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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

02 outubro 2013

NOÊMIA DE SOUSA: POESIA DE COMBATE EM MOÇAMBIQUE

Noemia de Sousa, a poetisa mocambicana


O OBJECTIVO de nosso estudo é analisar os poemas “Se me quiseres conhecer”, “Poema”, “Mulher que ri à vida e à morte” da escritora moçambicana Noêmia de Sousa. Para isso, vamos organizar a nossa reflexão em três partes: tradição e contradição em Moçambique (momento em que se expõe aspectos culturais, geográficos e religiosos deste país); Noêmia de Sousa, uma militante em Moçambique (trazendo informações sobre o perfil da escritora e sua condição social em seu país); e, por último, a análise dos três poemas acima citados para percebermos os sinais da poesia combate moçambicana nos versos de então precursora da escrita em autoria feminina. 
Podemos dizer sem medo que a literatura nos leva a grandes aventuras e, acatando esta condição, vamos viajar para o território africano através da voz da escritora moçambicana Noêmia de Sousa, aterrizando em sua coletânea de versos “Sangue Negro” (1990), obra da primeira mulher que se aventura na literatura no momento em que o seu país se encontrava em estado de guerra por conta de lutas em prol da independência.
Tal facto contextualiza a literatura de Noêmia de Sousa como poesia combate, pois seus versos traziam uma linguagem engajada com os ideais militantes da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique).
Adentrar na poesia de Noêmia de Sousa é descobrir um outro povo, uma outra cultura, cheia de credos, de mitos, de ritos, enfim de aspectos múltiplos que compõem um imaginário excêntrico em relação ao que já está escrito nas páginas de tantas literaturas.

Tradição e contradição em Moçambique
A nossa proposta em trazer um pouco de informações sobre Moçambique é mais uma forma de entender a literatura que é escrita nesse país, pois entendemos que a literatura é um texto, que no plano de suas múltiplas tessituras, necessita de algumas linhas precisas dos vários contextos (históricos, sociais, religiosos, entre outros..) para construir um idéia literária que permita ao leitor se deslocar do plano real e aceitar o plano ficcional.  Ler a cultura africana, através da escrita de Noêmia de Sousa, é um caminho para se perceber uma tradição cultural que ainda permanece na modernidade, enfim, é possuir a permissão para viajar por um território cultural multifacetado de uma nação que, colônia de Portugal até 1974, acumulou valores sociais díspares, como: a monogamia e a poligamia, o politeísmo e o monoteísmo; a escravidão e a liberdade; o cultivo e a indústria; ou seja, situações políticas, religiosas e econômicas que beiram a guerra e a miséria.
O vocábulo português moçambique data do século XVI. Do século XI a XV, este país foi explorado pelos árabes, persas e suailis (africanos bantos arabizados ou islamizados, que prolongaram as feitorias muçulmanas da costa da Somália: Melinde, Mombaça, Zanzibar, Quíloa, Moçambique, Sofala). Essa região da África Oriental fazia parte do complexo mercantil do Oceano Índico, com relações a longa distância com o Oriente Médio, a Índia e a China. As relações atingiam também os povos bantos do interior. Moçambique foi colônia de Portugal por muito tempo. O domínio português se dá quando Vasco da Gama atinge o solo moçambicano em 1498 e faz aliança como rei Melinde. Em 1506, os portugueses apoderam-se de Sofala e em 1507 da ilha de Moçambique que se constituiu desde então em um porto de escala de para os portugueses no comércio e na conquista da Índia. Em 1697, após frustradas tentativas de exploração do ouro e marfim, o comércio de escravos tornou-se a principal atividade dos portugueses em Moçambique. Uma grande quantidade de negros foram levados do solo moçambicano e vendidos, como escravos, na América do Norte e, principalmente, no Brasil. Assim, por exemplo, até 1800, o número de escravos era em média de 10.000 por ano, cifra que passa, a partir de 1800 para 15 e 25 mil escravos por ano, decaindo a partir de 1850. A posição dos colonizadores portugueses em relação ao povo moçambicano passa a ser ameaçada quando os poderes europeus decidem a partilha da África. Uma nação pretendente foi a Inglaterra, que, em 1823, alegando encontrar o território abandonado, reivindicou sua soberania. Mas, com a Conferência de Berlim, em 1885, a soberania lusitana é legitimada. Como toda colônia portuguesa, Moçambique tenta se libertar das garras deste ambicioso e sangrento colonizador. Surgem os movimentos nacionalistas. A Liga Africana, fundada em Lisboa no ano de 1920, é a primeira organização favorável aos nativos africanos. Depois desta, surgiram o Instituo Negrófilo, a Associação dos Naturais de Moçambique, a União Democrática Nacional de Moçambique, a União Nacional Africana de Moçambique, além de outras. Essas organizações se uniram e, em 1962, formaram a Frente Liberal de Moçambique (FRELIMO), presidida pelo Dr. Eduardo de Mondlane, o qual morreu assassinado por uma bomba postal, em 1969. A FRELIMO começou a atacar as forças militares portuguesas, em 1964. O governo socialista português derruba, em 25 de Abril de 1974, a ditadura de Salazar, e concede a independência a Moçambique, em 1975.
Todo este traçado histórico é oportuno por conta da ligação dos intelectuais moçambicanos com seu contexto histórico, social, cultural e religioso. Em Moçambique, a primeira literatura é a do colonizador, com todas as características, na temática e na forma, da pior que se produzia em Portugal. A medida em que aumenta a fixação dos portugueses em Moçambique, aparece uma literatura em que eles, os colonos, assumem os seus problemas específicos, criando a ilusão de uma interação cultural pacífica entre colonizadores e colonizados. Começam a surgir, de forma isolada, as primeiras vozes, ainda confusamente, que darão conta, através da literatura, dos conflitos e tensões, injustiças e momentos de revolta que, realmente, categorizam a relação colonial. Por outro lado, acompanhando o desenvolvimento do sentimento nacionalista, o escritor moçambicano afirma a terra ocupada como Pátria cuja identidade é algo a construir.  
Somos um país de ambiguidade, de interrogação, de construção identitária. Somos um país que fermenta na busca de um nós simbólico comum, virusidado, porém por um nós real-social imponentemente assimetrizado. (SERRA: 1998, p.11)  
Assim, toda a luta anti-colonial passa a ter um forte reflexo na produção literária que nasce do discurso dos combatentes da FRELIMO, expressando o próprio cotidiano da luta em todas as suas frentes. A arte literária, nesse sentido, não é utilizada como aparência por diferença na realidade, pois as vozes africanas que ecoam nas narrativas transcritas da oralidade tomam a realidade como um objeto que legitima a sua literatura, o que Aristóteles chama de verossimilhança.  Noêmia de Sousa é muito pontual em relação a este perfil de escrita que traz um discurso marcado pela tradição oral.  
“Nossa voz ergueu-se consciente e bárbara  sobre o branco egoísmo dos homens  sobre a indiferença assina de todos.  Nossa voz molhada das cacimbadas do sertão  nossa voz ardente como o sol das malangas  nossa voz atabaque chamando  nossa voz lança de Maguiguana  nossa voz, irmão,  nossa voz trespassou a atmosfera conformista da cidade  e revolucionou-a  arrastou-a como um ciclone de conhecimento.” (SOUSA: 1988, p.33)  
Este é um fragmento do poema Nossa Voz , encontrado na coletânea Sangue Negro(1988) desta escritora. Como afirmávamos anteriormente, o discurso é construído sobre bases que marcam a tradição oral, ou seja, uma escrita para um leitor que tem a sensibilidade de ouvir os ecos de um eu-poético que muito se assemelha aos contadores de estórias em volta da fogueira, encostados em uma grande árvore como o Imbondeiro. O próprio título do poema já nos dimensiona para o plano da oralidade. Vários verbos deste fragmento nos remetem à idéia de militância, de conscientização de valores em relação à condição do negro frente ao seu estado de escravidão: Nossa voz consciente e bárbara ergueu-se/ sobre o branco egoísmo dos homens/ sobre a indiferença assassina de todos. Estes três primeiros versos dizem muito da condição do escritor moçambicano frente ao seu trabalho de chamar a atenção de seus leitores, até porque este poema é assinado por mulher em 1949 que tem plena consciência de quem quer atingir. O branco é utilizado para colorir a atitude animalesca tanto do colonizador como dos negros que se rendem aos ideias colonialistas matando seu próprio povo, e, concomitantemente, toda a sua história, cultura, identidade, etc.  Há também muitas alegorias que compõem uma metáfora de ataque: nossa voz ardente.../ nossa voz atabaque.../ nossa voz lança.... Pode-se dizer que a opção da autora por este tipo de linguagem é uma forma de a mesma driblar um meio social e colonialista. A autora se insere no mesmo contexto cultural de sua literatura, então reavivar as formas tradicionais apagadas pelo discurso do colonizador e esquecidas pelos homens colonizados é uma estratégia de manutenção de uma cultura autóctene e de tentativa de legitimar a identidade cultural em processo. 
Noêmia de Sousa é a autora que escolhemos nesse estudo para entender a literatura africana feita em Moçambique. Poderíamos escolher outros intelectuais como Mia Couto, Paulina Chiziane e Lília Momplé, e, com certeza, encontraríamos na escrita destes, linhas de semelhança no que diz respeito ao processo identitário, pois sejam de expressão portuguesa, inglesa ou francesa, ou intelectuais africanos se escrevem e se descobrem a partir da literatura que fazem. A literatura destes escritores é marcada pelo autoreflexo de suas sensibilidades.  No caso de Moçambique, a língua portuguesa é algo que ficou da colonização, um elemento que serviu de arma para o africano divulgar sua cultura, pois já foi dito que os negros africanos 2 foram resistentes em relação à imposição cultural de seus colonizadores.  Na antiga Lourenço Marques, há, ainda hoje, várias línguas indígenas de família banto correlacionadas com o português já adaptado ao meio moçambicano, o que se chama de língua crioula ou português crioulizado. Em época de sua independência, ano de 1975, poucos habitantes falavam a língua portuguesa. Agora, a flor do Lácio é popular nos jardins da diversidade africana.  Moçambique é um país que nos permite entender um pouco das riquezas múltiplas da África, principalmente no que concerne ao entendimento das ações humanas em um cenário montado no palco da vida. Mitos, ritos, costumes, tradições, ancestralidade, deuses, homens e mulheres são elementos que migram do contexto cultural moçambicano como objetos mimetizados no espaço textual da literatura que é escrita neste país. Por isso, é inevitável ler esta literatura e não perceber a imagem do sofrimento, da luta, de fome, de miséria, de analfabetismo. Fatos que se tornam presentes ainda hoje no país por conta de sua situação econômica.
  
Noêmia de Sousa: uma militante em Moçambique
As Literaturas Africanas de Língua Portuguesa já ocupam um vasto território de leitura, tanto no Brasil quanto em Portugal e na própria África Lusófona. Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau são países onde vivem intelectuais preocupados com uma escrita literária que mantêm um fecundo diálogo com questões temáticas que se voltam para o colonialismo, pós-colonialismo, identidade cultural, exílio, e principalmente, a inscrição dos modos literários africanos de fazer literatura.  
Os estudos das literaturas produzidas em África impõem-se como um verdadeiro canto de sirena que desperta as nossas ancestrais raízes, convocando-nos à comunhão com um mundo antigo que se apresenta, para nós, com uma epifania em que se celebra o encontro tantas vezes adiado, mas nem por isso menos desejado. (DUARTE: 2004, p.7)  
A escrita literária africana de expressão portuguesa se coloca em uma situação sui generis pelo fato de nos fazer refletir sobre assuntos que se voltam para uma questão místico-cultural que migra do plano da realidade para o plano da ficcionalidade por conta de uma percepção ideológica pagã de se ver o mundo africano. Uma prática de escrita que revela um re-escritura do que foi aprendido por meio da prática da oralidade. A presença dos mitos e ritos, como temáticas recorrentes nas narrativas africanas, legitimam as lições deixadas pelos povos mais velhos que voltam ao contexto atual, assumindo a condição de ancestrais ou de defuntos protetores. Vamos observar melhor a relação com a ancestralidade quando analisarmos o poema “Mulher que ri à vida e à morte”.
Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares nasceu a 20 de Setembro de 1926, em Lourenço Marques (hoje Maputo), Moçambique. Apesar da publicação da coletânea “Sangue Negro” em 1998 pela Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), seus versos circulam em vários meios: jornais, revistas especializadas e sites da internet.
Poetisa que, numa espécie de postura predestinada, desembaraçando-se das normas tradicionais europeias, de 1949 a 1952 escreve dezenas de poemas, estando muitos deles dispersos pela imprensa moçambicana e estrangeira.
Com apenas 22 anos de idade, surgiu na senda literária moçambicana num impulso encantador, gritando o seu verbo impetuoso, objetivo e generoso, vincado (bem fundo) na alma do seu povo, da sua cultura, da sua consciência social, revelando um talento invulgar e uma coragem impressionante.
Como afirma Craveirinha (2000, p.100), podemos sentir o hálito ardente da fogueira, quando lemos os versos desta escritora, o que mostra em sua literatura a evidência da moçambicanidade, ou seja, a valorização da sua nação em seus poemas.
Ler Noêmia de Sousa é ler Moçambique. Como mestiça, pois seu pai era originário de uma família luso-afro-goesa e sua mãe afro-germânica, revela ser marcada por uma profunda experiência, em grande parte por via dessa mesma circunstância de ser mestiça.
A sua poesia, desde logo, se mostrou “cheia” da “certeza radiosa” de uma esperança, a esperança dos humilhados, que é sempre a da sua libertação. Toda a sua produção é marcada pela presença constante das raízes profundamente africanas, abrindo os caminhos da exaltação da “Mãe-África”, da glorificação dos valores africanos, do protesto e da denúncia.
“Eu quero conhecer-te melhor, Minha África profunda e imortal...  Quero descobrir-te para além Do mero estafado azul  Do teu céu transparente e tropical,  para além dos lugares comuns...”  (SOUSA, 1988 , p.145)
Poesia de forte impacto social, acusatória, a sua linguagem recorre estilisticamente à ressonância verbal, ao encadeamento de significantes sonoros ásperos, à utilização de palavras que transportam o "grito inchado" de esperança.
Noémia de Sousa, como autêntica pioneira da Literatura Moçambicana (como assim sempre foi considerada) preconiza - no seu percurso literário - a revolução como único meio de modificar as estruturas sociais que assolam a terra moçambicana. Sempre, e desde muito cedo, pretendeu que o seu povo avançasse uno, em coletivo, em direção a um futuro que alterasse os eixos em que se fundamentava a atitude do homem, mas sem nunca fazer a apologia da desumanização. Afirma-se, acima de tudo, africana e aposta fortemente na divulgação dos valores culturais moçambicanos.  
NOÉMIA de Sousa, como autêntica pioneira da Literatura Moçambicana (como assim sempre foi considerada) preconiza - no seu percurso literário - a revolução como único meio de modificar as estruturas sociais que assolam a terra moçambicana.  Sempre, e desde muito cedo, pretendeu que o seu povo avançasse uno, em coletivo, em direção a um futuro que alterasse os eixos em que se fundamentava a atitude do homem, mas sem nunca fazer a apologia da desumanização. Afirma-se, acima de tudo, africana e aposta fortemente na divulgação dos valores culturais moçambicanos.
“Billie Halliday, minha irmã americana, Continua cantando sempre, no teu jeito magoado, os “blues” eternos do nosso povo desgraçado.... Continua cantando, cantando, sempre cantando, Até que a humanidade egoísta ouça em ti a nossa voz...”  (SOUSA, 1988, p.135) 
As propostas essenciais da sua expressão literária vão do desencanto cotidiano, de uma certa amargura, de uma certa raiva, até ao grito dolorido, até ao orgulho racial, até ao protesto altivo que contém a pulsão danada contra cinco séculos de humilhação. A grande base do texto de Noémia de Sousa está centrada na eterna dicotomia "nós/outros" - "nós", os perfeitamente africanos; os "outros", as gentes estranhas, os que chegaram em África, os colonizadores. Assim, estes são, sem dúvida, os dois grandes temas da poesia de Noémia de Sousa: se por um lado temos a contínua denúncia da total incompreensão por parte do colonizador, que apenas capta a superficialidade dos rituais, não compreendendo o âmago de África, demonstrando, desta forma, uma visão plenamente distorcida, por outro lado lança-nos em poemas de elogio aberto à raça negra, gritando bem alto e de forma plenamente perceptível que a presença do colonizador em África é sinônimo de força que apenas veio denegrir a imagem daquela terra. Noémia de Sousa fala do orgulho de pertencer à África por parte dos africanos. E por esse mesmo motivo vem afirmar que terão obrigatoriamente de ser os filhos a cantar essa sua mãe-terra (que tanto amam e sentem) - e cantar África tinha forçosamente que ser entendido por oposição à maneira de cantar do colonizador.  Nos seus poemas, o "eu" de Noémia de Sousa é entendido como um "coletivo", um povo inteiro que quer ter palavra - o povo moçambicano. Desta forma, a escritora assume-se como porta-voz daquele povo que é o seu e, dirigindo-se à terra-mãe que os acolhe e protege, ora canta a sua vida, ora lhe pede perdão pela alienação demonstrada ao longo de tanto tempo, ora (mesmo) lhe promete a rápida e definitiva devolução do seu direito a uma vida própria, autêntica. Apesar de breve, porém prolífera, a passagem de Noémia de Sousa pelo panorama da literatura moçambicana, a qualidade dos seus textos não deixou, jamais, de ser reconhecida e admirada. Percebemos que os autores africanos de colonização portuguesa escrevem como se estivessem diante de seus receptores pelo fato de também o serem, quando se permitem ouvir a voz dos seus ancestrais. A arte literária não é utilizada como aparência por diferença com a realidade, e sim, como transparência por semelhança com a realidade, pois as vozes africanas que ecoam nas narrativas transcritas da oralidade tomam a realidade como instrumento para a construção de uma verdade aparente.  O imaginário do autor aparece em sua literatura como se o eu-poético não fosse um elemento fictício, pois a voz que se enuncia na tessitura dos versos da escritora moçambicana desmistifica a figura do mesmo, transformando-o em um contador de experiências vividas no ventre de sua da terra africana.  A voz feminina em Moçambique possui um status de grande relevância. De acordo com Lilia Momplé (1999, p.31), também escritora moçambicana e autora do livro de contos Os olhos da cobra verde , falar da mulher escritora e de sua relação com o cânone não é fácil, pois é inadequado eximi-la da condição de mulher moçambicana, por ser mística, sedutora e guerreira. Ainda segundo Momplé (1999, p.31),  
a mulher moçambicana é a principal difusora e transmissora de valores culturais, tradições e ritos como, por exemplo, o espírito da solidariedade e entreajuda, a hospitalidade, a veneração pelos mais velhos, os ritos de nascimento, iniciação, reconciliação e morte.  
Difusão que era passada das mais velhas para as mais novas por via da oratura, fazendo com que a tradição permanecesse desde a época colonial até os dias atuais. Com a Independência de Moçambique, a mulher continua a exercer um papel importante no domínio da cultura. A partir de então, ainda conforme Momplé (1999), grupos culturais foram formados pelas mesmas e, nos grandes festivais nacionais de música, canto e dança tradicionais da década de setenta, a participação feminina era ímpar. Após a década de setenta, a guerra civil aterroriza o solo moçambicano por dezessete anos, destruindo o corpo físico e cultural do país. Nessa guerra, houve um milhão de mortos e cinco milhões de deslocados e refugiados; entre eles a escritora Noêmia de Sousa, grande poetisa moçambicana e precursora da autoria feminina. Na zona urbana, área mais reservada do embate direto da guerra, houve uma explosão de mulheres artistas. Para representar a literatura, entre Lina Magaia, Clotilde Silva e Lília Momplé, estava Paulina Chiziane, primeira escritora moçambicana a escrever um romance: Balada de Amor ao Vento _ rebento de 1990. Podemos então, de forma provisória, afirmar que, no plano da literatura de Moçambique, Noêmia de Sousa ocupa um lugar privilegiado, pois, embora a obra literária da escritora seja curta, possui grande valia para uma leitura crítica. O discurso da autora já anuncia uma tendência politizada, o que nos permite afirmar a escritora como uma feminista, pois uma das grandes preocupações da mesma é refletir sobre o lugar de onde fala a mulher na sociedade patriarcal e como esta mulher reflete sobre os valores da tradição do norte e do sul de seu país.
  
OS SINAIS DA MOÇAMBICANIDADE NOS VERSOS DE NOÊMIA DE SOUSA 
Noêmia de Sousa é lida em seu país e fora dele por conta de sua postura séria e militante frente aos seus ideais liberais que dizem respeito aos movimentos políticos de seu país em prol da independência, tanto do corpo geográfico quanto do físico e espiritual desta nação que começa a germinar. Levantar a bandeira da nacionalidade é um país bombardeado e massacrado pela ganância portuguesa não é fácil, pois é preciso entender não só a língua que o povo fala, mas também o ritmo que move o sentimento de esperança dos moçambicanos.  Defendendo a idéia da interioridade da poesia de Noêmia, Francisco Noa (1988, p.153) confirma os recursos estilísticos presentes na coletânea de versos da escritora: a prevalência da adjetivação, da anáfora, da aliteração, da parataxe, da exclamação, da enumeração, da hipérbole, entre outros recursos. No que se refere à temática, há uma recorrência à revolta, à valorização racial e cultural, à infância, à esperança, à angústia e à injustiça.  Também não se pode esquecer o forte lado religioso dos moçambicanos e sua reverência aos ensinamentos da tradição dos ancestrais, pois nos cenários primitivos, o homem sempre foi o ator que atuou no palco da natureza para viver dramas contracenados com animais, plantas, vento, água, fogo e todos os elementos que formam a riqueza do Universo. Como afirma Beniste (2006, p.15), ―o mundo dos mitos é pleno destas forças e ações, mesmo sendo elas conflitantes. Consideramos os conflitos como o tempero da movência das ações que levam o homem a se humanizar através dos tempos. Os artistas que transformam estas ações em arte literária, de certa forma, assinam um acordo com Aristóteles no que diz respeito ao quesito verossimilhança. A condição da mulher em Moçambique também é algo que merece a nossa atenção. Em entrevista à Manuela de Sousa (2006) 3, Paulina Chiziane, escritora contemporânea em Moçambique, é arguida sobre a questão da repressão das mulheres e um fato interessante é observado na resposta da escritora.
“...não podemos olhar o país como um todo nesta matéria. Temos as regiões do sul e do centro, que são regiões patriarcais por excelência. O norte já tem características bem diferentes. É uma região matriarcal, onde as mulheres têm outras liberdades. Acho que Gaza, província de onde sou oriunda, e região mais machista de Moçambique. Uma mulher além de cozinhar e lavar, para servir uma refeição ao marido tem que fazer de joelhos. Quando o marido a chama, ela não pode responder de pé. Tem que largar tudo que está a fazer, chegar diante do marido e dizer ―estou aqui. H á pouco tempo um jornalista denunciou um professor de Gaza. Nas aulas, quando fazia perguntas, os rapazes respondiam de pé, mas obrigava as meninas a responderem de joelhos. Quando as alunos iam ao quadro, tinham que caminhar de joelhos e só quando lá chegavam é que se punham de pé. O professor foi criticado e prometeu mudar, mas para a comunidade, ele estava a agir corretamente”.
O mapeamento que Paulina Chiziane faz de Moçambique de acordo com os sistemas sociais vigentes no norte, centro e sul do país, faz-nos entender que como Noêmia de Sousa foi privilegiada pelo fato de nascer na capital de Moçambique, pois ao mesmo tempo que ela mostra os tabus de uma tradição na qual as mulheres são menos privilegiadas, também critica a público feminino que ainda alimenta o sistema patriarcal, levando-as a entender que mesmo a sociedade punindo-as por conta de suas lutas por mudança, elas são seres humanos que trazem seqüelas de uma longa história de sofrimento, e nem por isso, estas mulheres deixam de cumprir certos rituais de uma tradição que se ensinava em suas tribos, principalmente no que diz respeito ao aspecto religioso.  
Cerca de 50% da população 4 seguem crenças tradicionais, 31% são católicos e 13% são muçulmanos. As populações tribais mantêm sua tradição animista, mas há também inúmeros adeptos do islamismo, talvez a primeira religião exógena a penetrar o território. Entre os cristãos, a maioria é formada por católicos, seguidos por anglicanos e metodistas. (RAMALHO: 2006, p. 3)  
A questão da crença é algo bem explorada na literatura africana de expressão portuguesa. Os dados fornecidos por Christina Ramalho no fragmento acima, deixa claro que metade da população moçambicana segue as crenças tradicionais que trazem deuses africanos como heróis de um plano divino que ajudam os mortais a se livrar dos conflitos vividos em sua existência terrena. 

“Mulher que ri à vida e à morte”:
“Para lá daquela curva os espíritos ancestrais me esperam.  Breve, muito breve tomarei o meu lugar entre os antepassados. Á terra deixarei os despojos do meu corpo inútil  as unhas córneas de todos os labores  este invólucro sulcado pela aranha dos dias Enquanto não falo com a voz do nyanga  cada aurora é uma vitória  saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo Oyo , oyo, vida!  Para lá daquela curva  Os espíritos ancestrais me espera”.  (SOUSA: 1988, p.149) (Grifos nossos)  

Não se pode deixar de mencionar a importância que Noêmia de Sousa dá para a cultura moçambicana, por vários aspectos. Sempre rodeada de intelectuais do sexo oposto como Ruy Guerra, Ricardo Rangel, João Mendes, Craveirinha, entre outros, Noêrmia sempre soube o lugar de onde e para quem falava: para aqueles que queriam começar a pensar a idéia de nação em Moçambique, na tentativa de negar os valores impostos pelos portugueses por viés anti-colonialista.  
Noêmia de Sousa é caso único de explosão identitária, a sua voz surpreende justamente por esta razão. A sua poesia é logo invadida por vozes, ela é a voz dos que não a têm, ela incarna as personagens submersas no quotidiano que lhes recusa a existência, para não falar de identidade. (SERRA: 1998, p. 90)  
O livro Sangue Negro traz uma coletânea de poemas que enfatizam a idéia de que os negros africanos estão conscientes de seus valores e precisam enfatiza-los através de vários meios. A literatura, nesse sentido, se torna a melhor estratégia.  O poema Mulher que ria à vida e à morte traz esta preocupação de Noêmia em explorar através da literatura algo que seja tipicamente comum ao universo moçambicano. O título do poema é bem sugestivo: a mulher ri tanto da vida como da morte, não é mais aquela mulher que tem que se mascarar ou se envergonhar por não ser branca, mas que sabe se impor, não teme nem a vida, nem a morte. A primeira estrofe traz a imagem da curva, que remete a idéia de retorno, um retorno a si mesmo, já que os ancestrais esperam, como também fortalece a idéia de que os ancestrais são invisíveis. A primeira pessoa está marcada em todas as estrofes: me, tomarei meu lugar, deixarei o despojo de meu corpo inútil, não falo com a voz do nyanga, saúdo ; e dá um caráter intimista ao poema.  A inutilidade do corpo é algo que merece nossa atenção. A idéia de que a terra tudo absorve, quem do barro é feito para o barro volta, reforça tanto ideologias bíblicas, como mitologias africanas. A presença dos ancestrais também marca o paganismo de algumas comunidades de linhagem bantu. Essa linhagem também é evidenciada pelo nyanga, uma espécie de sacerdote ou curandeiro que possui o dom de medicar com ervas e se comunicar com os ancestrais e outras divindades. O fato de o eu-poético não ouvir a voz do nyanga quer dizer que o mesmo sempre estará vivo na poesia, pois só os mortos se comunicam com tal sacerdote. Na quinta estrofe, aparece o termo Oyo, que é o reino do deus africano da criação: Oranyan. A ideia da curva é reforçada como ênfase na ideia de que é preciso muito mais do que um retorno a si mesmo.  
“Se me quiseres conhecer”
Para Antero  
“Se me quiseres conhecer  estuda com os olhos bem de ver esse pedaço de pau preto que um desconhecido irmão maconde  de mãos inspiradas talhou e trabalhou  em terras distantes lá do Norte:   Ah, essa sou eu:  Órbitas vazias no desespero de possuir vida,  Boca rasgada em feridas de angústia,  Mãos enormes, espalmadas,  Erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,  Corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis  Pelos chicotes da escravatura...  Torturada e magnífica  Altiva e mística,  África da cabeça aos pés,  _ ah, essa sou eu:  
Se quiseres compreender-me  Vem debruçar-te sobre minha alma de África,  Nos gemidos dos negros no cais  Nos batuques frenéticos dos muchopes  Na rebeldia dos machanganas  Na estranha melancolia se evolando  Duma canção nativa, noite dentro... E nada mais me perguntes,  Se é que me queres conhecer...  Que não sou mais um búzio de carne,  Onde a revolta de África congelou  Seu grito inchado de esperança”.  (SOUSA: 1998, p.49-50)  

Um dado que não mostramos neste estudo, quando fazemos as citações dos poemas da Noêmia é a data em que eles foram escritos. No caso do poema acima, é relevante dizer que foi escrito no dia 25/12/1949: data que celebra o nascimento de Jesus Cristo, personagem bíblico que personifica a ideia de humanidade. Voltando ao poema, percebemos logo a partir do título que o eu-poético utiliza o verbo na segunda pessoa para dirigir explicitamente ao seu leitor. Em se tratando de uma escritora militante como Noêmia, sabemos que o alvo são os colonizadores. Na primeira estrofe, o eu-poético usa a metáfora do pau preto, que pode ser uma referência ao ébano, madeira africana, para subjetivar a ideia da criação de um povo. O maconde aparece para mimetizar a perfeição da arte, pois segundo alguns dicionaristas a arte destes artesãos é reconhecida internacionalmente. Na segunda estrofe, o eu-poética aparece em primeira pessoa e se relaciona com vários adjetivos, o que marca um bom exemplo da adjetivação (sou - órbitas vazias..., sou - boca rasgada..., sou - mãos enormes..., sou - corpo tatuado..., sou- África da cabeça aos pés). Também nesta estrofe, percebemos as sequelas deixadas pela impiedosa escravatura (feridas visíveis e invisíveis da escravatura ), o que comprova que o eu-poético se dirige aos colonizadores. A quarta estrofe tem uma implicatura de desabafo, de insatisfação (E nada mais me perguntes, / se é que queres me conhecer...) em relação ao descaso dos invasores e destruidores de almas, sonhos, objetivos e realizações do povo moçambicano.  
Poema
“Bates-me e ameaças-me, Agora que levantei minha cabeça esclarecida  E gritei: “Basta!”  
Armas-me grades e queres crucificar-me  Agora que rasguei a venda cor-de-rosa  E gritei: “Basta!”  
Condenas-me à escuridão eterna Agora que minha alma de África se iluminou  E descobriu o ludíbrio..  E gritei, mil vezes gritei: ―Basta! 
Ò carrasco de olhos tortos,  De dentes afiados de antropófago  E brutas mãos de orango:  Vem com o teu cassetete e tuas ameaças,  Fecha-me em tuas grades e crucifixa-me,  Traz teus instrumentos de tortura  E amputa-me os membros, um a um...  Esvazia-me os olhos e condena-me à escuridão eterna...  - que eu, mais do que nunca, Dos limos da alma,  Me erguerei lúcida, bramindo contra tudo:  Basta! Basta! Basta!”
Sávio Roberto Fonseca de Freitas



30 setembro 2013

Gaza não é berço da resistência ao colonialismo português

Mais um “iceberg” de falsidade na História de Moçambique

ANGOLA: ABUSOS POLICIAIS CONTRA VENDEDORES AMBULANTES EM LUANDA

Maus-tratos e Extorsão dos Pobres Urbanos do País Rico em Petróleo

(Joanesburgo, 30 de Setembro de 2013) – A polícia angolana comete regularmente actos de agressão e extorsão contra vendedoras e vendedores ambulantes durante “operações de retirada” na capital Luanda, denunciou a Human Rights Watch num relatório lançado hoje. 

O relatório de 36 páginas, ‘Tira Essas Porcarias Daqui’: Violência Policial Cometida Contra Vendedores Ambulantes em Angola, descreve a forma como agentes da polícia e fiscais do governo, frequentemente de traje civil e sem identificação, sujeitam as vendedoras ambulantes a maus-tratos, incluindo muitas mulheres com bebés, no decurso das operações para retirá-las da rua à força. A Human Rights Watch entrevistou 73 vendedores e vendedoras ambulantes em Luanda, que descreveram com grande pormenor a forma como a polícia apreende os seus produtos, extorque subornos, faz ameaças de detenção e, em alguns casos, detém efectivamente. Para estes abusos, a impunidade tem sido a regra.

“Todos os dias, a polícia agride e assalta vendedores ambulantes com violência, em plena luz do dia, e ninguém faz nada,” denunciou Leslie Lefkow, directora-adjunta de África da Human Rights Watch. “A conduta da polícia não deve pautar-se por abusos e roubos.” 

O governo deve dar imediatamente ordens públicas à polícia para cessar a violência e assegurar-se de que as operações de retirada são levadas a cabo por agentes profissionais que actuam com total respeito pela lei, declarou a Human Rights Watch.

As repressões policiais de vendedores ambulantes têm vindo a aumentar desde Outubro de 2012, altura em que o governador de Luanda anunciou que as autoridades iriam retirar os vendedores ambulantes da rua, disse a Human Rights Watch. As autoridades provinciais prometeram a construção de novos mercados para os vendedores. Estas operações fazem parte de uma política governamental de longo prazo destinada a reduzir o sector informal na Angola do pós-guerra, que também inclui despejos forçados em massa de bairros informais. Os visados de ambos os tipos de retirada têm sido as comunidades mais pobres de Luanda. 

Muitas das rusgas seguem um padrão semelhante: fiscais, geralmente munidos de porretes, e polícias armados abordam grupos de vendedores ambulantes a pé, de carro ou de mota. De seguida, afugentam os vendedores agredindo-os e confiscando os seus produtos. 

Vendedoras ambulantes descreveram a violência das rusgas à Human Rights Watch. Disseram que até mulheres grávidas são espancadas com porretes e outros objectos e agredidas com pontapés, estalos e murros, sustendo ferimentos como nódoas negras e braços, pernas e rostos inchados. 

“Onde eu vendo, há muitas zungueiras [vendedoras ambulantes] com bebés às costas,” contou uma vendedora de 22 anos à Human Rights Watch. “Os polícias e os fiscais vêm de moto. Dão-nos pontapés e atiram as nossas coisas para o chão. Alguns levam as nossas coisas. Só não levam se pagarmos. Dizem: ‘Tira estas porcarias daqui. Aqui não é sítio para vender.’”

Jornalistas, familiares, transeuntes e outras testemunhas que tentam intervir, queixar-se ou documentar os abusos enfrentam detenções e agressões arbitrárias às mãos da polícia, disse a Human Rights Watch. Uma investigadora da organização foi detida em Abril durante um breve período de tempo, quando entrevistava vendedores ambulantes. 

Esta intimidação e este assédio reflectem o ambiente cada vez mais repressivo para jornalistas e defensores dos direitos humanos que se vive em Angola, disse a Human Rights Watch. Os jornalistas independentes correm grandes riscos quando denunciam repressões policiais e os meios de comunicação do estado recusam-se a fazer a cobertura noticiosa do assunto. 

“As autoridades angolanas devem parar imediatamente de punir jornalistas, defensores dos direitos humanos e cidadãos preocupados que expõem as violações de direitos a que vendedores ambulantes e outros indivíduos sãos sujeitos,” declarou Lefkow. “Devem, sim, investigar os abusos e levar os responsáveis a tribunal.”

A maioria dos vendedores ambulantes vive em condições de pobreza extrema desde que, há uma década atrás, foi deslocada durante a guerra civil, e tem sido excluída dos benefícios trazidos pela economia do pós-guerra em constante crescimento. A grande maioria não tem acesso a serviços públicos básicos, vive em bairros informais sem protecção jurídica e nem sequer possui um bilhete de identidade. 

“O governo afirma que a satisfação dos direitos económicos e sociais é uma prioridade, mas, se assim é, deveria garantir que as comunidades mais pobres de Angola são protegidas e não alvo de abusos,” relembrou Lefkow. “Ajudar os vendedores ambulantes a ter acesso a bilhetes de identidade e a serviços públicos seria um primeiro passo muito positivo.” 

“‘Tira Essas Porcarias Daqui’: Violência Policial Cometida Contra Vendedoras Ambulantes em Angola” está disponível em:

29 setembro 2013

O CONFLITO NA PRODUÇÃO DE HERÓIS EM MOÇAMBIQUE

Por Carlos Serra
Se o homem é a medida de todas as coisas, a política é a medida de todos os heróis.
Heróis oficiais

Os heróis oficialmente conhecidos em Moçambique são aqueles que a Frelimo, através do Estado que gere desde 1975, decretou como tais. Na imagem destaca-se Samora Machel (primeiro em pé da esquerda para a direita) e Eduardo Mondlane (segundo em pé da esquerda para a direita)
1. Introdução
Se, por destino dos bons deuses e dos bons espíritos, os que governam Moçambique e os que esperam governá-lo, decidissem conjugadamente, com a alma magnética e dialéctica dos irmãos gémeos, fazer um inquérito nacional para conhecerem as percepções populares sobre heróis, sobre quem são esses heróis, sobre quem merece história e estátuas, sobre quem tem legitimidade popular, talvez se surpreendessem com o surgimento de heróis que, por hipótese, teriam, por exemplo, as seguintes cinco dimensões hierarquicamente organizadas:
Heróis familiares ou de parentela alargada
Heróis locais extra-familiares
Heróis distritais
Heróis provinciais, eventualmente bi-provinciais
Heróis oficiais
Estatisticamente, os gestores e os candidatos a gestores da heroicidade oficial talvez viessem a descobrir e a reconhecer que quanto mais saímos dos círculos familiar, local e distrital, mais difícil é conhecer e partilhar os heróis oficiais, aqueles pan-heróis distantes e desconhecidos comemorados nos dias festivos, nos discursos, na rádio, na televisão, nos comícios, etc.
Se ao conhecimento dos heróis popularmente reconhecidos e legitimados juntassem o conhecimento sobre as suas características, os gestores e os candidatos a gestores da heroicidade talvez se espantassem ao verificar  a variedade de critérios populares para estabelecer o perfil de heroicidade.
Poderia, até, acontecer que se tivesse por heróis, espíritos de heróis.
Um trabalho desse género permitiria, também, que se soubesse um pouco mais sobre as razões por que os jovens, os estudantes e os mais velhos - afinal muitos de nós - pouco sabem dos heróis oficiais, pouco se preocupam com eles, pouco os sentem na alma.
Mas não é assim que as coisas se passam e se fazem, o mencionado inquérito nacional não será realizado.
Regra geral, coisa de herói oficial é coisa de poder. Melhor: produto de relações incessantes de poder, eixo de uma intensa luta pelo monopólio da sua produção.

2. O que é um herói?
Andre Matsangaissa (sem camisa)

A atribuição em 2008 do nome de André Matsangaíssa (na imagem e sem camisa) à rotunda 2314, situada no Bairro da Munhava, arredores da cidade da Beira – na altura gerida pela Renamo -, é um exemplo claro de uma primeira brecha aberta no monopólio frelimiano de gestão de heróis.
Um herói é alguém a quem, colectiva, inter-subjectivamente (excluo a análise dos heróis pessoais), atribuímos qualidades e práticas extraordinárias, fora do comum, alguém que perdeu digamos que as suas qualidades humanas e se transformou numa espécie de deus terreno, de deus profano. Para enunciar um truísmo, um herói nunca existe a montante, mas a juzante das nossas representações sociais.
A morfologia da heroicidade é, naturalmente, vasta e variada. O herói não tem um centro temático ou uma linha unívoca de pureza.
Os heróis são tantos quantas as nossas necessidades em guias, em referenciais, em modelos de conduta, em juízes, em territórios de combate, em futuros. E, regra geral, consoante a intensidade e a extensão das lutas entre grupos sociais ou nacionais. Os impuros de uns são os puros de outros e vice-versa.
Heróis são seres que, com o tempo, unificamos psicológica e socialmente numa matriz comportamental única e virtuosa, da qual eliminamos os defeitos e, até, as qualidades humanas comezinhas.
Mais: em quem, muitas vezes, hipervalorizamos um aspecto de conduta (que pode ser motivo de retrabalho permanente e de acréscimo) deixando outros na penumbra. Estas as razões por que certos heróis podem ser iminentemente políticos ou completamente políticos.
Os heróis existem em todo o lado e desde sempre, não importa onde e quando.
Somos produtores “naturais” de heróis, de hiper-eus nas diversas socializações pelas quais atravessamos a vida e a história. Os mais pequenos agrupamentos dispõem de heróis, de guias, de modelos de conduta. Os heróis tanto podem habitar um lar, um grupo de famílias, uma rua, quanto uma prisão ou as matas da guerrilha, tanto podem estar mortos quanto vivos e, estando mortos, estarem vivos na memória e na invocação cultual.
Temos heróis de magnitude diferente. Um herói oficial dispõe, claro, de um peso de irradiação formal bem maior do que aquele de que dispõe um herói do bairro do Xiquelene em Maputo, de um sindicato combativo, dos meandros do crime ou das matas de uma guerrilha.
Mas isso não significa que o peso informal, não oficial, dos heróis, seja pequeno: um herói dos quarteirões populares ou das sagas campesinas de luta pode ser mais intensamente sentido e glorificado do que um herói seleccionado numa reunião fechada do grupo dirigente de um partido e regularmente projectado nos órgãos de comunicação.

3. Heróis oficiais
Uria Simango, um dos fundadores da Frelimo, foi extra-judicialmente executado pelo governo pós-independência de Samora Machel. A história oficial relegou o antigo vice-presidente da Frelimo para a condição de reaccionário
Os heróis podem ser motivo de conflito agudo entre grupos e partidos na competição pelo monopólio da sua produção. Melhor escrito: são quase sempre. Por exemplo, recentemente o presidente do Zimbabwe, Robert Mugabe, afirmou que jamais os membros da oposição seriam contemplados na praça dos heróis nacionais do seu país, apenas reservada aos heróis do seu partido, a ZANU-PF.
Um porta-voz do MDC-T, partido na oposição, reagiu declarando que a praça nacional dos heróis pertencia aos Zimbabweanos e não à ZANU--PF [1].
Quanto mais partidarizado for um Estado, mais políticos e mais central e unilateralmente produzidos e decididos são os seus heróis e, portanto, menos possibilidades têm de ser popularmente aceites.
Quem são os heróis oficialmente conhecidos em Moçambique? Os heróis oficialmente conhecidos em Moçambique são aqueles que a Frelimo, através do Estado que gere desde 1975, decretou como tais.
São heróis que operaram no interior de um processo histórico: o da luta de libertação nacional a partir de 1962.
Que operaram e que foram definidos no interior de ideais, de virtudes e de práticas produzidas pela liderança hegemónica da Frelimo. Ideais, virtudes e práticas que os produziram com exclusão daqueles que foram considerados traidores. São pessoas a quem o grupo dirigente da Frelimo atribuiu virtudes extraordinárias em seu papel de pais fundadores e de pais executores da gesta nacionalista e revolucionária, são pessoas que foram consideradas excepcionais na concepção e na implementação dos programas que permitiram que a independência nacional fosse alcançada. São heróis definidos no interior de uma luta política e militar contra opositores estrangeiros e nacionais à frente de libertação.
Os restos mortais desses heróis estão na cripta da Praça dos Heróis, cidade de Maputo. Aí estão, também, os restos mortais de duas pessoas que não fizeram directamente a caminhada da luta armada de libertação nacional, mas cuja grandeza e cuja luta, como poeta um, como maestro outro, como patriotas ambos, levaram a Frelimo a dar-lhes o estatuto de heróis. Trata-se do poeta José Craveirinha e do maestro Justino Chemane.
Existem pessoas que não estão nessa Praça, cujo estatuto foi, certamente, considerado menos relevante ou menos decisivo, mas que têm os seus nomes em ruas e em praças provinciais do país.

4. A luta política na produção de heróis
Jose Craveirinha

O poeta José Craveirinha (na imagem) e o Maetro Justino Chemane são duas pessoas que não _ zeram directamente a caminhada da luta armada de libertação nacional, mas cuja grandeza e cuja luta levaram a Frelimo a dar-lhes o estatuto de heróis.
A produção de heróis é, sempre ou quase sempre, um laborioso processo histórico de luta, de catalogação, de etiquetagem, de defesa de lugares adquiridos, de valores primeiros.
A esse propósito, lembrei-me de um livro fascinante, escrito por Norbert Elias em parceria com John Scotson, que, na versão inglesa, tem o título “Os estabelecidos e os intrusos” e, na versão francesa, o título “Lógicas da exclusão”.
Nesse livro, Elias e Scotson mostraram como, no fim dos anos 50 do século passado, numa cidade inglesa de periferia, os aí chegados em primeiro lugar produziam e reproduziam a exclusão social dos novos chegados, como os catalogavam, como os rejeitavam, como se esforçavam permanentemente para assegurar os seus privilégios, como segregavam o que, no seu prefácio à obra, o sociólogo francês Michel Wieviorka chamou “racismo sem raça” [2].
Tenho para mim que estamos perante uma excelente grelha teórica para analisarmos a produção política de heróis em Moçambique.
Com efeito, estamos hoje confrontados com o fenómeno de termos a gestão do panteão oficial de heróis - a cargo da Frelimo, ganhadora da independência nacional, gestora do Estado -, disputada e posta em causa por uma outra candidata à produçãode heróis, a Renamo, pedra angular de uma guerra sangrenta de muitos anos [3]que reclama ser a autora da democracia multipartidária em curso no país.
A Frelimo entende que apenas ela está em condições de produzir os heróis nacionais pois foi a criadora da Nação, é a gestora natural do Estado, tem a legitimidade absoluta da história. A Frelimo entende que qualquer produção fora desse perímetro é um atentado à história, à verdade. Por isso impugna violentamente a ousadia da Renamo.
Por sua vez, a Renamo, que disputa a gestão do Estado e se reclama da criação da democracia nacional, entende que tem também o direito de disseminar, de moçambicanizar os seus heróis, de lhes dar um estatuto paritário, de legitimidade nacional.
Muito provavelmente, um partido mais jovem, filho rebelde da Renamo, o Movimento Democrático de Moçambique, abrirá também, no futuro, uma frente de heróis, tentando triunviratizar a legitimidade na produção nacional desse tipo de recursos políticos.
Temos, então, uma nova “guerra”, desta vez não com metralhadoras, mas com heróis, uma guerra pela produção e pelo controlo político desse importante recurso de poder.
A atribuição em 2008 do nome de André Matsangaíssa à rotunda 2314, situada no Bairro da Munhava, arredores da cidade da Beira – na altura municipalmente gerida pela Renamo [4] -, é um exemplo claro de uma primeira brecha aberta no monopólio frelimiano de gestão de heróis, é um exemplo do prosseguimento da guerra agora pelo controlo da toponímia.
A “Winston Parva”, a pequena cidade do livro de Elias e Scotson, é, afinal, o nosso pleno Moçambique.
5. A política é a medida de todos os heróis
Situadas na interface entre o individual e o colectivo, o racional e o impulsional, o consciente e o inconsciente, o imaginário e o discursivo, as representações sociais aqui em vista são fortemente tributárias da forma como os grupos políticos se inscreveram na história do país e nela tatuaram e tatuam os seus modelos, os seus guias de referência, os seus heróis epónimos, os seus valores, os seus clichés, os seus prejuízos e os seus estereótipos.
Os heróis moçambicanos não são, portanto, livres de descansarem nas suas tumbas quando em jogo está a sua reprodução ou a sua reactivação política.
Eles são duramente produzidos e reproduzidos.
Por consequência, não há heróis em si, à partida. O que em vida foram certas pessoas é o que queremos que sejam, no molde das nossas exigências de virtude, proeminência e legitimidade.
A politização da alteridade, a heroicização ou a diabolização, são partes constituitivas da forma como construímos a visibilidade de quem amamos ou odiamos.
O poli-heroísmo está definitivamente instalado e será sempre, por hipótese, monitorado pela luta política. 
Se o homem é a medida de todas as coisas, a política é a medida de todos os heróis.
[2] Elias, Norbert and Scotson, John L.,  Logiques de l’exclusion. Paris: Fayard,1997.
[4] A gestão da cidade da Beira está a cargo de Deviz Simango desde 2003: nesse ano eleito presidente do município concorrendo pela Renamo, repetiu a proeza em 2008 como independente, após ter sido expulso daquele partido. Em 2009 fundou o Movimento Democrático de Moçambique.
SAVANA – 27.09.2013


16 setembro 2013

CONCP, A SOLIDARIEDADE ENTRE IRMÃOS

 A CONCPConferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, quando se criara, assentava em organizações nacionais e visava coordenar, em particular, a acção diplomática. A sua criação, em 1960 em Rabat, no Marrocos, deu maior projecção à nossa causa comum de libertação nacional. Numerosos países e organizações da África, da Ásia e do Leste da Europa assistiram à criação da CONCP.
De Angola participou como fundador o MPLA. Elegeu-se para Presidente Mário Pinto de Andrade, que dirigia o MPLA. Agostinho Neto, na altura sem qualquer julgamento detido pela PIDE e deportado para Cabo Verde, não ocupava posições nos órgãos de direcção do MPLA, embora a organização o houvesse designadoPresidente de Honra. Marcelino dos Santos representou aUDENAMO e elegeram-no Secretário-Geral da CONCP. No número 6 da Rua Paul Tirard, em Rabat, instalou-se a sede da CONCP, que aí funcionou até 1965, altura em que se mudou para a Argélia.
O Governo Marroquino, o Rei Mohamed V, o Ministro para Assuntos Africanos, Dr. Abdel Remane Khatibe e o poeta e Ministro da DefesaAhardane, apoiaram a CONCP, ofereceram o seu país para o treino dos combatentes do PAIGC e do MPLA. O Grupo de Casablancaque integrava os Estados mais progressistas do continente e que reconheciam o GPRAGoverno Provisório da República Argelina. O Gana, a Guiné (C), o Mali, o Egipto, o Marrocos e o GPRA integravam o grupo.
II Conferência da CONCP realizou-se em Dar Es Salaam em 1965, onde se elegeu Mondlane como Presidente, em substituição de Mário de Andrade. Samora substituiu Mondlane depois da sua morte.
CONCP progressivamente se esvaiu. A tarefa essencial para os três movimentos tornara-se a luta armada de libertação nacional, e a cooperação nesse campo não podia existir, para além de trocas de experiências. A CONCP garantiu, porém, uma coordenação política e diplomática entre os partidos, que se mostrou de grande importância em momentos críticos.
CONCP desempenhou um papel positivo para uma intervenção coordenada na arena internacional. A Conferência Internacional de Roma, em 1970, e o encontro com Sua Santidade Paulo VI o demonstram isso e uma das missões mais importantes que se levou a cabo no plano externo. A retirada do reconhecimento daOUA ao GRAE, o apoio para que a independência da Guiné (B) triunfasse na arena internacional devem-se situar entre os grandes sucessos alcançados pela CONCP, de par com a concertação e frente comum para que se proclamasse a independência de Angola, e Luanda ganhasse o seu assento legítimo na OUA em 1976. A CONCP bateu-se pela causa timorense, quando só havia as nossas vozes a clamarem no deserto.
Durante a luta de libertação entre a FRELIMO e o MPLA assegurou-se algum apoio mútuo na frente militar, sobretudo no concernente a suprimentos pontuais no campo da logística, pois que isso se tornava exequível entre a Frente Leste de Angola e a Frente de Tete em Moçambique, dado que o desdobramento dos fornecimentos ocorria na Zâmbia. Delegações da FRELIMO visitaram Angola e as do MPLAMoçambique. O Presidente Neto visitou Nachingweia, coube-me, a mim, e ao camarada Munhepe a alegria e grande honra de o acompanhar durante a visita. O MPLA esteve representado no nosso II Congresso.
Em 1975, para assegurar a independência a CONCP, através dos Governos de Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo-Verde desempenhou um papel de grande relevo. Numa primeira fase tropas da Guiné (B), a que se juntaram as da Guiné (C) e do Congo (B), partiram para Angola para assegurar a defesa da faixa a sul de Luanda, ameaçada pela invasão sul-africana. Para a faixa Norte, onde a ameaça partia das forças de Mobutu, do FLNA e dos mercenários, Moçambique despachou todos os seus BM 21 e aviões de transporte, os NORD ATLAS, assim como meios adicionais de artilharia e munições. Estes meios mostraram-se importantes para a derrota em Quinfangondo da invasão conjunta do FLNA, Zaire e mercenários.
Na Ponta Vermelha, a 9 de Novembro de 1975, reuniram-se os Presidentes Samora, Neto, Luís Cabral e Pinto da Costa. Aristides Pereira, de Cabo Verde, chegou mais tarde, a 10, pois o Zaire de Mobutu havia interditado o sobrevoo do seu espaço aéreo. Isto não impediu Cabo Verde de se solidarizar a 100% com o posicionamento comum.
Na noite de 11, todos ouvimos, pela Rádio Moçambique em directo, na Ponta Vermelha, o Presidente Neto proclamar a independência angolana. Aristides Pereira e Xavier Amaral estavam presentes.
Os dirigentes presentes em Maputo confirmaram o seu apoio para que a 11 de Novembro, o MPLA proclamasse a independência em Luanda e Samora encarregou Marcelino de acompanhar Neto a Luanda no dia 9 e só regressar após proclamada a independência, transmitindo de imediato o nosso reconhecimento da República Popular de Angola.
Aos camaradas que iam para Angola, incluindo os voluntários nesse momento crítico e, isso também me deu como ordem, Samora disse:
Cumpram a tarefa. Em Moçambique dispomos de muita terra para fazermos monumentos, em Angola, não têm terra para recuar!
Um abraço à valorização da nossa tradição internacionalista,
Sérgio Vieira
JORNAL DOMINGO – 15.09.2013