O
CONFLITO NA PRODUÇÃO DE HERÓIS EM MOÇAMBIQUE
Por
Carlos Serra
Se o homem é a medida de
todas as coisas, a política é a medida de todos os heróis.
Heróis oficiais |
Os heróis oficialmente
conhecidos em Moçambique são aqueles que a Frelimo, através do Estado que gere desde
1975, decretou como tais. Na imagem destaca-se Samora Machel (primeiro em pé da
esquerda para a direita) e Eduardo Mondlane (segundo em pé da esquerda para a
direita)
1. Introdução
Se, por destino dos bons deuses e dos bons
espíritos, os que governam Moçambique e os que esperam governá-lo, decidissem
conjugadamente, com a alma magnética e dialéctica dos irmãos gémeos, fazer um
inquérito nacional para conhecerem as percepções populares sobre heróis, sobre
quem são esses heróis, sobre quem merece história e estátuas, sobre quem tem
legitimidade popular, talvez se surpreendessem com o surgimento de heróis que,
por hipótese, teriam, por exemplo, as seguintes cinco dimensões
hierarquicamente organizadas:
Heróis familiares ou de parentela alargada
Heróis locais extra-familiares
Heróis distritais
Heróis provinciais, eventualmente bi-provinciais
Heróis oficiais
Estatisticamente, os gestores e os
candidatos a gestores da heroicidade oficial talvez viessem a descobrir e a
reconhecer que quanto mais saímos dos círculos familiar, local e distrital,
mais difícil é conhecer e partilhar os heróis oficiais, aqueles pan-heróis
distantes e desconhecidos comemorados nos dias festivos, nos discursos, na
rádio, na televisão, nos comícios, etc.
Se ao conhecimento dos heróis popularmente
reconhecidos e legitimados juntassem o conhecimento sobre as suas
características, os gestores e os candidatos a gestores da heroicidade talvez
se espantassem ao verificar a variedade de critérios populares para
estabelecer o perfil de heroicidade.
Poderia, até, acontecer que se tivesse por
heróis, espíritos de heróis.
Um trabalho desse género permitiria,
também, que se soubesse um pouco mais sobre as razões por que os jovens, os
estudantes e os mais velhos - afinal muitos de nós - pouco sabem dos heróis
oficiais, pouco se preocupam com eles, pouco os sentem na alma.
Mas não é assim que as coisas se passam e
se fazem, o mencionado inquérito nacional não será realizado.
Regra geral, coisa de herói oficial é coisa
de poder. Melhor: produto de relações incessantes de poder, eixo de uma intensa
luta pelo monopólio da sua produção.
2. O que é um herói?
Andre Matsangaissa (sem camisa) |
A atribuição em 2008 do
nome de André Matsangaíssa (na imagem e sem camisa) à rotunda 2314, situada no
Bairro da Munhava, arredores da cidade da Beira – na altura gerida pela Renamo
-, é um exemplo claro de uma primeira brecha aberta no monopólio frelimiano de
gestão de heróis.
Um herói é alguém a quem, colectiva,
inter-subjectivamente (excluo a análise dos heróis pessoais), atribuímos
qualidades e práticas extraordinárias, fora do comum, alguém que perdeu digamos
que as suas qualidades humanas e se transformou numa espécie de deus terreno,
de deus profano. Para enunciar um truísmo, um herói nunca existe a montante,
mas a juzante das nossas representações sociais.
A morfologia da heroicidade é,
naturalmente, vasta e variada. O herói não tem um centro temático ou uma linha
unívoca de pureza.
Os heróis são tantos quantas as nossas
necessidades em guias, em referenciais, em modelos de conduta, em juízes, em
territórios de combate, em futuros. E, regra geral, consoante a intensidade e a
extensão das lutas entre grupos sociais ou nacionais. Os impuros de uns são os
puros de outros e vice-versa.
Heróis são seres que, com o tempo, unificamos psicológica e socialmente numa matriz comportamental única e
virtuosa, da qual eliminamos os defeitos e, até, as qualidades humanas
comezinhas.
Mais: em quem, muitas vezes, hipervalorizamos um aspecto de conduta (que pode ser motivo de retrabalho
permanente e de acréscimo) deixando outros na penumbra. Estas as razões por que
certos heróis podem ser iminentemente políticos ou completamente políticos.
Os heróis existem em todo o lado e desde
sempre, não importa onde e quando.
Somos produtores “naturais” de heróis, de
hiper-eus nas diversas socializações pelas quais atravessamos a vida e a
história. Os mais pequenos agrupamentos dispõem de heróis, de guias, de modelos
de conduta. Os heróis tanto podem habitar um lar, um grupo de famílias, uma
rua, quanto uma prisão ou as matas da guerrilha, tanto podem estar mortos
quanto vivos e, estando mortos, estarem vivos na memória e na invocação
cultual.
Temos heróis de magnitude diferente. Um
herói oficial dispõe, claro, de um peso de irradiação formal bem maior do que
aquele de que dispõe um herói do bairro do Xiquelene em Maputo, de um sindicato
combativo, dos meandros do crime ou das matas de uma guerrilha.
Mas isso não significa que o peso informal,
não oficial, dos heróis, seja pequeno: um herói dos quarteirões populares ou
das sagas campesinas de luta pode ser mais intensamente sentido e glorificado
do que um herói seleccionado numa reunião fechada do grupo dirigente de um
partido e regularmente projectado nos órgãos de comunicação.
3. Heróis oficiais
Uria Simango, um dos fundadores
da Frelimo, foi extra-judicialmente executado pelo governo pós-independência de
Samora Machel. A história oficial relegou o antigo vice-presidente da Frelimo
para a condição de reaccionário
Os heróis podem ser motivo de conflito
agudo entre grupos e partidos na competição pelo monopólio da sua produção.
Melhor escrito: são quase sempre. Por exemplo, recentemente o presidente do
Zimbabwe, Robert Mugabe, afirmou que jamais os membros da oposição seriam
contemplados na praça dos heróis nacionais do seu país, apenas reservada aos
heróis do seu partido, a ZANU-PF.
Um porta-voz do MDC-T, partido na oposição,
reagiu declarando que a praça nacional dos heróis pertencia aos Zimbabweanos e
não à ZANU--PF [1].
Quanto mais partidarizado for um Estado,
mais políticos e mais central e unilateralmente produzidos e decididos são os
seus heróis e, portanto, menos possibilidades têm de ser popularmente aceites.
Quem são os heróis oficialmente conhecidos
em Moçambique? Os heróis oficialmente conhecidos em Moçambique são aqueles que
a Frelimo, através do Estado que gere desde 1975, decretou como tais.
São heróis que operaram no interior de um
processo histórico: o da luta de libertação nacional a partir de 1962.
Que operaram e que foram definidos no
interior de ideais, de virtudes e de práticas produzidas pela liderança
hegemónica da Frelimo. Ideais, virtudes e práticas que os produziram com
exclusão daqueles que foram considerados traidores. São pessoas a quem o grupo
dirigente da Frelimo atribuiu virtudes extraordinárias em seu papel de pais
fundadores e de pais executores da gesta nacionalista e revolucionária, são
pessoas que foram consideradas excepcionais na concepção e na implementação dos
programas que permitiram que a independência nacional fosse alcançada. São heróis
definidos no interior de uma luta política e militar contra opositores
estrangeiros e nacionais à frente de libertação.
Os restos mortais desses heróis estão na
cripta da Praça dos Heróis, cidade de Maputo. Aí estão, também, os restos
mortais de duas pessoas que não fizeram directamente a caminhada da luta armada
de libertação nacional, mas cuja grandeza e cuja luta, como poeta um, como
maestro outro, como patriotas ambos, levaram a Frelimo a dar-lhes o estatuto de
heróis. Trata-se do poeta José Craveirinha e do maestro Justino Chemane.
Existem pessoas que não estão nessa Praça,
cujo estatuto foi, certamente, considerado menos relevante ou menos decisivo,
mas que têm os seus nomes em ruas e em praças provinciais do país.
4. A luta política na produção de heróis
Jose Craveirinha |
O poeta José Craveirinha
(na imagem) e o Maetro Justino Chemane são duas pessoas que não _ zeram
directamente a caminhada da luta armada de libertação nacional, mas cuja
grandeza e cuja luta levaram a Frelimo a dar-lhes o estatuto de heróis.
A produção de heróis é, sempre ou quase
sempre, um laborioso processo histórico de luta, de catalogação, de
etiquetagem, de defesa de lugares adquiridos, de valores primeiros.
A esse propósito, lembrei-me de um livro
fascinante, escrito por Norbert Elias em parceria com John Scotson, que, na
versão inglesa, tem o título “Os estabelecidos e os intrusos” e, na versão
francesa, o título “Lógicas da exclusão”.
Nesse livro, Elias e Scotson mostraram
como, no fim dos anos 50 do século passado, numa cidade inglesa de periferia,
os aí chegados em primeiro lugar produziam e reproduziam a exclusão social dos
novos chegados, como os catalogavam, como os rejeitavam, como se esforçavam
permanentemente para assegurar os seus privilégios, como segregavam o que, no
seu prefácio à obra, o sociólogo francês Michel Wieviorka chamou “racismo sem
raça” [2].
Tenho para mim que estamos perante uma
excelente grelha teórica para analisarmos a produção política de heróis em
Moçambique.
Com efeito, estamos hoje confrontados com o
fenómeno de termos a gestão do panteão oficial de heróis - a cargo da Frelimo,
ganhadora da independência nacional, gestora do Estado -, disputada e posta em
causa por uma outra candidata à produçãode heróis, a Renamo, pedra angular de
uma guerra sangrenta de muitos anos [3]que reclama ser a autora da democracia
multipartidária em curso no país.
A Frelimo entende que apenas ela está em
condições de produzir os heróis nacionais pois foi a criadora da Nação, é a
gestora natural do Estado, tem a legitimidade absoluta da história. A Frelimo
entende que qualquer produção fora desse perímetro é um atentado à história, à
verdade. Por isso impugna violentamente a ousadia da Renamo.
Por sua vez, a Renamo, que disputa a gestão
do Estado e se reclama da criação da democracia nacional, entende que tem
também o direito de disseminar, de moçambicanizar os seus heróis, de lhes dar
um estatuto paritário, de legitimidade nacional.
Muito provavelmente, um partido mais jovem,
filho rebelde da Renamo, o Movimento Democrático de Moçambique, abrirá também,
no futuro, uma frente de heróis, tentando triunviratizar a legitimidade na
produção nacional desse tipo de recursos políticos.
Temos, então, uma nova “guerra”, desta vez
não com metralhadoras, mas com heróis, uma guerra pela produção e pelo controlo
político desse importante recurso de poder.
A atribuição em 2008 do nome de André
Matsangaíssa à rotunda 2314, situada no Bairro da Munhava, arredores da cidade
da Beira – na altura municipalmente gerida pela Renamo [4] -, é um exemplo
claro de uma primeira brecha aberta no monopólio frelimiano de gestão de
heróis, é um exemplo do prosseguimento da guerra agora pelo controlo da
toponímia.
A “Winston Parva”, a pequena cidade do
livro de Elias e Scotson, é, afinal, o nosso pleno Moçambique.
5. A política é a medida de todos os heróis
Situadas na interface entre o individual e
o colectivo, o racional e o impulsional, o consciente e o inconsciente, o
imaginário e o discursivo, as representações sociais aqui em vista são
fortemente tributárias da forma como os grupos políticos se inscreveram na
história do país e nela tatuaram e tatuam os seus modelos, os seus guias de
referência, os seus heróis epónimos, os seus valores, os seus clichés, os seus
prejuízos e os seus estereótipos.
Os heróis moçambicanos não são, portanto,
livres de descansarem nas suas tumbas quando em jogo está a sua reprodução ou a
sua reactivação política.
Eles são duramente produzidos e
reproduzidos.
Por consequência, não há heróis em si, à
partida. O que em vida foram certas pessoas é o que queremos que sejam, no
molde das nossas exigências de virtude, proeminência e legitimidade.
A politização da alteridade, a heroicização
ou a diabolização, são partes constituitivas da forma como construímos a
visibilidade de quem amamos ou odiamos.
O poli-heroísmo está definitivamente
instalado e será sempre, por hipótese, monitorado pela luta política.
Se o homem é a medida de todas as coisas, a
política é a medida de todos os heróis.
http://zimbabweelection.com/2013/09/02/mdc-members-will-never-be-buried--at-heroes-acre-says-mugabe/
[2] Elias, Norbert and Scotson, John
L., Logiques de l’exclusion. Paris: Fayard,1997.
[4] A gestão da cidade da Beira está a
cargo de Deviz Simango desde 2003: nesse ano eleito presidente do município
concorrendo pela Renamo, repetiu a proeza em 2008 como independente, após ter
sido expulso daquele partido. Em 2009 fundou o Movimento Democrático de
Moçambique.
SAVANA – 27.09.2013
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