Noemia de Sousa, a poetisa mocambicana |
O OBJECTIVO de
nosso estudo é analisar os poemas “Se me quiseres conhecer”, “Poema”, “Mulher
que ri à vida e à morte” da escritora moçambicana Noêmia de Sousa. Para isso,
vamos organizar a nossa reflexão em três partes: tradição e contradição em
Moçambique (momento em que se expõe aspectos culturais, geográficos e
religiosos deste país); Noêmia de Sousa, uma militante em Moçambique (trazendo
informações sobre o perfil da escritora e sua condição social em seu país); e,
por último, a análise dos três poemas acima citados para percebermos os sinais
da poesia combate moçambicana nos versos de então precursora da escrita em
autoria feminina.
Podemos dizer
sem medo que a literatura nos leva a grandes aventuras e, acatando esta
condição, vamos viajar para o território africano através da voz da escritora
moçambicana Noêmia de Sousa, aterrizando em sua coletânea de versos “Sangue
Negro” (1990), obra da primeira mulher que se aventura na literatura no momento
em que o seu país se encontrava em estado de guerra por conta de lutas em prol
da independência.
Tal facto
contextualiza a literatura de Noêmia de Sousa como poesia combate, pois seus
versos traziam uma linguagem engajada com os ideais militantes da FRELIMO
(Frente de Libertação de Moçambique).
Adentrar na
poesia de Noêmia de Sousa é descobrir um outro povo, uma outra cultura, cheia
de credos, de mitos, de ritos, enfim de aspectos múltiplos que compõem um
imaginário excêntrico em relação ao que já está escrito nas páginas de tantas
literaturas.
Tradição e
contradição em Moçambique
A nossa
proposta em trazer um pouco de informações sobre Moçambique é mais uma forma de
entender a literatura que é escrita nesse país, pois entendemos que a
literatura é um texto, que no plano de suas múltiplas tessituras, necessita de
algumas linhas precisas dos vários contextos (históricos, sociais, religiosos,
entre outros..) para construir um idéia literária que permita ao leitor se
deslocar do plano real e aceitar o plano ficcional. Ler a cultura
africana, através da escrita de Noêmia de Sousa, é um caminho para se perceber
uma tradição cultural que ainda permanece na modernidade, enfim, é possuir a
permissão para viajar por um território cultural multifacetado de uma nação
que, colônia de Portugal até 1974, acumulou valores sociais díspares, como: a
monogamia e a poligamia, o politeísmo e o monoteísmo; a escravidão e a
liberdade; o cultivo e a indústria; ou seja, situações políticas, religiosas e
econômicas que beiram a guerra e a miséria.
O vocábulo
português moçambique data do século XVI. Do século XI a XV, este país foi
explorado pelos árabes, persas e suailis (africanos bantos arabizados ou
islamizados, que prolongaram as feitorias muçulmanas da costa da Somália:
Melinde, Mombaça, Zanzibar, Quíloa, Moçambique, Sofala). Essa região da África
Oriental fazia parte do complexo mercantil do Oceano Índico, com relações a
longa distância com o Oriente Médio, a Índia e a China. As relações atingiam
também os povos bantos do interior. Moçambique foi colônia de Portugal por
muito tempo. O domínio português se dá quando Vasco da Gama atinge o solo
moçambicano em 1498 e faz aliança como rei Melinde. Em 1506, os portugueses apoderam-se
de Sofala e em 1507 da ilha de Moçambique que se constituiu desde então em um
porto de escala de para os portugueses no comércio e na conquista da Índia. Em
1697, após frustradas tentativas de exploração do ouro e marfim, o comércio de
escravos tornou-se a principal atividade dos portugueses em Moçambique. Uma
grande quantidade de negros foram levados do solo moçambicano e vendidos, como
escravos, na América do Norte e, principalmente, no Brasil. Assim, por exemplo,
até 1800, o número de escravos era em média de 10.000 por ano, cifra que passa,
a partir de 1800 para 15 e 25 mil escravos por ano, decaindo a partir de 1850.
A posição dos colonizadores portugueses em relação ao povo moçambicano passa a
ser ameaçada quando os poderes europeus decidem a partilha da África. Uma nação
pretendente foi a Inglaterra, que, em 1823, alegando encontrar o território
abandonado, reivindicou sua soberania. Mas, com a Conferência de Berlim, em
1885, a soberania lusitana é legitimada. Como toda colônia portuguesa, Moçambique
tenta se libertar das garras deste ambicioso e sangrento colonizador. Surgem os
movimentos nacionalistas. A Liga Africana, fundada em Lisboa no ano de 1920, é
a primeira organização favorável aos nativos africanos. Depois desta, surgiram
o Instituo Negrófilo, a Associação dos Naturais de Moçambique, a União
Democrática Nacional de Moçambique, a União Nacional Africana de Moçambique,
além de outras. Essas organizações se uniram e, em 1962, formaram a Frente
Liberal de Moçambique (FRELIMO), presidida pelo Dr. Eduardo de Mondlane, o qual
morreu assassinado por uma bomba postal, em 1969. A FRELIMO começou a atacar as
forças militares portuguesas, em 1964. O governo socialista português derruba,
em 25 de Abril de 1974, a ditadura de Salazar, e concede a independência a
Moçambique, em 1975.
Todo este
traçado histórico é oportuno por conta da ligação dos intelectuais moçambicanos
com seu contexto histórico, social, cultural e religioso. Em Moçambique, a
primeira literatura é a do colonizador, com todas as características, na
temática e na forma, da pior que se produzia em Portugal. A medida em que
aumenta a fixação dos portugueses em Moçambique, aparece uma literatura em que
eles, os colonos, assumem os seus problemas específicos, criando a ilusão de
uma interação cultural pacífica entre colonizadores e colonizados. Começam a
surgir, de forma isolada, as primeiras vozes, ainda confusamente, que darão
conta, através da literatura, dos conflitos e tensões, injustiças e momentos de
revolta que, realmente, categorizam a relação colonial. Por outro lado,
acompanhando o desenvolvimento do sentimento nacionalista, o escritor
moçambicano afirma a terra ocupada como Pátria cuja identidade é algo a
construir.
Somos um país
de ambiguidade, de interrogação, de construção identitária. Somos um país que
fermenta na busca de um nós simbólico comum, virusidado, porém por um nós
real-social imponentemente assimetrizado. (SERRA: 1998, p.11)
Assim, toda a
luta anti-colonial passa a ter um forte reflexo na produção literária que nasce
do discurso dos combatentes da FRELIMO, expressando o próprio cotidiano da luta
em todas as suas frentes. A arte literária, nesse sentido, não é utilizada como
aparência por diferença na realidade, pois as vozes africanas que ecoam nas
narrativas transcritas da oralidade tomam a realidade como um objeto que
legitima a sua literatura, o que Aristóteles chama de verossimilhança.
Noêmia de Sousa é muito pontual em relação a este perfil de escrita que traz um
discurso marcado pela tradição oral.
“Nossa voz
ergueu-se consciente e bárbara sobre o branco egoísmo dos homens
sobre a indiferença assina de todos. Nossa voz molhada das cacimbadas do
sertão nossa voz ardente como o sol das malangas nossa voz atabaque
chamando nossa voz lança de Maguiguana nossa voz, irmão,
nossa voz trespassou a atmosfera conformista da cidade e
revolucionou-a arrastou-a como um ciclone de conhecimento.” (SOUSA: 1988,
p.33)
Este é um
fragmento do poema Nossa Voz , encontrado na coletânea Sangue Negro(1988) desta
escritora. Como afirmávamos anteriormente, o discurso é construído sobre bases
que marcam a tradição oral, ou seja, uma escrita para um leitor que tem a
sensibilidade de ouvir os ecos de um eu-poético que muito se assemelha aos
contadores de estórias em volta da fogueira, encostados em uma grande árvore
como o Imbondeiro. O próprio título do poema já nos dimensiona para o plano da
oralidade. Vários verbos deste fragmento nos remetem à idéia de militância, de
conscientização de valores em relação à condição do negro frente ao seu estado
de escravidão: Nossa voz consciente e bárbara ergueu-se/ sobre o branco egoísmo
dos homens/ sobre a indiferença assassina de todos. Estes três primeiros versos
dizem muito da condição do escritor moçambicano frente ao seu trabalho de
chamar a atenção de seus leitores, até porque este poema é assinado por mulher
em 1949 que tem plena consciência de quem quer atingir. O branco é utilizado
para colorir a atitude animalesca tanto do colonizador como dos negros que se
rendem aos ideias colonialistas matando seu próprio povo, e, concomitantemente,
toda a sua história, cultura, identidade, etc. Há também muitas alegorias
que compõem uma metáfora de ataque: nossa voz ardente.../ nossa voz
atabaque.../ nossa voz lança.... Pode-se dizer que a opção da autora por este
tipo de linguagem é uma forma de a mesma driblar um meio social e colonialista.
A autora se insere no mesmo contexto cultural de sua literatura, então reavivar
as formas tradicionais apagadas pelo discurso do colonizador e esquecidas pelos
homens colonizados é uma estratégia de manutenção de uma cultura autóctene e de
tentativa de legitimar a identidade cultural em processo.
Noêmia de Sousa
é a autora que escolhemos nesse estudo para entender a literatura africana
feita em Moçambique. Poderíamos escolher outros intelectuais como Mia Couto,
Paulina Chiziane e Lília Momplé, e, com certeza, encontraríamos na escrita
destes, linhas de semelhança no que diz respeito ao processo identitário, pois
sejam de expressão portuguesa, inglesa ou francesa, ou intelectuais africanos
se escrevem e se descobrem a partir da literatura que fazem. A literatura
destes escritores é marcada pelo autoreflexo de suas sensibilidades. No
caso de Moçambique, a língua portuguesa é algo que ficou da colonização, um
elemento que serviu de arma para o africano divulgar sua cultura, pois já foi
dito que os negros africanos 2 foram resistentes em relação à imposição
cultural de seus colonizadores. Na antiga Lourenço Marques, há, ainda
hoje, várias línguas indígenas de família banto correlacionadas com o português
já adaptado ao meio moçambicano, o que se chama de língua crioula ou português
crioulizado. Em época de sua independência, ano de 1975, poucos habitantes
falavam a língua portuguesa. Agora, a flor do Lácio é popular nos jardins da
diversidade africana. Moçambique é um país que nos permite entender um
pouco das riquezas múltiplas da África, principalmente no que concerne ao
entendimento das ações humanas em um cenário montado no palco da vida. Mitos,
ritos, costumes, tradições, ancestralidade, deuses, homens e mulheres são
elementos que migram do contexto cultural moçambicano como objetos mimetizados
no espaço textual da literatura que é escrita neste país. Por isso, é
inevitável ler esta literatura e não perceber a imagem do sofrimento, da luta,
de fome, de miséria, de analfabetismo. Fatos que se tornam presentes ainda hoje
no país por conta de sua situação econômica.
Noêmia de
Sousa: uma militante em Moçambique
As Literaturas
Africanas de Língua Portuguesa já ocupam um vasto território de leitura, tanto
no Brasil quanto em Portugal e na própria África Lusófona. Angola, Moçambique,
Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau são países onde vivem
intelectuais preocupados com uma escrita literária que mantêm um fecundo
diálogo com questões temáticas que se voltam para o colonialismo,
pós-colonialismo, identidade cultural, exílio, e principalmente, a inscrição
dos modos literários africanos de fazer literatura.
Os estudos das
literaturas produzidas em África impõem-se como um verdadeiro canto de sirena
que desperta as nossas ancestrais raízes, convocando-nos à comunhão com um
mundo antigo que se apresenta, para nós, com uma epifania em que se celebra o
encontro tantas vezes adiado, mas nem por isso menos desejado. (DUARTE: 2004,
p.7)
A escrita
literária africana de expressão portuguesa se coloca em uma situação sui
generis pelo fato de nos fazer refletir sobre assuntos que se voltam para uma
questão místico-cultural que migra do plano da realidade para o plano da
ficcionalidade por conta de uma percepção ideológica pagã de se ver o mundo
africano. Uma prática de escrita que revela um re-escritura do que foi
aprendido por meio da prática da oralidade. A presença dos mitos e ritos, como
temáticas recorrentes nas narrativas africanas, legitimam as lições deixadas
pelos povos mais velhos que voltam ao contexto atual, assumindo a condição de
ancestrais ou de defuntos protetores. Vamos observar melhor a relação com a
ancestralidade quando analisarmos o poema “Mulher que ri à vida e à morte”.
Carolina Noémia
Abranches de Sousa Soares nasceu a 20 de Setembro de 1926, em Lourenço Marques
(hoje Maputo), Moçambique. Apesar da publicação da coletânea “Sangue Negro” em
1998 pela Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), seus versos circulam
em vários meios: jornais, revistas especializadas e sites da internet.
Poetisa que,
numa espécie de postura predestinada, desembaraçando-se das normas tradicionais
europeias, de 1949 a 1952 escreve dezenas de poemas, estando muitos deles
dispersos pela imprensa moçambicana e estrangeira.
Com apenas 22
anos de idade, surgiu na senda literária moçambicana num impulso encantador,
gritando o seu verbo impetuoso, objetivo e generoso, vincado (bem fundo) na
alma do seu povo, da sua cultura, da sua consciência social, revelando um
talento invulgar e uma coragem impressionante.
Como afirma
Craveirinha (2000, p.100), podemos sentir o hálito ardente da fogueira, quando
lemos os versos desta escritora, o que mostra em sua literatura a evidência da
moçambicanidade, ou seja, a valorização da sua nação em seus poemas.
Ler Noêmia de
Sousa é ler Moçambique. Como mestiça, pois seu pai era originário de uma
família luso-afro-goesa e sua mãe afro-germânica, revela ser marcada por uma
profunda experiência, em grande parte por via dessa mesma circunstância de ser
mestiça.
A sua poesia,
desde logo, se mostrou “cheia” da “certeza radiosa” de uma esperança, a
esperança dos humilhados, que é sempre a da sua libertação. Toda a sua produção
é marcada pela presença constante das raízes profundamente africanas, abrindo
os caminhos da exaltação da “Mãe-África”, da glorificação dos valores
africanos, do protesto e da denúncia.
“Eu quero
conhecer-te melhor, Minha África profunda e imortal... Quero descobrir-te
para além Do mero estafado azul Do teu céu transparente e tropical,
para além dos lugares comuns...” (SOUSA, 1988 , p.145)
Poesia de forte
impacto social, acusatória, a sua linguagem recorre estilisticamente à
ressonância verbal, ao encadeamento de significantes sonoros ásperos, à
utilização de palavras que transportam o "grito inchado" de
esperança.
Noémia de
Sousa, como autêntica pioneira da Literatura Moçambicana (como assim sempre foi
considerada) preconiza - no seu percurso literário - a revolução como único
meio de modificar as estruturas sociais que assolam a terra moçambicana.
Sempre, e desde muito cedo, pretendeu que o seu povo avançasse uno, em
coletivo, em direção a um futuro que alterasse os eixos em que se fundamentava
a atitude do homem, mas sem nunca fazer a apologia da desumanização. Afirma-se,
acima de tudo, africana e aposta fortemente na divulgação dos valores culturais
moçambicanos.
NOÉMIA de Sousa, como autêntica pioneira da Literatura Moçambicana (como assim sempre foi considerada) preconiza - no seu percurso literário - a revolução como único meio de modificar as estruturas sociais que assolam a terra moçambicana. Sempre, e desde muito cedo, pretendeu que o seu povo avançasse uno, em coletivo, em direção a um futuro que alterasse os eixos em que se fundamentava a atitude do homem, mas sem nunca fazer a apologia da desumanização. Afirma-se, acima de tudo, africana e aposta fortemente na divulgação dos valores culturais moçambicanos.
“Billie Halliday, minha irmã americana, Continua cantando sempre, no teu jeito magoado, os “blues” eternos do nosso povo desgraçado.... Continua cantando, cantando, sempre cantando, Até que a humanidade egoísta ouça em ti a nossa voz...” (SOUSA, 1988, p.135)
As propostas essenciais da sua expressão literária vão do desencanto cotidiano, de uma certa amargura, de uma certa raiva, até ao grito dolorido, até ao orgulho racial, até ao protesto altivo que contém a pulsão danada contra cinco séculos de humilhação. A grande base do texto de Noémia de Sousa está centrada na eterna dicotomia "nós/outros" - "nós", os perfeitamente africanos; os "outros", as gentes estranhas, os que chegaram em África, os colonizadores. Assim, estes são, sem dúvida, os dois grandes temas da poesia de Noémia de Sousa: se por um lado temos a contínua denúncia da total incompreensão por parte do colonizador, que apenas capta a superficialidade dos rituais, não compreendendo o âmago de África, demonstrando, desta forma, uma visão plenamente distorcida, por outro lado lança-nos em poemas de elogio aberto à raça negra, gritando bem alto e de forma plenamente perceptível que a presença do colonizador em África é sinônimo de força que apenas veio denegrir a imagem daquela terra. Noémia de Sousa fala do orgulho de pertencer à África por parte dos africanos. E por esse mesmo motivo vem afirmar que terão obrigatoriamente de ser os filhos a cantar essa sua mãe-terra (que tanto amam e sentem) - e cantar África tinha forçosamente que ser entendido por oposição à maneira de cantar do colonizador. Nos seus poemas, o "eu" de Noémia de Sousa é entendido como um "coletivo", um povo inteiro que quer ter palavra - o povo moçambicano. Desta forma, a escritora assume-se como porta-voz daquele povo que é o seu e, dirigindo-se à terra-mãe que os acolhe e protege, ora canta a sua vida, ora lhe pede perdão pela alienação demonstrada ao longo de tanto tempo, ora (mesmo) lhe promete a rápida e definitiva devolução do seu direito a uma vida própria, autêntica. Apesar de breve, porém prolífera, a passagem de Noémia de Sousa pelo panorama da literatura moçambicana, a qualidade dos seus textos não deixou, jamais, de ser reconhecida e admirada. Percebemos que os autores africanos de colonização portuguesa escrevem como se estivessem diante de seus receptores pelo fato de também o serem, quando se permitem ouvir a voz dos seus ancestrais. A arte literária não é utilizada como aparência por diferença com a realidade, e sim, como transparência por semelhança com a realidade, pois as vozes africanas que ecoam nas narrativas transcritas da oralidade tomam a realidade como instrumento para a construção de uma verdade aparente. O imaginário do autor aparece em sua literatura como se o eu-poético não fosse um elemento fictício, pois a voz que se enuncia na tessitura dos versos da escritora moçambicana desmistifica a figura do mesmo, transformando-o em um contador de experiências vividas no ventre de sua da terra africana. A voz feminina em Moçambique possui um status de grande relevância. De acordo com Lilia Momplé (1999, p.31), também escritora moçambicana e autora do livro de contos Os olhos da cobra verde , falar da mulher escritora e de sua relação com o cânone não é fácil, pois é inadequado eximi-la da condição de mulher moçambicana, por ser mística, sedutora e guerreira. Ainda segundo Momplé (1999, p.31),
a mulher moçambicana é a principal difusora e transmissora de valores culturais, tradições e ritos como, por exemplo, o espírito da solidariedade e entreajuda, a hospitalidade, a veneração pelos mais velhos, os ritos de nascimento, iniciação, reconciliação e morte.
Difusão que era passada das mais velhas para as mais novas por via da oratura, fazendo com que a tradição permanecesse desde a época colonial até os dias atuais. Com a Independência de Moçambique, a mulher continua a exercer um papel importante no domínio da cultura. A partir de então, ainda conforme Momplé (1999), grupos culturais foram formados pelas mesmas e, nos grandes festivais nacionais de música, canto e dança tradicionais da década de setenta, a participação feminina era ímpar. Após a década de setenta, a guerra civil aterroriza o solo moçambicano por dezessete anos, destruindo o corpo físico e cultural do país. Nessa guerra, houve um milhão de mortos e cinco milhões de deslocados e refugiados; entre eles a escritora Noêmia de Sousa, grande poetisa moçambicana e precursora da autoria feminina. Na zona urbana, área mais reservada do embate direto da guerra, houve uma explosão de mulheres artistas. Para representar a literatura, entre Lina Magaia, Clotilde Silva e Lília Momplé, estava Paulina Chiziane, primeira escritora moçambicana a escrever um romance: Balada de Amor ao Vento _ rebento de 1990. Podemos então, de forma provisória, afirmar que, no plano da literatura de Moçambique, Noêmia de Sousa ocupa um lugar privilegiado, pois, embora a obra literária da escritora seja curta, possui grande valia para uma leitura crítica. O discurso da autora já anuncia uma tendência politizada, o que nos permite afirmar a escritora como uma feminista, pois uma das grandes preocupações da mesma é refletir sobre o lugar de onde fala a mulher na sociedade patriarcal e como esta mulher reflete sobre os valores da tradição do norte e do sul de seu país.
OS SINAIS DA MOÇAMBICANIDADE NOS VERSOS DE NOÊMIA DE SOUSA
Noêmia de Sousa é lida em seu país e fora dele por conta de sua postura séria e militante frente aos seus ideais liberais que dizem respeito aos movimentos políticos de seu país em prol da independência, tanto do corpo geográfico quanto do físico e espiritual desta nação que começa a germinar. Levantar a bandeira da nacionalidade é um país bombardeado e massacrado pela ganância portuguesa não é fácil, pois é preciso entender não só a língua que o povo fala, mas também o ritmo que move o sentimento de esperança dos moçambicanos. Defendendo a idéia da interioridade da poesia de Noêmia, Francisco Noa (1988, p.153) confirma os recursos estilísticos presentes na coletânea de versos da escritora: a prevalência da adjetivação, da anáfora, da aliteração, da parataxe, da exclamação, da enumeração, da hipérbole, entre outros recursos. No que se refere à temática, há uma recorrência à revolta, à valorização racial e cultural, à infância, à esperança, à angústia e à injustiça. Também não se pode esquecer o forte lado religioso dos moçambicanos e sua reverência aos ensinamentos da tradição dos ancestrais, pois nos cenários primitivos, o homem sempre foi o ator que atuou no palco da natureza para viver dramas contracenados com animais, plantas, vento, água, fogo e todos os elementos que formam a riqueza do Universo. Como afirma Beniste (2006, p.15), ―o mundo dos mitos é pleno destas forças e ações, mesmo sendo elas conflitantes. Consideramos os conflitos como o tempero da movência das ações que levam o homem a se humanizar através dos tempos. Os artistas que transformam estas ações em arte literária, de certa forma, assinam um acordo com Aristóteles no que diz respeito ao quesito verossimilhança. A condição da mulher em Moçambique também é algo que merece a nossa atenção. Em entrevista à Manuela de Sousa (2006) 3, Paulina Chiziane, escritora contemporânea em Moçambique, é arguida sobre a questão da repressão das mulheres e um fato interessante é observado na resposta da escritora.
“...não podemos olhar o país como um todo nesta matéria. Temos as regiões do sul e do centro, que são regiões patriarcais por excelência. O norte já tem características bem diferentes. É uma região matriarcal, onde as mulheres têm outras liberdades. Acho que Gaza, província de onde sou oriunda, e região mais machista de Moçambique. Uma mulher além de cozinhar e lavar, para servir uma refeição ao marido tem que fazer de joelhos. Quando o marido a chama, ela não pode responder de pé. Tem que largar tudo que está a fazer, chegar diante do marido e dizer ―estou aqui. H á pouco tempo um jornalista denunciou um professor de Gaza. Nas aulas, quando fazia perguntas, os rapazes respondiam de pé, mas obrigava as meninas a responderem de joelhos. Quando as alunos iam ao quadro, tinham que caminhar de joelhos e só quando lá chegavam é que se punham de pé. O professor foi criticado e prometeu mudar, mas para a comunidade, ele estava a agir corretamente”.
O mapeamento que Paulina Chiziane faz de Moçambique de acordo com os sistemas sociais vigentes no norte, centro e sul do país, faz-nos entender que como Noêmia de Sousa foi privilegiada pelo fato de nascer na capital de Moçambique, pois ao mesmo tempo que ela mostra os tabus de uma tradição na qual as mulheres são menos privilegiadas, também critica a público feminino que ainda alimenta o sistema patriarcal, levando-as a entender que mesmo a sociedade punindo-as por conta de suas lutas por mudança, elas são seres humanos que trazem seqüelas de uma longa história de sofrimento, e nem por isso, estas mulheres deixam de cumprir certos rituais de uma tradição que se ensinava em suas tribos, principalmente no que diz respeito ao aspecto religioso.
Cerca de 50% da população 4 seguem crenças tradicionais, 31% são católicos e 13% são muçulmanos. As populações tribais mantêm sua tradição animista, mas há também inúmeros adeptos do islamismo, talvez a primeira religião exógena a penetrar o território. Entre os cristãos, a maioria é formada por católicos, seguidos por anglicanos e metodistas. (RAMALHO: 2006, p. 3)
A questão da crença é algo bem explorada na literatura africana de expressão portuguesa. Os dados fornecidos por Christina Ramalho no fragmento acima, deixa claro que metade da população moçambicana segue as crenças tradicionais que trazem deuses africanos como heróis de um plano divino que ajudam os mortais a se livrar dos conflitos vividos em sua existência terrena.
“Mulher que ri à vida e à morte”:
“Para lá daquela curva os espíritos ancestrais me esperam. Breve, muito breve tomarei o meu lugar entre os antepassados. Á terra deixarei os despojos do meu corpo inútil as unhas córneas de todos os labores este invólucro sulcado pela aranha dos dias Enquanto não falo com a voz do nyanga cada aurora é uma vitória saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo Oyo , oyo, vida! Para lá daquela curva Os espíritos ancestrais me espera”. (SOUSA: 1988, p.149) (Grifos nossos)
Não se pode deixar de mencionar a importância que Noêmia de Sousa dá para a cultura moçambicana, por vários aspectos. Sempre rodeada de intelectuais do sexo oposto como Ruy Guerra, Ricardo Rangel, João Mendes, Craveirinha, entre outros, Noêrmia sempre soube o lugar de onde e para quem falava: para aqueles que queriam começar a pensar a idéia de nação em Moçambique, na tentativa de negar os valores impostos pelos portugueses por viés anti-colonialista.
Noêmia de Sousa é caso único de explosão identitária, a sua voz surpreende justamente por esta razão. A sua poesia é logo invadida por vozes, ela é a voz dos que não a têm, ela incarna as personagens submersas no quotidiano que lhes recusa a existência, para não falar de identidade. (SERRA: 1998, p. 90)
O livro Sangue Negro traz uma coletânea de poemas que enfatizam a idéia de que os negros africanos estão conscientes de seus valores e precisam enfatiza-los através de vários meios. A literatura, nesse sentido, se torna a melhor estratégia. O poema Mulher que ria à vida e à morte traz esta preocupação de Noêmia em explorar através da literatura algo que seja tipicamente comum ao universo moçambicano. O título do poema é bem sugestivo: a mulher ri tanto da vida como da morte, não é mais aquela mulher que tem que se mascarar ou se envergonhar por não ser branca, mas que sabe se impor, não teme nem a vida, nem a morte. A primeira estrofe traz a imagem da curva, que remete a idéia de retorno, um retorno a si mesmo, já que os ancestrais esperam, como também fortalece a idéia de que os ancestrais são invisíveis. A primeira pessoa está marcada em todas as estrofes: me, tomarei meu lugar, deixarei o despojo de meu corpo inútil, não falo com a voz do nyanga, saúdo ; e dá um caráter intimista ao poema. A inutilidade do corpo é algo que merece nossa atenção. A idéia de que a terra tudo absorve, quem do barro é feito para o barro volta, reforça tanto ideologias bíblicas, como mitologias africanas. A presença dos ancestrais também marca o paganismo de algumas comunidades de linhagem bantu. Essa linhagem também é evidenciada pelo nyanga, uma espécie de sacerdote ou curandeiro que possui o dom de medicar com ervas e se comunicar com os ancestrais e outras divindades. O fato de o eu-poético não ouvir a voz do nyanga quer dizer que o mesmo sempre estará vivo na poesia, pois só os mortos se comunicam com tal sacerdote. Na quinta estrofe, aparece o termo Oyo, que é o reino do deus africano da criação: Oranyan. A ideia da curva é reforçada como ênfase na ideia de que é preciso muito mais do que um retorno a si mesmo.
“Se me quiseres conhecer”
Para Antero
“Se me quiseres conhecer estuda com os olhos bem de ver esse pedaço de pau preto que um desconhecido irmão maconde de mãos inspiradas talhou e trabalhou em terras distantes lá do Norte: Ah, essa sou eu: Órbitas vazias no desespero de possuir vida, Boca rasgada em feridas de angústia, Mãos enormes, espalmadas, Erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça, Corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis Pelos chicotes da escravatura... Torturada e magnífica Altiva e mística, África da cabeça aos pés, _ ah, essa sou eu:
Se quiseres compreender-me Vem debruçar-te sobre minha alma de África, Nos gemidos dos negros no cais Nos batuques frenéticos dos muchopes Na rebeldia dos machanganas Na estranha melancolia se evolando Duma canção nativa, noite dentro... E nada mais me perguntes, Se é que me queres conhecer... Que não sou mais um búzio de carne, Onde a revolta de África congelou Seu grito inchado de esperança”. (SOUSA: 1998, p.49-50)
Um dado que não mostramos neste estudo, quando fazemos as citações dos poemas da Noêmia é a data em que eles foram escritos. No caso do poema acima, é relevante dizer que foi escrito no dia 25/12/1949: data que celebra o nascimento de Jesus Cristo, personagem bíblico que personifica a ideia de humanidade. Voltando ao poema, percebemos logo a partir do título que o eu-poético utiliza o verbo na segunda pessoa para dirigir explicitamente ao seu leitor. Em se tratando de uma escritora militante como Noêmia, sabemos que o alvo são os colonizadores. Na primeira estrofe, o eu-poético usa a metáfora do pau preto, que pode ser uma referência ao ébano, madeira africana, para subjetivar a ideia da criação de um povo. O maconde aparece para mimetizar a perfeição da arte, pois segundo alguns dicionaristas a arte destes artesãos é reconhecida internacionalmente. Na segunda estrofe, o eu-poética aparece em primeira pessoa e se relaciona com vários adjetivos, o que marca um bom exemplo da adjetivação (sou - órbitas vazias..., sou - boca rasgada..., sou - mãos enormes..., sou - corpo tatuado..., sou- África da cabeça aos pés). Também nesta estrofe, percebemos as sequelas deixadas pela impiedosa escravatura (feridas visíveis e invisíveis da escravatura ), o que comprova que o eu-poético se dirige aos colonizadores. A quarta estrofe tem uma implicatura de desabafo, de insatisfação (E nada mais me perguntes, / se é que queres me conhecer...) em relação ao descaso dos invasores e destruidores de almas, sonhos, objetivos e realizações do povo moçambicano.
Poema
“Bates-me e ameaças-me, Agora que levantei minha cabeça esclarecida E gritei: “Basta!”
Armas-me grades e queres crucificar-me Agora que rasguei a venda cor-de-rosa E gritei: “Basta!”
Condenas-me à escuridão eterna Agora que minha alma de África se iluminou E descobriu o ludíbrio.. E gritei, mil vezes gritei: ―Basta!
Ò carrasco de olhos tortos, De dentes afiados de antropófago E brutas mãos de orango: Vem com o teu cassetete e tuas ameaças, Fecha-me em tuas grades e crucifixa-me, Traz teus instrumentos de tortura E amputa-me os membros, um a um... Esvazia-me os olhos e condena-me à escuridão eterna... - que eu, mais do que nunca, Dos limos da alma, Me erguerei lúcida, bramindo contra tudo: Basta! Basta! Basta!”
Sávio Roberto Fonseca de Freitas