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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

17 junho 2014

FINALMENTE, Simeão Cachamba ou Thahula Ndindane, escritor moçambicano de barba rija, estreou-se em livro. E, por decisão tutelar, o primogénito responde então pelo nome de “A mão invisível que não é de Adam Smith”, uma obra poética afinal vencedora do concurso literário organizado por ocasião dos 35 anos do Banco de Moçambique, por conseguinte a entidade patrocinadora.
Dizemos finalmente porque, de facto, Simeão Cachamba não é qualquer imberbe nestas coisas de escrita e de resto toda a sua malta, maioritariamente, até já publicou mais do que um livro, um dos quais ele mesmo prefaciou, na circunstância “Vozes que falam de verdade”, a obra primeira do consagrado Marcelo Panguana.
E nisto de prefácios, os anais da literatura moçambicana têm também registado mais um de Simeão Cachamba no caso vertente à antologia de poesia intitulada “As palavras Amadurecem”, editada pelo Diário de Moçambique a propósito dos 10 anos da sua página literária, Diálogo, na qual pontificam a maioria dos grandes nomes da poesia nacional como, não podendo citar todos, José Craveirinha, Heliodoro Baptista, Armando Artur, Eduardo White, Mia Couto, Filimone Meigos, Luis Carlos Patraquim, Elton Rebelo, Daniel Macaringue, Filimone Meigos, Bassane Adamugy e, claro, o próprio dito Simeão Cachamba.
Mas, voltando à vaca fria, a última quarta-feira testemunhou, no Centro Recreativo do Banco de Moçambique, na Beira, cidade onde o poeta viu cair o seu cordão umbilical, o lançamento do “A mão invisível que não é de Adam Smith”, o que já havia aliás acontecido, ao que se depreende, mais discretamente, em Março na cidade da Matola e em Abril no Instituto Camões, na capital do país.
No evento da Beira, como de praxe, foi apresentado o autor, pela voz de Maria Pinto de Sá, presidente da Casa do Artista daquela cidade, e a obra pelo docente da Universidade Pedagógica, João Fenhane. O autor usou igualmente o microfone para falar de si e dos contornos deste projecto.
O livro de Simeão Cachamba consta de três cadernos. O primeiro leva precisamente o mesmo título da obra, enquanto os dois restantes são “A solidão que não é de Garcia Marques” e “A viragem que não é de Castro Soromenho”.
Mas a pergunta que não cala é mesmo esta:
Que estranha mão invisível que não é a de Adam Smith/Que mexe os cordelinhos da economia de Moçambique/Que é capaz de levantar tempestade num copo de água/E as leis do mercado e a propriedade desonra e magoa?
Como se impunha, convidámo-lo também a dois dedos de conversa sobre a obra que acabava de lançar e sobre o estágio da nossa literatura nos dias que correm e quejandos.
Começámos mesmo por pedir ao autor que se explicasse sobre a escolha de um título tão sugestivo como este: “A mão invisível que não é de Adam Smith”. E a reposta, sem evasivas, veio nos seguintes termos:
“Há um filósofo chamado Adam Smith, considerado o pai espiritual da economia, cujo livro referencial intitula-se ‘A riqueza das Nações’. Nesse livro, Adam Smith fala dos pressupostos da economia de mercado e uma das coisas que diz é que o interesse geral de uma sociedade pode ser realizado pelos interesses particulares, por exemplo, quando um padeiro faz pão resolve o seu problema mas acaba resolvendo também o problema dos outros.
 Existe, por conseguinte, uma mão que a gente não vê mas que traz soluções para os nossos problemas. Mas não é dessa mão que falo neste livro, daí o título “A mão invisível que não é de Adam Smith”.
Tributo ao jornalista Santos Artur
E o que é que o livro em si nos sugere?
Como sabemos, o nosso país enveredou por um sistema de economia centralizada que no entanto deu no que deu. Fizemos depois uma reviravolta. Então, este livro fala das coisas que aconteceram entre a Independência Nacional e o período em que entramos para a economia de mercado.
Numa leitura rápida do livro deparámos, de forma algo surpreendente, com o poema “Reza Emília” (pág. 47) à memória do jornalista Santos Artur, citado como autor de uma notícia sobre o apodrecimento de feijão nos armazéns da Companhia Grossista de Produtos Alimentares (COGROPA) que induziu o Presidente Samora Machel ao lançamento da Ofensiva Política e Organizacional no termo da sua visita à cidade da Beira em Janeiro de 1981. O que é que se passou afinal?
“Sim, foi mesmo assim. O presidente Samora Machel desencadeou a Ofensiva Política e Organizacional no termo da sua visita à cidade da Beira em Janeiro de 1981, na sequência de um artigo do nosso colega Santos Artur sobre o apodrecimento de feijão nos armazéns da COGROPA. O Santos Artur saiu da redacção com a Celeste, repórter-fotográfica, para uma reportagem e voltou com a história desse apodrecimento de feijão no armazém da COGROPA, numa altura em que o presidente Samora estava de visita à Beira. Eu era chefe da reportagem e disse ao Santos que fosse para casa e que se houvesse problemas no dia seguinte depois de o artigo sair que ele permanecesse em casa. Eis que, no dia seguinte, o presidente Samora começa o seu comício na Manga, precisamente fazendo alusão a essa situação do feijão apodrecido. A partir dai, regressado a Maputo, desencadeou as famosas ofensivas a várias instituições. Foi marcante e achei que podia fazer essa dedicatória ao Santos Artur neste livro e nesse poema”.
Santos Artur foi um proeminente jornalista do Noticias da Beira que mais tarde passou a designar-se Diário de Moçambique. Até à data da sua morte desempenhava as funções de Delegado do Jornal Notícias na Beira.
Olhando para o percurso de Simeão Cachamba, que já vai longo, fica a ideia de que estamos perante uma estreia tardia ou nem por isso. Sobre o assunto, ele responde:
“Embora eu já escreva desde a minha adolescência, de facto, não avancei para a publicação em livro, talvez porque tendo entrado cedo para o jornalismo não tenha tido muito entusiasmo para a publicação. Como jornalista, depois de transferir as minhas coisas para o papel quase que ficava por ai. Depois aconteceu eu ser o primeiro coordenador da “Diálogo”, a página literária do Diário de Moçambique, então passei a servir os outros. Mesmo ai publicava os meus textos, mas apenas para tapar buracos. Na verdade não me posso queixar de falta de oportunidades porque também fui gestor de empresas jornalísticas (Diário de Moçambique e Tempográfica) mas sempre evitei pôr as minhas coisas à frente. Também não tinha assumido ainda que devia publicar. A minha relação com a literatura foi sendo assim”.
Mas depois veio a pressão de amigos, colegas e outras pessoas que sabem que Cachamba escreve, daí ter decidido arrumar alguns trabalhos literários por afinidade temática e a passá-las para o computador.
E enquanto fazia a arrumação, eis que se depara com um anúncio do Banco de Moçambique, dando conta de um concurso literário. O tema era livre mas encorajava assuntos de economia. Como tinha muita coisa sobre isso, ele decidiu concorrer, tendo saído vencedor do concurso, que mais tarde deu no presente livro.
Mas agora que tudo começou, o resto só vai fluir, eis a questão. E a resposta:
“Para começar, como o concurso do banco impunha algumas limitações há muita coisa que ficou de fora e que poderei reaproveitar para futuras oportunidades. Mas tenho outro material literário, contos e projectos de novelas até para que as pessoas não pensem que a economia é a minha única musa.
Procuramos saber a razão do livro poético, pois, afinal quem conhece este autor sabe que tem um forte cunho de prosa.
“Se calhar esteja a seguir a mesma ordem. Eu comecei por escrever poesia e só depois entrei na prosa. Por isso, quem sabe, a prosa pode estar a caminho”.
Sobre a saúde da literatura moçambicana, o escritor fala dos desafios que existem sobretudo na componente temática e no campo da edição e publicação de livros.
“Penso que há dois grandes desafios. O primeiro está do lado dos próprios fazedores. Não há muita diversificação de temas. A nossa sociedade é rica de problemas que não aparecem reflectidos no espelho da literatura. Podíamos ter romances policiais, inspirados, por exemplo, naquela coisa do G20 que se falou muito. Há um certo afunilamento de temas mas se calhar com o tempo isso se ultrapasse. O outro desafio está do lado da publicação. É constrangedor que o próprio autor tenha que andar à procura de patrocínios para publicar as suas obras. Acaba fazendo mal uma das coisas. A edição de livros é uma espécie de fauna acompanhante. O estado tinha que repensar a maneira de realizar o seu compromisso com a literatura. É verdade que existe o Fundo Nacional para o Desenvolvimento Cultural (FUNDAC), mas não sei se o modelo que adopta é o mais adequado. Eu pergunto: qual é o foco? O autor? A obra? A editora? Não sei se não seria mais eficaz se esses recursos fossem unificados numa única base. Se calhar a coisa funcionasse de forma mais fluida”.
O Ministro da Cultura é poeta. Isso faz alguma diferença? Há dias um grupo de músicos sugeria ao candidato da Frelimo às eleições de Outubro que o próximo Ministro devia ser um músico. O que lhe parece, questionamos, ao que nos respondeu: “Penso que um Ministro tem que ser um bom gestor. O artista é artista. Está para produzir arte, ele não vai lá cantar, escrever ou esculpir. Pessoalmente, acho que ter um ministro artista não é garantia de que as coisas vão melhorar. A garantia só pode vir da mudança de procedimentos. Há um pensador, de que já não me lembro o nome, que diz que à medida que a pessoa vai subindo vai atingindo o seu nível de incompetência. Aí vai perder tudo. E não teremos nem bons gestores nem bons artistas”.
A Beira já deve ter um prémio cultural
A legislação autárquica confere responsabilidades aos órgãos municipais para realizarem também acções que de alguma maneira contribuam para a exaltação dos valores culturais locais.
Nesta esteira, o nosso poeta manifesta a sua preocupação pelo facto de isso não estar a acontecer, neste caso numa cidade como a Beira que já produziu grandes nomes da cultura moçambicana, inclusivamente um prémio Camões, que é o caso de Mia Couto, escritor natural desta cidade. E outros nomes como Shikane, Carlos Beirão, David Mazembe por aí fora.
E a comparação é mesmo inevitável neste particular: A cidade de Maputo tem, por exemplo, um prémio 10 de Novembro. Por que é que a Beira, que é a segunda maior do país, não pode ter um prémio similar? Eis a questão.
“A Beira, além da tradição que tem nesse sentido, conta hoje com uma série de instituições académicas e um tecido empresarial que pode muito bem comparticipar num projecto desta natureza. Isso serviria também para criar referências para a juventude que bem precisa disso. Falo de um prémio como falaria da toponímia. Por que é que não se pode avançar para a atribuição de nomes de figuras da cultura às ruas ou avenidas?”, indaga.
Thahula Ndindane
Um dos momentos mais emocionantes da noite de quarta-feira terá ocorrido quando o autor, no uso da palavra, explicou a origem do pseudónimo Thahula Ndindane.
Contou o poeta que entre os seus irmãos foi o único a quem foi dado um nome que vinha da sua linhagem matrilinear. O Simeão.
Vai acontecer que o pequeno Simeão só chorava, chorava e não parava de chorar.
Como não podia deixar de ser, era preciso saber o que se passava com o menino até que um nhamussoro (curandeiro) recomendou: tem que lhe ser dado o nome do seu progenitor, Thahula Ndindane. Assim aconteceu e assim terão parado os choros.
Já adulto e quando foi então a vez do concurso literário do banco e era solicitado que os trabalhos fossem assinados por um pseudónimo, nem mais, Cachamba preferiu resgatar o Thahula Ndindane.
E agora esta: Vencido o concurso e chegada a hora do livro, perguntou-se ao autor se não teria chegado a altura de assiná-lo pelo seu nome verdadeiro, Simeão Cachamba.
A resposta foi tão-somente a seguinte: “Antes que eu entre outra vez em crise de choros é melhor mesmo continuar a assinar Thahula Ndindane. (Risos) E aqui está então “A mão invisível que não é de Adam Smith”, de Thahula Ndindane!
Eliseu Bento

Um comentário:

Anônimo disse...

Thahula se foi, mas deixou-nos com uma grande obra.