistas que se revoltaram contra o Governo do Mali querem
impor a sharia (lei islâmica) em todo o território e ela não permite que se
venerem santos.
A cidade do Norte, que
tem o título de “jóia africana” por ter sido um importante pólo de
desenvolvimento económico - era paragem obrigatória para os negociantes de sal,
ouro e gado - e protagonista de uma época de ouro na promoção da religião e
cultura islâmicas no continente (sobretudo nos séculos XV e XVI), foi a mais
afectada pelas acções contra o património, embora Gao, a mais populosa da
região (60 mil habitantes), também tenha visto muitos dos seus túmulos
profanados.
O conflito armado
ameaçava de tal forma Tombuctu que, no Verão, a UNESCO - Organização das Nações
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura decidiu declará-la “em risco”. Os
especialistas malianos e internacionais - em particular os franceses e
sul-africanos - temiam que, além dos edifícios únicos construídos em adobe
(lama, palha e madeira), verdadeiras jóias da arquitectura em terra que valeram
a Gao e Tombuctu o selo de património da humanidade, os islamistas dirigissem
os seus ataques aos fundos documentais.
MANUSCRITOS
SALVOS
O presidente da Câmara
de Tombuctu, Hallé Ousmane Cissé, chegou a dizer que as forças rebeldes tinham
queimado praticamente todos os documentos históricos da cidade, naquilo que
classificava como um “verdadeiro crime cultural”. Mas, afinal, os islamistas
destruíram apenas um dos dois edifícios do Instituto Ahmed Baba - o inaugurado
em 2010, pago pela África do Sul, cuja Universidade da Cidade do Cabo é das
organizações que mais têm investido na preservação dos documentos de Tombuctu.
Nele só estavam guardadas cópias digitalizadas dos velhos manuscritos e
originais menos relevantes.
“Uma grande maioria
foi salva. Penso que mais de 90%”, disse à AFP Shamil Jeppie, professor da
Universidade do Cabo que dirige o projecto de catalogação e conservação dos
manuscritos. “É claro que alguns sofreram desgaste, outros foram destruídos ou
roubados, mas uma parcela muito mais pequena do que julgávamos à partida”,
admitiu, explicando que o dano não foi maior porque, receando os ataques ao
instituto, arquivistas e conservadores transferiram os livros e documentos mais
importantes para Bamaco e para outros lugares seguros nos primeiros meses da
insurreição islamista.
Nos “cofres” do
instituto há verdadeiras preciosidades em pergaminho, pele de carneiro e até em
omoplata de camelo. São livros, tratados e textos variados sobre astronomia,
música, história, política, direito e matemática. Entre os mais importantes,
diz Jeppie, citado pelo diário francês Le Monde, há muita poesia.
“Até há bem pouco
tempo, dizia-se erradamente nos círculos ocidentais que a tradição cultural
africana era em grande parte, ou por completo, oral”, disse ao diário
norte-americano Los Angeles Times o especialista em manuscritos árabes Amidu
Sanni. Os manuscritos de Tombuctu contradizem essa visão.
Para Adel Sidarus,
professor de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade de Évora, os
manuscritos da cidade dos 333 santos são o reflexo do papel que este centro
teve na África Ocidental durante centenas de anos, como pólo de trocas
económicas e civilizacionais. “À falta de uma palavra melhor podemos dizer que
Tombuctu tinha uma espécie de burguesia letrada. Havia tertúlias, era um centro
de cultura e de conhecimento”, diz ao PÚBLICO este académico cristão copta
egípcio que e vive em Portugal há 35 anos.
IN «Jornal O País»5 de
Fevereiro de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário