AS MULHERES DE GUNGUNHANA, POR MARIA DA CONCEIÇÃO VILHENA
1.
No último quartel do século XIX, nas terras do sul de Moçambique, entre os rios
Incomáti e Zambeze, Gungunhana impunha-se como o maior potentado africano. Era
o senhor do reino de Gaza, tinha mais de uma centena de vassalos e possuía uma
enorme riqueza, constituída por ouro, marfim e rebanhos de gado. O seu
prestígio político e social vinha-lhe ainda do facto de possuir entre 200 a 300
esposas: 40 viviam junto da corte e as restantes habitavam nas aldeias
circunvizinhas. A aquisição de novas esposas fazia-se a um ritmo quase
bimestral; e cada casamento era sempre causa de maior engrandecimento, por
permitir novas alianças e atrair grande número de presentes. Era uma grande
honra ter o régulo de Gaza como genro e protector. Seria demasiado longo
falarmos da vida que levavam estas mulheres,em geral; por isso nos limitaremos
às sete que acompanharam o marido no exílio.
2.
No dia 28 de Dezembro de 1895, após algumas tentativas de negociações e a
derrota de Coolela, seguida do incêndio do Manjacaze, a capital de Gaza,
Gungunhana foi feito prisioneiro em Chaimite, por Mousinho de Albuquerque. O
oficial português deu então ordem ao régulo para que escolhesse sete de entre
as suas mulheres, que o acompanhariam no seu incerto destino. Foram [seis]
delas: Namatuco, Patihina, Muzamussi,Machacha, Xesipe e Dabondi. Feitas as suas
poucas bagagens, lá seguiram os prisioneiros a pé durante algumas horas, até
chegarem a Zimacaze, na foz do Chengane. Aí embarcaram na canhoneira Capelo,
que os estava esperando e os transporta até Chai-Chai. A propósito deste
embarque, queremos lembrar que, na cultura angune, havia um tabu proibitivo de
entrar na água e comer peixe. Os prisioneiros devem, pois, ter sido invadidos
pelo horror de viajar de barco, o que irá repetir-se, por várias vezes, até ao
fim da deportação. Com os onze prisioneiros do Manjacaze (Gungunhana, o filho
Godide, o tio Molungo, o cozinheiro Gó e as sete mulheres), embarcam também o
régulo da Zixaxa e três mulheres deste, cuja sorte iria ser igual à dos outros.
Em Chai-Chai, na foz do Limpopo, passam então para o navio Neves
Ferreira, que os transporta até Lourenço Marques, onde chegam no dia 4 de
Janeiro [de 1896]. Aí desembarcam e são mantidos na cadeia homens e mulheres,
até serem levados para bordo do África, após o seu reconhecimento
oficial, feito em público. Neste navio África fariam uma
viagem de 60 dias, até Lisboa. As condições a bordo deviam ser péssimas, pois
Gungunhana e seus companheiros, num total de 15 pessoas, ocupavam apenas dois
compartimentos pequenos, escuros e mal arejados. Por razões de segurança, aí
ficavam fechados à chave, sempre que o barco fazia escala em qualquer porto. E
foi o enjôo, a asfixia, a imobilidade, a juntar à angústia da dúvida sobre o
futuro que os esperava. Os jornalistas falam mesmo da tentativa de suicídio por
parte de uma das mulheres…
3.
Na manhã do dia 13 de Março de 1896, desembarcam em Lisboa e são conduzidos em
caleches descobertas, do Arsenal até ao forte de Monsanto. Lisboa em festa, a abarrotar
de multidões ruidosas. O público, apinhado pelas ruas, empoleirado em postes,
debruçado das janelas, aos magotes, como enxames, ri, grita, vaia eufórico.
Dentro das carruagens, os prisioneiros olham temerosos e embaraçados; eles com
ar estupefacto, perplexo; elas apontando, curiosas e divertidas. Nunca tinham
visto casas tão altas, com varandas, ruas calcetadas, praças com fontes e
estátuas. E tanta gente alegre, a observá-las, durante todo o percurso. As
mulheres africanas parecem bem dispostas. Do Terreiro do Paço seguiu o cortejo
pela Rua do Ouro, Avenida da Liberdade, São Sebastião da Pedreira, Sete Rios,
Benfica, rumo a Monsanto. Por todo o lado, em todo o percurso, era aquela mole
imensa de gente, às gargalhadas e a insultar. Porém o desconhecimento da língua
portuguesa dava às prisioneiras a vantagem de não compreenderem o ódio e a
ironia da arraia miúda e assim, na sua inocência, poderem continuar a sorrir.
Era o dia 13, uma sexta-feira de céu cinzento. Se os africanos tivessem as
mesmas superstições que os brancos, tanto bastaria para que os maus presságios
agudizassem ainda mais a angústia que os atormentava. A tarde aproxima-se do
seu fim, quando chegam ao Forte de Monsanto. São seis horas e, em Março, o sol
está a esconder-se. As instalações onde são recebidas nada têm de semelhante
àquelas casas que, na Baixa, as haviam deslumbrado. Passada a ponte levadiça,
entram numa masmorra, onde a escuridão era quase total. As mulheres estão agora
assustadas e o terror estampa-se-lhes no rosto. O quarto que lhes haviam
destinado, encontrava-se seis metros abaixo da superfície. Espaço escuro,
bafiento, mal cheiroso, húmido e frio. Suspiravam amedrontadas e foi necessário
tranquilizá-las; mas continuaram a tremer de frio e talvez de medo. Assim as encontrou
o médico encarregado de examinar o seu estado de saúde. São-lhes mostradas as
camas e explicam-lhes como são utilizadas. Até então haviam dormido no chão,
sobre esteiras. Convencidas finalmente de que não lhes iria acontecer mal, ao
entrarem nas camas riram ruidosamente. Nesta fortaleza de Monsanto iriam ficar
encerradas durante quatro meses, aproximadamente. Gente habituada a viver ao ar
livre, em contacto com a natureza e em constante movimento, vê-se agora privada
da largueza dos seus espaços e da quentura do seu clima; imóveis e geladas
entre quatro paredes do calabouço, num entorpecimento do corpo e do espírito.
Detestam a comida portuguesa e queixam-se constantemente de frio. Entretanto,
aprendem a utilizar talheres e passam a usar vestuário europeu.
4.
Como passavam o tempo essas mulheres prisioneiras?
Grande parte do seu dia era ocupado a pentearem-se, pois usavam um penteado artístico, alto, entre o cónico e o cilíndrico, que constituía um dos distintivos das mulheres grandes do Gungunhana. As mulheres pequenas, ou seja, as rainhas de segunda classe, não tinham o direito deusar esse tipo de penteado. Quanto à favorita, tinha outra ocupação, pois cabia-lhe o dever de manter sempre brilhante a coroa de cera que o marido usava e que era tecida no próprio cabelo. Além disso, dedicavam-se ao artesanato, fazendo pulseiras e colares de missangas, artisticamente trabalhados. Ao princípio, a monotonia dos dias foi quebrada pelas muitas visitas que recebiam. As esposas de ministros, ou de outras altas individualidades, conseguiam a autorização do Ministério da Guerra e iam até Monsanto, entravam nos calabouços, sorriam, levavam presentes. Por curiosidade ou para cumprir o dever de visitar os presos. Não conheciam a língua, mas comunicavam por gestos de simpatia. Ofereciam fruta e doces, objectos variados, pequenos nadas que davam prazer. Um jornalista referiu uma vez a agilidade e delicadeza com que uma dessas mulheres prisioneiras calçou umas luvas que acabava de receber. Com tanta facilidade e perfeição como se a isso estivesse habituada de longo data; e um dia em que uma senhora lhes ofereceu flores, com elas adornaram alegremente os seus penteados. As prisioneiras mostravam aos visitantes os seus trabalhos em missangas, com cores variadas e caprichosos desenhos. Estes apreciavam, elogiavam-lhes a arte, sorriam. Mas um dia acabaram-se as visitas, por o ministério as ter proibido. E então foi a solidão total. Tensão, crises de mau humor, cólera, emoções descontroladas, transgredindo assim a contenção imposta pela disciplina militar. O recluso tem de obedecer, mas os nervos começam a dar sinais de fadiga. Há gritos e ameaças, intervenção das forças da ordem. As mulheres choram, os homens são punidos. Era muito difícil, para um rei déspota e violento como Gungunhana, a renúncia calma ao prestígio de que gozara e a aceitação submissa do vencedor português. Cada vez mais angustiado e atormentado pelo receio da condenação à morte, Gungunhana atinge o limiar das suas forças. Adoece gravemente e tem de ser hospitalizado. A sua partida para o hospital impressionou de tal modo as rainhas, que estas quase deixaram de comer. Algumas delas adoeceram mesmo e o médico chegou a propor o seu internamento. No dia em que o marido regressou recuperado, foi grande a alegria das esposas, traduzida em carícias, gargalhadas e gritos de prazer que entoaram pelas celas. De repente a imprensa deixa de se interessar pelos prisioneiros africanos. O encanto da novidade tinha-se extinguido; e agora nada mais saberemos a seu respeito, a não ser que passaram os meses de Abril, Maio e Junho, na mais horrível solidão. Dias a decorrer na penumbra, incertos de futuro, exíguos de espaço, longos de monotonia, húmidos e frios. Até que, no dia 23 de Junho [de 1896] os jornais anunciam a partida do Gungunhana e dos seus três companheiros, na véspera, para os Açores. E as mulheres? Não partem, por enquanto. Apesar das visitas simpáticas que haviam recebido, a sociedade lisboeta havia-as rejeitado, escandalizada com a poligamia. Para acabar com o pecado, as autoridades haviam decidido separá-las do marido. Segundo contam os jornalistas, foi muito dolorosa a separação, nesse dia 22 de Junho, pelas 7 horas da manhã. Eles a tremer, de lágrimas nos olhos, convencidos de que iam ser mortos. Elas sem quererem separar-se deles, chorando, gritando, lamentando-se. Esquecidas pela multidão que antes rodeava o forte, abandonadas aparentemente pelas autoridades, a solidão destas mulheres tornou-se insuportável. Tiraram-lhes os seus companheiros; e ali ficam sozinhas, de 22 de Junho a 6 de Julho. Duas longas semanas de dor, de dúvida, de solidão e de medo. Caídas numa apatia total, nem forças tinham para qualquer eventual acesso de fúria. Era a segunda desagregação familiar que sofriam. A voz do sangue silenciada por razões de ordem moral e política. Desprevenidas, indefesas,arrancadas a laços e raízes, elas esperam não sabem o quê. Finalmente vem do Ministério a decisão: despachá-las para a ilha de São Tomé. Pelas 5 horas da manhã do dia 6 de Julho recebem então ordem para se vestir e partir. O sofrimento que deixam transparecer é tão grande que os próprios jornalistas se sentem comovidos e revoltados: “pobres expatriadas”que pareciam nem ter forças para se vestir. Ninguém para se despedir delas. À chegada, estavam as ruas cheias de gente, havia movimento e alegria; agora, à partida, é o desconsolador abandono total.
Grande parte do seu dia era ocupado a pentearem-se, pois usavam um penteado artístico, alto, entre o cónico e o cilíndrico, que constituía um dos distintivos das mulheres grandes do Gungunhana. As mulheres pequenas, ou seja, as rainhas de segunda classe, não tinham o direito deusar esse tipo de penteado. Quanto à favorita, tinha outra ocupação, pois cabia-lhe o dever de manter sempre brilhante a coroa de cera que o marido usava e que era tecida no próprio cabelo. Além disso, dedicavam-se ao artesanato, fazendo pulseiras e colares de missangas, artisticamente trabalhados. Ao princípio, a monotonia dos dias foi quebrada pelas muitas visitas que recebiam. As esposas de ministros, ou de outras altas individualidades, conseguiam a autorização do Ministério da Guerra e iam até Monsanto, entravam nos calabouços, sorriam, levavam presentes. Por curiosidade ou para cumprir o dever de visitar os presos. Não conheciam a língua, mas comunicavam por gestos de simpatia. Ofereciam fruta e doces, objectos variados, pequenos nadas que davam prazer. Um jornalista referiu uma vez a agilidade e delicadeza com que uma dessas mulheres prisioneiras calçou umas luvas que acabava de receber. Com tanta facilidade e perfeição como se a isso estivesse habituada de longo data; e um dia em que uma senhora lhes ofereceu flores, com elas adornaram alegremente os seus penteados. As prisioneiras mostravam aos visitantes os seus trabalhos em missangas, com cores variadas e caprichosos desenhos. Estes apreciavam, elogiavam-lhes a arte, sorriam. Mas um dia acabaram-se as visitas, por o ministério as ter proibido. E então foi a solidão total. Tensão, crises de mau humor, cólera, emoções descontroladas, transgredindo assim a contenção imposta pela disciplina militar. O recluso tem de obedecer, mas os nervos começam a dar sinais de fadiga. Há gritos e ameaças, intervenção das forças da ordem. As mulheres choram, os homens são punidos. Era muito difícil, para um rei déspota e violento como Gungunhana, a renúncia calma ao prestígio de que gozara e a aceitação submissa do vencedor português. Cada vez mais angustiado e atormentado pelo receio da condenação à morte, Gungunhana atinge o limiar das suas forças. Adoece gravemente e tem de ser hospitalizado. A sua partida para o hospital impressionou de tal modo as rainhas, que estas quase deixaram de comer. Algumas delas adoeceram mesmo e o médico chegou a propor o seu internamento. No dia em que o marido regressou recuperado, foi grande a alegria das esposas, traduzida em carícias, gargalhadas e gritos de prazer que entoaram pelas celas. De repente a imprensa deixa de se interessar pelos prisioneiros africanos. O encanto da novidade tinha-se extinguido; e agora nada mais saberemos a seu respeito, a não ser que passaram os meses de Abril, Maio e Junho, na mais horrível solidão. Dias a decorrer na penumbra, incertos de futuro, exíguos de espaço, longos de monotonia, húmidos e frios. Até que, no dia 23 de Junho [de 1896] os jornais anunciam a partida do Gungunhana e dos seus três companheiros, na véspera, para os Açores. E as mulheres? Não partem, por enquanto. Apesar das visitas simpáticas que haviam recebido, a sociedade lisboeta havia-as rejeitado, escandalizada com a poligamia. Para acabar com o pecado, as autoridades haviam decidido separá-las do marido. Segundo contam os jornalistas, foi muito dolorosa a separação, nesse dia 22 de Junho, pelas 7 horas da manhã. Eles a tremer, de lágrimas nos olhos, convencidos de que iam ser mortos. Elas sem quererem separar-se deles, chorando, gritando, lamentando-se. Esquecidas pela multidão que antes rodeava o forte, abandonadas aparentemente pelas autoridades, a solidão destas mulheres tornou-se insuportável. Tiraram-lhes os seus companheiros; e ali ficam sozinhas, de 22 de Junho a 6 de Julho. Duas longas semanas de dor, de dúvida, de solidão e de medo. Caídas numa apatia total, nem forças tinham para qualquer eventual acesso de fúria. Era a segunda desagregação familiar que sofriam. A voz do sangue silenciada por razões de ordem moral e política. Desprevenidas, indefesas,arrancadas a laços e raízes, elas esperam não sabem o quê. Finalmente vem do Ministério a decisão: despachá-las para a ilha de São Tomé. Pelas 5 horas da manhã do dia 6 de Julho recebem então ordem para se vestir e partir. O sofrimento que deixam transparecer é tão grande que os próprios jornalistas se sentem comovidos e revoltados: “pobres expatriadas”que pareciam nem ter forças para se vestir. Ninguém para se despedir delas. À chegada, estavam as ruas cheias de gente, havia movimento e alegria; agora, à partida, é o desconsolador abandono total.
6.
Transportam-nas até ao Arsenal e embarcam-nas no paquete São Tomé.
Já no beliche, impressionam por um silêncio desolador. Umas estendidas, de
olhos fechados, como se dormissem, outras, acocoradas e lacrimosas, olhando os
circunstantes com pavor; duas recusavam-se a mostrar o rosto. Debilitadas pelo
entorpecimento de quatro meses, dilaceradas pelo martírio da dúvida,
refugiavam-se num mutismo impregnado de horror, receio e solidão. A separação
dos régulos africanos das suas esposas, e o envio destas para São Tomé, parece
ter sido a resposta a uma campanha de moralização, levada a cabo por um grupo
de senhoras de bem, revoltadas contra a poligamia dos negros. Era, pois, uma
campanha autorizada, promovida e apoiada por pessoas de bons costumes, que
consideravam a presença daquelas mulheres como um insulto à moral pública. Além
disso, sendo os Açores uma terra de grande religiosidade e pureza
(salvaguardada e assegurada pelas casas de prostituição…), o governo não
poderia permitir uma tal promiscuidade. A separação foi, pois, uma operação de
limpeza, imposta pela moral tradicional. Digamos a propósito termos a notícia
de que, nos Açores, os prisioneiros africanos eram levados, regularmente, às
casas de prostituição da cidade de Angra do Heroísmo. Referem alguns
jornalistas que se tentou convencer Gugunhana à monogamia. Como a moral
portuguesa só admitia, publicamente, uma mulher, o régulo teria de escolher uma
entre as setes e repudiar seis; o que, para estas, seria uma humilhação
insuportável. Gungunhana amava-as todas igualmente; e não sabia nem quis
escolher uma, pois cometeria para com as outras uma afronta que ele nunca se
permitiria. Por isso foi firme e enérgico, coerente com os seus princípios.
Tendo-se recusado a escolher uma, a separação foi inevitável. Bem pediu o
régulo, bem suplicou, mas de nada lhe serviu. Jornais houve que protestaram
contra esta decisão, prevendo para Gungunhana uma lenta agonia, minado de uma
saudade e tristeza que lhe encurtaria os dias; o que realmente se deu. Nada,
porém, abalou as cúpulas; e as suas ordens foram integralmente cumpridas. E lá
partem para São Tomé, sozinhas, vazias de sonho, sem ninguém que lhes acene com
o lenço da amizade; lá seguem pela imensidão de um mar revolto, sem ninguém que
lhes estenda a mão da solidariedade, sem ninguém que lhes dirija um gesto de
compreensão. Um jornalista comenta: “Em São Tomé, que sorte desgraçadíssima vão
ter? Não seria mais justo, e muitíssimo mais digno, enviá-las para asua terra
natal, de onde nunca deveriam ter saído?!” Era muito grave, aqui no continente,
ser-se acusado de “propensões benévolas” para com o Gungunhana. Para se tomar o
partido deste, era necessário não só muita coragem, como carecia de um
preâmbulo filosófico, moral e religioso, com apelo à caridade. De contrário,
corria-se o risco de ser acusado de traição à pátria. Ou de imoralidade. Ou de
atentado aos princípios cristãos. Só depois de tomadas todas essas precauções,a Folha
do Povoarrisca criticar e condenar ferozmente o comportamentodo Ministério
da Guerra, que acusa de iníquo e cruelmente bárbaro. Igualmente encontramos
críticas violentas no Jornal do Comércio, onde um jornalista, sob o
pseudónimo de Fernão Lopes, põe em realce a hipocrisia do governo, escudado no
que chama “escrúpulos religiosos” tardios. Fernão Lopes termina o seu artigo
relembrando a maneira correcta e hospitaleira como os portugueses foram sempre
recebidos por homens e mulheres da corte de Gungunhana.
7.
Passados doze dias de náusea e imobilidade, as mulheres chegam a São Tomé e são
entregues ao governador da ilha. Em que vão ocupá-las? Em São Tomé havia então
um mundo confuso de imigrantes, vindos dos mais variados pontos de África, das
mais diversas tribos, odiando-se por vezes. Basta olharmos as listas das levas
que chegavam ou partiam, para nos darmos conta dessa variedade. Em comum,
tinham apenas a cor da pele; e o trágico destino da falta de trabalho. Falavam
dialectos diferentes e desconheciam-se entre si. Foi para o meio desta confusão
que as rainhas destronadas foram levadas. Que destino lhes foi dado? A Folha
do Povo, de 13 de Novembro desse ano de 1896, e respondendo a vários
jornais de Lisboa, dá-nos algumas informações. Recordemos que, juntamente com
as sete mulheres de Gungunhana, se encontravam mais três, as do régulo Zixaxa,
suas companheiras de infortúnio desde o início do exílio. Eram, pois, dez ao
todo. Segundo o citado jornal, oito destas mulheres estavam colocadas no
hospital civil e militar; e as duas restantes no palácio do Governo. Constava
pouco ou quase nada fazerem; e o articulista lamenta que, dado a falta de
braços em São Tomé, as não tenham empregado “em qualquer trabalho útil,mediante
remuneração condigna”. Vem a propósito lembrar que se tratava das mulheres
grandes do régulo, isto é, as de mais elevada categoria social na hierarquia
feminina, que tinham ao seu serviço as mulheres pequenas, espécie de ecónomas
encarregadas de dirigir os bandos de escravos a trabalhar na corte. Eram,
portanto, rainhas que nada costumavam fazer e sem hábitos de trabalho. J. F.
Marques Pereira, na obra intitulada No Tempo de Gungunhana,
publicada três anos mais tarde (1899), diz que as mulheres foram para São Tomé
“servir de mancebas, em amiganços baratos, e para acarretar pedras”. E António
Pedro de Vasconcelos no filme Aqui d’ El-Rei, faz dizer a uma das
personagens que elas foram levadas para um “bordel do exército”. Não
encontramos documentos oficiais que nos permitam negar ouconfirmar tais
informações. Tratava-se de mulheres que só interessaram enquanto rainhas de um
reino cobiçado pelos europeus. Destronado e preso o soberano, perdidas as
esposas no meio da massa anónima santomense, o governo, não vendo nelas
qualquer perigo, deixava-as cair no esquecimento.
8.
Em São Tomé, as rainhas africanas dos reinos de Gaza e da Zixaxa foram
ultrapassadas e absorvidas pela história. Quinze anos de esquecimento; quinze
anos de trabalho silencioso, de dor ignorada, de sofrimento mudo que levaria
três delas à morte. Num silêncio de deserto, as rainhas tinham sido tornadas
escravas submissas, feitas consentimento e conformismo. Enigmas de uma grandeza
descaída. Mas em 1910 é implantada a república; e muita coisa vai mudar. Alguém
se lembra dessas mulheres exiladas e decide que regressem ao país. Comédia
eleitoralista ou desejo de reparação? Gungunhana já havia falecido em 1906. A
ordem de repatriamento, em 1911, foi sem dúvida recebida com euforia; era a
esperança do regresso a casa que renascia. Só que já não havia casa. Nem país.
Gaza tornara-se num distrito da colónia de Moçambique. Os familiares tinham-se
espalhado, cada um para seu lado, alguns presos, outros refugiados no
estrangeiro. Era a desintegração progressiva dos pequenos estados indígenas e a
substituição dos costumes africanos pelos europeus. Desconfiadas, assustadas,
sem o elo de união que era o marido, só o medo as irmanava agora; e cada uma
vai para seu lado.
9.
Eram sete, regressavam quatro. As três mais vulneráveis haviam atingido o limite
que desemboca na morte: Muzamussi, Dabondi e Fussi haviam ficado sepultadas em
terra santomense. Patihina volta a casa, mas o medo lavra na família e ela
decide fugir para o Transvaal, com o filho Tulimahanche. Foram juntar-se aos
milhares de emigrados de Gaza, amigos e familiares de Gungunhana, que se haviam
fixado em Spelonken. Tulimahanche seria, em 1932, o chefe de um dos dois grupos
de exilados angunes que aí existiam então. Namatuco, Chlézipe e Machacha
traziam filhos arranjados em S.Tomé, nos quinze anos de exílio; filhos que,
nada tendo com Gungunhana, não corriam o risco de vir a ser presos pelos
portugueses. Por isso não recearam em fixar-se na região onde tinham vivido
anteriormente: Chaimite, Chibuto e Chai-Chai, respectivamente. Tinham cumprido
plenamente o destino ancestral da mulher: resignar-se e sofrer, numa
passividade submissa. Já no seu país, continuarão a cumprir o mesmo destino,
como “criadas de servir”.
10.
E terminamos. Com este trabalho, tivemos a intenção de dar som às vozes silenciosas
de mulheres que sofreram cruelmente no todo das suas vidas, o que de mais
negativo pôde haver no encontro da cultura africana com a cultura europeia.
Mulheres esquecidas, relegadas para a periferia da história, quando elas
estavam, afinal, bem no centro dessa história. Elas eram as rainhas do império
de Gaza, onde tinham exercido uma importante função política. Elas eram as
esposas do então maior potentado da África austral, pelo que pagaram com quinze
anos de exílio. Moralmente mutiladas, elas foram as vítimas inocentes de um
evoluir da história africana, provocado por decisões e projectos da Europa, os
quais levaram a alterações sócio-políticas que as afectaram no mais fundo das
suas idiossincrasias. Desfeita a sua vida privada, desagregada a sua família,
estas mulheres tornaram-se o símbolo de uma África desmonorada e dividida por
ideologias levadas da Europa.
* Maria Vilhena
é autora
de vários livros: "Gungunhana no Seu Reino", "Gungunhana" entre outros
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