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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

20 agosto 2012

LANÇAMENTO DO LIVRO "SAMORA: ATENTADO OU ACIDENTE?"


LANÇAMENTO DO LIVRO "SAMORA: ATENTADO OU ACIDENTE?"

Veja aqui o vídeo  ( 40 minutos) de lançamento do livro de José Milhazes SAMORA MACHEL, Atentado ou acidente? em que todos os dados levam a concluir não ter havido sabotagem, mas apenas um acidente, com claras culpas da tripulação. Chamo a vossa particular atenção para as declarações do ex-piloto Armando Cró e de Carlos Botelho, em especial quando este se refere a um encontro que teve com José Luis Cabaço, no Brasil. Interessante seria também saber-se a identidade dos 4 passageiros que não embarcaram em Lusaka e que parece terem seguido para a União Soviética. Mais acrescento: só foram feitos à tripulação testes de alcoolémia? Não poderia a tripulação estar sob o efeito de drogas que a levaram ao comportamento que tiveram momentos antes do acidente? Foram feitos testes para despistar esta hipótese? Como diz José Milhazes, estes pilotos não seriam "Kamikazes".

Ouça então as declarações proferidas:


(Pode demorar um pouco a abrir)

Aproveito para recordar este despacho da Lusa, de 15.08.2008:

EUA e Inglaterra sabiam que avião de Samora Machel foi sabotado - ex-ministro da Segurança

O antigo ministro da Segurança de Moçambique, Sérgio Vieira, disse quinta-feira em Maputo que a Inglaterra e os Estados Unidos sabiam que o avião em que morreu o ex-Presidente moçambicano Samora Machel foi sabotado e não caiu por acidente.

Samora Machel, chefe de Estado moçambicano desde a proclamação da independência do país, em 1975, até à sua morte a 19 de Outubro de 1986, perdeu a vida quando o avião em que viajava caiu na localidade sul-africana de Mbuzini.

Uma comissão de inquérito composta por peritos de Moçambique, África do Sul e da ex-União Soviética chegou a resultados divergentes, com os especialistas moçambicanos e soviéticos a apontarem a sabotagem do aparelho como causa do acidente e a África do Sul a indicar erros de pilotagem.

Na altura, Moçambique e o Governo sul-africano, dirigido pelo regime racista do "apartheid", viviam num ambiente de permanente hostilidade, com Maputo a acusar Pretória de apoiar a guerrilha da RENAMO, hoje o maior partido da oposição moçambicana.

As autoridades sul-africanas de então acusavam, por seu lado, Maputo de albergar militantes do Congresso Nacional Africano (ANC), que lutava contra a política de discriminação na África do Sul, e hoje partido no poder neste país.

Em entrevista quinta-feira ao principal canal privado de televisão em Moçambique, a STV, Sérgio Vieira, que ocupava a pasta de Segurança no ano em que Machel morreu, reiterou a posição de que o ex-chefe de Estado moçambicano foi "assassinado" e não vítima de acidente de viação, sublinhando ainda que "os Estados Unidos e a Inglaterra sabiam do que aconteceu".

"Nas vésperas do funeral do Presidente Samora Machel, o embaixador inglês telefonou-me a informar que tinha recebido instruções de Downing Street [gabinete do Primeiro-Ministro inglês], para comunicar que a Inglaterra não faria parte de qualquer comissão de inquérito, encarregue de investigar a morte do Presidente Samora Machel. Instantes depois, o embaixador dos Estados Unidos também me telefonou a comunicar o mesmo facto", disse Sérgio Vieira.

Para Vieira, os governos norte-americanos e inglês tomaram essa posição porque sabiam que os seus peritos chegariam à conclusão de que o Tupolev em que viajava Samora Machel tinha sido sabotado e não tinha caído devido a erros de pilotagem.

"Os Estados Unidos e a Inglaterra sabiam que os seus peritos nunca aceitariam uma aldrabice, e chegariam a uma conclusão politicamente inconveniente", a de que a queda do avião tinha sido provocada pelo regime do "apartheid", que apesar de estar sob sanções internacionais, era tolerado pelo Ocidente.

Os Estados Unidos e a Inglaterra consideravam a África do Sul do tempo do "apartheid" uma espécie de tampão contra o expansionismo do comunismo da ex-União Soviética, que tinha sob sua órbita a generalidade dos países africanos, incluindo Moçambique.

Sérgio Vieira, que chefiou a missão enviada pelas autoridades moçambicanas, para trazer os corpos das vítimas do acidente a Moçambique, achou igualmente estranho que tenha sido sugerido o envolvimento da Inglaterra e dos Estados Unidos na comissão de inquérito, contra as regras da Associação Internacional do Transporte Aéreo (IATA), que "prevêem na comissão de inquérito a participação do produtor da aeronave, do país do acidente e do país das vítimas".

"O ministro [dos Negócios Estrangeiros da África do Sul] Roelof `Pik` Botha disse-me que os Estados Unidos e a Inglaterra participariam na comissão de inquérito, e eu achei isso estranho, porque é contra as regras da IATA. Dias depois, são os embaixadores dos dois países que negam essa participação, sem que Moçambique a tenha pedido alguma vez", enfatizou Sérgio Vieira.

Sem acusar directamente o Governo sul-africano desse tempo, o ex-ministro moçambicano da Segurança recordou que o então ministro da Defesa da África do Sul, Magnus Malan, ameaçou directamente Samora Machel, nas vésperas do acidente, pelo alegado apoio deste a actos de guerrilha protagonizados no interior da África do Sul por militantes do ANC.

Sérgio Vieira considerou sem sentido a posição sul-africana de que os pilotos russos do avião do Presidente moçambicano eram inexperientes e tripulavam ébrios, como concluiu a parte sul-africana da comissão mista do inquérito.

"Os únicos vestígios de álcool encontrados nos corpos são os que resultam da decomposição após a morte e não de algum consumo (...), quanto à experiência dos pilotos, eram aquilo que em gíria de pilotagem se diz milionários do ar, com mais de 10 mil horas de voo. O único com menos horas tinha oito mil horas, e não exercia funções no `cockpit`", sublinhou Vieira.

Segundo Sérgio Vieira, é suspeito que as autoridades sul-africanas tenham declarado o local do despenhamento do avião zona militar, nas vésperas da queda do aparelho, para depois retirarem os militares da zona, deixando alguns polícias, no momento em que a missão enviada pelo Governo moçambicano chegou à área.

Vieira acusou ainda as autoridades sul-africanas de não terem prestado socorro aos feridos, preocupando-se apenas em reconhecer o Presidente Samora Machel, que "teve morte instantânea e apresentava o crâneo amarrotado", e em recolher documentos.

"Um dos sobreviventes contou-me que os membros do exército sul-africano que estavam no local do acidente só se preocuparam em recolher documentos e em reconhecer o Presidente Samora Machel", disse na entrevista o antigo ministro moçambicano da Segurança.

Sobre uma alegada "mão interna" de membros do Governo moçambicano na conspiração com as autoridades sul-africanas para provocar a queda do aparelho, justificada pelo facto de nenhum dos principais quadros do partido no poder em Moçambique, FRELIMO, não ter integrado a comitiva presidencial que sofreu o acidente, Sérgio Vieira considerou-a "especulação", justificando depois a sua própria ausência da viagem em que acabou morrendo Samora Machel.

"O próprio Samora disse-me a mim para não viajar, porque acabava de perder a minha primeira mulher e tinha chegado havia pouco tempo de uma missão do Botsuana. Joaquim Chissano [que depois sucedeu a Samora Machel na chefia do Estado moçambicano] estava fora do país também em missão de serviço", sublinhou Sérgio Vieira, lembrando ainda que Machel desrespeitou recomendações da sua equipa de segurança para não viajar à noite de avião, devido à situação de guerra que se vivia na África Austral.

"Samora Machel tinha virtudes, mas era teimoso, atropelou várias vezes regras protocolares, incluindo recomendações para não viajar à noite de avião. Tive várias vezes ataques cardíacos, devido à sua teimosia", acrescentou Sérgio Vieira.

PMA.

Lusa/Fim - 15.08.2008


NOTA:

Historiadores moçambicanos para escrever a HISTÓRIA DE MOÇAMBIQUE precisam-se. Quem são os quatro passageiros que se diz terem saído em Lusaka e para onde, na realidade, se dirigiram?

Fernando Gil

MACUA DE MOÇAMBIQUE


COMBATER AS IGREJAS PARA ERRADICAR A RELIGIÃO

COMBATER AS IGREJAS PARA ERRADICAR A RELIGIÃO




Por João Cabrita



Maputo (Canalmoz) - Na análise das relações Estado-Igrejas no período pós-independência, Eric Morier-Genoud em Grande Entrevista recente ao Canal de Moçambique, defendeu que a política do regime da Frelimo visava pôr fim a uma suposta hostilidade da Igreja Católica para com as demais confissões religiosas, e acabar com uma espécie de monopólio detido por essa igreja.

Esses não constituíram os factores determinantes da política do regime para com as igrejas. Em 1975 não era discernível qualquer hostilidade entre as várias confissões religiosas, nem tão pouco as igrejas regiam-se por esquemas monopolistas. Bem antes do «25 de Abril», assistia-se a uma tentativa do regime vigente de atrair para a esfera de influência do poder colonial a vasta comunidade muçulmana, sendo de destacar o papel do governador-geral, Rebelo de Sousa, junto de líderes islâmicos do norte de Moçambique. Hindus, protestantes e outras confissões religiosas actuavam livremente. Perseguidas no Malawi, as Testemunhas de Jeová encontrariam guarida em Moçambique durante a vigência da administração colonial. Em suma, seria um contra-senso o regime da Frelimo pretender pôr fim a algo inexistente.

A questão de fundo foi outra, e tem necessariamente de ser vista à luz do projecto político do regime da Frelimo. Tratava-se de um projecto de índole totalitária, e projectos deste tipo não prevêem poderes paralelos. Na óptica do regime, as igrejas constituíam um poder que era preciso desmantelar, da mesma forma que se desmantelou o poder tradicional e o poder da oposição, este último uma questão simples de resolver pois aqui o regime, como que a demonstrar a complementaridade entre sistemas totalitários, beneficiou da política do Estado Novo de não permitir na colónia qualquer actividade à margem da União Nacional/ANP.

Efectivamente, o que o regime pôs em prática, como, aliás, ele próprio assim o definiu, foi um «combate» contra as igrejas, visando, em última instância, a erradicação das religiões no país, tidas como «sequelas das sociedades tradicional-feudal e colonial-capitalista», sociedades essas que também deviam ser desmanteladas e das suas cinzas surgiria o «homem novo» e um «sociedade nova» – sociedade arregimentada, em que o partido no poder permeava tudo e em que todos teriam de ter um «pensamento comum». Um «combate» que não esperou pelo 3° Congresso dessa formação política, mas que foi desencadeado logo nas primeiras semanas a seguir à independência.

O título da «Circular» emitida pelo Comissariado Político Nacional da Frelimo em Outubro de 1975, era por demais explícito: «Combate Popular Organizado contra Estandartes do Imperialismo». Os «estandartes» estavam claramente identificados na «Circular» – seitas religiosas e missionários – e aos cidadãos o documento prevenia de forma clara e contundente: Deviam ʺcompreender que frequentar ou cumprir as palavras desses missionários é estar a trabalhar contra Moçambique, é estar a servir as potências imperialistasʺ. (1)

Um mês após a independência, o regime procedeu ao confisco de bens pertencentes às igrejas. Para dar ao acto um cunho legal, socorreu-se do eufemismo ʺnacionalizaçõesʺ para assim legitimar a violação de um direito fundamental, o da propriedade. Em 1978, houve a intenção do regime de levar até às últimas consequências a sua acção ʺcombativaʺ. Depois de ter privado as igrejas de meios para poderem funcionar, o regime restringiu a construção de novos templos com o argumento de que se devia dar prioridade à construção de escolas, hospitais e fábricas. A publicação e distribuição de literatura religiosa foram igualmente coarctadas. No contexto do «combate», o regime impôs restrições a quem quisesse cursar teologia, determinando que apenas poderiam matricular-se quem tivesse cumprido o Serviço Militar Obrigatório, e prestado serviço no aparelho de Estado, caso fossem provenientes de escolas oficiais. Em tudo isso não se vislumbrava o mais ténue dos sinais de que se tratava de uma intenção do regime em nivelar ou equilibrar as relações entre confissões religiosas.

Será que o «combate» movido contra as igrejas foi de facto um ʺdesenvolvimento positivoʺ, como defende Eric Morier-Genoud? Certamente que a mesma opinião não é partilhada por crentes que em Naisseko ficaram com os membros superiores inutilizados por acção de cordas embebidas em água e sal, apenas por não abdicarem da sua confissão religiosa. Nem por esses, nem por padres humilhados em Unango, nem tão pouco por sacerdotes arrastados das suas dioceses em Cuamba, Tete e Manica e em muitas outras partes do país, hoje dados como ʺdesaparecidosʺ.

(1) O texto integral da «Circular» assinada pelo Comissário Político Nacional da Frelimo, Armando Emílio Guebuza, está disponível na edição do jornal «Notícias» de 17 de Outubro de 1975 pp 2,5.





17 agosto 2012

MASSACRE DE 34 MINEIROS NA ÁFRICA DO SUL


A polícia na África do Sul acaba de notabilizar um espectáculo gratuito ao massacrar trinta e quatro (34) mineiros que se manifestaram no dia 16 de Agosto pela melhoria de aumento salarial. A presença policial fortemente armada e obrigando os manifestantes a retirarem-se foi o estopim da violência. Pelas imagens parece que os manifestantes portavam consigo algumas armas brancas e pretendiam com ela mostrar a indignação pela presença policial. Porém, nada é conclusivo sobre quem avançou primeiro (se foram os manifestantes ou a polícia), só uma investigação apurada permitirá saber. De qualquer das formas, as autoridades policiais tem por obrigação em casos desta natureza evitar perdas de vidas humanas. O cenário faz recordar com muita tristeza o período da Apartheid. O Governo de Zuma tem a obrigação de em função do inquérito a ser levado a cabo responsabilizar os culpados, se bem que nestes casos a balança sempre tem sido favorável as autoridades policiais.
RETROSPECTIVA DOS FACTOS
Ao todo, 44 pessoas foram mortas brutalmente pela polícia sul-africana, incluindo 34 mineiros. Trata-se de uma acção ocorrida na mina de Lonmin, onde trabalham mais de 2 300 mineiros nacionais.
No meio do desespero pela tragédia, resultante do massacre de 44 pessoas, protagonizado pela polícia sul-africana, incluindo 34 mineiros grevistas, os trabalhadores moçambicanos nas minas de Lonmin contam que viveram uma tarde da qual nunca se vão esquecer (quinta-feira).
Tudo teria começado na sexta-feira da semana antepassada, quando milhares de mineiros do grupo Lonmin, cotado na bolsa e que ocupa o estatuto de 3ª maior produtora de platina no mundo, decidiram marchar, pacificamente, até aos escritórios da mina, levando consigo uma reivindicação salarial.
Chegados ao local, foram marginalizados. O seu pedido de revisão salarial dos actuais quatro mil e quinhentos randes para doze mil e quinhentos foi recusado, sem espaço para nenhuma negociação.
Insatisfeitos com a reacção do patronato, os milhares de mineiros teriam regressado ao chamado “hostel”, a sua residência oficial, de onde saiu a concertação para que se reunissem numa montanha designada desde essa altura “base central”.

Antecedentes do massacre
Regressados da direcção da mina, os grevistas foram até aos escritórios da Associação dos mineiros, onde, devido à sua fúria, a segurança privada da mina teria tentado em vão travar a marcha dos mesmos. Foi assim como iniciou a batalha, que culminaria com o massacre. Nessa altura, dois seguranças foram mortos.
O motim dos mineiros prosseguiu num outro local próximo do primeiro, onde foram, igualmente, incendiadas cinco viaturas de particulares. No dia seguinte, a batalha campal continuou e, desta feita, dois agentes da polícia foram, outrossim, assassinados. Já na quinta-feira da semana finda, a polícia, armada ao detalhe, teria se deslocado à montanha, “base central” dos mineiros grevistas. Mas porque o local estava vedado por arame farpado, a decisão de que nenhum mineiro deveria transpor-se para o outro lado da barreira. Entretanto, quando o cordão formado pelos mineiros decidiu invadir a barreira estabelecida, a polícia, nem mais, alegando legítima defesa, abriu fogo. Os tiros a “queima-roupa” atingiram dezenas de mineiros. 44 pessoas foram mortas, 80 feridas e 615 detidas. «Jornal O País»













16 agosto 2012

O Caso da Igreja Católica em Moçambique




O Caso da Igreja Católica em Moçambique

Prof. Dr. Luís Benjamim Serapião1



Pretória (Canalmoz) - Acabo de ler a entrevista que o Canal de Moçambique/ Canalmoz teve com o Professor Dr. Eric Morier-Genou. Achei, por isso, oportuno escrever uma breve recapitulação do caso da Igreja Católica em Moçambique.

Um estudo da Igreja Católica em Moçambique demonstra que houve dois tipos de Igrejas católicas no país – Igreja Católica Colonial, e Igreja Católica Nacional/Moçambicana. A Igreja Católica Colonial teve a sua origem nos séculos quinze e dezasseis, na era da expansão portuguesa em África. O papado aplaudiu, concedeu o poder de posse, e remunerou Portugal por meio de bulas tais como a Illius Qui Se, de Eugénio IV (19 de Dezembro de 1442), a Romanus Pontifex (8 de Janeiro de 1454), a Eaquae Pro Bono Pacis de Júlio II (24 de Janeiro 1507), só para mencionarmos alguns exemplos. Nesta altura, o papado usou Portugal para expansão da cristandade em África. É assim que se iniciaram as boas relações com a Igreja Católica.

Em 1940, Portugal, aproveitando da já existente amizade, procurou usar a Igreja Católica na administração das suas colónias. Ambos assinaram os documentos: a Concordata, e o Acordo Missionário. Estes documentos, principalmente o Acordo Missionário deram muitos privilégios a Igreja Católica nas colónias. Os bispos tinham de ser portugueses e eram reconhecidos como oficiais do governo. Os padres que, em princípio, tinham de ser portugueses, eram também oficiais do governo. Todos eles recebiam salários do governo, e foi-lhes incumbida a responsabilidade de educar e portugalizar os nativos africanos. O governo colonial além de pagar salários a bispos e padres, tinha também a responsabilidades de construir igrejas, escolas, e outras instituições sociais que beneficiavam os nativos africanos. A educação dada aos nativos africanos, era limitada aos primeiros quatro anos da fase do “ensino primário “ e era conhecida como escola rudimentar. O ensino primário que aliás abrangia também os primeiros quatro anos de ensino, mas de melhor qualidade, era reservado aos filhos dos colonos, como também para outros não considerados nativos africanos.

Portanto, a Concordata e o Acordo Missionário fundiram bem o interesse missionário com o interesse colonial. Como disse o Professor Adriano Moreira, então ministro das colónias, ”o trabalho Missionário não podia ser separado do interesse colonial”. D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Patriarca de Lisboa, acrescentou que o Acordo Missionário era um documento importante da ocupação colonial cristã. O Primeiro-ministro António de Oliveira Salazar explicando perante a Assembleia Nacional o sentido da Concordata e do Acordo Missionário, disse que o fim da Concordata e do Acordo Missionário era a aplicação do Acto Colonial, como remuneração espiritual concedida pela Santa Sé, e que incluía a nacionalização dos objectivos missionários que deveriam ser integrados para sempre no processo da colonização portuguesa.

Neste processo os bispos nas colónias eram privilegiados como oficiais superiores coloniais com a mesma categoria de governadores, e os padres eram considerados também oficiais coloniais, mas na categoria de administradores. Portanto, em princípio, todos eles tinham de ser portugueses. Porém, havia uma excepção para os padres/missionários. Se um bispo tinha carência de padres/missionários para cobrir as necessidades da sua diocese, era autorizado a recrutar um número reduzido de missionários estrangeiros.

Em resumo o que acima descrevemos constituiu o que chamamos Igreja Católica Colonial em Moçambique.

Entretanto, o papado, na década de cinquenta, principalmente com a independência de Gana, sentiu a necessidade de formar um clero africano que haveria de tomar conta da Igreja Católica africana. Por isso, escreveu encíclicas, tais como Evangelii Precones (2 de Janeiro de 1951) e Fidei Donum (2 de Abril de 1957) ambas redigidas pelo Papa Pio XII exortando os bispos nas colónias a formar um clero africano. Esta exortação, não inquietou muito os bispos nas outras partes de África, pois eram estrangeiros nestas colónias, interessavam-se em propagar a religião católica como tal, e não tinham interesses nacionais/coloniais.

Em Moçambique, como em todas as colónias portuguesas, como vimos acima, o caso era o outro. Formar um clero moçambicano implicava dar o ensino para além do ensino rudimentar. Isto constituía o perigo de formar moçambicanos nacionalistas que poderiam questionar a Concordata e o Acordo Missionário. Foi exactamente o que aconteceu com os seminaristas do Seminário Maior da Namaacha quando começaram a questionar a prédica dos padres coloniais nas igrejas. O bispo Custódio Alvim Pereira, de Lourenço Marques, reagiu vigorosamente contra os seminaristas. Deu-lhes princípios escritos que explicavam a posição da Igreja Colonial em Moçambique. Os princípios explicavam claramente que a Igreja colonial rejeitava a teoria de independência para Moçambique e que os bispos não haviam de ordenar padres que constituíssem um problema para o governo colonial, e assim forçou os cabecilhas seminaristas a abandonar o seminário. Porém, enganou-se, pois nem aqueles em quem ele confiava e que se deixaram ordenar, tardaram mostrar o seu descontento para com a Igreja Colonial depois de ordenados sacerdotes. É de notar que o sentimento nacional contra a Igreja Colonial era comum entre todos os sacerdotes moçambicanos. Por isso, organizavam reuniões onde discutiam a situação da Igreja colonial. Naturalmente, os bispos resistiam a estas reuniões e juntamente com a PIDE tentavam frustrá-las. Porém, não conseguiram, dado que o papado ficou ciente disso.

Em 1976, O Cardeal Mazzoni com a bênção do Papa Paulo VI veio participar na reunião do clero moçambicano que teve lugar em Guiua, Inhambane (26 de Agosto de 1974). Esta conferência foi muito importante na história da Igreja Católica de Moçambique por ter rompido oficialmente com a Igreja colonial, e dado início à Igreja Nacional/Moçambicana. Nesta reunião, os sacerdotes insistiram na identidade do clero e do povo moçambicano. Rejeitaram o conceito do “homem novo” imposto do exterior como, por exemplo, o sistema colonial que insistia em portugalizar os moçambicanos. Os sacerdotes queriam manter a moçambicanidade genuína. Esta atitude custou-lhes muito caro, por que os que rejeitavam abertamente o conceito colonial do “homem novo” eram presos e postos nas cadeias. Este foi caso do Padre Domingos Ferrão de Tete e outros. Os Padres estrangeiros que também comungavam com as ideia dos sacerdotes moçambicanos foram também parar à cadeia. Este foi o caso do Padre André de Bels, professor do seminário menor de Zóbuè, e do Padre Celio Rigoli um missionário italiano na arquidiocese de Lourenço Marques. Com a intensificação da Guerra colonial, a PIDE, como também os bispos, tornaram-se muito vigilantes em relação às actividades dos padres. Foi assim que a PIDE e os bispos foçaram certas comunidades religiosas estrangeiras a abandonar Moçambique. Entre as organizações que tiveram de abandonar Moçambique conta-se a sociedade dos Padres Brancos, a sociedade dos Padres de Burgos, a sociedade dos Padres Cambonianos e a sociedade do Padres do Sagrado Coração.

Os sacerdotes moçambicanos que já sofriam a perseguição dos bispos e da PIDE, e rejeitavam todo o sistema da Igreja Colonial exigiram a transferência da hierarquia religiosa colonial para a hierarquia dos sacerdotes moçambicanos. As demandas foram submetidas ao Cardeal Mazzoni que tinha vindo participar na conferência dos sacerdotes moçambicanos em Guiua. Foi assim que nasceu oficialmente a Igreja Nacional Católica/Moçambicana no País. Mais uma vez, afirma-se que a Igreja Nacional/ Moçambicana rejeitou todos os privilégios contidos na Concordata e no Acordo Missionário, e todas a características que faziam parte da Igreja Colonial. Portanto quando a Frelimo assumiu o poder no Moçambique pós-colonial, encontrou a Igreja Nacional/Moçambicana.

Será que a Frelimo não acompanhava todos estes desenvolvimentos da Igreja Católica em Moçambique? Não há dúvidas que já seguia todos os acontecimentos. Portanto, temos que encontrar uma razão por que a Frelimo tomou uma atitude especial contra a Igreja Católica. Vejo três razões principais: a natureza do sistema social político de Frelimo, que incluía a criação de um “ homem Novo”; a natureza da guerra civil; e a solução da guerra.

Comecemos com a ideia de criação do “homem novo” que significava um homem marxista ateu. Vimos que na conferência dos sacerdotes moçambicanos já insistiam na moçambicanidade; rejeitavam o conceito de um “homem novo” imposto do exterior aos moçambicanos. Não queriam nem um “homem novo” dos colonialistas, nem um outro “homem novo” de ateus marxistas. Este conceito de “homem novo” era forçado à população e tinha consequências desastrosas. No caso do sistema colonial, quem abertamente resistisse ao conceito do “homem novo” colonialista era preso e posto na cadeia colonial. No sistema da Frelimo quem abertamente resistisse à ideia do “homem novo” era preso e posto em campos de reeducação.

A nova Igreja Católica Nacional/Moçambicana não podia aceitar o “homem novo “ da Frelimo, pois o conceito não admitia a crença da existência de Deus. A Igreja Católica/Nacional decidiu resistir abertamente ao sistema sociopolítico da Frelimo. Submeteu os seguintes documentos ao Presidente Samora Machel: “Igreja Católica na Revolução Moçambicana”; A igreja Católica na Revolução”; “Um documento Sobre os Campos de Reeducação” (11 de Maio de 1976). Naturalmente, estes documentos não foram do agrado da Frelimo e contribuíram para que esta formação política hostilizasse a Igreja Católica.

A segunda razão para a Frelimo colidir com a Igreja Católica foi a natureza, origem e desenvolvimento da guerra civil. Figurativamente falando, podemos aqui citar o caso do pescador das águas turvas. A questão que se põe é esta: quem turvou as águas? E quem está a pescar Estas duas perguntas suscitam duas teorias: Uma, que defende que as águas já estavam turvas, e o pescador veio pescar; e a outra avança a teoria de que o mesmo pescador é que turvou as águas e está a pescar. A Igreja católica, liderada nesta opinião por D. Jaime Pedro Gonçalves diz que o pescador encontrou as águas turvas. São estas as razões principais da guerra civil; foram razões internas.

Quanto ao desenvolvimento da guerra civil, a Igreja Católica, nas suas pastorais, avançou a teoria de que ambos lados envolveram-se em atrocidades. Finalmente, a solução da guerra, foi um outro ponto que mais uma vez irritou a Frelimo. A Igreja Católica Nacional/Moçambicana escreveu pastorais que tentavam persuadir os líderes dos dois lados da luta para entrar em negociações de paz. Entre 1979 e 1992, a Igreja escreveu pelo menos vinte e quarto pastorais incluindo a famosa pastoral A Paz Que o Povo quer (1987).

Em conclusão, esta recapitulação da Igreja Católica em Moçambique salienta três pontos principais:

Primeiro, existiu uma Igreja Colonial em Moçambique que, logicamente, foi mais privilegiada do que qualquer outra organização religiosa em Moçambique.

Segundo, o clero moçambicano resistiu e destronou a Igreja colonial e criou a Igreja Nacional/Moçambicana, (26 de Agosto de 1974) da mesma maneira que a Igreja Católica tanzaniana, a Igreja Católica queniana, Igreja Católica ugandesa; enfim, como todas as outras Igrejas Católicas surgiram em outros países africanos.

Terceiro, a Igreja Católica Nacional/Moçambicana, nunca gozou de privilégios de qualquer sistema político no país. (1 Prof. Dr. Luís Benjamim Serapião é Professor de Relações Internacionais no Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Howard, Estados Unidos. Uma das suas recentes publicações inclui, A Tainted Legacy; The Policies of Samora Machel in Independent Mozambique (Lambert Academic Publishing, 2011).


13 agosto 2012

OS DONOS DO PODER EM MOÇAMBIQUE: A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA DA ELITE POLÍTICA E ECONÓMICA


OS DONOS DO PODER EM MOÇAMBIQUE: A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA DA ELITE POLÍTICA E ECONÓMICA

Por Jorge Fernando Jairoce


Porto Alegre/Brasil- A elite do poder é simplesmente o grupo que tem o máximo que se pode ter, inclusive, de modo geral, dinheiro, poder e prestígio- bem como todos os modos de vida a que estes levam. Mais a elite não é simplesmente constituída dos que tem o máximo, pois não o poderiam ter se não fosse pela sua posição nas grandes instituições, que são as bases necessárias do poder e riqueza e do prestígio e ao mesmo tempo constituem os meios princípais do exercício do poder, de adquirir e conservar a riqueza, e de desfrutar as principais vantagens de prestígio.

Ninguem será portanto, realmente poderoso a menos que tenha acesso ao comando das princípais instituições, pois é sobre estes meios de poder instituicional que os realmente poderosos são, em primeiro lugar poderosos. A elite política controla esse poder instituicional através de nomeação de dirigentes membros do partido FRELIMO (ministros, reitores, directores, procuradores, juízes, directores de orgãos de comunicação, comandantes militares e policiais, PCAs, etc) com argumento de que são de confiança política. Outro mecanismo de controle consiste na  implantação de células partidárias nas instituições do Estado (partidarização do aparelho estatal) que aliás, foi reconhecido pelo Secretário Geral do Partido FRELIMO,  Filipe Chimoio Paúnde, como algo absolutamente normal da organização partidária e monitoria das actividades governamentais (pausa para reflexão....mais pausa para reflexão... seguido de mais pausa). No entanto somente o Partido FRELIMO é que pode possuir células nas instituições num país onde a Constituição da República  defende o multipartidarimo. A existência destas células cria um ambiente psicológico de coação no sentido de que todos os funcionários devem fazer parte dela sob o risco de suspeita de não estarem a cumprir as metas governamentais mesmo tratando-se de tecnocratas de reconhecido mérito profissional.

Mas nem todo o poder é exercido por meio destas instituições, mas somente dentro delas e através delas o poder será mais ou menos contínuo e importante. A riqueza é adquirida  e conservada através das instituições. Portanto a política funciona como um corredor para a fortuna. O volume e a fonte da renda depende da sua posição dentro do Partido e da economia política. Como a riqueza e o poder, o prestígio é cumulativo: quanto mais temos, mais poderosos conseguimos ser, traduzido para as palavras mais simples: o rico verifica ser-lhe mais fácil conseguir o poder do que o pobre; os que têm o status comprovam ser mais fácil controlar as oportunidades de adquirir as fortunas do que os que não tem. Para elucidar esta ideia é só verificarmos os moçambicanos que possuem licenças de  minas de carvão, de ouro,  as empresas que vencem maior parte dos concursos públicos em Moçambique  e os beneficiários dos fundos de tesouro público e dos empréstimos do ex-BPD e ex-BCM (remeto a análise de padrões de acumulação em Moçambique nos artigos publicados no Jornal Metical por Joseph Hanlon- As galinhas dos ovos de ouro e os trabalhos efectuados por Instituto de Estudos Económicos e Sociais).

A elite (pessoas que dela fazem parte) podem ser consideradas membros de um estado social elevado como um conjunto de grupos cujo membros se conhecem, se vêem socialmente e se associam para negócios e por isso ao tomarem decisões, levam-se mutuamente em consideração  A elite nesta perspectiva é considerada como um círculo íntimo de classes sociais superiores e poderosas. Por isso que normalmente ouve-se dizer que o ministro X foi padrinho da filha ou do filho do PCA Y. O ex-ministro têm uma sociedade empresarial com o dirigente Y. O filho do dirigente Y casou-se com a filha do ex-ministro X, etc. São exemplos de algumas relações de circuito íntimo. Parece existir uma certa consciência de si mesmo como uma classe social e se comportam uns para com os outros, de modo diverso daquele que adoptam para com os membros de outras classes. Acertam-se, compreendem-se, os filhos casam-se entre eles; procuram trabalhar e pensar, se não juntos, pelo menos de forma semelhante.

Em Moçambique é mais fácil observar a elite política e económica  em termos de sociologia de posição instituicional e da estrutura social a que essas instituições formam (por exemplo as posições ocupadas em termos de cargos governamentais, empresas pertencentes aos dirigentes ou ex-dirigentes governamentais, os círculos de interesse e até o nível de influência no Partido). Avaliar a elite em termos de estatística de valores monetários ou da riqueza que eles possuem  como foi a anunciado há quatro anos atrás (os dez mais ricos de Moçambique) acarreta uma investigação aprimorada, se bem que o número de empresas e interesses económicos permitam especular a grandeza financeira dos mesmos, mas dificilmente pode-se contabilizar a fortuna de cada um, porque não é possível ter acesso as contas bancárias dos mesmos até porque na sua maior parte está depositada  no estrangeiro (bancos sul-africanos e suiços preferencialmente).

Esta elite do poder muitas vezes ela é que toma importantes decisões para o País, acabando-se por se considerar fazedores da história do País, criando seus heróis e vilões com a intenção de perpetuar  a cultura e ideologia de respeito, admiração, dominação e controle dos recursos públicos e naturais do País. Assim, vai-se criando grupos de dominantes no País. Sobre o papel destes grupos dominantes na história do País  carece de uma discussão mais cuidada na teoria da história, não cabendo a sua análise  nessa reflexão. Esta elite às vezes esquece que a história se faz à revelia dos homens, ou seja, a história é uma correnteza sem domínio, que dentro dela há acção, mas não há feitos; que a história é apenas acontecimentos e factos que ninguém pretendeu.

Não há dúvida que as decisões tomadas por esta elite do poder podem mudar o curso dos grandes acontecimentos, mas também as decisões  podem ser afectadas pela correnteza e não se atingir os resultados esperados por ela, porque na tomada de decisões  maior  é a possibilidade de serem cegados pelos seus próprios erros. É assim que funciona o motor da história.  Muitos membros do Partido FRELIMO (que não fazem parte da elite do poder)  fazem eco as decisões tomadas pelas elites do poder sem perceber que estão contribuindo para  manutenção da dominação da mesma. Embora estejamos todos dentro da história, nem todos temos o  poder de fazê-las. Nem todos temos os meios técnicos e instituicionais do poder que existem, nem influência igual sobre  a sua aplicação. Os meios do poder aqui referido devem ser entendidos como as instituições de apoio ao poder da elite tais como os meios de comunicação social, as instituições jurídicas e de segurança. Através deste meios de poder pode-se  manipular a sociedade - a opinião pública, defender os interesses privados e usar a violência quando é necessário manter a legitimidade do poder. Aliás, o recurso a violência tem muito a ver com a nossa história de libertação visto que maior parte dessa elite política veio da Luta Armada de Libertação Nacional ou seja da linha militar e como tal a violência foi sempre uma prática recorrente desde os julgamentos de Nachingwea até as manifestações populares de 2010. Esta elite julga-se proprietária dos destinos do País, para isso basta recordar as palavras do Alberto Chipande: temos o direito de ser ricos porque libertamos o país (pausa para reflexão...mais pausa para reflexão...mais pausa). Assim, os meios do poder tendem a se tornar fino para a elite que os comanda. Não há nada na história do  país que nos leve a crer que é impossível a uma elite de poder fazê-la. Como dizia o saudoso Carlos Cardoso:  em Moçambique só falta chover de baixo. Na verdade, a vontade desses homens é sempre limitada, mas jamais os limites foram tão amplos, pois jamais os meios do poder foram tão grandes. Daí que termino dizendo que a elite política e económica de Moçambique são os donos do poder. Perante os factos ora apresentados surge uma questão a reflectir será esta uma elite responsável ou não para o desenvolvimento do país?


12 agosto 2012

UM HERÓI PARA MOÇAMBIQUE?


UM HERÓI PARA MOÇAMBIQUE?

GRANDE REPORTAGEM  190, 28 de Agosto de 2004


Quarenta anos depois do início da luta armada pela independência moçambicana (1964), o país olha para o passado à procura de mitos. Das profundezas da História emerge o nome de Gungunhana, o mais poderoso régulo do Ultramar português, preso por Mouzinho de Albuquerque em 1895. Neto do temível Manukuse, outro ícone da resistência à ocupação europeia no século XIX, «Ngungunhane» nasceu na mesma província que Eduardo Mondlane, Samora Machel e Joaquim Chissano, os três líderes históricos da Frelimo: Gaza. Um punhado da terra do cemitério onde foi sepultado jaz na Fortaleza de Maputo. Os seus ossos estão para sempre perdidos em solo português, na lava da ilha Terceira, arquipélago dos Açores.




Aos treze dias de Março do ano da Graça de mil oitocentos e noventa e seis, Lisboa explode em festa. O África vomita os seus fumos céu acima, dezenas de embarcações correm sem destino no Tejo, a multidão invade o Paço em delírio. Num minúsculo pavilhão a estibordo do navio estão os últimos troféus das guerras africanas da monarquia: cinco homens e dez mulheres angunes, amontoando-se sombrios sobre os beliches nauseabundos da clausura e do abandono. Gungunhana, deitado sem glória numa esteira, tem a cara coberta. Quando a destapam, ergue-se com susto, distribui o olhar desconfiado, muito negro, e volta a cobrir o rosto com as mãos. É alto como só um chefe tribal, exibe a testa ampla dos grandes líderes, mas a sua imagem não tem agora a altivez que tanto impressionara Mouzinho de Albuquerque dois meses e meio antes, no dia do assalto a Chaimite.


«Como os jornalistas e outras pessoas admitidas a bordo eram cada vez em maior número e o espaço faltasse, foi ordenado que subisse a pretalhada para a tolda, onde se faria a sua exibição», conta o Diário de Notícias do dia seguinte, elogiando os «valentes expedicionários» de Mouzinho. E, de repente, o «leão de Gaza» rebenta num pranto inesperado. «Digam-me o que querem de mim. De que vos sirvo eu? Eu morro se não voltar a ver as minhas terras!», grita. Em desespero, pede clemência, oferece a fortuna em troco da libertação, chora muito – chora e implora pela primeira das muitas vezes que chorará e implorará até morrer em Angra do Heroísmo, baptizado, alfabetizado e alcoólico, quase onze anos depois.


Ao longo de décadas os compêndios europeus hão-de recordar o episódio como um ícone da subjugação do negro inferior. Um epílogo feliz para a mais longa e sofrida campanha portuguesa desde que o Mestre de Avis comandara em triunfo a expedição a Ceuta, havia cinco séculos. Durante os três meses que permanece internado no forte de Monsanto, como durante os mais de dez anos que viverá desterrado nos Açores, ou as quase oito décadas que África terá ainda de esperar pela libertação, Gungunhana, filho de Muzila e neto de Manukuse, celebrizado como o mais poderoso e sanguinário régulo de todo o Ultramar português, há-de emprestar o seu nome como pretexto para as mesmas chacinas, os mesmos saques e as mesmas mentiras que tanto apreciava, apenas protagonizados agora pelos homens que mais odiava e temia.


Só depois a História olhará para ele a sério: só depois Mudungazi, o homem que intitularam «o leão de Gaza» como tributo à sua crueldade – o mesmo que a si próprio chamara Ngungunhane («Gungunhana», segundo a ortografia colonialista) para imortalizar os seus feitos «terríveis» e «invencíveis» – será submetido ao rigor da investigação histórica. E então, uma dúvida emerge: quem é o verdadeiro Gungunhana: um preto sanguinário que os portugueses subjugaram ou um imperador justo que os brancos destruíram?

Em 1953, o filme Chaimite, de Jorge Brum do Canto, defendia a primeira versão em prol da propaganda colonialista. Em 1995, Joaquim Chissano celebrou em Chaimite e Coolela os cem anos da resistência do império angune e inaugurou em Mandlakazi um busto do régulo, na tentativa de o transformar numa referência nacional. «Ele é um dos nossos heróis», sublinha hoje Américo Pinto, adido cultural da embaixada moçambicana em Lisboa. «O drama é que Moçambique precisa de heróis”, escreve em 1995 Nélson Saúte, romancista moçambicano, num artigo no jornal Público em que cita vários intelectuais com a mesma opinião. E a verdade é que o busto de Mandlakazi acabou vandalizado apenas três dias depois, alegadamente por elementos da etnia rival chope, muito representada na vila.

 
«Ngungunyana», como hoje lhe chamam os moçambicanos, continua por isso um mistério: ele chorou de medo em Lisboa, sim, mas também havia esmagado cruelmente todos os que se lhe tinham oposto no passado – e entre eles contavam-se os antepassados de uma grande parte dos actuais moçambicanos. Como compreender uma figura tão fascinantemente contraditória?



Para a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), nunca houve dúvidas: Gungunhana foi e é um herói. Quando em 1969 Samora Machel tomou o lugar de Eduardo Mondlane como líder do movimento, foi ao nome do imperador de Gaza que os partidários da unidade nacional moçambicana foram buscar forças para relançar a campanha da independência. Mondlane, o homem que iniciara o processo, tinha sido morto com a conivência de alguns condiscípulos – e no seu lugar teria, portanto, de emergir um líder forte, capaz de estimular a entrega e dissuadir a traição, tarefa para a qual um simples ex-auxiliar de enfermagem, como Machel, não parecia talhado. O boato de que o novo dirigente era um parente distante de «Ngungunhane», por via de um avô guerreiro chamado Maghivelari, foi o mote ideal – depois, o voluntarismo de Samora e a marcha dos tempos fizeram o resto. A 25 de Junho de 1975, pouco mais de uma década após o início da luta armada pela libertação, sobre a qual passam em 2004 quarenta anos, a independência do novo país é formalmente proclamada. Para quase todos os efeitos, o «leão de Gaza» era um símbolo de triunfo.
Mas não para todos os moçambicanos. Três anos depois das insinuações da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo, na oposição) sobre novos massacres executados pela Frelimo, que ameaçaram colocar em causa o acordo de paz assinado em Roma por Joaquim Chissano e Afonso Dhlakama, em 1992, os partidários de Dhlakama continuam a contestar o facto de tanto Eduardo Mondlane (nascido em Manjacaze, em 1920), fundador do partido no poder, como Samora Machel (Chilembe, 1933) e Joaquim Chissano (Malehice, 1939), seus sucessores e primeiros Presidentes da República, serem todos de etnia changana – que provém de Sochangane, nome anterior de Manukuse – e oriundos da província de Gaza.




Ao mesmo tempo, os ossos de Gungunhana, solicitados por Maputo em 1983, continuam perdidos na terra de lava dos Açores, algures numa vala comum do cemitério da Conceição, em Angra do Heroísmo, misturados com os restos mortais de inúmeros anónimos. Muitos não o aceitam como herói até que regresse a casa. E é como se faltasse ainda escrever uma linha da História – como se um verso permanecesse em branco, à espera do futuro, tal como diz o poema.



Samora Machel pediu a devolução dos ossos do rei de Gaza pouco antes de uma visita oficial a Portugal, em Outubro de 1983. Eram os anos de rescaldo da mentalidade colonialista, o momento de enterrar para sempre as diferenças entre brancos e pretos, e tanto o presidente de Moçambique como o seu homólogo português, Ramalho Eanes, esforçaram-se por sublinhar o muito que unia os dois países, mais do que aquilo que os distanciava. Um dos momentos mais simbólicos da visita foi precisamente a entrega ao presidente moçambicano de um pote de cerâmica contendo aquilo que seriam as cinzas das ossadas Gungunhana. Para incutir maior solenidade ao regresso a casa do chefe angune – também dito «vátua», mas por engano –, Machel pediu que Portugal conservasse por mais algum tempo os restos mortais do imperador, de forma a que o Estado moçambicano pudesse preparar uma cerimónia de transladação condigna. E a urna é então depositada na capela do Palácio das Necessidades, em Lisboa, onde permanecerá durante quase dois anos.


Gungunhana despede-se finalmente de Portugal a 14 de Junho de 1985, numa sessão solene a que assistiram os dois chefes de Estado e o então presidente do Governo Regional dos Açores, Mota Amaral, bem como oficiais da Marinha e do Exército portugueses. A urna preparada para receber as ossadas é uma obra de arte: um caixão de jambirre e chanfuta (madeiras moçambicanas), com dois metros de comprimento, 75 centímetros de altura, 225 quilos de peso e adornos com baixos relevos do escultor Paulo Come. Quando no dia seguinte aterra em Maputo contendo os ossos do herói, o DC-10 das Linhas Aéreas de Moçambique é recebido pelos cânticos de alegria de centenas de pessoas, num cortejo que percorre as Avenidas de Angola e Eduardo Mondlane, rumo ao Salão Nobre do Conselho Executivo. É aí que ficarão os restos de Gungunhana até serem definitivamente instalados na Fortaleza de Maputo, na capela de Nossa Senhora da Conceição, a que depressa se subtrai a principal imagem da Virgem.



A revelação de que o pote de cerâmica entregue a Samora Machel continha apenas terra do cemitério da Conceição surge logo a seguir, nas parangonas dos jornais portugueses. Moçambique opta primeiro pelo silêncio, mas o assunto será recuperado com regularidade ao longo dos quinze anos seguintes, nomeadamente quando, em 1995, se assinala o centenário da prisão do régulo africano. Mas Maria da Conceição Vilhena, estudiosa do Império de Gaza e biógrafa de Gungunhana, explica no seu Gungunhana, Grandeza e Decadência de um Império Africano, publicado em 1999, que a impossibilidade de localizar os ossos do chefe angune sempre fora do conhecimento de Maputo e que, portanto, o punhado de terra fora aceite como um símbolo.
O livro cita um ofício redigido pelo então Ministro da República para os Açores, Conceição e Silva, em que se dá conta de que as ossadas são irrecuperáveis, e relata mesmo um episódio em que Mota Amaral solicita a devolução da terra do cemitério caso Moçambique decida recusá-la, alegando que «às cinzas dos mortos tributam os Açorianos um profundo respeito». Mas em 1998, quando o semanário Expresso retoma o tema, o Governo moçambicano anuncia a criação de uma Comissão de Inquérito, presidida pelo ministro da Cultura Mateus Kapupha, para apurar a autenticidade das ossadas.


Hoje, cinco anos passados, a Comissão de Inquérito continua com o «dossier», sem ter ainda apresentado quaisquer resultados. «O trabalho prossegue», garante Américo Pinto. Investigadores açorianos especializados no fenómeno Gungunhana garantem nunca terem sido contactados para qualquer esclarecimento ou ajuda nas investigações, bem como nunca terem sabido da deslocação de qualquer delegação moçambicana a Angra do Heroísmo. A maioria dos jornalistas de Maputo assegura que, tanto quanto lhe diz respeito, o assunto morreu. Mas, enquanto os resultados da comissão não forem oficializados, dificilmente a alma de Mudungazi descansará em paz – dificilmente se instalará em definitivo nas margens do rio Limpopo, entre os espíritos que um dia ofereceram ao exército angune a magia e a força para resistir durante 75 anos à pressão de portugueses, ingleses e alemães.


Fundado por um ramo zulu fugido à guerra que alastrava a Sul, o reino de Gaza sobreviveu à cobiça europeia durante mais de sete décadas. Quando Gungunhana foi preso por Mouzinho de Albuquerque em Chaimite, em 1895, parte do seu exército ainda conquistava terreno aos tsongas, aos chopes, aos vandaus e aos bitongas, empurrados sucessivamente para Norte e fugindo a todo o custo ao confronto com os métodos carniceiros e esclavagistas dos angunes. No seu esplendor, o império de Gaza espraiava-se do rio Icomáti à margem esquerda do Zambeze, do oceano Índico ao curso superior do rio Save. Era o segundo maior reino africano do século XIX, um território que, no mapa actual, ocuparia mais de metade de Moçambique e um bom pedaço do Zimbabué, entrando ainda pela África do Sul. Há cem anos, tinha uma população entre os 500 mil e os dois milhões de habitantes.
A história da dinastia de Manukuse é a história da traição, da luta uterina pelo poder, do assassinato a sangue frio. Quando o todo-poderoso primeiro rei de Gaza morre, em 1858, a sua sucessão é disputada durante cinco anos pelos dois filhos mais velhos, Mawewe e Muzila. As divergências sucessórias nasciam da incompatibilidade entre a lei zulu e a lei angune propriamente dita, e dessa incompatibilidade há-de resultar mais tarde o mesmo tipo de disputa para a segunda sucessão. No primeiro caso, Mawewe é empossado, mas faz tudo por provocar a ira de portugueses e boers, que ajudarão Muzila a usurpar-lhe o trono após uma sangrenta guerra civil. No segundo, depois da morte de Muzila, Mudungazi mata o irmão primogénito, Mefamane, e obriga outros três a fugir para o Transvaal, de forma a garantir o poder. É aí que adopta o nome de «Ngungunhane».


O reinado do «leão de Gaza» foi marcado pela frieza sanguinária com que o «kraal» (a corte) tratava os povos vassalos e pela habilidade política com que o rei se relacionava com as potências europeias. De certa forma, Gungunhana foi protagonista numa luta tribal, mas apenas figurante numa disputa maior do que ele, muito maior do que o próprio continente negro. Enquanto Portugal e Inglaterra lutavam pelo domínio da África Austral, o seu ouro e os seus diamantes, discutindo o «Mapa Cor-de-Rosa» português e a intenção inglesa de ligar o Cairo ao Cabo, Gaza foi jogando numa política de sucessivas alianças com Lisboa ou com Londres, com Londres ou com Lisboa, na convicção de que as divergências europeias eram a sua maior força. Aquando do Ultimato inglês de 1890, imediatamente aceite por Portugal e transformado em tratado no ano seguinte, Gungunhana percebe que começa a perder margem de manobra. Mas ainda joga um último trunfo, e desse trunfo há-de arrepender-se até ao fim: em 1894 dá guarida a Mamatibejana (ou Zixaxa) e Amgundjuana, dois dos régulos tsongas que haviam assaltado as posições portuguesas em Lourenço Marques. E não mais deixa de ter o exército português à perna.


Eduardo Galhardo e Mouzinho de Albuquerque eram então os «nobres representantes da civilização na luta contra a barbárie», como um dia escreveu o primeiro. «Tudo o que não fosse o aniquilamento total de Gungunhana não corresponderia aos sacrifícios pesadíssimos que o país tinha feito», conta então o governador António Enes, citando ordens do Governo de Lisboa. Por essa altura, os jornais portugueses atribuem ao imperador angune epítetos como «sanguinário», «carniceiro» ou, mais prosaicamente, «o terror de todos os governos portugueses». A prisão dá-se a 28 de Dezembro de 1895, na aldeia sagrada de Chaimite, para onde o Gungunhana fugira depois das derrotas em Coolela e Mandlakazi. Em carta à mãe, pouco antes de suicidar-se, Mouzinho viria a considerar a prisão do «leão de Gaza» como «a única coisa» importante que fizera «em 40 anos de vida quase inútil».

É aquele mesmo imperador todo-poderoso, capaz de assassinar esposas e filhos, que estranhamente chorará ao desembarcar em Portugal, longe de tudo o que construiu e destruiu – longe do seu «kraal», despojado para sempre do tesouro que acumulara e avisado de que em breve terá mesmo de deixar as suas sete rainhas, destinadas ao exílio em São Tomé. Gungunhana chorou no Tejo, chorou em Monsanto e chorará ainda muitas vezes nos Açores, depois de «pôr-se de joelhos» e «beijar as botas aos brancos e pedir perdão», como conta Maria da Conceição Vilhena no ensaio citado. E é isso que a História durante muito tempo não entenderá, esgrimindo-se a si própria na tentativa de construção do perfil adequado para um déspota aparentemente sanguinário que não teve coragem de entregar o peito à morte.

 
No dia da prisão em Chaimite, o amigo e maior conselheiro de Gungunhana, Mahune, não recuou perante as armas dos brancos: foi fuzilado por sua própria sugestão e, no momento em que o atavam a um poste para esperar os tiros, sugeriu com um sorriso que mais valia desamarrarem-no, de forma a que pudesse cair quando as balas o crivassem. «Mahune caiu de pé, perante a força do branco, ao contrário de Gunhunhana que, assustado, caiu de joelhos», escreve Vilhena.



Feliz ou infelizmente para Gungunhana, Angra do Heroísmo nunca chega a ser o «gulag» que se esperaria para «o terror de todos os Governos portugueses». O ex-imperador é preso no promontório vulcânico do Monte Brasil a 27 de Junho 1896, juntamente com Zixaxa, régulo seu vassalo, Molungo, seu tio, e Godide, seu príncipe herdeiro. E, embora muitos terceirenses nunca houvessem sequer visto um negro, como conta Pedro de Merelim no artigo «Os Vátuas na Ilha Terceira» (Revista Atlântida, 1960), a empatia pelos prisioneiros foi imediata.


Os quatro africanos acomodaram-se então a uma vida marcada pela melancolia, aceitando a alfabetização, submetendo-se ao baptismo e afundando-se no álcool. Nunca foram julgados, mas permaneceram cativos no forte, embora «em regime livre», ao abrigo das chamadas «Medidas de Segurança Pré-Delituais», mais tarde muito apreciadas pela polícia política de Salazar. Zixaxa, aparentemente o mais determinado dos quatro, ainda conseguiu constituir família e deixar descendência, ocupando os seus últimos dias a construir cestos de vime e a fabricar xaropes medicinais. A Godide, o mais novo de todos, matou-o cedo uma tuberculose. Molungo morreu de velho. Gungunhana, equiparado ao posto de segundo sargento do exército, sucumbiu basicamente à solidão e à saudade.



CRONOLOGIA

Principais datas e acontecimentos em torno da fascinante vida de Gungunhana:


1820 (cerca de) – o povo nguni (ou angune) penetra em Moçambique e subjuga os chope, tsonga, vandau e bitonga; Sochangane, mais tarde chamado Manukuse, torna-se rei de Gaza.


1850 (cerca de) – nasce Mudungazi, mais tarde chamado Gungunhana, filho daquele que seria o terceiro imperador de Gaza, Muzila.
1858 – morre Manukuse, fundador do Império de Gaza, avô de Gungunhana. Mawewe sobe ao poder.


1863 – Muzila, irmão de Mawewe, consegue vencer a guerra civil pela sucessão de Manukuse e ascende ao trono.



1884 – morre Muzila, pai de Gungunhana e terceiro imperador da dinastia; Gungunhana ascende ao poder.


1885, Fevereiro – realiza-se a conferência de Berlim, que define o processo de partilha de África pelas principais potências europeias.


1885, Outubro – Gungunhana envia uma embaixada a Lisboa, jurando vassalagem a Portugal.


1887 – Portugal e Alemanha acordam as bases por que deverá definir-se a partilha da África Austral; Portugal fica com o Mapa Cor-de-Rosa, que prevê a união por terra de Angola e Moçambique, império de Gaza incluído.


1889 – Gungunhana entrega à Inglaterra, a troco de um milhar de espingardas, munições e um subsídio anual, a exploração de minérios, com acesso ao mar através de Gaza.


1890, 11 de Janeiro – o governo britânico faz um ultimato a Portugal, recusando as pretensões inscritas no Mapa Cor-de-Rosa; o rei D. Carlos aceita as exigências no mesmo dia.


1891, Junho – Portugal e Inglaterra assinam o acordo sobre a partilha da África Austral.


1894, Agosto – os tsongas revoltam-se em Lourenço Marques, numa acção em que participa Mamatibejana, mais tarde chamado Zixaxa.


1895, 2 de Fevereiro – o exército português aniquila a resistência tsonga, cujos régulos se refugiam em Gaza.


1895, 11 de Novembro – o exército português vence os angunes e arrasa Mandlakasi, capital do Império de Gaza.


1895, 28 de Dezembro – Mouzinho de Albuquerque aprisiona Gungunhana em Chaimite, a aldeia sagrada dos angunes.


1896, 13 de Março – Gungunhana desembarca prisioneiro em Lisboa, na companhia de sete das suas mulheres, seu filho, seu tio, dois régulos vassalos de Gaza, respectivas esposas e um cozinheiro; a população celebra o feito.


1896, 23 de Junho – Gungunhana chega à ilha Terceira, nos Açores, onde vai ficar exilado até à morte; na sua companhia seguem apenas Godide, seu filho, Molungo, seu tio, e Zixaxa, régulo vassalo.


1902, 8 de Janeiro – Mouzinho de Albuquerque suicida-se.


1906, 23 de Dezembro – morre Gungunhana, vitimado por uma hemorragia cerebral.



OS PRETOS DO MONTE BRASIL

Os retratos de Gungunhana feitos durante o período do exílio em Angra do Heroísmo são os de um homem só, amargurado com a derrota, remoendo em silêncio as memórias das suas muitas rainhas e do enorme tesouro que acumulou à custa de dádivas, impostos e saques. «Aos poucos, a vida vai nele arrefecendo, cansada de humidade, frio e céu cinzento», relata Maria da Conceição Vilhena em Gungunhana, Grandeza e Decadência de um Império Africano. «Os seus prolongados silêncios seriam sem dúvida o espaço de um amargo rememorar. Um ócio arrastado, sombrio, de desencantamento, que acelera o envelhecer. É o leão de Gaza transformado num cordeiro.» Muitos açorianos recordam hoje histórias familiares em que avós ou bisavós, ainda crianças, nutriam enorme ternura por Gungunhana, correndo para ele nas ruas da cidade e aninhando-se de um salto no seu braço vigoroso. O protagonista de algumas das histórias seria provavelmente Zixaxa, mais adaptado à terra – outros relatos nasceriam simplesmente na imaginação agridoce de quem temeu deparar-se um dia com «os pretos do Monte Brasil» e, depois, absolveu a sua presença na ilha.
Gungunhana morre a 23 de Dezembro de 1906, vítima de hemorragia cerebral, segundo consta das notícias dos jornais. É enterrado na véspera de Natal, numa cerimónia realizada segundo os princípios cristãos e a que assistiram os seus três companheiros de degredo. Quatro dias depois celebrar-se-ia o décimo primeiro aniversário da sua prisão. Mas tanta coisa acontecera entretanto... Em Portugal, Mouzinho de Albuquerque havia-se suicidado, a cidade do Porto resistira a uma peste bubónica, Lisboa assistia a espectáculos frequentes de cinema. Ao redor do mundo, as mulheres inglesas reclamavam direito de voto, os irmãos Wright haviam conseguido pôr no ar o Flyer I, Einstein inventara a Teoria da Relatividade. A morte de um pobre alcoólico, mesmo despojado de um império apenas suplantado em África pelo califado de Sokoto, era uma pobre efeméride.
Gungunhana «morreu sem uma simples homenagem», lamenta então o jornal Portugal, Madeira e Açores – outros jornais limitar-se-iam a notícias breves. No cemitério da Conceição, no extremo-norte da massa urbana de Angra do Heroísmo, os seus ossos ficariam na sepultura apenas enquanto esse espaço não fosse indispensável a outro defunto. O seu destino final, caso ninguém os reclamasse, seria a vala comum. O regresso a Moçambique, na altura ainda uma província ultramarina, não passaria de uma anedota ridícula.



Questões a reflectir?

Por que Ngungunhane é considerado herói em Moçambique e outros líderes resistentes do Norte e Centro não tem a mesma consideração?

Considerando a origem de Ngungunhane ele pode ser considerado usurpador ou não das terras em Moçambique?

A política assimilacionista do Ngungunhane que obrigava os povos subjugados a adoptar a cultura Changana (de raíz Zulu) pode ser considerado uma forma de colonização?



Para responder estas questões leia:

 Ungulani Ba Khosa. Ualalapi (Contos). Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos. 1987

LIESEGANG, Gerhard. Ngungunyane: A figura de Ngungunyane Nqumayo, Rei de Gaza 1884-1895 e o desaparecimento do seu Estado. Maputo: Colecção Embondeiro, ARPAC,1996.

Adaptado por Jorge Fernando Jairoce




FRELIMO MANDOU FUZILAR JOANA SEMIÃO E OUTROS


FRELIMO MANDOU FUZILAR JOANA SEMIÃO E OUTROS




“No espírito das tradições, usos e costumes da luta de libertação nacional, o Comité Político Permanente da Frelimo reuniu e condenou por fuzilamento os seguintes desertores e traidores do povo e da causa nacional, os quais já foram executados: Uria Simango; Lázaro Kavandame; Júlio Razão Nilia; Joana Semião e Paulo Gumane”, ministro da Segurança, Jacinto Veloso - Maputo, 29 de Julho 1980.



(Maputo) Está confirmado,  Joana Semião não está “em parte incerta”. O juiz José Sampaio tem agora a vida facilitada. O ex-marido, idém. Ela foi fuzilada juntamente com Uria Simango, Lázaro Kavandame, Júlio Razão Nilia e Paulo Gumane. Quem os mandou fuzilar foi o Comité Político Permanente do partido Frelimo e assumiu-o publica e institucionalmente. Não há “acta judicial” porque não houve julgamento legal. Talvez por isso não se fizeram acentos notariais. E pela mesma razão até hoje os corpos não foram entregues às famílias para que possam proceder às exéquias e cerimónias  tradicionalmente habituais. O Tribunal Judicial da Província de Inhambane apesar dos factos serem públicos preparar-se para considerar que Joana Semião se encontra “em parte incerta” no processo de “divórcio litigioso” que lhe foi movido pelo seu marido e candidato à presidência do Município da capital da “Terra da Boa Gente” pela Renamo-União Eleitoral nas últimas eleições autárquicas, Francisco Joaquim Manuel.

Os factos relativos ao “fuzilamento” de Joana, acima referidos, estão escritos e assinados em documento de 29 de Julho de 1980, assinado pelo então ministro da Segurança (SNASP), Jacinto Veloso e onde são também referidos os nomes de Sérgio Vieira, Óscar Monteiro, José Júlio de Andrade, Matias Xavier e Jorge Costa como figuras nomeadas por Samora Machel para integrarem um comité com a função de “compilar o «dossier» e preparar a comunicação pública das execuções”.

“No espírito das tradições, usos e costumes da luta de libertação nacional, o Comité Político Permanente da Frelimo reuniu e condenou por fuzilamento os seguintes desertores e traidores do povo e da causa nacional, os quais já foram executados: Uria Simango;  Lázaro Kavandame;  Júlio Razão Nilia; Joana Semião e Paulo Gumane, em ordem a evitar possíveis reacções negativas, nacionais ou internacionais, que podem advir em consequência destes contra-revolucionários, a comissão política publica esta acta como decisão revolucionária do partido Frelimo e não como acta judicial”, lê-se no referido documento.

“A Comissão Política publica esta acta como decisão revolucionária do partido Frelimo e não como acta judicial”, lê-se adiante.

Assumido ser “necessário um «dossier» estabelecendo a história criminal completa desses individuos, assim como as suas confissões aos elementos do D.D/S.I que os interrogaram, declaração das testemunhas, julgamento e sentença”, o Comité Político Permanente do partido Frelimo ordenou ainda que “um comunicado deverá ser emitido pelo camarada Comandante-Chefe (Samora Moisés Machel), no qual se anunciará a execução dos contra-revolucionários acima mencionados”.

No mesmo documento lê-se ainda que “foi decidido nomear um comité para compilar o dossier e preparar a comunicação pública”.

“O camarada Comandante-em-chefe decidiu que o comité fosse dirigido pelo camarada Sérgio Viera e adicionalmente terá os seguintes camaradas: Óscar Monteiro, José Júlio de Andrade, Matias Xavier e Jorge Costa. A luta continua. Maputo, 29/7/80. O ministro da segurança, Jacinto Veloso”. (Redacção)







Apesar de confirmadamente fuzilada



Joana Semião é Ré em processo de “divórcio”




“Apenas cumpri com a lei”, Juíz José Sampaio



(Maputo) O juíz Presidente do Tribunal Judicial de Inhambane, José Sampaio, a quem competirá decretar a sentença no caso de divórcio interposto naquela instância judicial pelo ex-marido, Francisco Joaquim Manuel, contra Joana Fonseca Francisco Semião, disse ontem ao «Canal de Moçambique»: “Apenas cumpri com a lei”.

O Juiz Sampaio afirmaria ainda que o processo é de caracter privado e que “não tem nada de anormal”.

Colocado ao corrente das declarações ao «Canal de Moçambique» (edição n.º 63) de Edson Macuácua, Secretário da Mobilização e Propaganda do partido Frelimo, segundo as quais “do que foi dito pela Frelimo, nada se retira” – referindo-se à morte confirmada de Joana Semião, o juíz José Sampaio disse que à luz dos manuais de Direito “a queixa” do ex-marido de Joana Semião “tem razão de ser” pois, reafirmou, “o paradeiro da ré é incerto”.

“Estamos na presença de um processo cível, portanto, de natureza privada. Não é como num caso criminal em que é público” disse o juiz. 

O presidente do Tribunal Judicial da Província de Inhambane, José Sampaio, alega depois que não pode tecer mais comentários, porque “tenho filhos por alimentar e dependo do meu emprego”. (Luís Nhachote)

CANAL DE MOÇAMBIQUE – 09.05.2006

Autor tanzaniano analisa papel desempenhado pelo regime de Nyerere


Autor tanzaniano analisa papel desempenhado pelo regime de Nyerere

Processo de Nachingwea organizado pela Frelimo

O Reverendo Uria Simango, uma das proeminentes figuras políticas presentes nos famigerados julgamentos de Nachingwea, foi raptado no Malawi por agentes da Frelimo que “trabalhavam em estreita colaboração com a polícia política tanzaniana, Usalama wa Taifa (UwT)”

Os julgamentos de Nachingwea surgiram na esteira de três outros, organizados pelo regime de Nyerere. O julgamento em massa de Nachingwea foi o maior de todos e que à semelhança dos anteriores teve como principal objectivo “humilhar publicamente os prisioneiros antes da sua execução; talvez como aviso dirigido aos que se opunham à política da Frelimo”, refere ainda Ludovick S. Mwijage, autor do livro “Julius K Nyerere – Servant of God or Untarnished Tyrant”.

O papel desempenhado pelo regime de Julius Nyerere naquilo que já é conhecido em instâncias de Direito internacional como o “Processo de Nachingwea” é um dos temas tratados num livro acabado de publicar com o título, “Julius K Nyerere – Servant of God or Untarnished Tyrant”. O autor, Ludovick S. Mwijage, faz um historial dos chamados julgamentos de Nachingwea, organizados pela Frelimo em estreita colaboração com as autoridades tanzanianas no antigo centro de preparação político-militar da Frente de Libertação de Moçambique, situado em território tanzaniano.

Antigo prisioneiro político, que chegou a estar detido no campo de detenção de Oyster Bay, em Dar-es-Salam, Mwijage refere que os julgamentos de Nachingwea surgiram na esteira de três outros, organizados pelo regime de Nyerere. O julgamento em massa de Nachingwea, segundo narra o autor, foi o maior de todos e que à semelhança dos anteriores teve como principal objectivo “humilhar publicamente os prisioneiros antes da sua execução; talvez como aviso dirigido aos que se opunham à política da Frelimo”.

Ludovick S. Mwijage afirma que o Reverendo Uria Simango, uma das proeminentes figuras políticas presentes nos famigerados julgamentos de Nachingwea, foi raptado no Malawi por agentes da Frelimo que “trabalhavam em estreita colaboração com a polícia política tanzaniana, Usalama wa Taifa (UwT)”. Acrescenta o autor: “Tal como nos julgamentos em massa que precederam o de Nachingwea, o Reverendo Simango foi forçado a ler em público uma confissão redigida, na qual ele implica a sua pessoa e as de outros no assassinato do Dr. Mondlane.”

O autor salienta ser “difícil discernir como é que uma tal ‘confissão’ poderia ter sido extraída de Simango (ou dos demais prisioneiros) sem recurso à coação, especialmente ao se examinar as circunstâncias envolvendo o seu afastamento da Frelimo e, o que é crucial, a forma como foi raptado do exílio”. E autor frisa que a tortura, como forma de se extraírem confissões, era uma prática rotineira na Tanzânia , país em que o Reverendo Simango foi interrogado antes de ter comparecido nos julgamentos em massa de Nachingwa.

O Inferno na Terra

O destino dado às vítimas do Processo de Nachingwea, que para além de Uria Simango incluíam pessoas como Joana Simeão, Paulo Gumane, Eugénio Zitha, Arcanjo Faustino Kambeu e Gwengere, foi outro dos temas abordados pelo autor do livro a que temos vindo a fazer referência. “Os campos de reeducação para onde as vítimas de Nachingwea foram enviadas, eram uma reminiscência dos Gulags de Joseph Stalin. Milhares de pessoas foram desterradas para esses campos e muitos deles não saíram de lá com vida durante o regime tirânico de Machel”, escreve o autor. Debruçando-se sobre as condições prevalecentes nesses redutos, o autor cita o Coronel Mbuta das Forças Populares de Defesa da Tanzânia (TPDF) que em 1978 visitou alguns dos campos de reeducação instituídos pelo regime da Frelimo em Moçambique. Em conversa amena durante uma recepção no Hotel Turismo (actualmente Hotel IBIS) em Maputo, o Coronel Mbuta frisou que esses redutos “não deviam ser confundidos com campos de férias. Eles são como o inferno na terra”.

O autor de “Julius K Nyerere – Servant of God or Untarnished Tyrant” tentou obter depoimentos de entidades oficiais moçambicanas directamente ligadas ao Processo de Nachingwea a fim de esclarecer as circunstâncias da prisão e posterior execução de pessoas como Celina Simango e Lúcia Casal Ribeiro. Entre as entidades abordadas por Ludovick S. Mwijage conta-se o coronel na reserva, Sérgio Vieira. Numa carta enviada a Sérgio Vieira por correio electrónico, com a data de 17 de Julho de 2010, o autor recordou que “o destino das vítimas havia sido selado na Tanzânia”; que “não teriam sido mortas se o regime de Nyerere não as tivesse entregue à direcção da Frelimo”; e que esse mesmo regime “não havia recusado dar permissão para que os julgamentos em massa decorressem em território tanzaniano”; para além de ter “concedido apoio logístico para transportar os prisioneiros para a sua iminente morte”.

Em resposta à missiva do autor de “Julius K Nyerere – Servant of God or Untarnished Tyrant”, Sérgio Vieira, criando um precedente em Direito, afirmou em tom lacónico: “Como pessoa privada que deixou de fazer parte do governo em 1987, não estou em posição de responder. Queira fazer o favor de contactar o governo.”

13/12/2010- CanalMoz