UM HERÓI
PARA MOÇAMBIQUE?
GRANDE
REPORTAGEM 190, 28 de Agosto de 2004
Quarenta anos depois do início da luta armada pela independência moçambicana
(1964), o país olha para o passado à procura de mitos. Das profundezas da
História emerge o nome de Gungunhana, o mais poderoso régulo do Ultramar
português, preso por Mouzinho de Albuquerque em 1895. Neto do temível Manukuse,
outro ícone da resistência à ocupação europeia no século XIX, «Ngungunhane»
nasceu na mesma província que Eduardo Mondlane, Samora Machel e Joaquim
Chissano, os três líderes históricos da Frelimo: Gaza. Um punhado da terra do
cemitério onde foi sepultado jaz na Fortaleza de Maputo. Os seus ossos estão
para sempre perdidos em solo português, na lava da ilha Terceira, arquipélago
dos Açores.
Aos treze dias de Março do ano da Graça de mil oitocentos e
noventa e seis, Lisboa explode em festa. O África vomita os seus fumos céu
acima, dezenas de embarcações correm sem destino no Tejo, a multidão invade o
Paço em delírio. Num minúsculo pavilhão a estibordo do navio estão os últimos
troféus das guerras africanas da monarquia: cinco homens e dez mulheres
angunes, amontoando-se sombrios sobre os beliches nauseabundos da clausura e do
abandono. Gungunhana, deitado sem glória numa esteira, tem a cara coberta.
Quando a destapam, ergue-se com susto, distribui o olhar desconfiado, muito
negro, e volta a cobrir o rosto com as mãos. É alto como só um chefe tribal,
exibe a testa ampla dos grandes líderes, mas a sua imagem não tem agora a altivez
que tanto impressionara Mouzinho de Albuquerque dois meses e meio antes, no dia
do assalto a Chaimite.
«Como os jornalistas e outras pessoas admitidas a bordo eram cada vez em maior
número e o espaço faltasse, foi ordenado que subisse a pretalhada para a tolda,
onde se faria a sua exibição», conta o Diário de Notícias do dia seguinte,
elogiando os «valentes expedicionários» de Mouzinho. E, de repente, o «leão de
Gaza» rebenta num pranto inesperado. «Digam-me o que querem de mim. De que vos
sirvo eu? Eu morro se não voltar a ver as minhas terras!», grita. Em desespero,
pede clemência, oferece a fortuna em troco da libertação, chora muito – chora e
implora pela primeira das muitas vezes que chorará e implorará até morrer em
Angra do Heroísmo, baptizado, alfabetizado e alcoólico, quase onze anos depois.
Ao longo de décadas os compêndios europeus hão-de recordar o episódio como um
ícone da subjugação do negro inferior. Um epílogo feliz para a mais longa e
sofrida campanha portuguesa desde que o Mestre de Avis comandara em triunfo a
expedição a Ceuta, havia cinco séculos. Durante os três meses que permanece
internado no forte de Monsanto, como durante os mais de dez anos que viverá
desterrado nos Açores, ou as quase oito décadas que África terá ainda de esperar
pela libertação, Gungunhana, filho de Muzila e neto de Manukuse, celebrizado
como o mais poderoso e sanguinário régulo de todo o Ultramar português, há-de
emprestar o seu nome como pretexto para as mesmas chacinas, os mesmos saques e
as mesmas mentiras que tanto apreciava, apenas protagonizados agora pelos
homens que mais odiava e temia.
Só depois a História olhará para ele a sério: só depois Mudungazi, o homem que
intitularam «o leão de Gaza» como tributo à sua crueldade – o mesmo que a si
próprio chamara Ngungunhane («Gungunhana», segundo a ortografia colonialista)
para imortalizar os seus feitos «terríveis» e «invencíveis» – será submetido ao
rigor da investigação histórica. E então, uma dúvida emerge: quem é o
verdadeiro Gungunhana: um preto sanguinário que os portugueses subjugaram ou um
imperador justo que os brancos destruíram?
Em 1953, o filme Chaimite, de Jorge Brum do Canto, defendia a primeira versão
em prol da propaganda colonialista. Em 1995, Joaquim Chissano celebrou em
Chaimite e Coolela os cem anos da resistência do império angune e inaugurou em
Mandlakazi um busto do régulo, na tentativa de o transformar numa referência
nacional. «Ele é um dos nossos heróis», sublinha hoje Américo Pinto, adido
cultural da embaixada moçambicana em Lisboa. «O drama é que Moçambique precisa
de heróis”, escreve em 1995 Nélson Saúte, romancista moçambicano, num artigo no
jornal Público em que cita vários intelectuais com a mesma opinião. E a verdade
é que o busto de Mandlakazi acabou vandalizado apenas três dias depois,
alegadamente por elementos da etnia rival chope, muito representada na vila.
«Ngungunyana», como hoje lhe chamam os moçambicanos, continua por isso um
mistério: ele chorou de medo em Lisboa, sim, mas também havia esmagado
cruelmente todos os que se lhe tinham oposto no passado – e entre eles
contavam-se os antepassados de uma grande parte dos actuais moçambicanos. Como
compreender uma figura tão fascinantemente contraditória?
Para a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), nunca houve dúvidas:
Gungunhana foi e é um herói. Quando em 1969 Samora Machel tomou o lugar de
Eduardo Mondlane como líder do movimento, foi ao nome do imperador de Gaza que
os partidários da unidade nacional moçambicana foram buscar forças para
relançar a campanha da independência. Mondlane, o homem que iniciara o
processo, tinha sido morto com a conivência de alguns condiscípulos – e no seu
lugar teria, portanto, de emergir um líder forte, capaz de estimular a entrega
e dissuadir a traição, tarefa para a qual um simples ex-auxiliar de enfermagem,
como Machel, não parecia talhado. O boato de que o novo dirigente era um
parente distante de «Ngungunhane», por via de um avô guerreiro chamado
Maghivelari, foi o mote ideal – depois, o voluntarismo de Samora e a marcha dos
tempos fizeram o resto. A 25 de Junho de 1975, pouco mais de uma década após o
início da luta armada pela libertação, sobre a qual passam em 2004 quarenta
anos, a independência do novo país é formalmente proclamada. Para quase todos
os efeitos, o «leão de Gaza» era um símbolo de triunfo.
Mas não para todos os moçambicanos. Três anos depois das insinuações da
Resistência Nacional Moçambicana (Renamo, na oposição) sobre novos massacres
executados pela Frelimo, que ameaçaram colocar em causa o acordo de paz assinado
em Roma por Joaquim Chissano e Afonso Dhlakama, em 1992, os partidários de
Dhlakama continuam a contestar o facto de tanto Eduardo Mondlane (nascido em
Manjacaze, em 1920), fundador do partido no poder, como Samora Machel
(Chilembe, 1933) e Joaquim Chissano (Malehice, 1939), seus sucessores e
primeiros Presidentes da República, serem todos de etnia changana – que provém
de Sochangane, nome anterior de Manukuse – e oriundos da província de Gaza.
Ao mesmo tempo, os ossos de Gungunhana, solicitados por Maputo em 1983,
continuam perdidos na terra de lava dos Açores, algures numa vala comum do
cemitério da Conceição, em Angra do Heroísmo, misturados com os restos mortais
de inúmeros anónimos. Muitos não o aceitam como herói até que regresse a casa.
E é como se faltasse ainda escrever uma linha da História – como se um verso
permanecesse em branco, à espera do futuro, tal como diz o poema.
Samora Machel pediu a devolução dos ossos do rei de Gaza pouco antes de uma
visita oficial a Portugal, em Outubro de 1983. Eram os anos de rescaldo da
mentalidade colonialista, o momento de enterrar para sempre as diferenças entre
brancos e pretos, e tanto o presidente de Moçambique como o seu homólogo
português, Ramalho Eanes, esforçaram-se por sublinhar o muito que unia os dois
países, mais do que aquilo que os distanciava. Um dos momentos mais simbólicos
da visita foi precisamente a entrega ao presidente moçambicano de um pote de
cerâmica contendo aquilo que seriam as cinzas das ossadas Gungunhana. Para
incutir maior solenidade ao regresso a casa do chefe angune – também dito
«vátua», mas por engano –, Machel pediu que Portugal conservasse por mais algum
tempo os restos mortais do imperador, de forma a que o Estado moçambicano
pudesse preparar uma cerimónia de transladação condigna. E a urna é então
depositada na capela do Palácio das Necessidades, em Lisboa, onde permanecerá
durante quase dois anos.
Gungunhana despede-se finalmente de Portugal a 14 de Junho de 1985, numa sessão
solene a que assistiram os dois chefes de Estado e o então presidente do
Governo Regional dos Açores, Mota Amaral, bem como oficiais da Marinha e do
Exército portugueses. A urna preparada para receber as ossadas é uma obra de
arte: um caixão de jambirre e chanfuta (madeiras moçambicanas), com dois metros
de comprimento, 75 centímetros de altura, 225 quilos de peso e adornos com
baixos relevos do escultor Paulo Come. Quando no dia seguinte aterra em Maputo
contendo os ossos do herói, o DC-10 das Linhas Aéreas de Moçambique é recebido
pelos cânticos de alegria de centenas de pessoas, num cortejo que percorre as
Avenidas de Angola e Eduardo Mondlane, rumo ao Salão Nobre do Conselho
Executivo. É aí que ficarão os restos de Gungunhana até serem definitivamente
instalados na Fortaleza de Maputo, na capela de Nossa Senhora da Conceição, a
que depressa se subtrai a principal imagem da Virgem.
A revelação de que o pote de cerâmica entregue a Samora Machel continha apenas
terra do cemitério da Conceição surge logo a seguir, nas parangonas dos jornais
portugueses. Moçambique opta primeiro pelo silêncio, mas o assunto será
recuperado com regularidade ao longo dos quinze anos seguintes, nomeadamente
quando, em 1995, se assinala o centenário da prisão do régulo africano. Mas
Maria da Conceição Vilhena, estudiosa do Império de Gaza e biógrafa de
Gungunhana, explica no seu Gungunhana, Grandeza e Decadência de um Império
Africano, publicado em 1999, que a impossibilidade de localizar os ossos do
chefe angune sempre fora do conhecimento de Maputo e que, portanto, o punhado de
terra fora aceite como um símbolo.
O livro cita um ofício redigido pelo então Ministro da República para os
Açores, Conceição e Silva, em que se dá conta de que as ossadas são
irrecuperáveis, e relata mesmo um episódio em que Mota Amaral solicita a devolução
da terra do cemitério caso Moçambique decida recusá-la, alegando que «às cinzas
dos mortos tributam os Açorianos um profundo respeito». Mas em 1998, quando o
semanário Expresso retoma o tema, o Governo moçambicano anuncia a criação de
uma Comissão de Inquérito, presidida pelo ministro da Cultura Mateus Kapupha,
para apurar a autenticidade das ossadas.
Hoje, cinco anos passados, a Comissão de Inquérito continua com o «dossier»,
sem ter ainda apresentado quaisquer resultados. «O trabalho prossegue», garante
Américo Pinto. Investigadores açorianos especializados no fenómeno Gungunhana
garantem nunca terem sido contactados para qualquer esclarecimento ou ajuda nas
investigações, bem como nunca terem sabido da deslocação de qualquer delegação
moçambicana a Angra do Heroísmo. A maioria dos jornalistas de Maputo assegura
que, tanto quanto lhe diz respeito, o assunto morreu. Mas, enquanto os
resultados da comissão não forem oficializados, dificilmente a alma de
Mudungazi descansará em paz – dificilmente se instalará em definitivo nas
margens do rio Limpopo, entre os espíritos que um dia ofereceram ao exército
angune a magia e a força para resistir durante 75 anos à pressão de
portugueses, ingleses e alemães.
Fundado por um ramo zulu fugido à guerra que alastrava a Sul, o reino de Gaza
sobreviveu à cobiça europeia durante mais de sete décadas. Quando Gungunhana
foi preso por Mouzinho de Albuquerque em Chaimite, em 1895, parte do seu
exército ainda conquistava terreno aos tsongas, aos chopes, aos vandaus e aos
bitongas, empurrados sucessivamente para Norte e fugindo a todo o custo ao
confronto com os métodos carniceiros e esclavagistas dos angunes. No seu
esplendor, o império de Gaza espraiava-se do rio Icomáti à margem esquerda do
Zambeze, do oceano Índico ao curso superior do rio Save. Era o segundo maior
reino africano do século XIX, um território que, no mapa actual, ocuparia mais
de metade de Moçambique e um bom pedaço do Zimbabué, entrando ainda pela África
do Sul. Há cem anos, tinha uma população entre os 500 mil e os dois milhões de
habitantes.
A história da dinastia de Manukuse é a história da traição, da luta uterina
pelo poder, do assassinato a sangue frio. Quando o todo-poderoso primeiro rei
de Gaza morre, em 1858, a sua sucessão é disputada durante cinco anos pelos
dois filhos mais velhos, Mawewe e Muzila. As divergências sucessórias nasciam
da incompatibilidade entre a lei zulu e a lei angune propriamente dita, e dessa
incompatibilidade há-de resultar mais tarde o mesmo tipo de disputa para a
segunda sucessão. No primeiro caso, Mawewe é empossado, mas faz tudo por
provocar a ira de portugueses e boers, que ajudarão Muzila a usurpar-lhe o
trono após uma sangrenta guerra civil. No segundo, depois da morte de Muzila,
Mudungazi mata o irmão primogénito, Mefamane, e obriga outros três a fugir para
o Transvaal, de forma a garantir o poder. É aí que adopta o nome de
«Ngungunhane».
O reinado do «leão de Gaza» foi marcado pela frieza sanguinária com que o
«kraal» (a corte) tratava os povos vassalos e pela habilidade política com que
o rei se relacionava com as potências europeias. De certa forma, Gungunhana foi
protagonista numa luta tribal, mas apenas figurante numa disputa maior do que
ele, muito maior do que o próprio continente negro. Enquanto Portugal e Inglaterra
lutavam pelo domínio da África Austral, o seu ouro e os seus diamantes,
discutindo o «Mapa Cor-de-Rosa» português e a intenção inglesa de ligar o Cairo
ao Cabo, Gaza foi jogando numa política de sucessivas alianças com Lisboa ou
com Londres, com Londres ou com Lisboa, na convicção de que as divergências
europeias eram a sua maior força. Aquando do Ultimato inglês de 1890,
imediatamente aceite por Portugal e transformado em tratado no ano seguinte,
Gungunhana percebe que começa a perder margem de manobra. Mas ainda joga um
último trunfo, e desse trunfo há-de arrepender-se até ao fim: em 1894 dá
guarida a Mamatibejana (ou Zixaxa) e Amgundjuana, dois dos régulos tsongas que
haviam assaltado as posições portuguesas em Lourenço Marques. E não mais deixa
de ter o exército português à perna.
Eduardo Galhardo e Mouzinho de Albuquerque eram então os «nobres representantes
da civilização na luta contra a barbárie», como um dia escreveu o primeiro.
«Tudo o que não fosse o aniquilamento total de Gungunhana não corresponderia
aos sacrifícios pesadíssimos que o país tinha feito», conta então o governador
António Enes, citando ordens do Governo de Lisboa. Por essa altura, os jornais
portugueses atribuem ao imperador angune epítetos como «sanguinário»,
«carniceiro» ou, mais prosaicamente, «o terror de todos os governos
portugueses». A prisão dá-se a 28 de Dezembro de 1895, na aldeia sagrada de
Chaimite, para onde o Gungunhana fugira depois das derrotas em Coolela e
Mandlakazi. Em carta à mãe, pouco antes de suicidar-se, Mouzinho viria a
considerar a prisão do «leão de Gaza» como «a única coisa» importante que
fizera «em 40 anos de vida quase inútil».
É aquele mesmo imperador todo-poderoso, capaz de assassinar esposas e filhos,
que estranhamente chorará ao desembarcar em Portugal, longe de tudo o que
construiu e destruiu – longe do seu «kraal», despojado para sempre do tesouro
que acumulara e avisado de que em breve terá mesmo de deixar as suas sete
rainhas, destinadas ao exílio em São Tomé. Gungunhana chorou no Tejo, chorou em
Monsanto e chorará ainda muitas vezes nos Açores, depois de «pôr-se de joelhos»
e «beijar as botas aos brancos e pedir perdão», como conta Maria da Conceição
Vilhena no ensaio citado. E é isso que a História durante muito tempo não
entenderá, esgrimindo-se a si própria na tentativa de construção do perfil
adequado para um déspota aparentemente sanguinário que não teve coragem de
entregar o peito à morte.
No dia da prisão em Chaimite, o amigo e maior conselheiro de Gungunhana,
Mahune, não recuou perante as armas dos brancos: foi fuzilado por sua própria
sugestão e, no momento em que o atavam a um poste para esperar os tiros,
sugeriu com um sorriso que mais valia desamarrarem-no, de forma a que pudesse
cair quando as balas o crivassem. «Mahune caiu de pé, perante a força do
branco, ao contrário de Gunhunhana que, assustado, caiu de joelhos», escreve
Vilhena.
Feliz ou infelizmente para Gungunhana, Angra do Heroísmo nunca chega a ser o
«gulag» que se esperaria para «o terror de todos os Governos portugueses». O
ex-imperador é preso no promontório vulcânico do Monte Brasil a 27 de Junho
1896, juntamente com Zixaxa, régulo seu vassalo, Molungo, seu tio, e Godide,
seu príncipe herdeiro. E, embora muitos terceirenses nunca houvessem sequer
visto um negro, como conta Pedro de Merelim no artigo «Os Vátuas na Ilha
Terceira» (Revista Atlântida, 1960), a empatia pelos prisioneiros foi imediata.
Os quatro africanos acomodaram-se então a uma vida marcada pela melancolia,
aceitando a alfabetização, submetendo-se ao baptismo e afundando-se no álcool.
Nunca foram julgados, mas permaneceram cativos no forte, embora «em regime
livre», ao abrigo das chamadas «Medidas de Segurança Pré-Delituais», mais tarde
muito apreciadas pela polícia política de Salazar. Zixaxa, aparentemente o mais
determinado dos quatro, ainda conseguiu constituir família e deixar
descendência, ocupando os seus últimos dias a construir cestos de vime e a
fabricar xaropes medicinais. A Godide, o mais novo de todos, matou-o cedo uma
tuberculose. Molungo morreu de velho. Gungunhana, equiparado ao posto de
segundo sargento do exército, sucumbiu basicamente à solidão e à saudade.
CRONOLOGIA
Principais datas e acontecimentos em torno da fascinante
vida de Gungunhana:
1820 (cerca de) – o povo nguni (ou
angune) penetra em Moçambique e subjuga os chope, tsonga, vandau e bitonga;
Sochangane, mais tarde chamado Manukuse, torna-se rei de Gaza.
1850 (cerca de) – nasce Mudungazi,
mais tarde chamado Gungunhana, filho daquele que seria o terceiro imperador de
Gaza, Muzila.
1858 – morre Manukuse, fundador do Império de Gaza, avô de Gungunhana. Mawewe
sobe ao poder.
1863 – Muzila, irmão de Mawewe, consegue vencer a guerra civil pela sucessão de
Manukuse e ascende ao trono.
1884 – morre Muzila, pai de Gungunhana e terceiro imperador
da dinastia; Gungunhana ascende ao poder.
1885, Fevereiro – realiza-se a conferência de Berlim, que define o processo de
partilha de África pelas principais potências europeias.
1885, Outubro – Gungunhana envia uma embaixada a Lisboa, jurando vassalagem a
Portugal.
1887 – Portugal e Alemanha acordam as bases por que deverá definir-se a
partilha da África Austral; Portugal fica com o Mapa Cor-de-Rosa, que prevê a
união por terra de Angola e Moçambique, império de Gaza incluído.
1889 – Gungunhana entrega à Inglaterra, a troco de um milhar de espingardas,
munições e um subsídio anual, a exploração de minérios, com acesso ao mar
através de Gaza.
1890, 11 de Janeiro – o governo britânico faz um ultimato a Portugal, recusando
as pretensões inscritas no Mapa Cor-de-Rosa; o rei D. Carlos aceita as
exigências no mesmo dia.
1891, Junho – Portugal e Inglaterra assinam o acordo sobre a partilha da África
Austral.
1894, Agosto – os tsongas revoltam-se em Lourenço Marques, numa acção em que
participa Mamatibejana, mais tarde chamado Zixaxa.
1895, 2 de Fevereiro – o exército português aniquila a resistência tsonga,
cujos régulos se refugiam em Gaza.
1895, 11 de Novembro – o exército português vence os angunes e arrasa Mandlakasi,
capital do Império de Gaza.
1895, 28 de Dezembro – Mouzinho de Albuquerque aprisiona Gungunhana em
Chaimite, a aldeia sagrada dos angunes.
1896, 13 de Março – Gungunhana desembarca prisioneiro em Lisboa, na companhia
de sete das suas mulheres, seu filho, seu tio, dois régulos vassalos de Gaza,
respectivas esposas e um cozinheiro; a população celebra o feito.
1896, 23 de Junho – Gungunhana chega à ilha Terceira, nos Açores, onde vai
ficar exilado até à morte; na sua companhia seguem apenas Godide, seu filho,
Molungo, seu tio, e Zixaxa, régulo vassalo.
1902, 8 de Janeiro – Mouzinho de Albuquerque suicida-se.
1906, 23 de Dezembro – morre Gungunhana, vitimado por uma hemorragia cerebral.
OS PRETOS DO MONTE
BRASIL
Os retratos de Gungunhana feitos durante o período do
exílio em Angra do Heroísmo são os de um homem só, amargurado com a derrota,
remoendo em silêncio as memórias das suas muitas rainhas e do enorme tesouro
que acumulou à custa de dádivas, impostos e saques. «Aos poucos, a vida vai
nele arrefecendo, cansada de humidade, frio e céu cinzento», relata Maria da
Conceição Vilhena em Gungunhana, Grandeza e Decadência de um Império Africano.
«Os seus prolongados silêncios seriam sem dúvida o espaço de um amargo
rememorar. Um ócio arrastado, sombrio, de desencantamento, que acelera o
envelhecer. É o leão de Gaza transformado num cordeiro.» Muitos açorianos
recordam hoje histórias familiares em que avós ou bisavós, ainda crianças,
nutriam enorme ternura por Gungunhana, correndo para ele nas ruas da cidade e
aninhando-se de um salto no seu braço vigoroso. O protagonista de algumas das
histórias seria provavelmente Zixaxa, mais adaptado à terra – outros relatos
nasceriam simplesmente na imaginação agridoce de quem temeu deparar-se um dia
com «os pretos do Monte Brasil» e, depois, absolveu a sua presença na ilha.
Gungunhana morre a 23 de Dezembro de 1906, vítima de hemorragia cerebral,
segundo consta das notícias dos jornais. É enterrado na véspera de Natal, numa
cerimónia realizada segundo os princípios cristãos e a que assistiram os seus
três companheiros de degredo. Quatro dias depois celebrar-se-ia o décimo
primeiro aniversário da sua prisão. Mas tanta coisa acontecera entretanto... Em
Portugal, Mouzinho de Albuquerque havia-se suicidado, a cidade do Porto
resistira a uma peste bubónica, Lisboa assistia a espectáculos frequentes de
cinema. Ao redor do mundo, as mulheres inglesas reclamavam direito de voto, os
irmãos Wright haviam conseguido pôr no ar o Flyer I, Einstein inventara a
Teoria da Relatividade. A morte de um pobre alcoólico, mesmo despojado de um
império apenas suplantado em África pelo califado de Sokoto, era uma pobre
efeméride.
Gungunhana «morreu sem uma simples homenagem», lamenta então o jornal Portugal,
Madeira e Açores – outros jornais limitar-se-iam a notícias breves. No
cemitério da Conceição, no extremo-norte da massa urbana de Angra do Heroísmo,
os seus ossos ficariam na sepultura apenas enquanto esse espaço não fosse
indispensável a outro defunto. O seu destino final, caso ninguém os reclamasse,
seria a vala comum. O regresso a Moçambique, na altura ainda uma província
ultramarina, não passaria de uma anedota ridícula.
Questões a
reflectir?
Por que Ngungunhane é considerado herói em Moçambique e
outros líderes resistentes do Norte e Centro não tem a mesma consideração?
Considerando a origem de Ngungunhane ele pode ser
considerado usurpador ou não das terras em Moçambique?
A política assimilacionista do Ngungunhane que obrigava os
povos subjugados a adoptar a cultura Changana (de raíz Zulu) pode ser considerado
uma forma de colonização?
Para responder estas
questões leia:
Ungulani Ba Khosa. Ualalapi (Contos). Maputo: Associação
dos Escritores Moçambicanos. 1987
LIESEGANG, Gerhard.
Ngungunyane: A figura de Ngungunyane Nqumayo, Rei de Gaza 1884-1895
e o desaparecimento do seu Estado. Maputo: Colecção Embondeiro, ARPAC,1996.
Adaptado por Jorge Fernando Jairoce