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Caros amigos o blog Historiando: debates e ideias visa promover debates em torno de vários domínios de História do mundo em geral e de África e Moçambique em particular. Consta no blog variados documentos históricos como filmes, documentários, extractos de entrevistas e variedades de documentos escritos que permitirá reflectir sobre várias temáticas tendo em conta a temporalidade histórica dos diferentes espaços. O desafio que proponho é despolitizar e descolonizar certas práticas historiográficas de carácter eurocêntrico, moderno e ocidental. Os diferentes conteúdos aqui expostos não constituem dados acabados ou absolutos, eles estão sujeitos a reinterpretação, por isso que os vossos comentários, críticas e sugestões serão considerados com muito carinho. Pode ouvir o blog via ReadSpeaker que consta no início de cada conteúdo postado.

17 setembro 2012


MEMÓRIAS  EM VOO RASANTE
CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA POLÍTICA RECENTE DA ÁFRICA AUSTRAL





Por Jacinto Veloso

Um livro com revelações inéditas para quem quer conhecer os últimos quarenta anos da História da África Austral, escrito por um dos seus principais protagonistas e tendo como pano de fundo o conflito Leste-Oeste.  
O autor participou na luta de libertação de Moçambique e desempenhou um papel importante em todo o processo de negociações que conduziu ao Acordo de Não Agressão e Boa Vizinhança com a África do Sul, mais conhecido por Acordo de Nkomati.  
Também participou na série de negociações que contribuíram para a independência da Namíbia, a retirada das tropas sul-africanas e cubanas de Angola e para o desmantelamento do apartheid na África do Sul. 
Depois de tantos anos de guerra, todo esse esforço possibilitou o alcançar da paz em Moçambique.  
Este livro manifesta a opinião do autor sobre diversos acontecimentos e factos históricos, contendo algumas revelações de interesse. 
No dia 12 de Março de 1963, o autor  abandonou  Moçambique pilotando um avião militar, rumo a Dar es-Salaam, manifestando dessa forma a sua oposição à guerra colonial que se preparava e a sua adesão à luta de libertação de Moçambique.  
Estas memórias lêem-se com facilidade e despertam, capítulo a capítulo, uma incontida curiosidade que se mantém até à última linha.  
O conceito de interesse nacional é uma constante ao longo do livro, ilustrado e documentado, que inclui o texto integral do Acordo de Cessar-Fogo entre a FRELIMO e o Estado Português, assinado em Lusaka, a 7 de Setembro de 1974.

Excertos do livro VOO RASANTE de Jacinto Veloso sobre o acidente que vitimou Samora Machel:


"Nos finais de 1986, aconteceu a tragédia que ninguém esperava. No dia 19 de Outubro, um domingo, o avião que transportava o Presidente Samora e a sua comitiva, que tinham participado numa reunião com outros Chefes de Estado, em Mbala, no norte da Zâmbia, despenhou-se em Mbuzini, em território sul-africano, nas proximidades da fronteira com Moçambique, uma zona montanhosa.
Quem matou Samora Machel? Esta era a pergunta que nos atormentava. Não que hoje eu tenha uma resposta. Obviamente que não. Mas como qualquer pessoa, tenho formulado as minhas conjecturas na tentativa de contribuir para explicar o sucedido.
O meu raciocínio levou-me a traçar aquilo a que eu chamo de "pistas para a investigação", que se traduzem no seguinte: todas as evidências apontam para um erro de pilotagem, um grosseiro erro de pilotagem. Tão grosseiro que levantou logo dúvidas quanto à probabilidade de ter sido cometido, Um comandante de aeronave experiente não poderia jamais ter iniciado uma descida sem ter a certeza que estava na boa direcção para Maputo. Então, por que apontou ele o avião em direcção a um VOR que ele pensava ser de Maputo e começou a descer tomando o rumo da montanha de Mbuzini? Como foi ele induzido a cometer esse erro fatal?
Parece não haver dúvidas (eu não as tenho) que um VOR com a mesma frequência de Maputo foi colocado na rota de Mbuzini por um perito em guerra electrónica especialmente contratado para o efeito. Contudo, a existência de uma rádio-ajuda (VOR) na direcção de Mbuzini não justifica por si só os erros de pilotagem cometidos. Mais uma vez afirmo que um comandante experiente não poderia ter decidido descer sem estar seguro que se encontrava na direcção correcta do aeroporto de Maputo. Algo dentro da cabine de pilotagem o induziu, assim como a toda a tripulação, a acreditar que se encontrava na direcção certa e que aquela era a decisão mais correcta
a tomar para aterrar em Maputo.
E aqui colocam-se algumas questões: por que é que o radar do avião não estava a funcionar? Estava desligado? Avariado? Estava muito provavelmente fora de serviço, pois caso contrário a tripulação tê-lo-ia ligado. Se o radar estivesse ligado, como era de normal procedimento, o "erro de pilotagem" jamais teria tido lugar porque esse instrumento de navegação teria indicado visualmente o exacto recorte da baía de Maputo e da Ilha da Inhaca, não deixando qualquer dúvida quanto à localização do aeroporto internacional de Maputo. Consequentemente, o piloto não teria sido induzido
a acreditar no falso sinal do rádio-farol que lhe assinalou erradamente a direcção de Mbuzini, em vez de Maputo.
Existe uma grande probabilidade que, no assassinato de Samora Machel, os serviços secretos sul-africanos não tenham actuado sozinhos. Mas estariam com quem? Muito provavelmente contariam com algum elemento da ala dura do Leste, especialmente recrutado pelo serviço secreto sul-africano para a "operação Mbuzini".
Por que motivo coloco esta hipótese? Porque Samora estava condenado. Era um homem a abater porque tinha "traído o campo soviético" na confrontação bipolar, decidindo optar pela liberalização da economia e da sociedade, aderindo ao sistema capitalista internacional, ao Banco Mundial e ao FMI. [...]
Na prática, Moçambique deixava de privilegiar exclusivamente o "bloco de Leste" para passar a cooperar também com o "bloco Ocidental". A Frelimo, agora mais independente, iniciava a transição do "socialismo científico" para o "socialismo democrático", ajustado às condições concretas do país e à realidade que se vivia à escala africana e mundial.
Mas Samora era também um alvo a abater pela military intelligence sul-africana porque cedo se tornou evidente que o Acordo de Nkomati foi na realidade o golpe fatal que marcou o começo da destruição o apartheid, regime que a partir desse acordo iniciou a sua derrocada, tanto pela intensificação da contestação interna, como pela crescente pressão internacional do Ocidente para que houvesse uma rápida reforma desse sistema, dentro do princípio "um homem, um voto".  O pretexto da luta contra a penetração da URSS na região já não era muito consistente.
Também estava claro que o apoio do governo de Samora Machel ao ANC não tinha terminado. Os serviços secretos militares sul-africanos concluíram então que o Acordo de Nkomati estava a ser um mau "negócio" para eles. Na sua opinião o culpado de tudo era Samora Machel.
Esta concentração de interesses dos sectores mais ultra radicais, tanto do apartheid como do Leste, terá sido, em minha opinião, uma possível causa que levou à programação de uma minuciosa operação destinada a eliminar Samora Machel. E nada mais insuspeito do que provocar um "erro de navegação", utilizando a própria tripulação russa do TU 134ª-3.
Dois factos aconteceram que aumentam as minhas suspeitas quanto à implicação de um agente recrutado para agir dentro da cabine do avião: o primeiro diz respeito a um indivíduo, que dizem ser do Leste (não identificado), que visitou o avião presidencial, na placa de Mbala, tendo permanecido bastante tempo no seu interior. Sabe-se que alguns membros da tripulação, presentes no aparelho, conversaram amigavelmente com o visitante. Este indivíduo poderá perfeitamente ter inutilizado o radar de bordo e até instalado algum dispositivo electrónico que, conjugado com a falsa rádio-ajuda colocada na direcção de Mbuzini, terá dado ao piloto, no momento crucial, a "certeza
absoluta" de que estava a iniciar a descida em direcção a Maputo.
O outro facto foi o caso de um tripulante, o engenheiro de bordo, Vladimir Novosselov, que um pouco antes da queda da aeronave se deslocou para a cauda do avião e teve a sorte de sair praticamente ileso do trágico acidente. Esse tripulante foi imediatamente internado num hospital de Nelspruit. Quando elementos da comissão moçambicana de inquérito quiseram interrogá-lo, o pessoal da segurança da embaixada da URSS impediu-os. Foram alegadas razões médicas óbvias e até houve a promessa de que, quando o tripulante estivesse recuperado e fora do estado de choque, a parte moçambicana poderia entrevistá-lo.
Dois ou três dias depois, um dos membros da comissão de inquérito foi ao hospital para saber como estava o tripulante. Com enorme espanto, constatou que o pessoal da embaixada já o havia evacuado para Moscovo. A Comissão de Inquérito de Moçambique protestou e pediu para ir a Moscovo falar com o tripulante, mas a embaixada informou que isso não era aconselhável e que as autoridades soviéticas iriam fazer o inquérito e transmitir as respostas às questões colocadas pela parte moçambicana.
Até hoje, pelo que sei, a parte ex-soviética não transmitiu qualquer informação sobre o assunto. Haveria algo a esconder ou tratou-se de simples negligência? [...].
Voltando ao fatal acidente, não se compreende, por exemplo, porque é que o comandante do avião, ao ouvir o sinal de alarme da proximidade ao solo, não meteu a potência máxima nos motores e iniciou uma subida imediata, como exige o manual de operações do construtor da aeronave. A razão é que ele estava mesmo convencido que descia para Maputo. É a única explicação.
Por estas dúvidas todas que persistem, o nosso governo, daquilo que me consta, ainda não declarou encerrado o inquérito, ao contrário do que sucedeu na época com os governos da África do Sul e da URSS, que logo consideraram o processo terminado. No início de 2006, foi finalmente revelado que o actual governo da África do Sul ira reabrir o inquérito.
Com ou sem agente recrutado, é minha convicção que algo se passou na cabine de pilotagem que induziu o comandante do avião a cometer aquele monumental e fatídico 'erro'.
Terá sido mais um caso de crime perfeito?"

MONUMENTO AOS HERÓIS DA REVOLUÇÃO MOÇAMBICANA, CONCEBIDO POR JOSÉ FORJAZ



MONUMENTO AOS HERÓIS DA REVOLUÇÃO
 MOÇAMBICANA, CONCEBIDO POR JOSÉ FORJAZ 

Foto: Cripta da Praça dos Heróis moçambicanos


Moçambique é um país com mais Heróis do que os próprios feitos heróicos. Desculpem-me e com todo respeito, mas como Historiador de formação e praticante da ciência histórica (pode até ser falacioso o recurso a autoridade aqui; mas já pedi desculpas), não acho normal que um país com pouco MENOS de 40 anos de independência e aproximadamente 150 anos de dominação colonial efectiva, tenha já no seu panteão 200+ heróis nacionais!
 Se a arbitrariedade com que se atribui esse título honorífico não é preocupante, então urge um debate esclarecedor sobre as intenções últimas de quem decide. É para  sepultarmos toda “geração 25 de Setembro” na Cripta da Praça dos Heróis? Se for o caso, então é melhor pensar-se num Cemitério de Heróis Nacionais de Moçambique!
O ponto para mim é o seguinte: se partirmos do princípio de que herói é uma figura arquetípica (modelo) que reúne em si os atributos necessários para superar de forma excepcional um determinado problema de dimensão épica (p.ex. independência ou luta anti-colonial, etc), podemos concluir que a esmagadora maioria dos “NOSSOS” heróis não o são de facto; ou no mínimo são CO-HERÓIS, uma figura que proponho como alternativa.
Consequentemente, teriamos Samora Machel e Eduardo Mondlane como HERÓIS e o resto, incluindo Gruveta e Guebuza como Co-Heróis. No fundo, a figura de co-herói seria atribuível à pessoas que em vida sonharam em ser declarados Heróis Nacionais ou teriam recebido promessas nesse sentido.

Muitos não vêm o perigo de termos heróis à rodos, em tão curto espaço de tempo. A primeira consequência nefasta é mesmo a vulgaridade com que iriamos encarar a figura de herói nacional.
A segunda é porque na verdade, não há muita coisa a reclamar como tendo sido feito heróico individual de cada um dos muitos que se acham ou que eles acham que o povo pensa sobre eles.
Em aproximadamente 40 anos da nossa existência como nação, apenas podemos nos orgulhar da nossa independência como grande feito heróico. E esse feito deve-se a Eduardo Mondlane – primeiro presidente da Frente, FRELIMO e Samora Machel, o proclamador da Independência e Primeiro Presidente do país Independente. Para além desses feitos há mais outra coisa, meus senhores?
A alternativa a esse cortejo seria exigirmos ao Presidente da República que active, no uso das suas competências, a alínea J do artigo 159 da Constituição da República, atribuindo, nos termos da lei, títulos honoríficos, condecorações e distinções (menos a de herói nacional) a todos aqueles que em vida ou já perecidos merecem o devido reconhecimento dos moçambicanos pelos seus feitos e por terem contribuido para o progresso dos Moçambicanos. Desculpe-me pela "violência psicológica", mas Eu não vejo mais nenhum herói. Nem vivo, nem morto. Se calhar, ainda está por nascer mas esse pertence a futuras gerações.
O Presidente da República de Moçambique precisa urgentemente resolver esse assunto com algumas figuras que ainda nos restam, esclarecendo-os que se quiserem, podem se declarar heróis provinciais, tribais ou distritais; que já não há espaço para Herói Nacional pelo facto de não ser possível identificar neles, feitos heróicos individuais bastantes.


Publicada por Egídio Guilherme Vaz Raposo,   Terça-feira, 4 de Outubro de  2011


A CAPA DE UM CARTÃO DE MEMBRO DA FRELIMO QUE FOI USADO EM TANGANHICA


A CAPA  DE UM CARTÃO DE MEMBRO DA FRELIMO QUE FOI USADO EM  TANGANHICA

NOTE-SE QUE A FRELIMO É IDENTIFICADO EM PORTUGUÊS E INGLÊS.

PRINCÍPAIS LIVROS DA HISTÓRIA DE MOÇAMBIQUE


PRINCÍPAIS LIVROS DA HISTÓRIA DE MOÇAMBIQUE






Acima : Os volumes da história geral de Moçambique. Os primeiros três volumes foram produzidos pelo Departamento de História da UEM.  Os outros dois volumes da tradução portuguesa de história geral são de René Pélissier  (Lisboa: Estampa, 1987);  e de seguida é a  história geral  de  Malyn Newitt  publicado em Inglês (Londres: Hurst, 1995), e por fim temos a edição do Zimbábue da história geral  de Moçambique no século XX por Allen e Isaacman Barbara (Harare: Zimbabwe Publishing House, 1985).

GRUPOS ÉTNICOS DE MOÇAMBIQUE


GRUPOS ÉTNICOS DE MOÇAMBIQUE

Publicado no Atlas de Moçambique, editado pela Empresa Moderna de Lourenço Marques em 1960.


UM NOVO LIVRO DE JOSÉ CAPELA


UM NOVO LIVRO DE JOSÉ CAPELA

Por José Pimentel Teixeira
Acabo de receber um novo livro do historiador José Capela.
Trata-se da publicação, por ele organizada e comentada, de “Caldas Xavier. Relatório dos acontecimentos havidos no prazo Maganja aquém Chire, Moçambique, 1884”. Desde há décadas que José Capela vem publicando sobre a história e a sociedade moçambicana. Um trabalho que continua em azáfama, com múltiplas publicações (e, felizmente, também em registo electrónico), agora sediado no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto após quase quarenta anos de vida em Moçambique, como jornalista no período colonial e, depois, como conselheiro cultural na embaixada portuguesa em Maputo - José Capela é o pseudónimo usado por José Soares Martins na sua vertente de historiador.
Símbolos aqui das suas publicações, sempre lembrados, são o fundacional “Moçambique pelo seu povo”, editado em 1971 e que coligia cartas de leitores ao jornal “Voz Africana”, inaugurando a expressão publicada da palavra popular, e “O Vinho para o Preto. Notas e Textos sobre a exportação do Vinho para África”, texto tantas vezes evocado, mesmo por aqueles que nunca o leram, dada a temática, por um lado singular e por um outro tão identitária (o peso do consumo de “vinho português” nas modalidades de ascensão social e de urbanização), e o seu tão sonante título, que o torna curioso aos leigos, ainda que apenas ecoando uma linguagem administrativa de época.
Capela tem-nos dado um importante conjunto de textos sobre a história do país, para os quais julgo avisado convocar os leitores. Neles surgem três grandes eixos, ainda que neles não se esgotando o seu contributo, e os quais se cruzam nas análises:
a) uma abordagem às formas como os processos de formação do capitalismo português (então proto-metropolitano) moldaram as políticas assumidas na colonização de Moçambique e, como tal, as interacções com as populações locais;
b) um cuidado trabalho, assente sobre um exaustiva pesquisa arquivística, sobre o tráfico internacional transoceânico de escravatura no actual território moçambicano. Durante o período pré-colonial e mesmo durante as primeiras décadas do efectivo colonialismo, até à sua erradicação no início de XX. Uma vertente na qual Capela agrediu ideias superficiais: as que anunciam o precoce regime colonial português (isso dos “cinco séculos de colonialismo”, partilhado pelo mitos coloniais portugueses e pelos discursos nacionalistas moçambicanos); a da precoce proibição efectiva do tráfico nos territórios africanos reclamados em XIX por Portugal, bem como a ideia de que o referido tráfico esclavagista ter sido um fenómeno totalmente exógeno;
c) e, finalmente, um olhar atento sobre a especificidade e complexidade histórica das formações sociais na bacia do Zambeze, desde o estabelecimento do regime dos “Prazos”.
É esta última realidade que o precioso “Relatório de Caldas Xavier”, recentemente publicado, vem ilustrar. O seu autor foi um oficial que trabalhou na instalação dos caminhos-de-ferro em Lourenço Marques e nas obras públicas de Inhambane, sob o célebre Joaquim José Machado. E veio a morrer na campanha de ocupação do sul do país. O texto que agora se publica evoca o período em que dirigiu a Companhia de Cultura e Comércio de Ópio, com base em Mopeia, e na qual enfrentou a revolta de Massingire, que devastou a referida companhia em 1884. Capela traz-nos o texto, consciente do tom interessado, nada neutral, do seu autor. Mas recupera-o como marco fundamental para se entender a efectiva natureza do conflito que então brotou, que denotava as relações dos grupos sociais presentes.
No fundo o que este texto nos mostra é a reacção desses grupos sociais, comungados sob o velho regime dos Prazos, esse que deixou memória através dos seus agentes “muzungos”, “donas”, “achicunda”, “colonos”, e tantas outras categorias. E como todo esse espectro social conflituou diante da chegada da Companhia do Ópio, a primeira empresa capitalista, de plantação, a estabelecer-se na Zambézia, afrontando o sistema socioeconómico vigente e que ali decaía face ao novo período histórico que assim se inaugurava.
Como nos diz Capela a teia de conflitos e alianças que este “Relatório” desvenda, mostra como o que então se confrontou não foram entidades políticas, uma “resistência” ao invasor colonial ou uma mera confrontação racial. Nem tampouco se confrontavam grupos regionais ou mesmo “étnicos”, sob diversas alianças. O que a revolta de Massingire permite ver é a pobreza desses essencialismos, dessa forma de entender as entidades sociais como eternas e naturais. Ali, em 1884, em torno de Mopeia, o ataque e a defesa da “Companhia do Ópio” foram regidos pelos interesses económicos em choque. As perspectivas de acesso à produção e distribuição da riqueza e do poder que a ela conduz.
É sabido que a história não se repete. Mas também se sabe que convém entendê-la, para entender as suas dinâmicas.
Por isso mesmo parece-me óbvia a visceral actualidade deste texto. E a urgência em lê-lo. Que os livreiros nacionais cumpram o seu papel: encomendem-no.
(José Pimentel Teixeira/ www.ma-schamba.co/ Canal de Moçambique)
12.09.2012

Nota do Blog:

LEIA ARTIGOS RELACIONADOS COM JOSÉ CAPELA
   

  •     As donas dos prazos no vale da Zambezia

  •        A administração  na África Oriental Portuguesa
       
  •       O tráfico de escravos em Moçambique



16 setembro 2012

ÁFRICA TEM DE SER MAIS DO QUE EXOTISMO E FOLCLORE CULTURAL


ÁFRICA TEM DE SER MAIS DO QUE EXOTISMO E FOLCLORE CULTURAL

… Ou Fonte de Matérias-Primas Baratas e Compadrios diplomático-financeiros. Ou os africanos agarram o seu destino ou continuarão na cauda de tudo…

Beira (Canalmoz) - Thabo Mbekhi não cunhou o termo Renascença Africana mas o trouxe à ribalta. Infelizmente sem muitas consequências. Ele próprio acabou sendo vítima das maquinações políticas enfermando a vida política de seu país. Não resistiu ao assalto e armadilhas que uma ala de seu partido, ANC, montou para se ver livre dele.
Uma mescla de étnico nacionalismo, conspurcado por várias novelas envolvendo órgãos da polícia de investigação criminal da África do Sul, inquinaram as possibilidades de reeleição de Mbheki e trouxeram um aspirante ao empoderamento económico negro para o poder, Jacob Zuma. Pouco dignificante para alguém que ocupa o mais alto cargo público de um país mas sua escolha pelo ANC passou e posteriormente a vitória eleitoral deixou de ser uma dúvida.
Estamos falando do país economicamente mais poderosos de África. Se onde existe uma das constituições mais democráticas do mundo há problemas de génese do poder político ou de que chega ao poder dá para imaginar qual é a situação do resto do continente.
Na essência em África, sob o olhar complacente, aparentemente desinteressado dos políticos de topo dos diferentes países do continente foi-se instalando e enraizando uma forma de estar e de governar neocolonialista.
Se as bandeiras e hinos nacionais passaram a ser uma realidade indiscutível já na arena económica não se põe dizer o mesmo. A condição de vida de milhões de africanos não se alterou embora as lideranças governamentais insistam em vender uma imagem de normalidade e de desenvolvimento.
De todos os quadrantes africanos chovem reclamações de os governos pouco ou nada estão fazendo por seus povos.
Ainda na África do Sul por causa dos combates que se avizinham pela candidatura às presidenciais alas do ANC se batem por protagonismo. Jacob Zuma veio a público afirmar que na economia tudo continua praticamente na mesma. A economia está virtualmente nas mãos dos brancos como era no tempo em que imperava a segregação racial do apartheid.
África, com participação efectiva de seus governantes, sofreu um golpe neocolonialista de grande envergadura. No essencial e fundamental as obras com durabilidade e onerosas continuaram a ser edificadas pelos mesmo que dirigiam os dossiers na era colonial. Os consórcios corporativos provenientes dos países antes potências coloniais imperam hoje como no passado.
Se hoje se observam novos intervenientes na esfera económica dos países é por aproveitamento das brechas que se abriram no contexto da cooperação bilateral e multilateral com os países ocidentais. Se há preocupações com a penetração chinesa em África é porque do ocidente se tem a clara noção de que espaços estão sendo perdidos a um novo actor que não tem reticências em entregar créditos financeiros avultados sem considerações de natureza política. Não há ligação entre democracia política e os créditos que Pequim aprova para os países africanos. Mas isso também não altera a natureza neocolonialista das relações entre África com China, Índia, ou Japão. A multiplicação de fóruns económicos entre o continente como um todo e os diversos países que emergem com intenções marcadamente dominadoras revela que África está sendo utilizada como fonte de matérias-primas baratas.
Os desafios e oportunidades são enormes para os cidadãos, para os governantes e para as organizações internacionais que se afirmam continuamente em defesa do progresso africano.
África em termos concretos tem sido espoliada numa concertação de agendas endógenas e exógenas. O que se passa no continente não pode ser atribuído unicamente a acção nefasta de corporações multinacionais interessadas no lucro como alguns governantes querem fazer crer.
Os que dizem que apoiam e aprovam o nosso desenvolvimento estão ao mesmo tempo envolvidos em negociatas que lesam verdadeiramente os interesses económicos e políticos dos africanos.
Há uma atitude e comportamento ambivalentes quando se toca nos assuntos africanos nalgumas capitais internacionais. Há como que um acordo de que é importante apoiar os esforços tendentes a melhorar a saúde pública e algumas questões sociais mas também há uma vertente clara de cobertura e apoio tácito de todas as acções postas em prática para atrasar o progresso democrático no continente.
Os diversos intervenientes na política económica africana, sabem e tem consciência de que uma democracia plena e vibrante em África, vai cortar o nível dos negócios com rendimentos chorudos que fazem actualmente.
A questão em África não é simples e quem supunha que a independência política em si resolveria todos os problemas enganou-se redondamente.
Tanto alarido informativo, concertação inter-governamental, cimeiras, bombardeamento televisivo e na imprensa internacional, em volta da crise financeira internacional, da dívida soberana dos países, sugerem que se trate de algo extraordinário. Sem dúvidas, que uma crise com as dimensões da actual, é assunto sério, que nenhum governo digno desse nome pode ignorar.
Mas será que tanto barulho se justifica?
É preciso que estamos perante uma avalanche de hipocrisia correspondente às concepções políticas e financeiras em voga.
Então o que se deve denominar da crise em vivem os milhões de africanos, asiáticos, e latino-americanos? Quantos milhões de pessoas vivem realmente com menos de dois dólares por dia no mundo? Os africanos já deveriam ter entendido que se não forem mais agressivos nas suas reclamações ninguém dará a importância devida ao assunto. Somos vítimas de arranjos e acordos que foram sendo estabelecidos há já muito tempo. Os que nos concederam ou aceitaram que proclamássemos as nossas independências não perderam tempo em conceber uma maneira de estar que não provocasse danos à sua estrutura económica e financeira. As lutas anti-coloniais, que tanto sangue inocente derramaram, face a realidade de hoje, perdem parte de seu fundamento. Os africanos que dirigiram tais lutas, uma vez no poder, se esqueceram rapidamente de que eram colonizados e oprimidos, que seus direitos políticos e económicos eram simplesmente ignorados pelos que os governavam. Numa repetição e decalque completo do que faziam os colonizadores, os governantes africanos são na verdade a vergonha do continente.
Gerações inteiras estão nascendo, crescendo e morrendo sob o signo da crise e vivendo nas condições mais abjectas que se podem imaginar, só merecem títulos de capa esporádicos da comunicação social internacional mais poderosa. Onde está a comiseração dos altruístas e filantropos mundiais? No seu elitismo característico é mais importante abordar e pesquisar o que Rupert Murdoch e o seu império dos mídias fez na Inglaterra do que tratar ou cobrir eleições africanas que podem ser de consequências muito importantes para milhões de africanos. Há boas novidades da parte de gente sentida e responsável, solidária e humana reveladas através de acções concretas visando debelar crises e promover o desenvolvimento humano em África.
Há acções de amplo significado e impacto em África que governos não estão conseguindo liderar nem promover. Sem o interesse genuíno de muitos filantropos em assuntos de saúde pública em África, os níveis de contaminação e mortes pelo HIV/SIDA serão bem maiores. Antes de alguns governos possuírem uma estratégia e meios para agir na frente da prevenção e terapia desta pandemia, já havia algumas organizações não governamentais actuando no terreno e trazendo soluções para obviar e diminuir o sofrimento de milhões de pessoas. A isso só se pode manifestar o nosso respeito e agradecimento.
Os tempos não são de continuar-se a pedir esmolas e correr de capital em capital a solicitar ajuda para financiar orçamentos nacionais. Há recursos e meios a disposição dos governos suficientes para promover acções que desenvolvam os países e dignifiquem os cidadãos.
África não pode continuar a ser aquele destino turístico a que os visitantes acorrem por causa de seu exotismo e folclore. A sua natureza bela como de outros continentes, deve ser um factor de desenvolvimento e em que quem governa seja responsabilizado democraticamente pelos resultados de suas acções. É inconcebível que um continente com as potencialidades naturais que lhe são conhecidas esteja na cauda do desenvolvimento mundial. Onde ainda até existe escravatura.
Os problemas de África não são insolúveis ou algo que os africanos através de seus governos e organizações da sociedade civil não possam abordar com êxito.
A crise antes de ser a actual propagandeada crise financeira internacional afectando uma meia dúzia de países na Europa é a crise existencial de África. Porque rebentou uma bolha imobiliária e porque bancos que viviam sacando lucros de créditos concedidos a agentes imobiliários tornaram-se problemáticos vemos toda uma série de organizações financeiras internacionais preocupadas em relançar as economias, estimular e impulsionar medidas de austeridade. Não se pode culpar os europeus por estarem preocupados em resolver os problemas que sentem com a crise que se instalou em seus países.  A atitude deve ser decididamente não ficar a espera de que alguém venha em nosso socorro. As trapalhadas que os governos africanos fazem quando chega a vez de trabalhar e organizar suas sociedades em moldes que promovam desenvolvimento sustentável e duradoiro são os questionamentos que os cidadãos devem fazer todos os dias.
Não se pode ficar eternamente a espera de que haja outros que façam o nosso trabalho e resolvam os nossos problemas.
Chegou a altura de abandonarem-se fórmulas aparentemente bem elaboradas oferecidas ou impostas pelas consultorias pagas por quem nos concede créditos e abraçar o trabalho com uma atitude renovada. Há espaço para que os africanos mostrem a sua criatividade e visão.
Os governantes devem deixar de merecer créditos pelo que não fazem. Ocupar a posição de governante deverá passar a ser um exercício de responsabilidade e de seriedade associada a graus de exigência cada vez maiores.
Falemos da crise dos outros mas não nos enganemos pois os africanos já vivem em crise há décadas.
Decerto que os países europeus actualmente afectados por crises de suas dívidas soberanas saberiam utilizar de outras formas os recursos naturais que os africanos possuem. (CanalMoz-17/09/2012-Noé Nhantumbo)



HISTÓRIA E MEMÓRIA NA VOZ DO SOCIÓLOGO MOÇAMBICANO JOSÉ LUÍS CABAÇO


HISTÓRIA E MEMÓRIA NA VOZ DO SOCIÓLOGO MOÇAMBICANO JOSÉ LUÍS CABAÇO


As memórias e os relatos de José Luís de Oliveira Cabaço sobre tempos de lutas e construções em Moçambique são, sem dúvida, uma fonte de conhecimento para quem  busca entender o processo histórico moçambicano.  Ministro dos Transportes e Comunicações e  posteriormente Ministro da Informação no governo de Samora Machel, José Luís  Cabaço viveu ativamente os  períodos conturbados da  História de seu país e,  em 2007, defendeu, na  Universidade de São Paulo  (USP), a tese de doutorado  intitulada  Moçambique:  identidades, colonialismo e  libertação, em que discute  as ideologias e políticas  identitárias do período  colonial até a independência.  A tese foi publicada em livro mas pode ler acessando o link da tese de Doutorado em Antropologia clicando no link: http://www.casadasafricas.org.br/wp/wp-content/uploads/2011/09/Mocambique-identidades-colonialismo-e-libertacao.pdf



AS MULHERES DE GUNGUNHANA, POR MARIA DA CONCEIÇÃO VILHENA


AS MULHERES DE GUNGUNHANA, POR MARIA DA CONCEIÇÃO VILHENA


1. No último quartel do século XIX, nas terras do sul de Moçambique, entre os rios Incomáti e Zambeze, Gungunhana impunha-se como o maior potentado africano. Era o senhor do reino de Gaza, tinha mais de uma centena de vassalos e possuía uma enorme riqueza, constituída por ouro, marfim e rebanhos de gado. O seu prestígio político e social vinha-lhe ainda do facto de possuir entre 200 a 300 esposas: 40 viviam junto da corte e as restantes habitavam nas aldeias circunvizinhas. A aquisição de novas esposas fazia-se a um ritmo quase bimestral; e cada casamento era sempre causa de maior engrandecimento, por permitir novas alianças e atrair grande número de presentes. Era uma grande honra ter o régulo de Gaza como genro e protector. Seria demasiado longo falarmos da vida que levavam estas mulheres,em geral; por isso nos limitaremos às sete que acompanharam o marido no exílio.
2. No dia 28 de Dezembro de 1895, após algumas tentativas de negociações e a derrota de Coolela, seguida do incêndio do Manjacaze, a capital de Gaza, Gungunhana foi feito prisioneiro em Chaimite, por Mousinho de Albuquerque. O oficial português deu então ordem ao régulo para que escolhesse sete de entre as suas mulheres, que o acompanhariam no seu incerto destino. Foram [seis] delas: Namatuco, Patihina, Muzamussi,Machacha, Xesipe e Dabondi. Feitas as suas poucas bagagens, lá seguiram os prisioneiros a pé durante algumas horas, até chegarem a Zimacaze, na foz do Chengane. Aí embarcaram na canhoneira Capelo, que os estava esperando e os transporta até Chai-Chai. A propósito deste embarque, queremos lembrar que, na cultura angune, havia um tabu proibitivo de entrar na água e comer peixe. Os prisioneiros devem, pois, ter sido invadidos pelo horror de viajar de barco, o que irá repetir-se, por várias vezes, até ao fim da deportação. Com os onze prisioneiros do Manjacaze (Gungunhana, o filho Godide, o tio Molungo, o cozinheiro Gó e as sete mulheres), embarcam também o régulo da Zixaxa e três mulheres deste, cuja sorte iria ser igual à dos outros. Em Chai-Chai, na foz do Limpopo, passam então para o navio Neves Ferreira, que os transporta até Lourenço Marques, onde chegam no dia 4 de Janeiro [de 1896]. Aí desembarcam e são mantidos na cadeia homens e mulheres, até serem levados para bordo do África, após o seu reconhecimento oficial, feito em público. Neste navio África fariam uma viagem de 60 dias, até Lisboa. As condições a bordo deviam ser péssimas, pois Gungunhana e seus companheiros, num total de 15 pessoas, ocupavam apenas dois compartimentos pequenos, escuros e mal arejados. Por razões de segurança, aí ficavam fechados à chave, sempre que o barco fazia escala em qualquer porto. E foi o enjôo, a asfixia, a imobilidade, a juntar à angústia da dúvida sobre o futuro que os esperava. Os jornalistas falam mesmo da tentativa de suicídio por parte de uma das mulheres…
3. Na manhã do dia 13 de Março de 1896, desembarcam em Lisboa e são conduzidos em caleches descobertas, do Arsenal até ao forte de Monsanto. Lisboa em festa, a abarrotar de multidões ruidosas. O público, apinhado pelas ruas, empoleirado em postes, debruçado das janelas, aos magotes, como enxames, ri, grita, vaia eufórico. Dentro das carruagens, os prisioneiros olham temerosos e embaraçados; eles com ar estupefacto, perplexo; elas apontando, curiosas e divertidas. Nunca tinham visto casas tão altas, com varandas, ruas calcetadas, praças com fontes e estátuas. E tanta gente alegre, a observá-las, durante todo o percurso. As mulheres africanas parecem bem dispostas. Do Terreiro do Paço seguiu o cortejo pela Rua do Ouro, Avenida da Liberdade, São Sebastião da Pedreira, Sete Rios, Benfica, rumo a Monsanto. Por todo o lado, em todo o percurso, era aquela mole imensa de gente, às gargalhadas e a insultar. Porém o desconhecimento da língua portuguesa dava às prisioneiras a vantagem de não compreenderem o ódio e a ironia da arraia miúda e assim, na sua inocência, poderem continuar a sorrir. Era o dia 13, uma sexta-feira de céu cinzento. Se os africanos tivessem as mesmas superstições que os brancos, tanto bastaria para que os maus presságios agudizassem ainda mais a angústia que os atormentava. A tarde aproxima-se do seu fim, quando chegam ao Forte de Monsanto. São seis horas e, em Março, o sol está a esconder-se. As instalações onde são recebidas nada têm de semelhante àquelas casas que, na Baixa, as haviam deslumbrado. Passada a ponte levadiça, entram numa masmorra, onde a escuridão era quase total. As mulheres estão agora assustadas e o terror estampa-se-lhes no rosto. O quarto que lhes haviam destinado, encontrava-se seis metros abaixo da superfície. Espaço escuro, bafiento, mal cheiroso, húmido e frio. Suspiravam amedrontadas e foi necessário tranquilizá-las; mas continuaram a tremer de frio e talvez de medo. Assim as encontrou o médico encarregado de examinar o seu estado de saúde. São-lhes mostradas as camas e explicam-lhes como são utilizadas. Até então haviam dormido no chão, sobre esteiras. Convencidas finalmente de que não lhes iria acontecer mal, ao entrarem nas camas riram ruidosamente. Nesta fortaleza de Monsanto iriam ficar encerradas durante quatro meses, aproximadamente. Gente habituada a viver ao ar livre, em contacto com a natureza e em constante movimento, vê-se agora privada da largueza dos seus espaços e da quentura do seu clima; imóveis e geladas entre quatro paredes do calabouço, num entorpecimento do corpo e do espírito. Detestam a comida portuguesa e queixam-se constantemente de frio. Entretanto, aprendem a utilizar talheres e passam a usar vestuário europeu.
4. Como passavam o tempo essas mulheres prisioneiras?
Grande parte do seu dia era ocupado a pentearem-se, pois usavam um penteado artístico, alto, entre o cónico e o cilíndrico, que constituía um dos distintivos das mulheres grandes do Gungunhana. As mulheres pequenas, ou seja, as rainhas de segunda classe, não tinham o direito deusar esse tipo de penteado. Quanto à favorita, tinha outra ocupação, pois cabia-lhe o dever de manter sempre brilhante a coroa de cera que o marido usava e que era tecida no próprio cabelo. Além disso, dedicavam-se ao artesanato, fazendo pulseiras e colares de missangas, artisticamente trabalhados. Ao princípio, a monotonia dos dias foi quebrada pelas muitas visitas que recebiam. As esposas de ministros, ou de outras altas individualidades, conseguiam a autorização do Ministério da Guerra e iam até Monsanto, entravam nos calabouços, sorriam, levavam presentes. Por curiosidade ou para cumprir o dever de visitar os presos. Não conheciam a língua, mas comunicavam por gestos de simpatia. Ofereciam fruta e doces, objectos variados, pequenos nadas que davam prazer. Um jornalista referiu uma vez a agilidade e delicadeza com que uma dessas mulheres prisioneiras calçou umas luvas que acabava de receber. Com tanta facilidade e perfeição como se a isso estivesse habituada de longo data; e um dia em que uma senhora lhes ofereceu flores, com elas adornaram alegremente os seus penteados. As prisioneiras mostravam aos visitantes os seus trabalhos em missangas, com cores variadas e caprichosos desenhos. Estes apreciavam, elogiavam-lhes a arte, sorriam. Mas um dia acabaram-se as visitas, por o ministério as ter proibido. E então foi a solidão total. Tensão, crises de mau humor, cólera, emoções descontroladas, transgredindo assim a contenção imposta pela disciplina militar. O recluso tem de obedecer, mas os nervos começam a dar sinais de fadiga. Há gritos e ameaças, intervenção das forças da ordem. As mulheres choram, os homens são punidos. Era muito difícil, para um rei déspota e violento como Gungunhana, a renúncia calma ao prestígio de que gozara e a aceitação submissa do vencedor português. Cada vez mais angustiado e atormentado pelo receio da condenação à morte, Gungunhana atinge o limiar das suas forças. Adoece gravemente e tem de ser hospitalizado. A sua partida para o hospital impressionou de tal modo as rainhas, que estas quase deixaram de comer. Algumas delas adoeceram mesmo e o médico chegou a propor o seu internamento. No dia em que o marido regressou recuperado, foi grande a alegria das esposas, traduzida em carícias, gargalhadas e gritos de prazer que entoaram pelas celas. De repente a imprensa deixa de se interessar pelos prisioneiros africanos. O encanto da novidade tinha-se extinguido; e agora nada mais saberemos a seu respeito, a não ser que passaram os meses de Abril, Maio e Junho, na mais horrível solidão. Dias a decorrer na penumbra, incertos de futuro, exíguos de espaço, longos de monotonia, húmidos e frios. Até que, no dia 23 de Junho [de 1896] os jornais anunciam a partida do Gungunhana e dos seus três companheiros, na véspera, para os Açores. E as mulheres? Não partem, por enquanto. Apesar das visitas simpáticas que haviam recebido, a sociedade lisboeta havia-as rejeitado, escandalizada com a poligamia. Para acabar com o pecado, as autoridades haviam decidido separá-las do marido. Segundo contam os jornalistas, foi muito dolorosa a separação, nesse dia 22 de Junho, pelas 7 horas da manhã. Eles a tremer, de lágrimas nos olhos, convencidos de que iam ser mortos. Elas sem quererem separar-se deles, chorando, gritando, lamentando-se. Esquecidas pela multidão que antes rodeava o forte, abandonadas aparentemente pelas autoridades, a solidão destas mulheres tornou-se insuportável. Tiraram-lhes os seus companheiros; e ali ficam sozinhas, de 22 de Junho a 6 de Julho. Duas longas semanas de dor, de dúvida, de solidão e de medo. Caídas numa apatia total, nem forças tinham para qualquer eventual acesso de fúria. Era a segunda desagregação familiar que sofriam. A voz do sangue silenciada por razões de ordem moral e política. Desprevenidas, indefesas,arrancadas a laços e raízes, elas esperam não sabem o quê. Finalmente vem do Ministério a decisão: despachá-las para a ilha de São Tomé. Pelas 5 horas da manhã do dia 6 de Julho recebem então ordem para se vestir e partir. O sofrimento que deixam transparecer é tão grande que os próprios jornalistas se sentem comovidos e revoltados: “pobres expatriadas”que pareciam nem ter forças para se vestir. Ninguém para se despedir delas. À chegada, estavam as ruas cheias de gente, havia movimento e alegria; agora, à partida, é o desconsolador abandono total.
6. Transportam-nas até ao Arsenal e embarcam-nas no paquete São Tomé. Já no beliche, impressionam por um silêncio desolador. Umas estendidas, de olhos fechados, como se dormissem, outras, acocoradas e lacrimosas, olhando os circunstantes com pavor; duas recusavam-se a mostrar o rosto. Debilitadas pelo entorpecimento de quatro meses, dilaceradas pelo martírio da dúvida, refugiavam-se num mutismo impregnado de horror, receio e solidão. A separação dos régulos africanos das suas esposas, e o envio destas para São Tomé, parece ter sido a resposta a uma campanha de moralização, levada a cabo por um grupo de senhoras de bem, revoltadas contra a poligamia dos negros. Era, pois, uma campanha autorizada, promovida e apoiada por pessoas de bons costumes, que consideravam a presença daquelas mulheres como um insulto à moral pública. Além disso, sendo os Açores uma terra de grande religiosidade e pureza (salvaguardada e assegurada pelas casas de prostituição…), o governo não poderia permitir uma tal promiscuidade. A separação foi, pois, uma operação de limpeza, imposta pela moral tradicional. Digamos a propósito termos a notícia de que, nos Açores, os prisioneiros africanos eram levados, regularmente, às casas de prostituição da cidade de Angra do Heroísmo. Referem alguns jornalistas que se tentou convencer Gugunhana à monogamia. Como a moral portuguesa só admitia, publicamente, uma mulher, o régulo teria de escolher uma entre as setes e repudiar seis; o que, para estas, seria uma humilhação insuportável. Gungunhana amava-as todas igualmente; e não sabia nem quis escolher uma, pois cometeria para com as outras uma afronta que ele nunca se permitiria. Por isso foi firme e enérgico, coerente com os seus princípios. Tendo-se recusado a escolher uma, a separação foi inevitável. Bem pediu o régulo, bem suplicou, mas de nada lhe serviu. Jornais houve que protestaram contra esta decisão, prevendo para Gungunhana uma lenta agonia, minado de uma saudade e tristeza que lhe encurtaria os dias; o que realmente se deu. Nada, porém, abalou as cúpulas; e as suas ordens foram integralmente cumpridas. E lá partem para São Tomé, sozinhas, vazias de sonho, sem ninguém que lhes acene com o lenço da amizade; lá seguem pela imensidão de um mar revolto, sem ninguém que lhes estenda a mão da solidariedade, sem ninguém que lhes dirija um gesto de compreensão. Um jornalista comenta: “Em São Tomé, que sorte desgraçadíssima vão ter? Não seria mais justo, e muitíssimo mais digno, enviá-las para asua terra natal, de onde nunca deveriam ter saído?!” Era muito grave, aqui no continente, ser-se acusado de “propensões benévolas” para com o Gungunhana. Para se tomar o partido deste, era necessário não só muita coragem, como carecia de um preâmbulo filosófico, moral e religioso, com apelo à caridade. De contrário, corria-se o risco de ser acusado de traição à pátria. Ou de imoralidade. Ou de atentado aos princípios cristãos. Só depois de tomadas todas essas precauções,a Folha do Povoarrisca criticar e condenar ferozmente o comportamentodo Ministério da Guerra, que acusa de iníquo e cruelmente bárbaro. Igualmente encontramos críticas violentas no Jornal do Comércio, onde um jornalista, sob o pseudónimo de Fernão Lopes, põe em realce a hipocrisia do governo, escudado no que chama “escrúpulos religiosos” tardios. Fernão Lopes termina o seu artigo relembrando a maneira correcta e hospitaleira como os portugueses foram sempre recebidos por homens e mulheres da corte de Gungunhana.
7. Passados doze dias de náusea e imobilidade, as mulheres chegam a São Tomé e são entregues ao governador da ilha. Em que vão ocupá-las? Em São Tomé havia então um mundo confuso de imigrantes, vindos dos mais variados pontos de África, das mais diversas tribos, odiando-se por vezes. Basta olharmos as listas das levas que chegavam ou partiam, para nos darmos conta dessa variedade. Em comum, tinham apenas a cor da pele; e o trágico destino da falta de trabalho. Falavam dialectos diferentes e desconheciam-se entre si. Foi para o meio desta confusão que as rainhas destronadas foram levadas. Que destino lhes foi dado? A Folha do Povo, de 13 de Novembro desse ano de 1896, e respondendo a vários jornais de Lisboa, dá-nos algumas informações. Recordemos que, juntamente com as sete mulheres de Gungunhana, se encontravam mais três, as do régulo Zixaxa, suas companheiras de infortúnio desde o início do exílio. Eram, pois, dez ao todo. Segundo o citado jornal, oito destas mulheres estavam colocadas no hospital civil e militar; e as duas restantes no palácio do Governo. Constava pouco ou quase nada fazerem; e o articulista lamenta que, dado a falta de braços em São Tomé, as não tenham empregado “em qualquer trabalho útil,mediante remuneração condigna”. Vem a propósito lembrar que se tratava das mulheres grandes do régulo, isto é, as de mais elevada categoria social na hierarquia feminina, que tinham ao seu serviço as mulheres pequenas, espécie de ecónomas encarregadas de dirigir os bandos de escravos a trabalhar na corte. Eram, portanto, rainhas que nada costumavam fazer e sem hábitos de trabalho. J. F. Marques Pereira, na obra intitulada No Tempo de Gungunhana, publicada três anos mais tarde (1899), diz que as mulheres foram para São Tomé “servir de mancebas, em amiganços baratos, e para acarretar pedras”. E António Pedro de Vasconcelos no filme Aqui d’ El-Rei, faz dizer a uma das personagens que elas foram levadas para um “bordel do exército”. Não encontramos documentos oficiais que nos permitam negar ouconfirmar tais informações. Tratava-se de mulheres que só interessaram enquanto rainhas de um reino cobiçado pelos europeus. Destronado e preso o soberano, perdidas as esposas no meio da massa anónima santomense, o governo, não vendo nelas qualquer perigo, deixava-as cair no esquecimento.
8. Em São Tomé, as rainhas africanas dos reinos de Gaza e da Zixaxa foram ultrapassadas e absorvidas pela história. Quinze anos de esquecimento; quinze anos de trabalho silencioso, de dor ignorada, de sofrimento mudo que levaria três delas à morte. Num silêncio de deserto, as rainhas tinham sido tornadas escravas submissas, feitas consentimento e conformismo. Enigmas de uma grandeza descaída. Mas em 1910 é implantada a república; e muita coisa vai mudar. Alguém se lembra dessas mulheres exiladas e decide que regressem ao país. Comédia eleitoralista ou desejo de reparação? Gungunhana já havia falecido em 1906. A ordem de repatriamento, em 1911, foi sem dúvida recebida com euforia; era a esperança do regresso a casa que renascia. Só que já não havia casa. Nem país. Gaza tornara-se num distrito da colónia de Moçambique. Os familiares tinham-se espalhado, cada um para seu lado, alguns presos, outros refugiados no estrangeiro. Era a desintegração progressiva dos pequenos estados indígenas e a substituição dos costumes africanos pelos europeus. Desconfiadas, assustadas, sem o elo de união que era o marido, só o medo as irmanava agora; e cada uma vai para seu lado.
9. Eram sete, regressavam quatro. As três mais vulneráveis haviam atingido o limite que desemboca na morte: Muzamussi, Dabondi e Fussi haviam ficado sepultadas em terra santomense. Patihina volta a casa, mas o medo lavra na família e ela decide fugir para o Transvaal, com o filho Tulimahanche. Foram juntar-se aos milhares de emigrados de Gaza, amigos e familiares de Gungunhana, que se haviam fixado em Spelonken. Tulimahanche seria, em 1932, o chefe de um dos dois grupos de exilados angunes que aí existiam então. Namatuco, Chlézipe e Machacha traziam filhos arranjados em S.Tomé, nos quinze anos de exílio; filhos que, nada tendo com Gungunhana, não corriam o risco de vir a ser presos pelos portugueses. Por isso não recearam em fixar-se na região onde tinham vivido anteriormente: Chaimite, Chibuto e Chai-Chai, respectivamente. Tinham cumprido plenamente o destino ancestral da mulher: resignar-se e sofrer, numa passividade submissa. Já no seu país, continuarão a cumprir o mesmo destino, como “criadas de servir”.
10. E terminamos. Com este trabalho, tivemos a intenção de dar som às vozes silenciosas de mulheres que sofreram cruelmente no todo das suas vidas, o que de mais negativo pôde haver no encontro da cultura africana com a cultura europeia. Mulheres esquecidas, relegadas para a periferia da história, quando elas estavam, afinal, bem no centro dessa história. Elas eram as rainhas do império de Gaza, onde tinham exercido uma importante função política. Elas eram as esposas do então maior potentado da África austral, pelo que pagaram com quinze anos de exílio. Moralmente mutiladas, elas foram as vítimas inocentes de um evoluir da história africana, provocado por decisões e projectos da Europa, os quais levaram a alterações sócio-políticas que as afectaram no mais fundo das suas idiossincrasias. Desfeita a sua vida privada, desagregada a sua família, estas mulheres tornaram-se o símbolo de uma África desmonorada e dividida por ideologias levadas da Europa.
* Maria Vilhena  é autora de vários livros: "Gungunhana no Seu Reino", "Gungunhana" entre outros